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ciúmes revista psicanalítica

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ISSN 1516-9162
REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
n. 37, jul./dez. 2009
CIÚMES
ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
Porto Alegre
R454
Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre / Associação
Psicanalítica de Porto Alegre. - Vol. 1, n. 1 (1990). - Porto Alegre: APPOA, 1990, -
Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
Semestral
ISSN 1516-9162
1. Psicanálise - Periódicos. I. Associação Psicanalítica de Porto Alegre
CDU 159.964.2(05)
CDD 616.891.7
Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837
Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de
Psicologia (http://www.bvs-psi.org.br/)
Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br
Impressa em junho 2010. Tiragem 500 exemplares.
REVISTA DA ASSOCIAÇÃO
PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
EXPEDIENTE
Publicação Interna
n. 37, jul./dez. 2009
Título deste número:
CIÚMES
Editores:
Valéria Machado Rilho e Beatriz Kauri dos Reis
Comissão Editorial:
Beatriz Kauri dos Reis, Deborah Pinho, Glaucia Escalier Braga,
Maria Ângela Bulhões, Otávio Augusto W. Nunes,
Sandra Djambolakdjan Torossian, Valéria Machado Rilho.
Colaboradores deste número:
Marta Pedó, Paulo Afonso R. Santos e Maria Lúcia Stein
Editoração:
Jaqueline M. Nascente
Consultoria lingüística:
Dino del Pino
Capa:
Clóvis Borba
Linha Editorial:
A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que
tem por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém
estudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições
temáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da
venda avulsa, a Revista é distribuída a assinantes e membros da APPOA e em permuta e/ou
doação a instituições científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.
ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICADE PORTO ALEGRE
Rua Faria Santos, 258 Bairro: Petrópolis 90670-150 – Porto Alegre / RS
Fone: (51) 3333.2140 – Fax: (51) 3333.7922
E-mail: appoa@appoa.com.br - Home-page: www.appoa.com.br
ISSN 1516-9162
CIÚMES
SUMÁRIO
 EDITORIAL............................ 07
 TEXTOS
Psicopatologia da vida amorosa 09
Psicopathology of love life
Ângela Brasil
Os primórdios da construção
do ciúme e sua relação com
a constituição do laço social ..... 22
The beginnings of jealousy construction and its
relation to the constitution of the social tie
Robert Levy
Sobre o ciúmes ................................. 31
On jealousy
Daniel Paola
Sobre os tipos de ciúmes............. 36
About the different kinds of jealousy
Lúcia Alves Mees
Do ciúmes e da inveja ................... 46
On jealousy and envy
Marcia Helena de Menezes Ribeiro
O delírio de ciúme na gramática
da psicanálise: notas sobre a
psicopatologia dos
delírios passionais ........................ 55
Jelousy delirium in the psychoanalitical grammar:
notes about the psychopathology
of passionate delirium
Nilson Sibemberg
Um dente de ciúme na ficção
machadiana ........................................ 62
A clove of jealousy in the machadian fiction
Lucia Serrano Pereira
Sobre o amor e os ciúmes:
variações e desventuras
O pequeno Eyolf ............................... 75
On love and jealousy: variations and
misadventures The little Eyolf
Isidoro Vegh
 RECORDAR, REPETIR,
 ELABORAR
Amor pela mãe e amor materno ..112
Love for the mother and mother love
Alice Balint
 ENTREVISTA
Somos sempre ciumentos? ........ 131
Are we always jealous?
Antonio Quinet
 VARIAÇÕES
Lirismo, modernidade
e cantiga enganosa ...................... 137
Lyricism, modernity and deceiving lyrics
Antônio Marcos V. Sanseverino
A dúvida que não quer
(e não deve) calar ........................... 155
The doubt that does not (and should not) silence
Paulo Gleich
A banda de Mahler e
o violino sinistro ............................ 164
The Mahler band and the sinister violin
Elaine Starosta Foguel
Algumas observações acerca
de Um amor de Swann ................... 87
Observations on A love of swann
Martine Lerude
Ser o mano ...................................... 102
Brothers
Otávio Augusto Winck Nunes
7
EDITORIAL
Freud, esse grande pesquisador, percorreu a mente humana em diversasperspectivas, passando pelos fatos mais triviais de nossa constituição sub-
jetiva até aqueles mais representativos de nossa psicopatologia. Dessa forma,
em relação ao tema de nossa Revista, ele começou tratando do que considerou
um tipo normal de ciúme, aquele que acompanha o sujeito desde a rivalidade
entre os irmãos pela posse do amor exclusivo da mãe ou mesmo do ciúme do
amor existente entre os pais. Seguindo suas observações na direção da
psicopatologia, nos apresentou o ciúme na sua dimensão delirante, que é acom-
panhada da convicção inabalável de uma traição.
Portanto, no espaço intermediário entre o ciúme comum e o ciúme deli-
rante, descortina-se um campo a mapear. Questões se apresentam: o amor
vem sempre acompanhado do desejo de possuir o objeto? O ciúme é a demons-
tração de tal anseio de posse? Serão as mulheres mais ciumentas que os
homens? Quando o ciúme se torna sintoma? Há um ciúme tipicamente mascu-
lino e outro feminino? Essas questões interessam ao psicanalista na sua práti-
ca cotidiana? Ou são apenas dúvidas para serem tratadas por revistas de com-
portamento?
Hoje, inclusive por causa da Psicanálise, os temas que tratam dos afetos
humanos interessam à reflexão de número muito maior de pessoas. Todos têm
alguma história para contar de alguma situação de ciúme que pôde levar ao
choro e talvez, depois, ao riso, quando não ao contrário. Sendo assim todos
queremos entendê-lo melhor.
De qualquer forma se tomamos esse tema em discussão mais aprofundada
temos que, como Freud nos ensinou, partir do conhecimento que nos foi trans-
8
EDITORIAL
mitido pela Psicanálise, avançar nas hipóteses levantadas, e construir novos
pontos de vista. Ou, como Lacan nos ensinou, procurar os pontos que podem
definir a estrutura e caminhar na elucidação dessa cena familiar e na sua repe-
tição.
O que podemos iniciar afirmando é que o ciúme flerta com a totalidade:
aquela encontrada na certeza delirante da loucura, a pretendida pelo ciumento,
que quer tudo saber sobre o desejo do outro, ou ainda, a totalidade da idealização
do objeto que o sujeito teme perder para um outro. Na busca do domínio do
objeto de amor e desejo, o ciumento é atormentado pela dúvida. Talvez o enigma
do desejo que nos deixa um tanto quanto à deriva e sem mapas de navegação
busque no ciúme uma pista de fixação. A literatura tão bem demonstra, com
Machado de Assis e seu personagem Dom Casmurro, expressão máxima da
dúvida do ciumento, que a busca da certeza pode se dar na composição de uma
teoria a qual sofre o risco de chegar a ser delirante.
De qualquer forma, mesmo que todas as dúvidas não sejam resolvidas
através da leitura de nossos textos, estão lançadas questões instigantes sobre
esse tema, que mereceu interesse e nossa investigação.
TEXTOS
9
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 37, p. 9-21, jul./dez. 2009
Resumo: O texto desdobra o caráter delirante que as manifestações de ciúmes
tidas como “normais” pelo senso comum carregam em si, bem como situa as
origens do ciúme e seu papel na constituição do sujeito.
Palavras-chave: ciúmes, amor, identificação, narcisismo, projeção.
PSICOPATHOLOGY OF LOVE LIFE
Abstract: The article unfolds the delusional character carried within the so called
“normal” jealousy expressions, as well as situates the origins of jealousy and its
role in the subject constitution.
Keywords: jealousy, love, identification, narcissism, projection.
PSICOPATOLOGIA
DA VIDA AMOROSA1
Ângela Brasil2
1 Texto elaborado a partir do trabalho apresentado na Jornada de Abertura da APPOA: Ciú-
mes, realizada em Porto Alegre, abril de 2009.
2 Psicanalista; Membro da APPOA.
1010
Ângela Brasil
Como ciumento sofroquatro vezes:
porque sou ciumento, porque me reprovo de sê-lo,
porque temo que meu ciúme machuque o outro, porque
 me deixo dominar por uma banalidade: sofro por ser excluído,
por ser agressivo, por ser louco, por ser comum.
Roland Barthes
Quando o assunto é ciúme, ninguém fica indiferente, o que inclui os quetentam estudá-lo. Aliás, os poucos textos sobre o assunto são rebusca-
dos, barrocos, dramáticos como letras de tango, talvez para dar conta do ex-
cessivo que o tema comporta. Entretanto, não deixa de causar espanto consta-
tar que psicanalistas, ou psicoterapeutas, fazem coro com o senso comum,
referindo-se aos ciúmes como “insegurança”, “baixa auto-estima”, “faz parte do
amor” e assim por diante, esquecendo o que Freud nos ensinou sobre projeção
e seu efeito de desconhecimento dos próprios desejos.
Para lembrar, à guisa de introdução, Freud ([1922] 1976) se refere ao
ciúme como um dos estados emocionais que, como o luto, podem ser descritos
como normais. E aqui, chama atenção a insistência do uso do termo “normal”
pelo autor de Psicopatologia da vida cotidiana (Freud, [1901] 1976), que, no
mais das vezes, faz questão de romper esses limites entre a norma e a patolo-
gia. Embora afirmando a existência dos ciúmes normais, Freud ([1922] 1976)
alerta para a intensidade anormal dos ciúmes “normais” que aparecem na clíni-
ca, apontando para sua não completa racionalidade, pois estariam “profunda-
mente enraizados no inconsciente”. Ele nos fala de camadas e não de tipos de
ciúmes. Teríamos, então, o ciúme competitivo ou normal, o projetado e o deli-
rante. Tal colocação nos leva a pensar que todo ciúme “normal” carrega em si as
outras camadas. Isto é, todo ciúme poderia ser delirante?
Como em muitos outros pontos de sua teoria, Freud encontra em si mes-
mo material para suas hipóteses. O noivo apaixonado de Martha, distante dela
por muito tempo (em quatro anos de noivado, três de separação), sofre todos os
tormentos do ciúme. Através de mais de 900 cartas que seu filho Ernst (Freud,
1982) reúne e publica, podemos acompanhar as concepções de Freud sobre o
amor e suas exigências. Novecentas cartas em três anos? Quer dizer, quase
uma por dia? Não posso deixar de associar aos telefonemas diários que rece-
bem nossos pacientes, frequentemente no preciso horário de sua sessão analí-
tica, a lembrá-los, como diz a canção: “onde você estiver, não se esqueça de
mim, não se esqueça de mim”. Desconfio de que o telefone celular tenha sido
ideia de um ciumento.
“Quando amo, sou exclusivista”, diz Freud em uma de suas cartas a
Marta. Em outra, escreve: “Daqui em diante você é apenas uma hóspede em
Psicopatologia da vida amorosa
11
sua família, como uma joia que eu empenhei e vou resgatar assim que ficar rico”
(Freud apud Bueno, 1994, p. 42). Com essa frase ele pretende anular todos os
laços que ela tenha com todo seu passado, como se ela tivesse nascido do
amor dele por ela. Nada diferente dos ciumentos atuais, procurando avidamente
saber cada detalhe do passado de suas amadas, para melhor montar a cena da
sua exclusão e sofrer-gozar dela.
A demanda de atenção total e exclusiva do objeto de amor pelo sujeito
acometido de ciúme indica que esse objeto sustenta algo referente à sua cons-
tituição como sujeito ou a sua identidade sexual: “Se ele me ama, sou mulher”;
“se ela me ama, sou homem”.
O ciúme é um afeto que engana
Em Freud, muitos e diferentes ciúmes são mencionados em toda a obra,
seja na elaboração de conceitos, seja na discussão de casos, mas ele o consi-
dera um sentimento, um afeto, e, como tal, uma espécie de pequeno ataque
histérico, como nos lembra em Inibição, sintoma e angústia (Freud, [1926] 1976),
referindo-se a qualquer afeto. Não privilegia o ciúme, como o faz com a angústia,
sobre a qual trabalha incansavelmente em suas hipóteses. O ciúme não é um
Witz, um ato falho, um lapso ou um sonho, embora seja material, resto diurno a
produzir muitos pesadelos.
Ao contrário da angústia, que não engana, o ciúme engana o sujeito, que
pode nada saber dele, transformado em mau humor repentino, reações exacer-
badas a pequenas contrariedades, mutismos inexplicáveis, que atormentam o
parceiro amoroso, o alvo do ciúme. O ciúme se mascara em zelo (de onde se
origina a palavra no latim, zelumen), cuidado amoroso, preocupação com o ou-
tro, proteção, medo de perder o objeto precioso. Porém, a etimologia da palavra
jaloux, francesa, derivada de gelosia, nos transmite com mais pertinência os
elementos que estão em jogo no ciúme. Gelosia, no século XIII designava a
persiana de uma janela que permite ver sem ser visto, e que tem sua origem no
costume dos árabes, que assim construíam as janelas dos quartos das mulhe-
res. Aliás, a palavra existe em português, com o mesmo significado3 .
No idioma havaiano, ciúme quer dizer também despedida. Pois, justa-
mente, temer a perda é a forma de antecipá-la ou de promovê-la, especialidade
dos ciumentos.
3 Gelosia remete a olhar, não qualquer olhar, mas o olhar proibido, obstaculizado, a um objeto
precioso de posse de outro: a mulher.
1212
Ângela Brasil
As origens do ciúme
Desde os primeiros textos freudianos, os ciúmes estão relacionados a
duas origens: os gerados pelo nascimento de um irmão e os oriundos do com-
plexo de Édipo. No texto de 1922, Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na
paranoia e na homossexualidade, Freud volta a mencionar as origens do ciúme
como “uma continuação das primeiras manifestações da vida emocional da cri-
ança” (Freud, [1922] 1976, p. 271). Refere-se explicitamente aos efeitos
perturbadores do nascimento de um irmãozinho em vários textos e em relatos
de casos.
Desde A interpretação dos sonhos, de 1900, no capítulo Sonhos sobre a
morte de pessoas queridas, Freud menciona a capacidade de crianças muito
pequenas manifestarem ciúmes em qualquer grau de intensidade e evidência e,
surpreendentemente, comenta: “Não sei por que pressupomos que essa rela-
ção [entre irmãos] deva ser de amor!” (Freud, [1900] 1976, p. 265).
No texto Uma recordação de infância em Poesia e verdade, Freud ([1917]
1976) faz uma hipótese interpretativa da única lembrança infantil de Goethe,
relatada em sua autobiografia, lembrança essa, deduz ele, anterior aos quatro
anos de idade. O pequeno Goethe lembra-se do grande prazer que encontra em
jogar pela janela, uma a uma, toda a louça de sua casa (que acabara de ser
comprada pela mãe) e em vê-la quebrar-se em pedaços com estrondo. Freud
qualifica a cena como um ato simbólico, uma ação mágica, pela qual a criança
deu expressão violenta a seu desejo de livrar-se de um intruso (sic): a irmã mais
nova.
Intrusão é a palavra que Lacan ([1938] 2003)) utiliza para dizer da origem
dos ciúmes: esse momento em que a criança teme perder seu primeiro objeto
de amor, ao perceber a presença de um irmãozinho. Momento traumático, nada
banal, alerta ele em Complexos familiares. Entre o desmame e o aparecimento
do intruso, a dor da primeira perda faz sua marca, inscreve-se e constitui o
psiquismo da criança. É contemporânea do estádio do espelho, momento em
que a criança se reconhece, pela fala da mãe, através da imagem do outro (ele
mesmo) no espelho, a quem endereça sua primeira agressividade.
A mãe se reparte: os outros existem!
Então, o ciúme está em relação com a perda fundamental, originária,
aquela que mutilou o Outro, para recortar o objeto a: “O seio não é mais meu”.
Dano narcísico irreversível, que produz raiva do intruso, que tão cruelmente reve-
lou o fracasso do desejo de posse ilimitada do primeiro objeto de amor. Existe
outro! Ele não está só no mundo! Existem outros susceptíveis de dividirem o
Psicopatologia da vida amorosa
13
amor da mãe. Esse ciúme nasce, nos diz Lacan, no próprio momento da iden-
tificação, não constituindo simplesmente uma rivalidade. O desejo de que o
outro desapareça está na mesma medida em que este representa e sustenta o
desejo do sujeito, pois não há desejo sem inscrição da falta.
Roland Barthes (1990) recorta do texto de Goethe ([1774] s/d), Os sofri-
mentos do jovemWerther, a cena que captura o protagonista:
Charlotte [a moça por quem o personagem Werther está enamo-
rado] corta uns pãezinhos doces e os distribui a seus irmãos e
irmãs. Charlotte é um doce, e esse doce se reparte: cada um tem
seu pedaço: eu não sou o único – em nada eu sou o único, tenho
irmãs, irmãos, tenho que repartir, tenho que me curvar diante da
repartição: as deusas do destino também não são, por acaso as
deusas da repartição, as Moiras – das quais a última é a Muda, a
Morte? Sofro assim, duas vezes: pela repartição em si e pela
minha impotência de suportar sua nobreza (Goethe apud Barthes,
1990, p 46). 
Amor à totalidade
Freud, numa das primeiras cartas a Martha, escreve:
Sou realmente meia pessoa no sentido da velha fábula platônica
que você certamente conhece, e desde o momento em que não
estou em atividade meu corte dói (Freud apud Bueno, 1994, p. 42).
Os ciúmes flertam com a totalidade, correspondem à tentativa de desco-
nhecer a falta fundamental, acusando o outro de roubo do que é, em si mesmo,
impossível: a posse total do objeto de amor. Isto é, em vez de reconhecer o
limite que me faz sujeito, e não apenas um pedaço que completaria o Outro
materno (o que me aniquilaria como sujeito), coloco a dor do corte na conta do
outro, transformado em rival: eu não possuo todo o objeto do amor (ou todo o
amor do objeto amado) não porque isso seja impossível, mas porque alguém me
rouba.
Se os ciúmes flertam com a totalidade, os ciumentos querem casar com ela.
O outro (rival) é estranho
Lúcia Pereira (2004), em seu belo livro, Um narrador incerto – entre o
estranho e o familiar, assinala o aparecimento do ciúme em Bentinho (persona-
1414
Ângela Brasil
gem de Machado de Assis ([1900] 1997) em Dom Casmurro) como tendo a
estrutura do conceito freudiano de estranho. A partir do olhar de Capitu, para o
amigo Escobar morto, que Bentinho recorta da cena do velório, vai sendo
construída uma espécie de ressuscitamento do falecido – que acaba, no fim das
contas, como que, reencarnado no filho Ezequiel (refiro-me à semelhança com
Escobar, que Dom Casmurro passa a ver em Ezequiel). Como sabemos, o efei-
to de estranhamento advém daquilo que fora familiar e recalcado, vindo aparecer
em lugar indevido e ameaçador.
Também é possível pensar que, frente à morte do amigo, tão amado,
Bentinho o faz reviver no ciúme de Capitu, o que evita que ele faça o doloroso
luto do amigo tão prezado. A recusa de fazer o luto é o que produz o ressenti-
mento, termo que Maria Rita Kehl (2004) introduz como questão para a clíni-
ca. Os ciúmes seriam, como o ressentimento, o resto de um luto não efetua-
do?
O rival amado
Octave Manoni, em Freud, uma biografia ilustrada (1994), chama-nos
atenção para uma das cartas de Freud a Martha, que nos mostra, com rara
clareza, o papel da identificação no ciúme, o lugar que o outro, o rival, tem na
economia psíquica do ciumento. Escreve ele em 27 de junho de 1882:
Ontem fiz uma visita a meu amigo Ernest Fleischl; até agora, e
desde o tempo que não conhecia Marty [frequentemente Freud se
dirigia a Martha, assim, na 3ª pessoa], era alguém que eu invejava
em todos os sentidos [...]. Sempre o considerei meu ideal e não
sosseguei enquanto não ficamos amigos [...]. Ontem me veio a
ideia do que ele poderia fazer de uma moça como Martha, que
engaste ele daria a esta joia... Como ela gostaria de participar da
influência e da importância de um tal amante... E estava come-
çando a imaginar o que ele pensaria de Martha. Então pus fim a
esse devaneio... Não posso também, por uma vez, ter algo de
melhor do que mereço? Fico com Martha (Freud apud Mannoni,
1994, p. 34).
Então, encontramos neste pensamento a clássica projeção dos homens
apaixonados: a projeção de seu desejo por Martha a todos os homens em geral
(“é certo que todos a desejam”) e em particular àquele admirado e tomado como
modelo por ele. E, por acréscimo, um ganho narcísico: “Eu possuo a mulher que
interessaria ao grande homem que eu invejo”.
Psicopatologia da vida amorosa
15
O que surpreende Octave Mannoni é que esse é o mesmo Freud, que
mais tarde, corajosamente, desenvolve sua interpretação do ciúme como proje-
ção do próprio desejo de trair do ciumento ou de seu amor ao rival. “Quem ama
quem?”, pergunta Mannoni. Freud vai revelando em seus textos outras camadas
para o tal “zelo”.
O rival amado constitui-se, via identificação, em esteio narcísico contra a
fragilidade das posições sexuadas, masculina ou feminina. Os rivais são ideali-
zados, portadores imaginários ou da potência masculina ou do segredo da femi-
nilidade e da sedução.
O amor promove certa ancoragem para o sujeito, mas, por querê-lo ga-
rantido e total, facilmente o ciumento converte o amor em hostilidade: o amado
estará sempre devendo algo e pagará caro por isso.
Como vemos, o ciúme não é só um sentimento, mas um sentimento que
acompanha a experiência muito particular e decisiva na constituição do sujeito:
a identificação; o intruso, que se deseja eliminar, também apresenta o mundo,
rompe com a relação dual imaginária com A Mãe, muito antes do Édipo. Se o
irmãozinho é o primeiro intruso, logo o pai vai se tornar também um intruso entre
a mãe e a criança, se aquela o autorizar, claro. Por isso, o ciúme se inscreve no
registro terciário.
O complexo de Édipo vai acrescentar ingredientes a essa receita básica
do ciúme e vai marcar algumas diferenças de posições entre os que se sexuam
do lado feminino ou masculino. Para as mulheres, para dizê-lo rapidamente,
haverá sempre outra, a que veio antes no amor do pai: a mãe. Esta, que ainda
por cima, não lhe contou o segredo da essência do feminino, deixando-a com a
árdua tarefa de inventar-se como mulher, condição que a faz olhar as outras e
comparar-se. Além da sua mãe, tem a mãe dele, esta, sim, o inesquecível e
proibido amor de quem agora ela é uma das representações.
Por isso, Freud dirá que as mulheres são mais ciumentas. A angústia de
castração toma a forma, para elas, do medo da perda do amor; enquanto que,
para o homem, a angústia de castração aparece no medo de perder a potência
ou de ser comparado, nesse quesito, ao que ele supõe (ao menos um) não
castrado.
O amor de um homem, e-ou um olhar desejante masculino, aplacaria o
não saber sobre o feminino e tornaria a mulher mais dependente desse amor:
“Se ele me ama, sou mulher”. É por isso que as mulheres apostam tanto no
amor e o inventam rapidamente sob qualquer pretexto. Se esse amor não vem,
é como se o pai tivesse fracassado em sua operação de salvamento (aquela que
interdita A mãe); o risco é de recair na relação dual, possibilidade sempre pre-
sente, pois é a mãe também o primeiro objeto de amor da menina, ao qual ela
ficaria colada, não fosse a intervenção paterna.
1616
Ângela Brasil
Para as mulheres valem também as camadas “normais”, projetivas e
identificatórias dos ciúmes. “A outra” que odeio, também fascina. O que ela tem
que eu não tenho? O que é ser mulher?, pergunta Dora à Sra K. (Freud, [1905]
1976). Olha, pai, como se deve amar uma mulher!, mostra a jovem paciente de
Freud ([1920b] 1976), quando passeia apaixonada com sua Dama na calçada
do escritório do pai. Com frequência, são os significantes do feminino que a
mulher procura nos bolsos do amado, restos da outra, A mulher. É o que pode-
mos ver no belo filme de Heitor Dhalia (Brasil), À deriva: a adolescente Felipa,
de 14 anos, segue, enciumada e curiosa, a amante do pai, invadindo mais tarde
a casa desta; lá, examina atentamente os objetos da mulher odiada, mas não
resiste em experimentar ver-se ao espelho com os adereços dela.
Mas o homem não é menos ciumento! Eles costumam falar menos, só
isso; já trabalhei em outra ocasião4 sobre o silêncio dos homens em relação ao
amor, que estará sempre marcado por uma proibição (edípica). Freud ([1910]
1976) aponta o ciúme como uma das condições para a escolha amorosa, pois é
pelo ciúme que um homem pode dar-se conta de que ama, como tão bem
descreve no artigo Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens. É
nesse textoque ele comenta a extrema fidelidade que um homem pode ter a
seu ciúme, isto é, ele pode trocar de parceria, numa série sem fim, mas não
troca o precioso ciúme que o faz amar. Aliás, essa é uma das características
dos ciumentos: são volúveis.
Freud ([1920a] 1976) observa, em Além do princípio do prazer, que os
pacientes sempre descobrem os objetos apropriados para seus ciúmes. Isto é,
escolhem parceiros que poderiam interessar aos outros; esse interesse é como
uma validação da sua escolha, já que o seu desejo não o orienta (como ocorre
na neurose obsessiva). Em muitos casos, vemos que os pais não permitiram à
criança apropriar-se dos significantes do desejo, de forma que é preciso roubá-
lo de outros. É esse roubo que o ciumento projeta no rival.
A certeza de que o outro trai não necessita de nenhuma comprovação,
qualquer detalhe funciona como prova cabal do que teme e-ou deseja. Mesmo
nas redes de relacionamento que ocorrem na internet, em meras trocas de
palavras escritas entre pessoas que não se conhecem, o fantasma do ciúme faz
sua aparição, com direito a cenas que pensaríamos possíveis somente em rela-
cionamentos estáveis: “Você está teclando com outro (ou outra), eu vi!”. O fan-
4 Brasil, Ângela. O telefonema do dia seguinte. In: APPOA (org). Masculinidade em crise.
Psicopatologia da vida amorosa
17
tasma do ciúme parece ter vida própria, não dependendo de qualquer circuns-
tância (daí seu caráter delirante).
Restos do amor ao pai e à mãe vão dar ao ciúme projetivo a aparência de
impulsos homossexuais, conforme Freud o menciona; mas isso não significa
homossexualidade, mas perguntas sobre a posição sexuada: “O que é ser uma
mulher? O que é ser homem?” O rival é amado, não sexualmente, mas
narcisicamente.
O trivial
O laço conjugal é o mais propício para que ali se instalem os ciúmes,
mesmo quando a proposta de casamento aberto tenta driblar a proposta
paranoiquizante da exclusividade. É o que podemos inferir dos relatos de casais
famosos e seus pactos.
O livro recém publicado sobre o relacionamento aberto entre os filósofos
Sartre e Simone de Beauvoir, de autoria da americana Hazel Rowley (2006),
relata o sofrimento de Simone com a obsessão da conquista de mulheres jo-
vens e lindas, a que o feio, baixinho e míope Sartre se lançava, desde o início do
relacionamento. Tampouco ele livrou-se dos ciúmes, quando ela se envolvia em
outros amores.
Mas o relato mais impressionante da dissonância entre uma filosofia de
vida de separação entre amor e sexualidade nos é dado por Catherine Millet
(2009), conceituada crítica de arte, especialista em Salvador Dali e Yves Klein,
diretora da prestigiosa revista Art Press, em seu livro Jour de suffrance5 . Nesse
livro, ela narra o aparecimento inesperado de uma longa crise de ciúmes deflagrada
por um detalhe banal da vida de seu marido, com quem mantinha um casamen-
to duradouro e totalmente aberto. Desde muito jovem, ela fizera a opção de
separar a vida amorosa da sexual, e o casamento não mudara isso, mas as
peripécias sexuais a que se dedicava com entusiasmo, não eram tema de con-
versa entre os dois; era como que assunto privado, uma espécie de vida parale-
la, com “a textura de um devaneio” (sic). Eis que, uma foto de mulher encontra-
da entre os escritos dele, faz aparecer A outra (“o que me chocou foi a presença
de uma intrusa”), que, a partir daí passa a frequentar os pensamentos e fantasi-
as dela, ocupando agora o seu lugar:
5 Publicado no Brasil com o título de A outra vida de Catherine M. (Millet, 2009), o qual remete
a seu livro anterior, A vida sexual de Catherine M. (Millet, 2001).
1818
Ângela Brasil
O ciúme se tornou o meu pão de todos os dias, [...] imaginava
Jacques com outras mulheres, em infindáveis façanhas sexuais.
O sofrimento era tão agudo que, às vezes, era comparável às
pulsões que dominam os assassinos e estupradores sexuais [...]
minha maior relação, inclusive física, era com o ciúme (Millet,
2009, p.76).
A crise de ciúme que Catherine Millet descreve é, segundo ela, uma de-
puração da construção fantasmática própria do ciúme, já que o medo de não ser
mais amada ou de ser abandonada eram praticamente inexistentes. Nisso con-
siste o interesse deste vivo relato. O ciúme-gozo, que aqui aparece, surge quan-
do o terceiro elemento, constituinte da estrutura de qualquer relação amorosa,
se encarna para sustentar o desejo.
Novos laços, velhos ciúmes?
Nas mudanças de configurações familiares que hoje acompanhamos,
podemos investigar se os ciúmes sofreram mudanças em suas manifestações.
Não pareceria mais ser possível, nos dias atuais, no que se refere à mudança do
papel social das mulheres, que seus parceiros pensem em isolá-las do mundo,
numa pretensão de posse exclusiva. Todavia, a experiência na clínica nos per-
mite pensar que o ciúme é uma dor atemporal e universal.
Como denunciam nossos pacientes, a paixão do ciúme reaparece sob
os mais diferentes disfarces: com frequência as mulheres reclamam de qual-
quer interesse que o parceiro demonstre (e haja cara amarrada para o futebol,
para a academia ou para o chopinho com os amigos!). Assim como se ouve
mais comumente os homens a atacarem as relações de amizade (ou familia-
res) da mulher, depreciando-as, colocando obstáculos ou, na impossibilidade
de sustentarem tal exigência de isolamento, oferecerem-se generosamente
para levá-las, buscá-las ou qualquer outro pretexto para se fazerem presentes,
vigilantes da exclusividade. As relações sociais dos casais tendem a incluir,
na melhor das hipóteses, outros casais, quando não produzem o afastamento
de todas as antigas relações. Aquela amiga solteira ou aquele colega desca-
sado será misteriosamente esquecido nas festinhas e passeios de fim de
semana. “Perigo! Perigo!” (Parece que uma luz vermelha acende e interdita
aquela ameaça ambulante).
O que os ciumentos não percebem é que o verdadeiro rival que eles com-
batem o tempo inteiro é o desejo, ou melhor, a autonomia do desejo, que tentam
controlar. Por isso, o ataque a qualquer interesse do parceiro, a qualquer ideia
ou gosto próprio, chegando a parecer sadismo o mau humor com o qual o ciu-
Psicopatologia da vida amorosa
19
mento percebe alguma alegria no parceiro e tenta boicotá-la. Enfim, um especi-
alista em desmanchar prazeres alheios.
Mas a virulência do ataque ciumento, a paixão da exclusividade, do todo,
pode aparecer onde menos se espera, como nas novas reorganizações familia-
res. Refiro-me aos ciúmes que os filhos de um casamento anterior podem vir a
produzir no parceiro atual. Em alguns casos, o aparecimento de intensa angús-
tia quando da visita dos filhos do parceiro é o principal motivo da busca de
análise. Com mais frequência, esses ciúmes aparecem, no decorrer de uma
análise, como um mal-estar eventual que vai se agravando, ligado a circunstân-
cias cotidianas da convivência inevitável. É com surpresa que alguns pacientes
começam a relatar o monitoramento dos enteados, a contabilizar cada sanduí-
che, cada gesto de afeto do parceiro, numa insana e sofrida vigilância, difícil de
disfarçar e admitir. Mas isso não é prerrogativa feminina; também encontro em
homens um disfarçado ciúme dos enteados, que jamais é confessado, mas que
pode fazer fracassar a relação amorosa, minando o amor com um ressentimen-
to que desconhece sua origem.
A primeira interpretação que mais comumente se faz nesses casos é: os
filhos seriam representantes dos rivais, lembranças materializadas de que hou-
ve outros, de um passado que se quereria abolir. Pode ser; mas a violência do
ódio, que não raro se instala, nos obriga a sair do óbvio e a pensar algo mais. O
próprio ciumento se assusta com sua paixão de ódio, que não arrisca comentar
com ninguém. Esses filhos que seu parceiro deu à outra, a que veio antes, pode
representar o filho desejado no seu amor edípico, e que o pai deu à mãe e não a
ela. O intruso faz sua aparição. Sua simples presença produz grande angústia,
impossível de disfarçar, podendo abalar a nova relação. Para os homens, os
enteados podem reeditar osciúmes fraternos.
Quando essa angústia não encontra uma escuta (ou não a busca) pode
levar à passagem ao ato; momentos de loucura, nos quais a ameaça de
despossessão do objeto de amor, a confusão entre o rival e ele mesmo, podem
levar o ciumento a uma certeza: o intruso é a fonte da privação, causa de frustra-
ção antiga e mal recalcada, e deve ser eliminado. Não raro, ocorrem crimes,
como, tristemente acompanhamos nos noticiários.
Aqui, voltamos ao caso da jovem homossexual de Freud ([1920b] 1976),
a garota apaixonada pela dama mal falada. A jovem faz a inversão do objeto de
ciúme e ódio (a mãe que ocupa todo o lugar do feminino) em objeto de amor,
transposto para a Dama. Quando também esse amor lhe é negado, identifica-se
com o objeto do antigo e frustrado desejo edípico: o bebê. Na frente do pai, tenta
suicidar-se, “niederkomem”, diz a jovem a Freud, que ele interpreta como parir-
ser o bebê que o pai deu à mãe e não a ela. Passagem ao ato de um desejo que
não teve escuta.
2020
Ângela Brasil
Os não ciumentos
Há um tipo de ciumento do qual Freud falou muito pouco, os não ciumen-
tos: “Se alguém aparentar não possuir ciúmes, justifica-se a inferência de que
tal criatura enfrentou severo recalque” (Freud, [1922] 1976, p.271). É como se
ele dissesse que os não ciumentos não existem. É talvez o que justifique a tese
de Denise Lachaud (2001), de que a cura deveria passar pelo levantamento do
recalque, isto é, que a demanda ciumenta tenha expressão. Aqui abre-se um
campo de investigação: Ciúme tem cura?
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Psicopatologia da vida amorosa
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PEREIRA, Lúcia Serrano. Um narrador incerto – entre o estranho e o familiar. Rio de
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ROWLEY, Hazel. Tête-à-tête – Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre. Trad. Adalgisa
Campos da Silva. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
Recebido em 01/12//2009
Aceito em 29/12/2009
Revisado por Valéria Rilho
22
TEXTOS
22
Resumo: O presente texto trata da construção do sujeito do inconsciente na
instituição familiar. O autor dialoga com o texto de Lacan, Os complexos famili-
ares, em seus respectivos desdobramentos na constituição da imagem especu-
lar, bem como na implicação do outro (irmão) no aparecimento do ciúme e sua
repercussão no laço social.
Palavras-chave: sujeito, família, transitivismo, ciúme.
THE BEGINNINGS OF JEALOUSY CONSTRUCTION AND ITS
RELATION TO THE CONSTITUTION OF THE SOCIAL TIE
Abstract: The present text deals with the construction of the unconscious subject
in the family institution. The author dialogues with Lacan’s text The family
complexes, in its respective unfoldings in the constitution of the specular image,
as well as in the implication of the other (sibling) in the outcome of jealousy and
its effects in the social tie.
Keywords: subject, family, transitivity, jealousy.
OS PRIMÓRDIOS DA
CONSTRUÇÃO DO CIÚME
e sua relação com a
constituição do laço social1 
Robert Levy2
1 Tradução de Patrícia C. R. Reuillard (UFRGS).
2 Psicanalista; Membro da Analyse Freudienne; Autor de diversos artigo e livros, dentre eles,
O desejo contrariado (Companhia de Freud, 2004) e O infantil e a psicanálise(Editora Vozes,
2008). E-mail: robert.levypsy@aliceadsl.fr
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 37, p. 22-30, jul./dez. 2009
Os primórdios da construção do ciúme...
23
Embora não se possa negar que o sujeito tenha uma dimensão social, deve-se definir o que se entende por social, pois é evidente que, no fundo, as
diferentes “guerras do sujeito” não passam de diferentes maneiras de
enquadrá-lo numa versão social particular. Trata-se de um lugar específico
que lhe é atribuído, devido à sua própria estrutura, e que o leva sempre ou para
o antropológico ou para o linguístico. Lévi-Strauss (1978) emprega o termo “tra-
dução” para enfatizar a ideia de que psiquismo individual e estrutura sociológica
são duas expressões de uma única realidade. Encontramos esse mesmo
enquadramento do sujeito em Foucault, que apenas retoma de maneira muito
mais sistemática o que Lacan ([1932] 1980) já indicava em sua tese, ou seja,
que a introdução da história do sujeito mostra que o pensamento delirante é a
manifestação de uma normatividade interna, de uma maneira de ser, de uma
tendência concreta que só assume a forma de delírio porque não corresponde
aos sistemas reconhecidos em um lugar e momento dados.
Devemos nos reportar ao Lacan de 1938 (2001), portanto, para fazer a seguinte
constatação: é o próprio sujeito do inconsciente que depende das condições de pro-
dução familiar. Nessa época, as elaborações iniciais da teoria lacaniana do sujeito
são motivadas pelas circunstâncias sociais da organização familiar, que determinam,
segundo ele, os sintomas, expressando coletivamente o sofrimento que caracteriza
uma atualidade mórbida como o estilo clínico de uma época eminentemente mutável.
É interessante observar que Lacan apoia as primeiríssimas elaborações
de sua teoria do sujeito em uma institucionalização, aquela da dependência vital
do indivíduo em relação ao grupo. O que constitui o sujeito na origem é a univer-
salidade de sua prematuração no nascimento, o que o torna dependente do
grupo, é claro, mas sobretudo da nostalgia da mãe.
Nesse sentido, o sujeito esboçado por Lacan nessa dependência inicial
da mãe está muito próximo do que sustenta Winnicott, mas não se trata exata-
mente da dependência presente no corpus freudiano, que pregava certa nostal-
gia mitológica do pai originário como fundamento do laço social. De fato, para
Lacan, “o apelo ao grupo” é determinado por essa relação orgânica que explica
o apelo à regulação de uma função social que preenche a “insuficiência vital dos
primeiros anos”; ele esclarece, no entanto, que o desafio para a estruturação do
sujeito e para sua entrada na cultura permanece vital.
Por essa razão, em sua obra de1938, Os complexos familiares, Lacan
([1938] 2001) elevará o complexo de desmame à dignidade de uma constante
da espécie humana. Para ele, a nostalgia da mãe não só sustenta a instituciona-
lização do sujeito na família, na origem de sua vida, como também motiva sua
“inserção na multidão”, isto é, sua socialização no sentido mais amplo, por
motivar tanto as produções simbólicas iniciais da humanidade quanto a instau-
ração dos ideais sociopolíticos dos grupos.
2424
Robert Levy
Com essa concepção, Lacan rejeita a teoria freudiana do instinto de morte,
demasiadamente marcada pelo cunho biológico, preferindo a ela a clínica da nos-
talgia da matriz, que o leva a essa tendência psíquica à morte: “em seu abandono
à morte, o sujeito busca reencontrar a imago da mãe” (Lacan, [1938] 2001, p. 34).
Desde essa época, ou seja, desde 1938, Lacan antecipa um debate bas-
tante atual sobre os sintomas “modernos” relacionados sobretudo à toxicoma-
nia, à anorexia e aos suicídios, que ele situa diretamente como distúrbios do
desmame, sempre correlatos a nossos estados-limite e ao suposto enfraqueci-
mento da figura paterna. Percebe-se que Lacan não promove nenhuma “nova
economia psíquica”, mas, ao contrário, retoma o “querer morrer” descoberto por
Freud como uma parte da prematuração do falasser. Seria exatamente essa
tendência psíquica à morte que motivaria
[...] suicídios [...] não violentos [...], greve de fome da anorexia
mental, envenenamento lento de certas toxicomanias pela boca,
regime de fome das neuroses gástricas. A análise desses casos
mostra que, em seu abandono à morte, o sujeito busca reencon-
trar a imago da mãe (Lacan, [1938] 2001, p. 35).
Por conseguinte, nessa concepção do sujeito, Lacan não fala absoluta-
mente do declínio da figura do pai como causa de nova sintomatologia moderna,
mas abre uma verdadeira clínica do ideal, rejeitando, com seu complexo de
desmame, a teoria freudiana do ideal da nostalgia do pai, o que é muito diferente
do declínio da imagem do pai. Por essa razão, instinto de morte e aspiração à
morte diferenciam-se, o que leva, portanto, ao questionamento da noção freudiana
de narcisismo originário e, consequentemente, de eu ideal e de ideal do eu em
proveito da noção de “aspiração à morte” suscitada pela “nostalgia da matriz”.
Porém, a primeira forma de estruturação do sujeito à qual se refere Lacan
([1938]2001a) é uma estruturação narcísica pela imagem. Toda sua teoria do
narcisismo vai girar então em torno da noção de imagem.
O complexo da intrusão
Assim, após o complexo de desmame, virá o complexo de intrusão,
como segundo momento de estruturação psíquica do sujeito. De fato, como
o narcisismo originário é impensável na teoria lacaniana daquele momento –
“não falaremos aqui, como Freud, em autoerotismo, visto que o eu não é
constituído nem de narcisismo, já que não existe uma imagem do eu” (Lacan,
[1938] 2001, p. 30) –, é com a imagem do irmão, de certo modo, que se
conseguirá largar a mãe!
Os primórdios da construção do ciúme...
25
Pode-se perceber desde já uma espécie de preenchimento pela imagem,
uma maneira de prosseguir a construção do sujeito, no que leva Lacan logicamente
ao estágio do espelho para preencher o que considera uma falha na herança
freudiana.
Lacan se diferencia de Freud porque, enquanto este fala da convocação
de um narcisismo originário estritamente masoquista, aquele considera que esse
masoquismo inicial não passa de um duplo do sadismo, ator principal da
estruturação do sujeito. Assim, para se liberar da mãe, do suicídio na mãe, por
assim dizer, é preciso dispor de uma imagem, a de um irmão com a qual o
sujeito possa se identificar:
[...] é a identificação com o irmão que permite (ao desdobramen-
to) se concluir: ela fornece a imagem que estabelece um dos
polos do masoquismo primário. Assim, a não violência do suicídio
primordial engendra a violência do assassinato imaginário do ir-
mão (Lacan, [1938] 2001, p. 41).
É preciso compreender claramente que se trata de uma função de su-
plência em que o simbólico ainda não está constituído; suplência esta que se
encontra explicitamente evocada no estágio do espelho:
[...] a identificação afetiva é uma função psíquica cuja originali-
dade foi estabelecida pela psicanálise, especialmente no com-
plexo de Édipo [...]. Mas o emprego desse termo na fase que
estamos estudando permanece mal definido na doutrina; é essa
lacuna que tentamos preencher por meio uma teoria da identifi-
cação cuja gênese designamos sob o termo estágio do espelho
(Lacan, [1938] 2001, p. 41).
Esse é o preço que o sujeito paga por tender originalmente a mascarar o
essencial de uma função de falta; ele paga por introduzir em seu âmago o prin-
cípio de discordância imaginária. No entanto, não se deve ver nisso nenhum
reconhecimento de sua própria pessoa, mesmo que a criança já reconheça sua
imagem no espelho: “a identificação pessoal ainda vacila”. Lacan ([1946] 1966)
busca em Charlotte Buhler algo do qual se apropria para retraçar o caminho que
leva aos primórdios do sujeito do inconsciente e que se encontra perfeitamente
bem descrito em seu artigo Formulações sobre a causalidade psíquica:
[...] na dialética que vai do ciúme (esse ciúme cujo valor de inicia-
ção Santo Agostinho já entrevia de modo fulgurante) às primeiras
2626
Robert Levy
formas da simpatia. Eles se inscrevem em uma ambivalência pri-
mordial que se mostra, já indico, em espelho, ou seja, o sujeito
se identifica, em seu sentimento de si, à imagem do outro, e a
imagem do outro vem nele cativar esse sentimento (Lacan, [1946]
1966, p.180-181).
Isso levanta forçosamente toda uma série de questões quando se supõe
que essa “passagem não ocorreu” ou se realizou apenas parcialmente.
Pensa-se instantaneamente naquele olhar que atravessa o outro das cri-
anças autistas; mas também em todas as metamorfoses constatadas nas pa-
tologias simbióticas, durante as quais certas crianças permanecem numa pro-
ximidade da mãe em que é manifesta a tentativa de encontrar um lugar no olhar
da mãe que não reflete nada do lugar da criança no espelho. Mas também se
pensa, ao contrário, naquelas mães igualmente simbióticas que tentam mani-
festamente, por meio da ascendência sobre o filho, acionar incansavelmente o
que, para elas mesmas, não se produziu desse reconhecimento como outro.
Trata-se igualmente da fascinação dual na relação do sujeito com sua própria
imagem, que funda uma semiologia que vai da sutil despersonalização à aluci-
nação do duplo e do que deriva da alienação do sujeito: “rumo à rivalidade, que
prevalece, totalitária”, como escreve Lacan, ([1966] 1966, p.70) em seu artigo
De nossos antecedentes.
Portanto, nesta pura fascinação pela imagem (Lacan, [1974] 1975), a
criança experimenta a forma distorcida de uma relação consigo mesma, que
passa por uma relação com o outro; mas é com o espelho que o sujeito é
moldado por um mundo de formas que o coloca acima de tudo como uma
exterioridade a si mesmo, que explica tão bem esse “desconhecimento siste-
mático da realidade que caracteriza o conhecimento paranoico” (Lacan, [1951]
1953, p. 3). Com essa noção, Lacan reúne certo número de temas já desenvol-
vidos nos Complexos familiares, como o do ciúme primordial sob a forma de
invídia; contudo, nessa denominação “conhecimento paranoico”, ele instaura
uma verdadeira consequência no estágio do espelho, que dá conta do sujeito
tomado na captação da imagem do outro e já antecipa o mecanismo cuja estru-
tura anuncia um conceito fundamentalmente importante: o de identificação. Mas
se trata então de um conceito de identificação revisitado por essa estrutura de
vetor duplo, o transitivismo: introjetiva e projetiva, que não é elaborada como tal
na obra de Freud, mesmo que pressentida. Evidentemente, esse importante
aspecto da estruturação do sujeito tampouco escapou a Winnicott, em que
Lacan sempre se inspira e que, como bom clínico alimentado pelos trabalhos de
Melanie Klein, assinala que “na excitação ligada a um bom objeto, acontece de
a criança morder: o objeto será,então, sentido como um objeto que morde”
Os primórdios da construção do ciúme...
27
(Winnicott, 1978, p. 65). Percebe-se que a questão é se o indivíduo se identifica
[ao objeto] ou se se identifica consigo mesmo.
O transitivismo como modo iniciático do ciúme
Talvez já se possa pressentir nessa forma arcaica de transitivismo esse
modo de tratar o outro em seu grau de “estranheza do estranho”, que se encon-
tra tão presente em todos os processos de segregação e de xenofobia. O inabitual,
a inquietante estranheza do outro encontra toda sua razão de ser naquilo que é
mais próximo de nós mesmos e, por isso mesmo, mais inquietante. A paranoia
não seria certa forma de defesa contra essa estranheza do sujeito do inconsci-
ente, colocando-o assim fora de nós mesmos, no lugar do perseguidor assim
representado um por um?
Essa dimensão não escapou a Wernicke (neurologista e psiquiatra ale-
mão, 1848-1905), mas no sentido mais restrito de uma transferência para o
exterior de uma atribuição a outrem, mais próximo, portanto, da noção freudiana
de projeção. Assinalemos que, entre as duas versões do transitivismo – uma
psiquiátrica, outra psicanalítica, lacaniana em particular –, há também duas
versões do insuportável do outro. Uma que tende a querer suprimi-lo, outra que
visa a erradicar esse outro, inclusive enquanto lugar vazio. Por conseguinte,
observar-se-ão aqui dois estados do sujeito diretamente ligados ao outro quase
sem distinção, o sujeito se confundindo então com ele; um recobrindo este
amor amargo do qual já nos falou Lacan acerca de Santo Agostinho, o outro
referindo-se mais especialmente à fase posterior ao estágio do espelho e, por-
tanto, ao transitivismo.
Entretanto, insistamos ainda sobre essas duas versões do desapareci-
mento do outro, pois parece que isso nos remete ao jogo do carretel. Com
efeito, nesse jogo, trata-se do momento em que desaparece a mãe representa-
da pelo carretel e também quando a própria criança desaparece no espelho; o
primeiro tempo figura em uma nota do mesmo artigo, frequentemente esqueci-
da. Dois lugares vazios, portanto, um da imagem da criança, outro do carretel
associado a um “bebê oooooo”, representando em si mesmo um jogo a partir da
ausência da mãe. Não é, contudo, o mesmo vazio. Ora, Freud ([1920] 1953)
está totalmente convencido, na nota a que aludimos, que o bebê, vendo aniqui-
lar e reaparecer alternadamente sua própria imagem especular, pôde precisar
depois a significação do jogo do carretel. Freud fala então de “compensação
pela partida da mãe” (Freud, [1920] 1953, p. 52-3) (dasselbe Verschwinden und
Wiederkommen). Para esclarecer e justificar o que ele chama de “compensa-
ção pela ausência” e para aclarar essa noção, Freud indica que a criança recor-
re ao que ele chama de:
2828
Robert Levy
1º) pulsão de dominação (Bemachtigungstrieb), transposição da passivi-
dade em atividade, a fim de dominar pelo simbólico; e, o que parece mais impor-
tante,
2º) pulsão de agressão, que satisfaz o impulso diário reprimido pela cri-
ança, ou seja, vingar-se de sua mãe, já que ela se afastou. É aqui que entende-
mos a necessidade de suprimir, não o outro enquanto objeto faltante, mas de
suprimir o lugar vazio do outro, na medida em que não deve mais haver nem
mesmo vazio do outro.
Essa relação particular com a pulsão de morte, graças à compulsão de
repetição, tenta incansavelmente restabelecer a ausência de toda tensão, redu-
zindo ao máximo o grau de estranheza do outro, fonte permanente de todas as
tensões.
Porém, é a Wallon (1973), na verdade, que devemos a passagem do
transitivismo da psiquiatria à psicologia. Ele trabalhará sobretudo na ideia de
identificação centrífuga. Baseando-se em dois exemplos, primeiro no de uma
senhora epilética que se condoía de sua vizinha por ter tido uma crise que ela
própria tivera na noite anterior e, em seguida, no da pequena Anna, que bate em
sua colega, acusando-a a seguir de ter cometido essa ação desprezível contra
ela.
É Lacan, todavia, que vai estender “a noção de transitivismo” como o
descritor principal da organização psíquica própria do estágio do espelho, uma
categoria genérica que funciona, sob forma de leitmotiv essencial, como uma
espécie de:
[...] organizador nodal de onde se destacam e irradiam os outros
mecanismos específicos e mais localizados [...] a série: ostenta-
ção, despotismo, mimetismo, porte, inveja e simpatia. Todo esse
conjunto de condutas locais parece interpretado por ele como
subentendido por um mecanismo fundamental de projeção, de
movimento centrífugo e alocêntrico, o qual vem, por outro lado, se
unir ao tema integrador particular de ‘conhecimento paranoico’, de
ressonância ao mesmo tempo metapsicológica, filosófica e
surrealista (Lacan, [1938] 2001, p. 47).
Para tirar todas as consequências desse conceito, não esqueçamos a
extensão que Bergès e Balbo (2001) lhe deram, situando o transitivismo como
necessário também para a mãe. Transitivismo materno necessário para que ela
possa apreender o filho, interpretando seus desejos; verdadeiro conhecimento
paranoico, por assim dizer, para que esse bebê possa sobreviver a seu estado
de imaturidade:
Os primórdios da construção do ciúme...
29
Em relação aos cataclismos do nascimento, o transitivismo da mãe
vem fornecer as funções que tendem a apaziguá-los; em particular,
quando o transitivismo atribui à criança uma demanda cuja hipóte-
se foi levantada pela mãe. Ora, com muita frequência, é seu próprio
medo que leva uma mãe a levantar hipóteses de demandas do filho.
O medo é constitutivo dessa hipótese (Bergès; Balbo, 2001, p. 65).
Assim, é sempre graças ao transitivismo que a mãe vem constituir o Outro
da criança, dizendo-lhe: “estás com frio, estás com fome”, isto é, apelando para
o saber da criança, supondo portanto que ela é um sujeito; nesse sentido, pode-
se dizer que ela apela ao sujeito que sabe. Como diz Bergès: “Graças ao
transitivismo entre a mãe e o filho, essa troca discursiva só tem sentido e efeito
porque é constituída pela hipótese formulada pela mãe sobre as demandas do
filho” (ibid., p.17).
Enfim, ressaltemos também, para concluir, que esse transitivismo, ou esse
conhecimento paranoico, atua independentemente de qualquer fantasia e não
necessita, por consequência, de nenhum roteiro para se produzir. Talvez aqui
possamos retomar a ideia que Lacan desenvolve principalmente no seminário O
ato analítico (Lacan, [1967-1968]2001), a de um inconsciente sem sujeito, ou
seja, um conjunto de significantes que têm entre si apenas uma relação de pura
significância lógica. Não seria a esse propósito que se poderia falar de “insujeito”?
Percebe-se então a importância da dimensão do escópico na estruturação
do sujeito, importância que sabemos perturbada nas crianças autistas, mas
também importância deste mundo sem outro inteiramente estruturado pela ima-
gem especular no qual se encontra a dimensão do grupo:
[...] que o grupo familiar, reduzido à mãe e aos irmãos, delineia
um complexo psíquico em que a realidade tende a permanecer
imaginária ou, no máximo, abstrata. A clínica mostra, efetivamen-
te, que o grupo assim incompleto é muito propício à eclosão das
psicoses e que nele se encontra a maioria dos casos de delírios a
dois (Lacan, [1938] 2001, p.46).
Com o irmão, o sujeito encontra o outro e o objeto socializado.
Finalmente, o que permitirá ao sujeito sair de tudo isso é mais uma vez o
grupo familiar, quando se apresenta completo, isto é, dotado de pai. Avalia-se
bem então a importância que Lacan atribui ao grupo familiar na estruturação do
sujeito, mas com um instrumental que não leva absolutamente à concepção de
uma nova economia psíquica, mesmo que, sob muitos aspectos, pudéssemos nos
3030
Robert Levy
servir de seus conceitos para levar sua teoria a uma espécie de nova antropologia do
grupo familiar, na medida em que ele estrutura o sujeito do inconsciente em certa
relação com os primórdios do que aparecerá mais tardiamente como ciúme.
REFERÊNCIAS
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caráter na criança. São Paulo: Nova Alexandria, 1995).
WINNICOTT, D. Processus de maturation chez l´enfant. Paris: Payot, 1978. (ed. bras.:
A família e o desenvolvimento infantil. São Paulo: Martins Fontes, 1983).
Recebido em 09/11/2009
 Aceito em 03/12/2009
 Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes
TEXTOS
31
Resumo: O presente texto aborda o tema dos ciúmes a partir da distinção
freudiana entre o ciúme normal e o patológico. Percorre as formulações de Lacan
e as elaborações shakesperianas sobre Otelo para tratar da posição do analis-
ta.
Palavras-chave : ciúme, paranoia, neurose, literatura.
ON JEALOUSY
Abstract: This paper addreses the theme of jealousy from de Freudian distinction
between normal and pathological jealousy. Runs lacanian production and
shakesperian elaboration on Othello to consider the position of the analyst.
Keywords: jealousy, paranoia, neurosis, literature.
1 Psicanalista, Membro da Escuela Freudiana de Buenos Aires (EFBA). Autor dos livros:
Psicosis y cuerpo, Erotomania, paranoia y celos, entre outros. E-mail: purple@sion.com
SOBRE OS CIÚMES
Daniel Paola1
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 37, p. 31-35, jul./dez. 2009
3232
Daniel Paola
Mas nada disso vale o veneno que escorre
De teu verde olhar perverso,
Laguna onde minha alma se mira ao inverso...
Charles Baudelaire
À letra
Se consideramos como ponto de partida o texto de Freud ([1912-13] 1980)datado de 1912, onde os ciúmes se projetam no amplo intervalo que vai do
normal ao patológico, poderíamos a princípio afirmar, subtraindo importância ao
normal e ao patológico, que não haveria ser falante não tomado por esta paixão.
Ao parecer, isto é assim para além de que aquele que a sofra o reconheça,
inclusive naquelas psicoses em que o drama com a linguagem é prevalente.
Sendo impossível para todo ser falante situar-se fora dos ciúmes, as ca-
racterísticas que adornam a circunstância de sua aparição desvelam a referên-
cia ao discurso e, portanto, à letra.
Sabemos que, dentro da obra de Lacan ([1975-76] 2007), a conceituação
do objeto a varia desde a obturação da demanda no Outro à causa do desejo e
se refere também ao mais de gozar como agente que determina o discurso do
analista. Também se diversifica em espécies de objetos a no ponto de partida
dos Nomes do Pai, e o encontramos como declaração de ser a única verdadeira
invenção que Lacan reconhece de si mesmo no Seminário O sinthoma. Nessa
oportunidade, o eixo que guia este comentário tem o objeto a em sua determi-
nação de aparência, como aquele significante que faz de véu a possibilidade da
existência do A, nome do campo de Outro.
Os ciúmes nunca são compreensíveis, mesmo que alcancem a normali-
dade freudiana. Sempre haverá, ou do lado do partenaire, ou do lado do que os
sofre, um acento que leva a não compreender. Da letra é de onde podemos
afirmar, de acordo à lógica lacaniana, que não há compreensão, mas leitura em
sua literalidade por quem deseja analisar.
Encontro nesse paralelo uma primeira relação entre os ciúmes e aquilo
que a letra instaura. Tomando em conta o seminário A carta roubada (Lacan,
[1955] 1984), se a letra chega à polícia como paradigma através de Dupin, che-
ga primeiro a quem não pode compreender nada dela no sentido da palavra de
amor que ela porta, ficando todos os seres falantes sujeitos a uma infidelidade
de raiz. Por quê? Porque a letra situa todo ser falante na posição de ser burlado,
posto que para cada um há algum sentido que se escapa, e que o sem-sentido
nos tira qualquer possibilidade de posse.
A infidelidade
Que os ciúmes sejam às vezes negados situa a negação no próprio cen-
tro da cena reprimida que não se quer saber. Que os ciúmes sejam projetados
Sobre o ciúmes
33
não diz senão do desejo que o ciumento quer apreender do partenaire, no ponto
em que seria arriscado todo contato com o desejo que concerne ao sujeito, na
medida de levá-lo ao ato. São abundantes os exemplos que dão conta da minu-
ciosa descrição que o sujeito com ciúmes pede a seu partenaire, no afã de
capturar ilusoriamente aquilo que faz o outro desejante.
Se o impossível guia a ética do desejo como verdade, e aquele que dese-
ja se enfrenta com não poder desejar o impossível, fato que então o situa fora do
discurso, o sujeito com ciúmes encontra essa peculiar maneira de pretender
esse impossível ao situar-se no caminho do desejo do partenaire, esperando um
saber absoluto sobre a cena.
Deveríamos considerar, por parte do sujeito gerado pelo corte que o signo
dos ciúmes oferece, outra implicação certamente não discursiva, tendente à
pretensão de anular o efeito que a letra porta como limite ao gozo em sua
adequação ao falo, já que a evidência o mostra como puro olhar de uma cena.
Situando-se o sujeito como olhar de uma cena da qual não participa, o
que se pode ver não toma a característica de ser falaz. Pelo contrário, haverá,
como efeito de uma demanda de pureza, o que deve ser inacessível ao olhar, e
será deixado em suspenso o possível de ser olhado. Que não se olha mais que
o possível é o que determina a letra no muro antes de que seja escrita verdadei-
ramente, e assim, então, buscar a última verdade de uma cena que demonstra
uma infidelidade, paradoxalmente para o ciumento, não é senão encontrar letra
e mais letra sem acabá-la nunca.
Com Schreber
Por último, os denominados ciúmes patológicos levam a questão da letra
ao campo das psicoses. Se bem é no histórico de Schreber que Freud ([1910-
11] 1980) se refere a essa circunstância, o faz tomando o exemplo da adição ao
álcool como desencadeante desse tipo deciúmes. No entanto, que a enumera-
ção dos ciúmes delirantes se encontre descrita junto à erotomania e à paranoia
me faz aventurar a hipótese de uma ciumetipia paranoica. Deixo claro que essa
distinção tem por fim somente a mostração de um fato do real da clínica, saben-
do de antemão que, no terreno dos ciúmes, às vezes perde-se o exato divisor de
águas entre o que é ou não é psicose.
Para a paranoia e a erotomania, Freud descreve três momentos: eu o
amo-eu o odeio-ele me odeia, ou não a amo-amo a ele-porque ele me ama. No
entanto, para os “ciúmes paranoicos” são dois os tempos descritos: eu o amo-
ela o ama. Queria propor um terceiro tempo nesse imaginário e agregá-lo como
segundo, que sustentaria a mentalidade paranoica ciumenta para então poder
dizer: eu o amo-é ele que me ama-ela o ama. A inversão cai sobre a primeira
3434
Daniel Paola
pessoa gramatical de maneira inquietante, revelando a crença de um amor ho-
mossexual, por parte de um partenaire, que é forcluído e que de nenhuma ma-
neira é aceito.
Assim como o segundo tempo é o que mais complicações oferece ao
paranoico ou ao erotômano, descobrindo a difícil e enlouquecedora sustentação
do ódio ou do inconfessável amor que se teria como amante de um partenaire
que a duras penas se sustenta, o segundo tempo, por efeito de estrutura na
paranoia de ciúmes, ficou diretamente apagado por efeito da forclusão.
Os ciúmes paranoicos viriam a somar-se ao mesmo modelo de mentali-
dade que é representada topologicamente com o nó de trevo para a paranoia e
para a erotomania, mas com a diferença de que em sua constituição gramatical
o segundo tempo de passagem se forclui, até tal ponto que é difícil de ser
descoberto. Alguma implicação na letra terá que haver nisto, considerando que
seu efeito se assemelha à negação como instituinte do simbólico.
Se tomarmos Otelo como um recorte clínico da genial obra de Shakespeare
([1604] 1999), situarei agora o momento exato da aparição desse tempo forcluído.
Trata-se do instante crucial no qual, mediante argúcias, um lenço é a prova
irrevogável de que Cássio esteve em intimidade com sua amada Desdêmona,
revelado por Iago em uma posição de crença absoluta quanto ao amor que teria
por Otelo.
A posição do analista
Esse ponto de engano, que consiste em apresentar como prova de amor
aquilo que é tomado como verdadeiro sendo falso, provoca a arrancada de ciú-
mes em Otelo e o desencadeamento da passagem ao ato que culmina com o
assassinato. Sucede que o personagem dos ciúmes faz sua entrada na loucura
no ponto em que não há sustentação de uma letra, comandada pelo inconscien-
te, que seja indicador de algo falso, respeito à certeza que o cogito imporia no
ser.
Para o analista seria conveniente sempre suspeitar de que a transferên-
cia, cedo ou tarde, conduz a um lugar que deve suportar com sua presença.
Deveria induzir a uma falsidade no verdadeiro em que se vê comprometido por
uma demanda de acusação, e que sanciona gravemente o partenaire. Nesse
caso, deverá recorrer inclusive a retirar-se, antes de aceitar a prova irrefutável de
que o ciumento paranoico põe à sua disposição para argumentar uma acusação
longamente cozinhada na demanda.
O ciumento paranoico fará o possível para tornar efetiva essa acusação
que Otelo sustenta graças a Iago. O analista insistirá na falsidade, sabendo que
na verdade se trata do amor inconfessável que o ciumento paranoico desdobra à
Sobre o ciúmes
35
sua pessoa, e que, como em qualquer caso, terá de descartar, apesar da reci-
procidade que certamente foi despertada na dualidade transferencial.
Se o ciumento paranoico se desprende, possivelmente para outra trans-
ferência, ao menos não se terá renunciado a declarar o falsus que a transferên-
cia encerra, seja com quem seja, enquanto seu estatuto princeps é a abstinên-
cia. Que o ciumento se solte da dualidade, que inclusive por estrutura está
forcluído, pode ser o início de outra possibilidade em sua vida, em vez de ficar
submetido à passagem ao ato, assassinando o amor.
REFERÊNCIAS
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FREUD, Sigmund. Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia
Dementia paranoides (descrito autobiograficamente) [1910-11]. In: ______. Obras
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FREUD, Sigmund. Totem y tabu [1912-13]. In: ______. Obras completas. Buenos
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LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: o sinthoma [ 1975-76]. Rio de Janeiro: J.
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LACAN, Jacques. El seminario de ‘La carta robada’ [1955]. In: ______. Escritos.
México: Siglo Veintiuno, 1984. v. 1.
SHAKESPEARE, William. Otelo [1604]. Porto Alegre : L&PM Editores, 1999.
Recebido em: 10/09/2009
Aceito em:10/10/2009
Revisado por Sandra D. Torossian
36
TEXTOS
36
Resumo: A partir de Otelo, de Shakespeare, o texto destaca o objeto a como
balizador dos diferentes tipos de ciúme na neurose. A tentativa de domínio e
apagamento do objeto de desejo, na neurose obsessiva, e a busca da presença
do pequeno a, a fim de melhor indagar sobre ele, na histeria, particularizam o
ciúme em cada uma dessas modalidades clínicas.
Palavras-chave : ciúme, histeria, neurose obsessiva, objeto a.
ABOUT THE DIFFERENT KINDS OF JEALOUSY
Abstract: Departing from Othello,by Shakeaspeare, the text underlines the
object a as a landmark of the different kinds of jealousy in the neurosis. The
attempt of domination and extinguishment of the object of desire – in the obsessive
neurosis – and the search for the presence of the small a, in order to better
inquire it in hysteria – specify the jealousy in each one of these clinical modalities.
Keywords: jealousy, hysteria, obsessive neurosis, object a.
SOBRE OS TIPOS DE CIÚME1
Lúcia Alves Mees2
1 Texto baseado no trabalho apresentado na Jornada de Abertura da APPOA: Ciúmes , realiza-
da em Porto Alegre, abril de 2009.
2 Psicanalista; Membro da APPOA; Autora do livro Abuso sexual: trauma infantil e fantasias
femininas . Artes e Ofícios, 2001. E-mail: lmees@portoweb.com.br
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 37, p. 36-45, jul./dez. 2009
Sobre os tipos de ciúmes
37
Um verme asqueroso e feio / gerado em lodo mortal. /
Morde, sangra, rasga e mina. / Aquele verme é o ciúme
Machado de Assis
Tudo é perda, tudo quer buscar, cadê/ Tanta gente canta,
tanta gente cala/ Tantas almas esticadas no curtume/
Sobre toda estrada, sobre toda sala/ Paira,
monstruosa, a sombra do ciúme
Ciúme, Caetano Veloso
É ele (o ciúme) o monstro de olhos verdes
que zomba da carne com que se alimenta
Shakespeare
Vermes, carne no curtume, monstro: as imagens associadas ao ciúme anun-ciam seu caráter assustador, invasivo, insidioso e mortífero. De intensida-
des variadas, o ciúme pode estar presente da normalidade à loucura, como já
apontou Freud ([1922]1976) através dos três tipos de ciúme que descreveu. O
primeiro tipo, o normal, enraíza-se no inconsciente a partir das relações entre
irmãos e no complexo de Édipo, sendo, portanto, comum ao psiquismo. O se-
gundo não obedece à sexuação e é consequência da colocação do outro na
posição da pretendida infidelidade: é o ciúme projetado. O terceiro e “pior tipo”,
segundo Freud, o ciúme delirante, caracteriza-se por ser a defesa contra dese-
jos homossexuais, levando a atribuir ao outro seu próprio amor pelo objeto do
mesmo sexo. Aquele que é amado se transforma em perseguidor.
Seguindo a trilha percorrida por Freud, gostaria, também, de propor uma
tipologia do ciúme na neurose, incluindo na descrição das espécies de ciúmes
o da neurose obsessiva e o da histeria.
Sabe-se que uma tipologia toma por referência um critério a partir do qual
é possível descrever e situar algo, pelo menos aquela que interessa aqui. Otelo,
de Shakespeare ([1604]1999), serviu de guia para destacar essa baliza que
demarca os diferentes campos do ciúme.
Nessa peça, Otelo não tem qualquer razão para desconfiar de sua espo-
sa Desdêmona, entretanto, com facilidade, cede ao ardil de Iago, o qualinsufla
a desconfiança, em razão de sua inveja3 . O general Otelo havia promovido Cás-
3 Observe-se que a peça percorre o caminho da inveja ao ciúme, assinalando a passagem da
dualidade da relação invejosa ao ternário do ciúme. Como indicou Lacan ([1964] 1985), a
inveja se relaciona com o olhar e a fase do espelho. A tensão agressiva gerada a partir da
noção imaginária de que só há lugar para um (enquanto imagem ideal), faz da inveja o “olho
gordo” e voraz que tudo quer e que acredita que terá de tomar do outro para conseguir.
3838
Lúcia Alves Mees
sio ao posto de tenente, pretendido por Iago, e essa é a causa a partir da qual
este tece a trama da vingança. Otelo capitula aos argumentos de Iago e crê que
Desdêmona o trai com Cássio. Acaba por assassiná-la e, quando descobre ser
mentirosa a acusação contra ela, Otelo termina com a própria vida. Iago, desco-
berto, será julgado por seus delitos. Emília – esposa de Iago e acompanhante
de Desdêmona – é quem revela as mentiras do marido.
Fica a pergunta sobre o porquê de Otelo ceder tão facilmente aos argu-
mentos de Iago: isso seria sinal de quanto o ciúme é inerente ao amor, bastando
a presença deste para ver o primeiro aparecer?
Uma pista para tentar responder à indagação está na cena inicial da obra,
na qual o pai de Desdêmona, Brabâncio, revela sua contrariedade com o (até
então não sabido) casamento da filha com o Mouro e se diz traído:“Oh céus!
Como foi que ela conseguiu sair? Traído pelo meu próprio sangue! – Ouçam-me,
aqueles de vocês que são pais: daqui em diante, não mais acreditem que sa-
bem o que suas filhas pensam baseados apenas naquilo que veem das ações
delas!” (Shakespeare, [1604] 1999, p.14).
“Se uma mulher trai seu pai quando casa com seu homem, por que ela
não trairia de novo”, parece se perguntar Otelo, inflado pelo veneno de Iago ,
porta-voz de suas próprias desconfianças. Dúvidas que se tornam tão insuportá-
veis de sustentar que Otelo se agarra à certeza – mesmo que falsa – de ter sido
traído.
Além da traição de Desdêmona ao abandonar o pai e ainda casar com
alguém não aprovado por ele, há ainda os motivos pelos quais seu pai condena
Otelo: ele não é “bem nascido” como ela, tem a pele escura dos árabes, não é
cristão como Desdêmona e é mais velho que ela; embora seja também admira-
do como combatente. Os traços de desvalorização de Otelo o deixariam teme-
roso de seu lugar junto à esposa, a ponto de facilmente duvidar dele e depois
dela? Ou será que a falta é tão negada no amor e idealização do objeto que
qualquer aparição do furo é interpretada como terrível, trágica, mortífera?
Otelo pede provas da traição da esposa a Iago e vê na desaparição de um
lenço (com o qual a presenteara) a comprovação de que ela teria (se) entregue
a outro homem. Desdêmona perdera o lenço; e Emília, sem saber da trama
armada, entrega o pedaço de tecido ao marido, Iago.
Otelo: Aquele lenço foi presente de uma mulher egípcia à minha
mãe. A mulher era feiticeira: praticamente lia os pensamentos das
pessoas. Disse ela à minha mãe que, enquanto conservasse o
lenço, ela seria pessoa afável e teria meu pai inteiramente sub-
misso ao seu amor. Mas, se ela o perdesse ou com ele presente-
asse outra pessoa, o olhar de meu pai a contemplaria com ódio, e
Sobre os tipos de ciúmes
39
o coração dele se poria à caça de novas fantasias. Ao morrer, ela
me deu o lenço e pediu-me para, quando meu destino a mim trou-
xesse minha esposa, presenteá-la com ele. Assim procedi. E toma
tu nota do seguinte: guarda-o como a um bem precioso, cuida
dele como cuidas de teus próprios olhos. Perdê-lo, ou com ele
presentear outra pessoa, representaria para ti danação tal que
nada se lhe pode comparar” (Shakespeare, [1604] 1999,p.106).
Nessa bela descrição do objeto a, o lenço envelopa o objeto de desejo.
No interior do lenço há o vazio que abriga o pequeno a, indefinível, mas circuns-
crito pelas bordas de tecido que indicam sua existência. O lenço de Otelo explicita
que o pequeno objeto marca a diferença entre amor e desejo: se o objeto cair
(perder-se), o amor fica questionado, pondo fim à suposição do encontro perfei-
to, fim do anseio de reunir os dois em um só.
O pedaço de pano de Shakespeare evoca o agalma4 analisado por Lacan
([1960-1961] s/d.) a partir do Banquete (Platão, 1991). Neste, Sócrates é a
caixa que contém em si o troço oculto – o agalma – o objeto de desejo de
Alcebíades. Este quer desvendar o mistério sobre o desejo enigmático através
da indagação da posição de desejante de Sócrates.
Alcebíades articula ao redor do tema do agalma, do tema do obje-
to escondido no interior do sujeito Sócrates. [...] O que ali se
revela é uma estrutura na qual podemos voltar a encontrar aquilo
que nós somos, capazes de articular como totalmente fundamen-
tal o que chamaria de posição do desejo (Lacan, [1960-1961], s/d,
p.41).
Através da análise da transferência, Lacan articula e diferencia desejo e
amor. Aquele que ama supõe presente o que lhe falta, enquanto que o desejante
terá de lidar com a ausência do objeto. O objeto a, portanto, traz a tensão entre
a presença e a ausência próprias do desejo, além de suas diferenças com o
amor. Ou ainda, mais que isto, aquele(a) que se acreditava amar, revela-se um
invólucro (agalma ou portador do lenço) do pequeno objeto que cada um quer
fazer amar em si mesmo, enquanto constrói o Outro como lugar da falta.
4 O agalma designa enfeite ou ornamento, aludindo a alguma coisa escondida; por exemplo, o
que está dentro de uma caixa de jóias.
4040
Lúcia Alves Mees
Ou como diz Lacan, no seminário A identificação: “O que estou acentu-
ando é esse limite, essa fronteira que separa desejo do amor. O que não quer
dizer que eles não se condicionem por todos os tipos de pontas” (Lacan,[1961-
1962] 2003,p.156). E, mais adiante: “A função eminente de Sócrates é de ser o
primeiro que tenha concebido qual a verdadeira natureza do desejo [...] O desejo
enquanto própria essência do homem” (id., ibid., p.157).
Além disso, na história do lenço, associam-se elementos da filiação de
Otelo. Há as referências diretas ao casal parental e à transmissão de um modo
de se relacionar. Origem que remete à história de sua vida e de seu povo5 , a
qual, ao contá-la, encanta Desdêmona.
No início da trama, Otelo parece estar certo do amor de Desdêmona e
assim o descreve:
Ela sempre me perguntava sobre a história de minha vida, ano a
ano...as batalhas, os cercos, as aventuras pelas quais passei [...]
Assim foi que passei a narrar acasos os mais desastrosos, aci-
dentes tocantes e sangrentos dos campos de batalha. Falei de
como consegui escapar por um fio da morte iminente, de como fui
feito prisioneiro pelo insolente inimigo e vendido como escravo.
Contei sobre minha libertação desse tempo e relatei a história de
minha conduta em minhas viagens [...]. Tendo contado minha his-
tória, em troca de minhas dores ela presenteou-me com um mun-
do de suspiros, declarando-me, na verdade, que minha história
era estranha e, ainda mais que estranha: era digna de pena, ma-
ravilhosamente digna de pena. [...] Ela me amava pelos perigos
por que eu havia passado, e eu a amava por ter ela se compadeci-
do de mim (Shakespeare, [1604] 1999, p.28).
Perder o lenço, portanto, é também pôr em xeque a posição do sujeito
Otelo: sua história, suas palavras impregnadas de gestos másculos e valentes,
e o sinal do reconhecimento disso através da admiração e do compadecimento.
A queda do objeto a leva Otelo a se ver apenas como pejorativamente digno de
pena, escravo de pele escura, desprivilegiado e, por isso, lutador.
Entre cada sujeito e o Outro há o inapreensível pequeno a, resto irresgatável
da operação de separação entre eles, marcando a cisão entre sujeito e objeto.
5 Habitantes muçulmanos do norte da África e da Espanha e, por extensão, tanto os pagãos da
África quanto os hindus da Índia.
Sobre os tipos de ciúmes
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A função desse objeto está ligada à relação por onde o sujeito se
constitui na relação com o lugar do Outro, A maiúsculo, que é o
lugar onde se ordena

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