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70 TEXTOS 70 Resumo: O artigo trata do desenvolvimento da história da loucura e do conceito de estruturas clínicas na psicanálise. Palavras-chave: história da loucura, estruturas clínicas, psicanálise. CLINICAL STRUCTURES: PRELIMINARY QUESTIONS Abstract: This article is about the development of the history of insanity and the concept of clinical structures in psychoanalysis. Keywords: history of insanity, clinical structures, psychoanalysis. ESTRUTURAS CLÍNICAS: QUESTÕES PRELIMINARES1 Eda Estevanell Tavares2 Maria Lúcia Muller Stein3 Otávio Augusto Winck Nunes4 1 Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Estruturas freudianas , realizadas em Porto Alegre, outubro de 2009. 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre; Especialista em Psicologia Clínica com formação em Problemas do desenvolvimento e da adolescência pelo Centro Lydia Coriat. E-mail: edatavares@gmail.com 3 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre; Mestre em Psicologia Social e Institucional/UFRGS. E-mail: mlpm@terra.com.br 4 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre; Mestre em Psicologia do desenvolvimento/ UFRGS; Mestre em Psicopatologia e Psicanálise/ Universidade Paris 7. E-mail: otaviown@terra.com.br Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 70-78, jan./jun. 2010 Estruturas clínicas... 71 Ointuito deste texto é destacar alguns elementos do que vem sendodiscutido em relação ao que chamamos de estruturas psíquicas, na psica- nálise, em seu desdobramento histórico, mas também, a incidência que eles exerceram na construção da própria psicanálise. Sabemos que, ao longo da história da humanidade, a maneira como os homens interpretaram a perda da razão, ou seja, as manifestações psíquicas que fugiam do funcionamento consi- derado normal, não se agrupou em torno de uma mesma voz. Na verdade, tampouco podemos afirmar que atualmente assim o faça. Na Grécia antiga (Bonfim, 2009), os “perturbados” eram considerados mensageiros dos deuses, portadores de saber divino, ocupando assim um lugar socialmente viável e necessário como intermediários entre os homens e seus deuses. Já na Idade Média, imersa no temor da peste e da morte, regida por crendices e superstições, estabeleceu-se a ideia de que, para o cristão devoto, saúde e salvação fossem valores intrínsecos ao homem. Os “perturbados” eram condenados à fogueira sem apelação, a única terapêutica e saída era arder no fogo. Seguiam sendo seres possuídos, mas o mestre era outro, não eram mais os deuses, e, sim, o demônio. Na Renascença encontraremos duas formas diferentes de abordar os “loucos ou perturbados”. De início, o antropocentrismo faz com que a loucura seja interpretada como uma força da natureza, representando o inumano, da qual advirão “as verdades do mundo”. Trata-se do terror e da atração que a loucura exerce sobre os homens. Num segundo período, com o predomínio da razão acompanhando o avançar do Renascimento, a loucura deixa de ser repre- sentante das forças da natureza e passa a ser concebida como o reverso da razão. De força divina e força da natureza, a loucura adquire então caráter moral: o louco começa a ser visto como um ser moralmente desqualificado: avaro, preguiçoso, indolente. A imagem na capa desta Revista se enquadra na vertente do segundo período. Baseou-se na tela A extração da pedra da loucura, de Hieronymus van Aeken, conhecido como Bosch (obra do acervo do Museu do Prado, Madri, Espanha). Trata-se de um óleo sobre tela, de 48x35 cm. Ou seja, um pequeno quadro, mas que, sem sombra de dúvidas, remete a questões fundamentais em torno do tema do psiquismo, pois, em seus traços, encontramos elementos importantes relativos ao tratamento, às terapêuticas e às posições subjetivas. Os personagens, ilustrados satiricamente, expressam uma situação represen- tativa do tema que desenvolvemos, tanto pela perspectiva histórica (pois contextualiza uma época) quanto pela psicanalítica, na medida em que a ironia presente no quadro não deixa de ser uma bela interpretação da loucura. A ilus- tração, por sinal, já foi reproduzida em diferentes situações, o que só reafirma o momento de lúcida inspiração do autor. 72 Eda Estevanell Tavares, Maria Lucia Muller Stein e Otávio Augusto Winck Nunes 72 A extração da pedra da loucura, quadro de Bosch, pintado entre 1475 e 1480, retrata o que seria a operação cirúrgica realizada na Idade Média, em que se retirava uma “pedra” da cabeça do paciente, à qual se atribuía a causa da loucura. O pseudocirurgião que ali figura, em vez do barrete, usa um funil, sím- bolo da estupidez, e o que extrai é na realidade uma tulipa (nos Países Baixos da Europa essa flor é utilizada como metáfora para a loucura) e não a famigerada pedra. Outro elemento importante no quadro aparece pendurado na cintura do pseudocirurgião: um saco onde guarda seu dinheiro, fruto de seu trabalho. Ou seja, Bosch aproveita o tom satírico que predominava nas produções artísticas do Norte europeu para ilustrar como a loucura era tratada: havia os que por ela se interessa- vam; e havia, também, os que dela se utilizavam de modo um tanto peculiar. Bosch pontua, assim, o engodo existente entre aquele que ilude por parecer deter o saber e aquele que acredita na sua técnica. Isso faz mais de 500 anos; contudo, ainda hoje o panorama da doença psíquica permanece envolto em uma série de situações que são, por assim dizer, satíricas. E não há mérito algum nisso. Na referida ilustração, não poderiam faltar os representantes do cristianis- mo; afinal, na Idade Média, a presença da religião era uma constante na interpre- tação dos fatos cotidianos. A presença do frade e da freira – ela, com um livro ferrado acima da cabeça; ele, com um cântaro de vinho na mão – seria uma alegoria do lugar de ignorância e insensatez, o qual se começava a atribuir ao clero. Em torno do quadro, uma frase escrita em latim diz: Mestre, extrai-me a pedra, meu nome é Lubber Das. Frase que resume bem a posição de cada um, o mestre e seu discípulo. Lubber Das era um personagem satírico da literatura holandesa que representava a estupidez e o homem simples e humilde. E ain- da, na série de elementos do quadro, ao que tudo indica, o nome Lubber Das pode ser traduzido por “baixinho castrado” (Luaces, 2008), por mais incrível que possa parecer. O certo é que não sabemos a que castração Bosch estava se referindo, se a relativa ao saber, à altura do paciente, à ausência de razão, ou ainda, à própria castração. Não importa. É no mínimo curiosa a referência à palavra ou ao significante que, na psicanálise, tomou relevância tão especial. O formato circular da cena, alusivo a um espelho, mostra o olho do louco dirigido ao observador, parecendo devolver ao mundo, aquele que olha o quadro, sua própria estupidez, ao esperar a cura dessa maneira absurda. Na vertente, então, que tomamos, é interessante lembrar que as expres- sões “louco de pedra” ou “doido de pedra” poderiam ter sua origem nessa prática medieval, tendo se transformado em expressão coloquial com as práticas em hospitais psiquiátricos, pelo uso excessivo de remédios. Eram tantos os com- primidos administrados que acabaram sendo chamados de “pedras”. Vale lem- brar, também, que a palavra “pedra” tomou na psicanálise pelo menos dois sen- Estruturas clínicas... 73 tidos. Freud, em seu texto A história do movimento psicanalítico disse que “a teoria do recalque é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise” (Freud, [1914] 1977, p. 26). Ou seja, o ponto de apoio, o que esta- biliza as produções psíquicas, o recalque, é a pedra no meio de um caminho que alude à neurose. Mas, referiu-se ao complexo de castração como a rocha, por deslocamento metonímico, pedra dura da psicanálise. Aqui, a pedra é a metáfora do limite; o ponto que não se poderia transpor. Nos dois exemplos, podemosver que algo do real já estava presente na psicanálise, como metáfora da flagrante dureza que é o trato com o inconsciente. No século XVII (Bonfim, 2009), o moralismo recrudesce, e os “desrazo- nados” passam à exclusão absoluta. O controle social cresce e todos os desva- lidos socialmente são relegados aos asilos criados especialmente para receber os loucos, os libertinos, os inválidos, os mendigos... Como sabemos, tais asi- los tinham o único caráter de depósito, de afastar os desviantes, os excluídos da sociedade, sem nenhuma proposta terapêutica. Com o passar dos tempos, esses “depósitos” de párias passam a enviá- los de volta aos lares, restando apenas os que se constituíam em ameaça, os loucos. É no final do século XVIII, com os ideais da Revolução Francesa, que surge Philippe Pinel e seu “tratamento moral sem correntes” (Bonfim, 2009). Esses asilos passam a ter caráter médico, não mais apenas de tratamento moral, e a loucura passa a ser vista como doença. Na verdade, a existência, a compreensão de doença, do ponto de vista psicológico, começa a existir ape- nas no século XIX. Segundo Fernandes: É a alma que sofre, a mente precisa ser tratada, o louco passa a ser encarado como um ser em conflito com sua própria desordem. A corrente alienista, tendo como expoente Pinel, na França e Tuke, na Inglaterra, retomam as práticas médicas do século XVII, acres- centando-lhe um novo caráter, trata-se de conhecê-la para dominá- la. Os médicos são os ‘possuidores da razão’, podendo legislar sobre os sujeitos despossuídos da mesma, surgindo então a psi- quiatria com a função ambígua de tratar o louco e defender a soci- edade do mesmo. Ao louco é suprimido o valor de sua fala (Fernandes, 2009, s/p). É com esse contexto que o jovem Freud depara-se após sua formação em medicina. Inicialmente, o encontro com Breuer o leva a aproximar-se de jovens mulheres histéricas. Desse encontro, uma nova definição é atribuída à histeria, não mais em seu estatuto médico-místico, pois, ao escutá-las, Freud, atribuiu vital importância às falas dessas pacientes. 74 Eda Estevanell Tavares, Maria Lucia Muller Stein e Otávio Augusto Winck Nunes 74 Não muito tempo depois, em 1895, um novo encontro e talvez mais defi- nitivo na vida de Freud: em viagem de estudos a Paris, conhece Charcot, que, com seu estilo teatral, diagnostica a histeria como uma verdadeira enfermidade, ao invés do refúgio de doenças imaginárias (Gay, 1989). Charcot era um artista, segun- do ele próprio, un visuel, ou seja, aquele que vê, denotando assim, a importância que dava à prática. Essa característica causou tanto impacto no jovem Freud que, ao escrever o obituário de Charcot, registra uma das máximas de seu mestre: La théorie, c´est bon, mas ça n´empêche pas d´exister! (Charcot apud Gay, 1989, p. 62). Ou seja, teoria é bom; mas isso não impede as coisas de existirem. O que, sem dúvida, é uma máxima que não podemos esquecer e, talvez, um estímulo para que continuemos a debater os problemas que o nosso trabalho apresenta. Bem sabemos que, deste acento dado por Charcot ao ver, Freud tira as devidas consequências, produzindo um giro fundamental para a psicanálise ain- da em gestação: da ênfase dada ao ver, Freud desliza para o escutar (Rickes, 2002). Freud rapidamente aprendeu com Charcot que a ciência, no que tange ao estudo dos processos psíquicos, substituiria a terminologia religiosa e obscu- rantista da Idade Média. Mas Freud vai além; constrói a psicanálise, provocando um giro a mais no eixo que representava o espírito da época: o privilégio da razão perde força com a emergência do inconsciente e da sexualidade como os pontos fundamentais da subjetividade. A princípio, Freud irá tomar o termo neurose, já consagrado, para definir a doença psíquica das histéricas. Segundo Elizabeth Roudinesco (1998), o termo “neurose” foi inventado por William Cullen, na metade do século XVIII. Nesse momento, o olhar clínico se renovava com a dissecação de cadáveres e o olhar direto para as doenças, em suas manifestações anatomofisiológicas. Assim, o termo “neurose” surgia para designar as doenças para as quais a medicina não encontrava nenhuma explicação orgânica. Phillipe Pinel retomou o termo, o qual um século mais tarde seria popula- rizado por Jean Martin Charcot ao fazer da histeria uma doença que atinge a função de um órgão, sem afetar o órgão propriamente dito, ou seja, uma neuro- se. Mas foi com seu discípulo, Pierre Janet, que influenciaria os clínicos france- ses, que a neurose tornou-se a doença da personalidade, caracterizada por conflitos psíquicos. Freud, após sua temporada com Charcot, também definiu a histeria como uma neurose, mas a diferenciou das concepções de Janet, desvinculando-a da presumida origem uterina e atribuindo-lhe etiologia sexual e enraizamento no inconsciente. Com os Estudos sobre a histeria (Freud, [1895] 1977), a histeria passa a ser o protótipo da neurose para o discurso psicanalítico. Como bem sabemos, de início era uma doença nervosa causada por um trauma psíquico: a sedução. Com o abandono da teoria da sedução, em 1897, a neurose passa a Estruturas clínicas... 75 ser um conflito psíquico inconsciente, de origem infantil e causa sexual. A neu- rose seria fruto de um mecanismo de defesa contra a angústia e da formação de compromisso entre essa defesa e a possível realização de um desejo. Com o surgimento da psicanálise, aspectos da vida psíquica que não eram considerados pela ciência médica da época foram tomados como mani- festações cruciais para entender o psiquismo por Freud: Uma série de fenômenos de nossa vida psíquica adquiria sentido: os atos falhos, os esquecimentos, os sonhos. O inconsciente im- punha-se como um outro componente do nosso psiquismo – tal como a dinâmica libidinal (Bosseur apud Fernandes, 2009, s/p.). Mais do que isso, ao tomarmos os grandes textos desse início das for- mulações psicanalíticas, A interpretação dos sonhos (Freud, [1900] 1977) e Psicopatologia da vida cotidiana (Freud, [1901] 1977), por exemplo, percebe- mos a genialidade de Freud ao interpretar fenômenos comuns a todos os ho- mens. Sonhar é uma experiência universal e normal, assim como cometer lap- sos de linguagem, esquecimentos, etc. Ou seja, os processos inconscientes são universais e, portanto, a lógica cartesiana de domínio do eu coeso, uno, já não é mais possível. É aí que as ideias psicanalíticas começam a desalojar o homem de sua morada. “Todos” os homens, “desrazonados” ou não. Foi então que, ao se lançar na aventura de escutar suas pacientes histé- ricas, Freud viu-se impelido a desenvolver um campo conceitual para elaborar aquilo que experienciava em sua clínica. E assim, como aponta Rickes (2002), se tecem os primórdios da relação teoria-prática no campo da psicanálise, de- monstrando que o fazer clínico é fundamentalmente um lugar de investigação. Investigação que traz em si facetas muito peculiares, como, por exemplo, o fato de que podemos em psicanálise desenvolver uma série de operadores conceituais que nos permitem construir generalizações teóricas. Porém, quando transpo- mos essas generalizações para o campo da intervenção propriamente dita, há a necessidade de relativizá-las, levando-se em conta a singularidade da situação clínica à qual são convocadas, a da transferência. Freud, partindo dos estudos sobre a histeria, classificou os fenômenos de defesa decorrentes do Édipo (fobia, histeria e obsessões) como neuroses; e as problemáticas narcísicas pré-edípicas, como psicoses. Ainda seguindo Roudinesco (1998), Freud ([1905] 1977) viria a introduzir uma terceira categoria, a perversão, quando, em 1905, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, ele define a neurose como o “negativo da perversão”, por considerá-la a manifestação bruta e não recalcada da sexualidade. Assim, a neurose é o resultado de um conflito com recalque; a psicose, da reconstrução76 Eda Estevanell Tavares, Maria Lucia Muller Stein e Otávio Augusto Winck Nunes 76 da realidade alucinatória; e a perversão, da denegação da castração, com uma fixação na sexualidade infantil. Essa classificação freudiana das estruturas clínicas foi questionada nos anos 50 do século passado, principalmente por Donald Winnicott e Heinz Kohut com as questões sobre o self e a noção de borderline (Roudinesco, 1998). Essas proposições, mesmo que importantes historicamente, não tiveram força suficiente para enfraquecer as considerações freudianas. Embora gozem de certo prestígio, ao propor uma resposta endereçada a quadros diagnósticos de difícil apreensão. Entretanto, se a neurose fazia parte da prática e do vocabulário da psica- nálise, a psicose era, a princípio, ligada ao saber psiquiátrico e aos manicômi- os. Freud, mesmo não se dedicando ao atendimento de psicóticos, escreveu um texto fundamental a partir do qual rompeu o abismo, entre a norma e a patologia, até então considerado intransponível, abrindo mão de qualquer pre- tensão nosográfica: o caso Schreber (Freud, [1911] 1977). Mas foi Jacques Lacan ([1936] 1987) que se dispôs a indagar a psicose a partir da prática com pacientes. Já desde sua tese de doutorado, Da psicose paranoica e sua relação com a personalidade, a contribuição de Lacan ([1936] 1987) para a psicanálise passa a ser fundamental. Em sua releitura da obra de Freud, serve-se dele, para enfatizar aspectos cruciais sobre as psicoses. Freud situou na fala o lugar privilegiado para as manifestações do inconsciente; Lacan ([1955-1956] 1983), utilizando-se da linguística e do aporte freudiano, foi mais incisivo, dizendo que é na linguagem que podemos encontrar os fenômenos necessários para diferenciar as neuroses da psicose. Os registros delimitados por Lacan do real, do simbólico e do imaginário, mostram-se necessários e suficientes à compreensão das estruturas psíquicas. Portanto, se aparentemente o campo da neurose já se encontrava bem definido, o campo da psicose teve forte impulso com o ensino lacaniano. O enunciado lacaniano “o analista não deve recuar frente à psicose”, mais do que prescrição a ser seguida, parece ter sido o caminho seguido por Lacan, resulta- do do trabalho intenso de muitos anos com a psicose, utilizando-se dos concei- tos psicanalíticos para dar sustentação a uma prática. Então, Lacan ([1955-1956] 1983), no seminário As psicoses, retoma elementos já presentes no seu trabalho, acrescentando novos e avançando na delimitação desse campo, ao introduzir os conceitos nome-do-pai, forclusão parcial do significante primordial, e os registros real, simbólico e imaginário. É claro que muitos desses pontos de seu ensino, relativos à psicose, estavam engatinhando e precisariam de mais duas décadas para com seus Seminários, dos anos 70, ganharem corpo. Assim, é com os Seminários RSI (Lacan, [1974-1975] s/d) e O sinthoma (Lacan, [1975-1976] 2009) que o autor circunscreve de maneira mais rigorosa o campo da psicose. Estruturas clínicas... 77 Então, palavras impostas, neologismos, frases interrompidas, não será nesses fenômenos de linguagem que Lacan irá buscar os pontos necessários para fundamentar as estruturas psíquicas? Se estamos frente a invariantes da linguagem, não bastarão os fenômenos classicamente aludidos à psicose, como os delírios, as alucinações ou a perda da noção da realidade para caracterizá-la. Tais fenômenos podem estar presentes nas neuroses. Então, o que nos resta é escutar o paciente, escutar sua palavra, escutar sua estrutura subjetiva desdo- brando-se na transferência. Que outras intervenções, tal como a medicamentosa, sejam utilizadas para conduzir a cura no tratamento da psicose, não tornam a intervenção psicanalítica prescindível, uma vez que essa é relativa à palavra. Uma crítica comum feita à psicanálise lacaniana refere-se ao entendi- mento de uma possível rigidez, quando se fala em estrutura, ou seja, utilizar-se das concepções do estruturalismo francês para sustentar sua posição. Mas o que tal crítica esquece é que esse não foi senão seu ponto de partida para estabelecer uma concepção bastante inovadora: a estrutura psíquica se cons- trói em torno de um buraco, em torno de um vazio, e isso é o que separa, distancia, a psicanálise do estruturalismo propriamente dito. Não há a aplicação pura e simples de uma concepção à outra. Na psicanálise, os elementos da linguagem se organizam em torno de um buraco, de uma falta. Apesar de lançar mão das ideias estruturalistas, pensar na lógica do inconsciente não significa afirmar a coincidência exata entre esta e a estrutura da linguagem. O sujeito é falado pela linguagem, cuja lógica se vale do sujeito para que ele se pronuncie, articulando um ponto de enunciação. É isso o que Lacan sustenta ao longo de sua obra, ao indicar que há pontos invariantes no psiquismo. Esses pontos são ligados de diferentes maneiras, como o antigo brinquedo de revistas infantis, em que um desenho se revela ao se ligar e entrecruzar determi- nados pontos. O desenho já estava lá, mas precisava ser revelado, um traço de união entre eles se fazia necessário para então mostrar o que não aparecia. Com a psicanálise, dizemos: para escutar o que estava silenciado. Mas, como lembrava Lúcia Mees5, será que ainda referendaríamos a in- fluência do estruturalismo? Haveria numa mudança de posição a consonância com uma cultura em que nada é permanente? As novas manifestações sintomá- ticas do sujeito contemporâneo falam de uma psique totalmente mutável ou se manteriam certas invariantes estruturais? O invariante da estrutura desconsideraria as muitas mudanças que um sujeito é capaz de realizar? 5 Trabalho, não publicado, apresentado na Jornada de Abertura da APPOA - Ciúmes, Porto Alegre, abril de 2009. 78 Eda Estevanell Tavares, Maria Lucia Muller Stein e Otávio Augusto Winck Nunes 78 Ao tomarmos o estudo do seminário das Psicoses (Lacan, [1955-1956] 1983), ou As estruturas freudianas das psicoses, como texto base para o eixo de trabalho do ano de 2009, na verdade interrogamos muito mais do que a categoria das psicoses. Os trabalhos aqui apresentados demonstram exata- mente isto. Versam sobre questões atuais da clínica psicanalítica, sobre nos- sos impasses teóricos, nossas dificuldades, mas também apontam para novas reflexões e possíveis desdobramentos. E assim, nos valendo da herança freudiana de permitir circular a palavra, de fazer emergir novos significantes, seguimos nossa via associativa. E também nossa vida associativa. REFERÊNCIAS BONFIM, Renata. 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Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977, v. XII, p. 15-108. _____. A história do movimento psicanalítico. [1914]. In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977, v. XIV, p. 13-82. GAY, Peter. Freud: uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. LACAN, Jacques. Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade [1936]. Rio deJaneiro: Forense Universitária, 1987. _____. O seminário, livro 3: as psicoses [1955-1956]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. ______. R.S.I. [1974-1975]. Editions de l’Association Lacanienne International. Pu- blicação não comercial. _____. O seminário, livro 23: o sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009. LUACES, Joaquim Yarza. Guia de sala: El Bosco y la pintura flamenca del siglo XV. Madri: Fundación Amigos del Museo del Prado, 2008. RICKES, Simone Moschen. No operar das fronteiras, a emergência da função autor. 2002. 179f. 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Keywords: dialectics, delirium, partiality, significant. QUANDO O NOME DO PAI NÃO VEM1 Maria Ângela Bulhões2 1 Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Estruturas freudianas , realizadas em Porto Alegre, outubro de 2009. 2 Psicanalista; Membro da APPOA; Psicóloga do ambulatório do HPSP; Supervisora da residência integrada em saúde mental coletiva. E-mail: mabul@terra.com.br 80 Maria Ângela Bulhões 80 Aleitura do seminário As psicose (Lacan, [1955-56]1985) fez parte do eixo deestudo desse ano (2009) em nossa Instituição. A escrita deste trabalho foi realizada a partir de nosso estudo e ficou centrada em dois pontos: a dimensão dialética do sujeito e a parcialidade do delírio. O primeiro ponto: a dialética Lacan no referido seminário, ainda em seu início, diz: Em suma, precisamente por sempre ter radicalmente desconheci- do, na fenomenologia da experiência patológica, a dimensão dialética, é que a clínica se perdeu (Lacan, [1955-56] 1985, p. 32). Essa afirmação merece ser destacada, já que ela fornece elementos im- portantes para nossa reflexão. Devemos reconhecer a dialética como própria da condição humana, da condição de sujeito, e considerar a contradição inerente ao humano como possibilidade de recolocar em questão, a cada instante, o desejo, o afeto e mesmo a significação mais estável de uma vida. Existe, por- tanto, a constante possibilidade de inversão de signo em função da totalidade dialética. O sim e o não concomitantes, em estado de tensão dialética, são, assim, expressão da divisão do sujeito. O Nome do Pai, significante da falta do Outro, será o que abre a possibilidade do movimento dialético, viabilizando a emergência do sujeito. A falta simbólica produz a mobilidade necessária para o lançamento à equivocidade enigmática do significante. Nesse seminário, Lacan nos propõe que o diagnóstico de psicose seja definido a partir da forma como o sujeito se apresenta articulado à linguagem, já que é no eixo com o Outro que se apresentam as distorções. Na falta do significante Nome do Pai, que vem ocupar o lugar em substi- tuição do significante do desejo da mãe, a lógica simbólica se organiza diferen- temente e, com ela, a realidade psíquica do sujeito. Cessa o movimento da cadeia significante. Sua interrupção lança o sujeito no vazio da significação, causando assim uma inundação imaginária: O que é o fenômeno psicótico? É a emergência, na realidade, de uma significação enorme que não se parece com nada – e isso na medida em que não se pode ligá-lo a nada, já que ela jamais entrou no sistema de simbolização – mas que pode, em certas condições ameaçar todo edifício (Lacan, [1955-56] 1985, p. 102). Ficamos receosos frente ao diagnóstico de psicose? Parece que esse diagnóstico indica sempre a ameaça de todo edifício? Quando o nome do pai não vem 81 O segundo ponto: a parcialidade Ainda no mesmo seminário, Lacan relata a apresentação da paciente que o deixou em dificuldades, ao mostrar-se “sã de espírito” (p. 49), no limite do que poderia ser percebido clinicamente como um delírio. Sua entrevista levou bem mais tempo do que a média de outras apresentações, pois demorou para que ela apresentasse sua forma especial de discordância com a linguagem comum, seu neologismo galopiner (p. 42), e, assim, se mostrasse uma deliran- te. Nesse caso, ele supõe que estariam lidando com o que chamariam clinica- mente de delírio parcial, já que tal paciente apresenta o que é designado, no jargão, de parte sã da personalidade. Nos Escritos , em seu texto De uma ques- tão preliminar a todo tratamento possível da psicose, Lacan afirma: (...) que a relação com o outro como semelhante é perfeitamente compatível com a relação fora-do-eixo com o grande Outro e com tudo o que ela comporta de anomalia radical, qualificada na velha clínica, impropriamente, mas não sem uma certa força de aborda- gem, de delírio parcial (Lacan, [1966] 1995, p. 580). Nessa citação encontramos elementos que indicam o reconhecimento da existência da parcialidade na condição do delírio, da parcialidade do naufrá- gio acontecido na vida psíquica do paciente, e a condição do paciente de man- ter-se na via de relação com seus semelhantes. Pode parecer surpreendente para muitos que um paciente psicótico pos- sa mostrar-se inteligível, coerente e, acima de tudo, convincente. Entretanto, essa situação não é incomum e exige que o diagnóstico seja realizado a partir da escuta da posição do sujeito na linguagem. Sempre haverá pelo menos um ponto, quando nosso paciente se apresentará preso e tentará insistentemente se objetivar; ponto em que a dialética encontrar-se-á perdida. Esse ponto pode servir como bússola em nossa orientação clínica diagnóstica. A seguir, relato um caso atendido no ambulatório de um hospital público, na perspectiva de costurar os dois pontos que estou considerando relevantes para a discussão clínica: a dialética na constituição do sujeito e a parcialidade na condição do delírio na psicose. Relato do caso K. foi encaminhada para tratamento no Ambulatório Especializado em Saúde Mental com o diagnóstico de transtorno de estresse pós-traumático, após ter sido acompanhada por certo tempo, pela psicóloga da Unidade Básica. No ambulatório, foi avaliada pela psiquiatria e encaminhada para minha avalia- ção. 82 Maria Ângela Bulhões 82 K. era casada e tinha uma filha, de um relacionamento anterior, que mo- rava com seus pais. K. trabalhava no comércio de doces e salgados do pai até o ano em que o estabelecimento foi assaltado. O pai de K. foi baleado e ficou alguns meses no hospital, mas conseguiu se restabelecer e voltou a trabalhar. Durante os meses em que o pai esteve no hospital, K. ficou fechada em casa, período no qual ouvia vozes, gritos dispersos, e risadas (como se rissem dela). Comenta sobre o sentimento de culpa de não ter podido evitar o que aconteceu. Aquele Homem3 atirou no pai dela e saiu devagar, como se não tivesse feito nada. Ela veio de trás da loja e ainda o viu, sendo também, vista pelo assaltante. Começou a fazer uso de medicação e ter acompanhamento na Unidade Básica de Saúde, mas mantinha a convicção de que aquele Homem que ela vira no assalto viria atrás dela para matá-la. Não queria sair de casa, não conseguia ir até a loja do pai, não podia estar em local com muita gente, tinha sempre medo daqueleHomem. Entrava em pânico quando imaginava-se em situação de risco. K. era exímia cozinheira (todos lembram os doces e salgados que ela fazia), mas, após o assalto, ela apagou completamente de sua cabeça todo esse saber, não lembrando mais nem que sabia cozinhar. Nesse período, K. engravidou, mas somente percebeu quando já estava com quatro meses de gravidez (não planejava ter filhos com o marido, o qual já tinha um filho de relacionamento anterior). Sua filha nasceu e precisou ficar algum tempo mais no hospital, por motivo de saúde, ocasião em que K. não saiu da porta da maternidade, porque o Homem viria roubá-la. Durante o primeiro mês e meio do bebê, passava a noite toda olhando para que ele não se afogas- se. Somente quando o médico lhe disse que ela tinha que dormir é que transfe- riu parcialmente a guarda noturna para seu marido. Quando o bebê estava com nove meses, seu marido saiu de casa por causa de um relacionamento com outra pessoa. Novamente K. começou a ouvir a voz do Homem, ameaçando-a, não queria sair de casa e acabou tomando medicação em excesso, o que a levou a uma internação psiquiátrica. Após alguns meses de separação, o mari- do retornou para casa propondo reconciliação. Pouco tempo depois do regresso do marido, K. é encaminhada para o Ambulatório e chega para o atendimento comigo. Fiz duas entrevistas de avali- 3 Utilizamos a palavra “Homem”, com letra maiúscula, pois se encontra na série de representan- tes do Outro não barrado. Quando o nome do pai não vem 83 ação e saí de férias. No meu retorno, o residente da psiquiatria contou-me que a filha menor de K. sofrera um acidente e ela (minha paciente) estava bem mal. Ouvia vozes que a culpavam pelo acidente, mesmo sabendo que não estava com a filha no momento em que essa se machucou. Naquele momento, eu e o residente da psiquiatria cuidamos dela, para que ela pudesse acompanhar a filha no hospital, já que queria muito poder ficar com a menina. Foi um tempo de suporte químico e emocional. Nesse momento, é possível perceber que não tomo K. apenas pela situ- ação do estresse traumático, busco em sua história de vida elementos que possam dar consistência ao que vinha lhe acontecendo. Ela me conta sobre seu pai e como o considera seu alicerce de vida, um verdadeiro homem bom, que sempre demonstrou muito afeto pelos filhos. A mãe é apresentada como uma mulher que deseja que suas filhas façam somente o que ela quer, não aceita ser contrariada de forma alguma. K. afirma que a mãe nunca considerou o valor de suas filhas e sempre mostrou predileção pelos filhos. A partir do momento em que elas cresceram, passou a denegrir a imagem delas. Ela não entende esse comportamento da mãe. A história da mãe de K. é repleta de segredos de família, mas, K. sabe que a mãe foi criada no bordel de sua avó e que seu pai (avô) abusou sexualmente dos filhos (tendo sido preso). K. não tem certeza se sua mãe sofreu abuso. Mas conta sobre o comportamento de abuso de sua mãe sobre os filhos. A mãe de K. proibia os filhos de contarem para o pai quando ela batia neles e, se algum deles desobedecesse, no dia seguinte apa- nhava ainda mais. A mãe desautoriza completamente a maternidade de K. e insiste para que K. entregue sua filha (menor) para o irmão, que não tem filhos (não pode ter), alegando que esta não tem condições de ser mãe. Considera que a filha está brincando de casinha e não pode querer criar uma filha. A filha mais velha de K. foi criada na casa da avó. Elas moram em casas vizinhas. Após esse pequeno recorte da história de K., proponho algumas conside- rações a respeito do caso. Desde o início do tratamento, K. convocou-nos no trabalho transferencial ao barramento da Mãe4 . A Mãe, que desfaz insistente- mente dela, torna-se a ameaça exposta na queda do pai (assalto). Essa, que vai atrás dela constantemente para dizer-lhe o quanto ela não vale nada, se torna a perseguição no voto de morte. Como nos diz Antonio Quinet: “O ódio do Outro 4 A palavra “Mãe”, com letra maiúscula, apresenta-se na condição de Outro não barrado. 84 Maria Ângela Bulhões 84 da paranoia se manifesta aqui como perseguição do seu olhar vigilante e crítico” (Quinet, 2002, p. 221). Sem a proteção, é melhor morrer, como vimos na tenta- tiva de suicídio, na ausência do marido. Marido que faz concretamente o antepa- ro nessa relação de K. com sua mãe. Ele cuida para manter K. distante da mãe. Essa proteção concreta acaba sendo necessária, já que K. está presa no tempo, permanece na cena do pai baleado no chão. O pai está morto? Isso se tornou questão. O simbólico falseou o nome do pai, não veio em seu socorro, como sair dali? A dialética está ameaçada e o sentido é unívoco: aquele Homem quer a sua morte. A culpa do que aconteceu com seu pai e com sua filha menor é sua, pois não soube cuidar deles e protegê-los. K. traz consigo esse pensa- mento e, mesmo quando os fatos contradizem a sua versão, a contradição não possui força. Ela busca anteparos de proteção, mas, a cada situação de fragilização na sua condição de sujeito, a ameaça de morte reaparece. K. morre de medo. A transmissão da lei ficou interrompida e K. vive o apagamento do saber, na incapacidade de lembrar-se. Como fazia os doces e salgados para a padaria do pai? Não adiantou tentar usar suas antigas receitas, pois, essas não valida- ram seu saber, fazia tudo de olho e as transformava. Ana Costa, em seu seminá- rio Clinicando, nos lembra que inventamos com nosso sintoma: O sintoma é isso: para psicanalistas, não é algo ruim, é um supor- te do sujeito. As pessoas vêm procurar o analista quando seu sin- toma fracassa (Costa, 2008, p. 26). K. não consegue mais inventar, essa liberdade foi perdida. A medida do olhar deixou de ser parcial tornando-se um grande olho. Desde o início, K. vive o alívio produzido pelos anteparos à invasão de um Outro não barrado, função exercida pelos que estão a sua volta, bem como pela equipe de saúde que a atende. A desautorização em relação ao discurso de desvalia e a interrogação sobre as invasões que a mãe realiza em sua vida acabaram ampliando sua margem de movimento. Esse movimento lentamente trabalha para uma mudança de posição, deixando-a mais livre do olhar do Outro não barrado. Tal transformação lhe possibilitaria ocupar a posição de ser aquela que poderia dar as costas para o passado, para a Mãe, para o Homem, sem o medo da violência. O olhar, nesse caso, ocupa um lugar de destaque. K. não conseguia pegar o ônibus porque sentia todos olhando para ela, e tinha medo de encontrar o olhar do Homem e da morte. Quinet (2002) considera que o delírio é uma tentativa de enquadramento do gozo pela constituição de um Outro que o con- tém. No caso do delírio de observação, trata-se de um Outro que goza escopica- Quando o nome do pai não vem 85 mente do sujeito. Quem olha? A mãe? O Homem que abusou da sua mãe (avô) e barrou a transmissão do nome? O Homem que ameaçou a vida de seu pai? São todos representações do Mesmo, a partir do momento em que foi perdida a dialética significante? Quando o pai estava em casa, a mãe não batia em ninguém. Somente apanhavam quando o pai não via. Ninguém podia contar. O abuso do avô, o abuso da mãe, o que não pôde ser contado, falado? O escondido (segredos de família) retorna retumbante através das vozes, da risada, das ameaças, enfim, no gozo proibido e mortal. K. ainda mantém o medo, mas, no seu dia a dia, consegue ocupar-se da condição de mãe, esposa, dona de casa, ainda que não consiga sentir-se segu- ra para fazer como fazia antes. Não conseguiu voltar ao trabalho, e cozinhar ainda mantém-se como um insabido. Poderíamos dizer que ela encontrou uma falha no alicerce, mas que esta não ameaçou o edifício inteiro? Ouso dizer que o que desencadeou sua psicose foi produto do acaso de um acontecimento da vida (o assalto) ligado aos elementos determinantes da história pessoal. A cena do assaltocristalizou no momento em que repetiu ele- mentos importantes da história familiar e apresentou o tecido rompido na falha da amarragem simbólica. O trânsito significante ficou parcialmente interrompido quando o sexo e a morte se encontraram naquele Homem. Aquele Homem tornou-se signo de morte. A aposta clínica é de que o movimento dialético possa ser retomado e o significante e significado se estabilizem; a certeza da morte podendo dar lugar às dúvidas e às contradições inerentes à vida e o mundo voltando a ser um lugar seguro para transitar. Para concluir, volto ao título que escolhi: Quando o nome do pai não vem. Esse título destaca a dimensão do movimento dos acontecimentos da vida, os encontros e desencontros, que podem se suceder. Quando o nome do pai não vem? O que pode vir no seu lugar? Não é sempre a essa pergunta que fica remetida a clínica? Quando essa resposta surge no Real estamos frente a uma condição psicótica. O encontro com o psicanalista pode, a partir de sua escuta e posição transferencial privilegiada, abrir espaço para o agenciamento de significantes que participem de uma reinvenção do sujeito ou mesmo da criação deste. Ana Costa assim precisa: É quando o significante se situa no mesmo registro de produzir um nome – que se situa como objeto simbólico – no lugar de um furo real, ou seja, de possibilitar algo de uma nomeação desse furo (Costa, 2008, p. 59). 86 Maria Ângela Bulhões 86 Trabalhamos para que o sujeito possa encontrar alguma forma de incluir em sua cadeia significante o que até ali se apresentou como signo. Portanto trabalhamos na perspectiva de criar bordas no Real. REFERÊNCIAS COSTA, Ana. Clinicando: escritas da clínica psicanalítica. Porto Alegre: APPOA, 2008. LACAN, Jacques. O Seminário, livro 3: as psicoses [1955-1956]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. LACAN, Jacques. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 537-590. QUINET, Antonio. Um Olhar a mais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. Recebido em 12/09/2010 Aceito em 20/10/2010 Revisado por Deborah Nagel Pinho 87 TEXTOS 87 Resumo: O texto trata da busca de totalização do saber na constituição paranoica da psicose como modo de eludir a castração, propondo o corte do nó borromeano como maneira de intervir em tal organização. Palavras-chave: paranoia, psicose, castração, corte, nó borromeano. PSYCHOSIS, IT’S TREATMENT, IT’S LIMITS Abstract: The text deals with the search for totalization of knowledge in the paranoid constitution of psychosis as a means of eluding castration, proposing the cut of the Borromean knot as a manner of intervention in such an organization. Keywords: paranoia, psychosis, castration, cut, borromean knot. Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 87-94, jan./jun. 2010 A PSICOSE, SEU T R ATA M E N T O , SEUS LIM ITES 1 Adão Luiz Lopes da Costa2 1 Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Estruturas Freudianas, realizadas em Porto Alegre, outubro de 2009. 2 Médico; Psiquiatra; Psicanalista; Membro da APPOA; Diretor da Hybris – Clínica de Psicanálise e Psiquiatria. E-mail: allcosta@terra.com.br 88 Adão Luiz Lopes da Costa 88 Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça para o total. Guimarães Rosa, Grande sertão, veredas Em março de 2003, eu e a colega Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack escrevemos para o Correio da APPOA um artigo que chamamos A psicose, seu trabalho, seus limites (Costa; Sudbrack, 2003). Hoje, falo em A psicose, seu tratamento. A psicose ou as psicoses? Tem aparecido, ultimamente, certa tendência, diríamos mesmo a predominância de determinados diagnósticos que não correspondem ao quadro clínico dos pacientes: Tanto na CID quanto na DSM, embora sejam listados os critérios diagnósticos para cada categoria nosológica, não há uma preocu- pação em se definir precisamente os sinais e sintomas nem em se explicar como eles devem ser reconhecidos na prática (Cheniaux, 2005, p. 158). Na verdade, tudo isso importa pouco e, talvez, inclusive importe pouco também a ideia de estrutura. Porque “se o nó de três, qualquer que ele seja, é de fato o suporte de toda espécie de sujeito” (Lacan, 2007, p. 52), resta-nos, isto sim, a pergunta de como interrogá-lo. “Como interrogá-lo de modo que se trate efetivamente de um sujeito?” (Lacan, 2007, p. 52). Ao interrogá-lo, vamos nos deparar com a questão do gozo. E é isso o que vale mesmo, é que há só uma maneira de gozar para cada sujeito. A singularidade da psicanálise ou da estrutura é que para cada sujeito há um gozo. A psicose é indiscreta. Indiscreta, remete à condição lógica que diz que: “não distingue os objetos, não há diferença”. E deixa algo aberto para se fazer ver, para mostrar com facilidade os desafinamentos, as distonias, os sintomas das equipes que com ela se ocupam. Mostra também os paradoxos e as incon- sistências das melhores e piores teorias, dos grandes e pequenos livros. Lacan ([1954-1955] 1985) chega a dizer no seminário O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, “que a literatura analítica constitui, de certa maneira, um delírio ready-made [...]” (p. 307). A psicose segue sendo um grande desafio aos pesquisadores e aos e(x)(s)pertos. Dada sua gravidade, é justificável a enorme variedade de aborda- gens para a sua terapêutica. É justificável todo investimento, libidinal ou ortopé- dico, emprestado que seja, ao que falta ao doente. Por exemplo, os remédios A psicose, seu tratamento... 89 podem curar os sintomas de alguns; mas muitas pessoas seguem o seu curso de doente mental. Em princípio, tudo vale! Porém, muitos desses recursos cus- tam caro. E não é raro o doente chegar ao psicanalista já empobrecido. Tanto sem recursos materiais quantos são os sintomas negativos. Devemos falar tam- bém nos psicóticos restituídos, organizados em delírios paranoicos e reivindicatórios terríveis. Talvez essa seja a pior das sequelas para a organiza- ção social. Penso, no momento atual, se a psicose é tratável ou até mesmo se deve ser tratada. E se for estrutural à condição do falante, deve ser modificada? Mas, seguindo a leitura da obra de Lacan, a ideia que decanta é que o que deve ser tratado é o paranoico da psicose. Isso seria pensar a paranoia como um saber, um querer saber, a necessidade de ter todas as informações, o insuportável que é o não saber, o insuportável do saber do outro, a necessidade de controlar todo o saber, a busca do saber total, a busca da “consciência cósmica”. Amamos o saber. O psicótico ama seu delírio, já afirmava Freud ([1895] 1977). O saber, as informações, tanto alucinatórias como interpretativas, são recolhidas pelo psicótico como um saber que irá sustentar o delírio. O saber e o delírio se unem no gozo. O saber é paranoico e busca a totalização, busca o gozo pleno. As instituições sociais também se organizam no sentido de manter essa totalização do saber e o fazem pelas mais variadas formas de sabatinas e de exames. O chamado DNA empresarial3 explicita isso, ao querer preservar as ideias do fundador. O saber como intocável é uma coisa interessante na organi- zação social. O intocável do saber é preservá-lo em sua originalidade, sem modificações, como se ele fosse uma verdadeira estrutura genética nuclear. Porque o saber não deixa de ser ameaçador, necessitando, portanto, de contro- le. Schreber queria uma geração schrebiana. Diria que não são raras as incursões na esfera social para preservar o DNA de ideias, produzindo gerações inteiras das mesmas ideias, como se isso fosse hereditário e, portanto, natural. 3 É a forma de gestão de uma empresa, o que define sua cultura e comportamento. Através doDNA podemos perceber o que circula no “sangue” da mesma, o que se expressa na “pele” e rege sua sobrevivência. Pelo DNA, podemos estabelecer a identidade da empresa e para isso precisamos reconhecer quais são seus valores. No entanto, temos de levar em conta que os valores das pessoas que trabalham na empresa são totalmente diferentes dos valores de seus diretores, gestores. O DNA vem pra identificar isso, pra dar uma identidade e para que se possa ajudar o colaborador a se envolver e se comprometer com esta organização. 90 Adão Luiz Lopes da Costa 90 A mestria ideal do saber é o domínio do corpo. Vai desde o corpo biológi- co ao corpo social, político, psíquico, etc. Em relação ao corpo biológico, essa necessidade é tão imperativa que inclusive psicanalistas prescrevem técnicas que objetivam esse domínio do corpo. A humanidade produz conhecimentos e treinamentos visando ao domínio do corpo. Porque, por outro lado, a suposta perda de controle sobre o corpo gera pânicos terríveis. Temos na psicose, por exemplo, a chamada despersonalização, que é uma fase inicial da doença e altamente angustiante. A visada do saber total aponta para o totalitarismo; e os regimes políti- cos, tanto mais autoritários forem, mais precisam controlar o saber, e tanto mais paranoicos serão. O saber pode produzir doenças, transformar-se em psicose? Na esfera social, sabemos os malefícios produzidos por aqueles que, volta e meia, se ungem mestres up to date. Isto é, nada é mais terrível do que o apoderar-se do saber pelo poder. E quando um novo saber vem ao mundo, ele pode produzir enlouquecimentos? Certamente, quando aponta ao verdadeiro (Lacan, [1972- 1973] 1985). O saber, como campo do simbólico, constituído pelo significante, na for- mulação de Ferdinand de Saussure (1986), é uma linha, desenvolve-se no tem- po e representa uma extensão. Portanto o significante é uma linha temporal, forma uma cadeia, uma reta. E uma reta estendida no tempo procura a totalização, fechando-se no infinito. No seminário As psicoses ([1955-1956] 1985), estudado no cartelão da APPOA ao longo do ano de 2009, Lacan trabalha as estruturas freudianas da psicose no campo da fala e da linguagem. Isso possibilita pensar além das bases biológicas da psicose, tão decantadas por alguns leitores de Freud. Um dos conceitos propostos por Lacan é a forclusão do nome-do-pai, que lhe permitiu apresentar o registro do real. Ao apresentar a fala e a linguagem em seus registros imaginário, simbólico e real, Lacan rompe a reta infinita do significante saussuriano em segmentos de reta que, paralelas e estendidas ao infinito, vão encontrar-se num único ponto. Nessa segmentação da reta ele faz habitar os três registros da fala. E os apresenta pela via do significante. Isso é uma grande contribuição para a abordagem da psicose, como veremos a seguir. A ex-pulsão dos registros topológicos da linguagem, o jogar ao lixo os lugares topológicos constitutivos do sujeito, permite a construção da suposição de totalidade e do delírio totalitário, da ideia de um saber absoluto fechado na última palavra. Constata-se, no controle clínico, que o totalitarismo do saber nem sempre permite a todos poderem ascender à crise psicótica. Há paranoias que permanecem sem crise, não deixando, porém, de se sustentar em sua busca do total. A psicose, seu tratamento... 91 Então, será que o tipo de tratamento dado ao doente paranoico pode ser sem consequências? Será que é possível a última palavra (uma vez que a última palavra vai fechar a reta) criadora de um tratamento padrão, seja ele qual for, para a psicose? São questões que surgem frente ao desafio da psicose. Na psicose não há hiância no discurso; por mais quebrado, rompido e desagregado que seja, mostra-se maciço, duro, impenetrável, solidamente ins- talado na sua certeza. Essa certeza pode ser persecutória, de grandeza ou, a pior de todas, que muitas vezes permanece sub-reptícia, a certeza reivindicatória. Isso gera uma reta infinita, imperativamente instalada sobre a exigência de fe- char-se sobre si mesma. A reivindicação de reconhecimento pode dar a ilusão imaginária de êxito dessa boa forma. E essa reivindicação pode alçar, ainda, êxitos de violências, de agressões e de espoliações das famílias. A solidez do discurso, instalada na macicez do S1S2 toma a cadeia significante primitiva em massa e não produz sujeito. Não há ligação, não há bindung entre a dupla significante. É o que parece dar o caráter imperativo da alucinação. O saber que retorna no real o faz como um saber sem sujeito, deixando o alucinado louco, à procura do sujeito que lhe fala; e no primeiro que ele encontra, ele bate. Bate, porque as alucinações são injuriantes. Há, tam- bém, nesse discurso maciço, muita proximidade com a psicossomática, que alguns chamam de loucura do corpo, pois nela, o saber advém do corpo. O corpo também está afetado na psicose. A busca da totalização do saber empurra para construções espirituais e filosóficas, empurra para uma condição em que o corpo fica fora e ao mesmo tempo é afetado. Há quem busque livrar-se do que chamam “a prisão do corpo”. Em casos graves, o corpo fica abandonado. O investimento volta-se para o men- tal, podendo chegar até à ideia da chamada “consciência cósmica”, A totalização é delirante, e é o que garante sua posição sexual no delírio, porque a incompletude o empurra obrigatoriamente para a mulher e para o ho- mossexual. Aí temos, como mostra clássica, os delírios de feminizar-se de Schreber, conforme escrevi no artigo Feminino à Masculino: Acesso ao gozo. Por que Tirésias não é Schreber? (Costa, 2005). Esse saber cristaliza-se em significações maciças, duras, impenetrá- veis, totalizantes. Essa significação implica certamente que ele não possa re- cusar-se a ela (Lacan, [1964] 1979, p. 239). Atentem para o Luder de Schreber: significação irrecusável. O saber que retorna sem sujeito, retorna dando esta significação irrecusável e sempre injuriante. Alguém escuta uma voz que fala: “Tu és bom”! Ele tem que responder, tem que pensar algo, e essa resposta será obrigatoriamente também injuriante. Terá que responder. Assim lhe ocorre dizer: “Tu és bom, bom no u”. Responde, para completar a frase, mas obrigatoriamente sob forma de injúria. 92 Adão Luiz Lopes da Costa 92 Uma pessoa pode receber tratamento psiquiátrico e ainda permanecer in- ternada por vários anos sem melhoras. Lembro de uma situação dessas, na qual encontrei uma pessoa sem delírios organizados porque a medicação os esbatia, mas completamente desagregada e sob a angústia de alucinações. Sua fala era um bloco maciço de palavras ininteligíveis. Acabava por impor à própria linguagem um tipo de quebra, de decomposição, que fazia com que não houvesse mais “identidade fonatória”, ao modo que Lacan ([1975-1976] 2007, p. 93) se refere a James Joyce. Parecia falar uma língua estrangeira, que eu não sabia. Língua essa, impenetrável e intraduzível. Essa pessoa não escrevia muito, mas desenha- va pilhas de A4. Pergunta-se: Esse desenhar é arte? Essa arte é sublimação? Se, por um lado, a arte é um artifício, podendo burlar o que se impõe do sintoma, isto é, a verdade; por outro, é uma garantia fálica. Frente ao buraco da forclusão do nome-do-pai, a significação fálica também não se apresenta, não é eficaz, não responde a contento. Garantias fálicas podem ajudar, mesmo que de modo ortopédico, como tentativas de produzir alguma significação fálica, mas não o nome-do-pai. É sublimação? Podemos cogitar, na situação em questão, que a decom- posição da linguagem faz com que as palavras tornem-se coisas e sejam ex- pressas como tais. No caso, os desenhos inclusos no campo de seu sintoma dizem respeito à função paterna recusada, que se apresenta pelo concreto, enquanto coisa. Aqui a palavra é coisa. Ou a coisa é a palavra. Lacan ensina no seminário O sintoma que: Sem dúvida, há aí uma reflexãono nível da escrita. É por intermé- dio da escrita que a fala se decompõe ao se impor como tal, a saber, em uma deformação acerca da qual permanece ambíguo saber se é caso de se livrar do parasita roteirista [...] ou, ao contrá- rio, de se deixar invadir por propriedades de ordem essencialmente fonêmica da fala, pela polifonia da fala ([1975-1976] 2007, p. 93). Vemos aí como a fala, em decorrência de alguma coisa que lhe é impos- ta, sofre este desmantelamento, essa quebradura até não ser mais que uma linha desenhada, como no caso do paciente do A4. Noutros momentos, encontro pessoas que vêm com um delírio constitu- ído, um saber organizado, porém também impenetrável e imodificável. Às vezes isso redunda em delírios de reivindicação, com ameaças efetivas. Nem o esbatimento do delírio, nem a constituição do delírio liberam o doente de sua certeza retilínea, maciça e impenetrável, de sua necessidade imperativa de totalização. É do efeito afanísico do saber é do que o sujeito tem que se liberar (Lacan, [1964] 1979). A psicose, seu tratamento... 93 É preciso romper essa linha dura, impenetrável e constituinte da paranoia. É preciso pensar o significante em seus registros e tomá-lo como segmentos de linha. E tratar de coser cada segmento ao modo lacaniano do significante morder sua cauda. Ou fechar o fecho, conforme o circuito pulsional (id, ibid., p. 169). Vou relatar alguns pequenos trechos de situações nas quais ocorre esse corte da reta. São exemplos breves do processo que opera sobre essa linha dura e impenetrável que constitui a paranoia. Trata-se do ato de cortá-la, o (des)ato. O corte é o que permite ao sujeito gozar de outra maneira, mudar seu sintoma, fazer da linha dura um nó que lhe permita apoiar-se nas leis da diferença dos registros da linguagem, o que pela totalização busca apagar a diferença. Determinado casal sustentava um atrito na medida em que um ia diaria- mente ter sua aula de esportes, enquanto o outro perguntava: “Quando é que tu vais largar este cara?”, referindo-se ao professor de esportes. O um reclamava que o tratamento que o partenaire fazia não dava resultados. Ao que eu pergun- tei-lhe: “Quando é que ela vai largar este cara?”, referindo-me ao terapeuta. Aí estavam as demandas, em seus circuitos repetitivos. Eu troquei a cena da de- manda, fechando o fecho. Outro exemplo vem de um momento em que determinado palestrante falava sobre a americanização, quando alguém perguntou: “Quando é que você vai largar este cigarro?”. Esta pergunta propiciou que se rompesse o fio do dis- curso do palestrante. O significante inscreveu-se em dois lugares. O mesmo significante (“quando é que você vai”) inscreveu-se em largar este cigarro e em americanizar-se. Outra palestrante falava sobre a sexualidade feminina, quando começou a explicar a necessidade de mulheres conservarem o filho-falo e os malefícios disso. Nesse momento, ela perdeu o fio e não sabia mais o que estava falando. Precisou de algum tempo para re-amarrar-se. E ainda a pessoa, que apresentei em sua angústia alucinada e desagregada, após um período de cortes sucessivos, ao modo dos exemplos acima referidos, nessa reta infinita de certezas alucinatórias desagregadas, diz: “Agora estou reaprendendo a falar”. Considerando a paranoia em sua busca de totalização do saber, talvez os tipos de tratamentos dados à psicose não sejam sem consequências sociais. Como escreve Guimarães Rosa (2005), onde vai dar isso de aumentar a cabeça para o total? Que infinito é esse? Será linha dura? O fato é que, em qualquer abordagem terapêutica dos transtornos men- tais, se não houver algo relativo à queda do objeto a, fica-se, isso sim, no limite da linha dura, do biológico, do controle e da reivindicação. É questionável a possibilidade de constituição do sujeito. Mas certamente está no campo do 94 Adão Luiz Lopes da Costa 94 possível o corte do nó borromeano, fazendo cair o objeto. Então, se houver objeto a, haverá sujeito. Há que esvaziar os objetos positivados, as significa- ções irrecusáveis e as relações com o saber. Trata-se de trabalhar no fio significante e não nas significações. Existem muitos tratamentos disponíveis para a doença mental. Podemos dizer que são conhecimentos que estão ao alcance do estudioso: literatura, cursos, oficinas, palestras, etc. e tal. Mas o que dificulta e interessa é a clínica, a elaboração transferencial e a direção do tratamento, que não estão na literatu- ra ao modo da ciência. Existirá, no entanto, um tratamento padrão? Será possível ter-se o último grito, ao modo da última palavra que se reserva o bom paranoico? REFERÊNCIAS CHENIAUX E. Síndrome de De Clèrambault: uma revisão bibliográfica. Revista Bra- sileira de Psiquiatria da Associação Brasileira de Psiquiatria. v. 27, n. 2, jun. 2005. COSTA, A. L. L.; SUDBRACK, M. A. P. A psicose, seu trabalho, seus limites. Correio da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – As psicoses. Porto Alegre n°. 111, p. 36- 37, ano IX, mar. 2003. COSTA, A. L. L. Feminino ? masculino: acesso ao gozo. Por que Tirésias não é Schreber? Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – A masculinidade. Porto Alegre, n. 28, p.93-98, abr. 2005. FREUD, S. Rascunho H – Paranóia. In. _____Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1977. v. 1. p. 283–291. LACAN, J. O seminário: livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise [1954-1955]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. ______. O seminário: livro 3: As psicoses [1955-1956]. 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Beyond that, from this initial question, addresses the issue of the constitution of the ego and discusses a clinical case. Keywords: brothers, twins, double, constitution of the ego. 1Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Estruturas Freudianas , realizadas em Porto Alegre, outubro de 2009. 2 Psicanalista,Membro da APPOA,Membro do Centro Lydia Coriat,Mestre em Psicoligia Social e Institucional(UFRGS). E-mail gersonmiech@gmail.com “UM GÊMEO CHEIO DE DELÍRIO”1 Gerson Smiech Pinho2 Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 95-103, jan./jun. 2010 96 Gerson Smiech Pinho 96 Natividade não tirava os olhos dela, como se quisesse lê-la por dentro. E não foi sem grande espanto que lhe ouviu perguntar se os meninos tinham brigado antes de nascer. — Brigado? — Brigado, sim, senhora. — Antes de nascer? — Sim, senhora, pergunto se não teriam brigado no ventre de sua mãe; não se lembra? Machado de Assis, Esaú e Jacó Nas páginas iniciais de Esaú e Jacó(Assis,1998) um dos últimos romancesde Machado de Assis, encontramos o diálogo acima, em que Natividade consulta uma adivinha, a Cabocla do Castelo, para saber a respeito do futuro de seus dois filhos gêmeos, de um ano de idade. Na sequência da narrativa, acom- panhamos a história de Pedro e Paulo, os dois irmãos cuja rivalidade e oposi- ção, pressentidas pela Cabocla, estarãopresentes durante todo tempo. A relação entre irmãos é um dos espaços em que se inaugura a presença e a função do semelhante na vida de um sujeito. Por ele, transitam o ciúme e a rivalidade, bem como se estabelecem as primeiras ligações do “eu” com um “outro” e os primórdios do laço social. Poderíamos pensar em alguma particularidade quando essa relação se dá entre irmãos gêmeos? Neste trabalho, proponho tomar essa questão para, a partir dela, pensar sobre a relação fraterna em geral e sobre a estrutura do eu. Meu interesse por esse tema partiu do tratamento de um paciente, do qual trarei alguns fragmentos clínicos. I Iniciei com a citação de Esaú e Jacó, pois penso que os gêmeos protagonis- tas do romance de Machado exemplificam algumas questões interessantes para começar esta discussão. Ao longo da narrativa, um traço que é bastante evidente na relação desses dois irmãos é a permanente oposição entre eles. Como bem assinalara a Cabocla do Castelo, tal divergência remonta à vida intrauterina. Pedro e Paulo são, ao mesmo tempo, idênticos e opostos. Divergem em tudo na vida e manifestam modos de ser diametralmente contrários. Pedro estu- dou Medicina no Rio de Janeiro. Paulo estudou Direito em São Paulo. Pedro é dissimulado e conservador. Paulo é agressivo, impulsivo e impetuoso. Pedro é monarquista e prefere que tudo permaneça como está. Paulo é republicano e está permanentemente insatisfeito com a situação, querendo mudanças cons- tantemente. “Um gêmeo cheio de delírio” 97 A diferença entre Pedro e Paulo pode ser pensada a partir de uma forma muito específica de negação, presente na relação de alguns irmãos gêmeos, assinalada por Bergès e Balbo (1997). Ao invés de corresponder a uma oposi- ção entre dois termos, sugere, ao contrário, sua equivalência. Por exemplo, quando dizemos que “Paulo é agressivo e Pedro não é”, sempre se trata de que “um não é e o outro é”. Jamais se faz referência a um sem que o outro seja também mencionado, pois um equivale ao outro. Haveria no outro aquilo que falta, negando, dessa forma, que isso faltaria, como se ambos compusessem uma totalidade. Fica instituída, assim, uma oposição que é complementar e que não inscreve diferença. Há uma complementação recíproca entre os gêmeos, fazendo com que o par, em seu conjunto, configure uma unidade. São “dois” que fazem “um”. Como sublinha Costa, ao comentar o texto de Machado de Assis, o que se expressa é essa soldagem do ‘dois’, definindo-se mutua- mente por contrastes. Nesse sentido, cada um não se define se- não a partir do outro (Costa, 2008, p. 28). No romance de Machado, essa questão é muito bem ilustrada pela pai- xão insolúvel que se desenrola entre a personagem Flora e os gêmeos, o que inclusive acaba levando-a à morte. Não é que Flora ame a Pedro “ou” ame a Paulo. Ela ama a Pedro “e” Paulo. Não pode amar a cada um deles em separa- do, mas somente o conjunto, como se a existência de um sem o outro não fizesse sentido. O amor da moça pelos dois atinge o extremo, quando chega a alucinar que os gêmeos fundem-se em uma só figura. A paixão de Flora indica o quanto Paulo e Pedro são complementares, compondo uma totalidade em que um é o avesso do outro, como uma imagem de espelho que aparece invertida. Tal oposição ilustra de modo caricatural a forma de negação típica de algumas situações entre irmãos gêmeos, como foi assinalado anteriormente. É também possível afirmar que Pedro e Paulo compõem um “duplo” no interior da narrativa, ou seja, personagens que se assemelham em diversos detalhes e se apresentam como duplicação, como réplica um do outro. Detenhamo-nos neste conceito pois, a partir dele, seguiremos o desdobramen- to de nosso problema. Ao abordar o tema do “duplo”, Rank ([1914] 1976) enumera as diversas configurações que este pode assumir em uma obra literária: como reflexo do espelho, imagem da sombra ou de um retrato, os quais passam a se comportar como uma entidade independente, que se diferencia do eu; como uma pessoa real, que se assemelha a outro personagem e cruza com ele, como no caso dos 98 Gerson Smiech Pinho 98 gêmeos do romance de Machado de Assis; ou, ainda, enquanto representação de estados psíquicos opostos em um mesmo sujeito, separados pela amnésia, como dupla consciência. Apesar de assumir formas tão distintas, alguns motivos se repetem de modo sistemático nas aparições do duplo. Entre eles, destaca-se a constância com que surge, como obstáculo a seu protótipo, fazendo verdadeira oposição em relação a ele. Em seu texto sobre “O estranho” ([1919] 1980), Freud propõe que o duplo se origina no terreno do amor próprio ilimitado do narcisismo primário. Segundo ele, a duplicação do eu representa uma defesa contra sua destruição, uma tentativa de negação do poder da morte. Nessa direção, a alma imortal seria o primeiro duplo do corpo, preservando-o de seu desaparecimento. Penso que essa dimensão narcísica do duplo pode ser melhor esclarecida a partir de alguns elementos trabalhados por Freud em seu texto sobre A nega- tiva ([1925] 1980). Nesse artigo, fala da distinção e da origem de duas formas de julgamento – o juízo de atribuição, que permite definir a posse ou não de deter- minado atributo, e o juízo de existência, que constata ou contesta a existência de uma representação na realidade. Freud remete o surgimento do juízo de atribuição à delimitação inicial de um fora e de um dentro, a partir de um “eu-prazer”. Ou seja, tudo aquilo que é considerado bom é introjetado, colocado para dentro e considerado como per- tencente ao eu. De modo contrário, tudo o que se julga ruim é expelido, cuspido para fora, considerado estranho e exterior ao eu. Nessa polarização, movida pelo princípio do prazer, se constrói a distinção entre os atributos pertencentes ao eu e aqueles considerados como estranhos a ele. Penso que a construção do duplo está fundada em uma lógica semelhan- te à descrita por Freud nesse texto. A duplicação do eu permite que uma série de representações sejam “escoadas” para sua réplica, atributos desse “eu-es- tranho”, o que permite o resguardo da castração e a manutenção da coesão e do investimento narcísicos. Essa estrutura explica o motivo pelo qual o duplo, depositário dos aspectos desprazerosos, adquire esse caráter de oposição em relação ao “eu”. Além disso, esse artigo de Freud nos ensina que o eu está fundado em uma divisão inicial, uma cisão tão originária quanto mítica. Nesse ponto, remeto ao título dado a este trabalho. A expressão “Um gêmeo cheio de delírio” está presente em uma passagem do seminário As psi- coses ([1955-56]1988), em que Lacan busca retomar o sentido da noção de “eu” em seu ensino, destacando dois aspectos. O primeiro deles é o caráter de duplicidade dessa instância psíquica. Aqui, podemos retomar a ideia dessa cisão inicial indicada por Freud, bem “Um gêmeo cheio de delírio” 99 como o papel da imagem do semelhante, no estádio do espelho. Como afirma Lacan, independente do papel que se queira atribuir-lhe na economia psíquica, “um ego nunca está totalmente só. Ele sempre comporta um estranho gêmeo, o eu ideal” (Lacan, [1955-56] 1988, p. 168). Aqui, me reporto novamente a Bergès e Balbo, que afirmam que “a gemelaridade é a norma: quem não tem gêmeo ou gêmea a infringe e, de qual- quer maneira, busca para si seu semelhante, seu par, seu duplo, ou um irmão ‘para derrubar’” (Bergès e Balbo, 1997, p. 135). O segundo aspecto presente na expressão de Lacan diz respeito ao fato de que, em sua função de sustentar um discurso da realidade, o eu sempre comporta um discurso correlato, que nada tem a ver com essa realidade. Esse discurso, de caráter delirante, é aquele da liberdade, central para o homem moderno, e que sustenta sua ilusão de autonomia. É a partir dessas duas ideias que Lacan afirma que não há “ego sem esse gêmeo, digamos, cheio de delírio” (Lacan, [1955-56] 1988, p.168).Penso que, a partir do que até aqui foi dito, podemos acrescentar ainda outro aspecto a esse gêmeo cheio de delírio, que é o eu – o viés persecutório com que a presença do semelhante pode se apresentar a ele, proporcional a sua ancoragem no narcisismo. Essa representação é recorrente em muitas das narrativas trabalhadas por Rank ([1914] 1976), em seu artigo sobre o duplo. Para citar algumas delas: o filme O estudante de Praga de Stellan Rye, O elixir do diabo ([1816]1824), O retrato de Dorian Gray ([1891] 2010) de Oscar Wilde e William Wilson ([1839] 2010) de Edgar Allan Poe. Apresento, agora, alguns fragmentos de um caso clínico, o qual, na verdade, foi o ponto de partida para as questões que me levaram a escrever este trabalho. II Rafael é um adolescente de quinze anos, que morava com a mãe, um irmão gêmeo, uma irmã mais velha e os avós maternos. Não conhecia seu pai, o qual fizera uma passagem ocasional na vida da mãe, desaparecendo antes mesmo de saber que ela estava grávida. Quando nasceram, os dois meninos gêmeos foram registrados como filhos de seus avós maternos. Segundo a mãe, em função de benefícios financeiros que o avô recebia. A avó materna tinha papel bastante central na vida da família. Era, diga- mos assim, quem governava o espaço doméstico, tomava decisões e direcionava as coisas. Tinha rivalidade muito significativa com a filha, mãe de Rafael. Desqualificava-a sistematicamente, tanto nas tarefas domésticas quanto em sua condição materna. Por sua vez, essa avó também tinha uma irmã gêmea, já falecida. Ambas também haviam sido registradas como filhas de seus avós maternos. Porém, 100 Gerson Smiech Pinho 100 vieram a saber desse fato somente na vida adulta. Cresceram acreditando se- rem filhas daqueles que, na verdade, eram seus avós e irmãs daquela que era sua mãe. Aqui, encontramos um evento que se repete em duas gerações e que, a cada vez, faz a supressão de uma faixa geracional da família. Em certa ocasião, recebi a mãe e a avó de Rafael juntas, para uma consul- ta. A dupla de mulheres trouxe um álbum de fotos, para me contar sobre a infân- cia de Rafael e de seu irmão. Ao longo das páginas do álbum, havia uma sequência de muitas fotos dos dois meninos, sempre vestidos de forma exatamente igual. Nem a mãe, nem a avó conseguiam decidir quem era quem nas fotografias, o que, obviamente, dava motivo a uma feroz discussão entre as duas. Segundo elas, as roupas iguais eram uma exigência das crianças. Até o final de sua infância, não toleravam se vestir de forma diferente. Em certa oca- sião, ganharam sandálias iguais, porém com cores um pouco diferentes. Uma era mais clara, a outra mais escura. Após calçarem as sandálias, os meninos foram deixados sozinhos. Logo a seguir, quando os adultos se deram conta, haviam trocado um pé do calçado. Assim, cada um deles estava com um pé de uma cor e outro de outra. Imagino que quem olhasse a cena de fora, vendo-os um diante do outro, poderia ter a impressão de um reflexo diante de um espelho. A avó e a mãe contam que, quando crianças, Rafael e seu irmão faziam tudo juntos. Só comiam se os dois estivessem na mesa. Só tomavam banho se ambos estivessem embaixo do chuveiro. Os irmãos funcionavam de forma com- plementar, em bloco, como totalidade. O relato a respeito da infância dos dois rapazes mostra o quanto, aí, opera a não inscrição da diferença, fazendo com que o semelhante se perca através da imagem do idêntico. Nessa situação, a dimensão narcísica do duplo, apontada por Freud, aparece como correlata da representação da gemelaridade enquanto totalidade, enquanto “contestação bizarra da diferença”, na expressão de Bergès e Balbo (1997). A produção delirante de Rafael se desdobrava em duas vertentes. De um lado, falava de temas religiosos; de outro, de super-heróis de programas japone- ses de televisão. Passada a primeira fase do tratamento, em que a agitação psicomotora era muito intensa, proporcional a sua angústia (nessa época, boa parte das ses- sões eram feitas caminhando pela instituição em que eu trabalhava), Rafael co- meçou a escrever nas sessões. Escrevia muito rapidamente e de forma contínua, sem colocar intervalos entre as palavras. Seus escritos eram compostos de pe- quenas narrativas, que falavam dos personagens de suas construções delirantes. Entre eles, estava Shalivan, elemento central das histórias que contava. Shalivan é o guardião e guerreiro do espaço. Luta para salvar a Terra de diversos vilões. Em outro planeta, tem outro nome. Lá, ele se chama Spilven. Shalivan e “Um gêmeo cheio de delírio” 101 Spilven são o mesmo, mas com outro nome. Segundo Rafael, os dois são o mesmo porque têm a mesma cara. Aqui, penso que o delírio construído pelo rapaz traz elementos que tentam dar conta, pela via do discurso, de sua relação com o irmão; como possibilidade de introduzir ali alguma significação, na forma de uma suplência, pela via delirante. Outros personagens com dois nomes e com a mesma cara surgiam em sua narrativa. Por exemplo, contava que Paulo, que também era Saulo, pôde ver por causa de um milagre de Jesus Cristo. Shalivan tem um Santo Protetor, que o ajuda a destruir os inimigos. O Santo Protetor lhe dá força e entra em seu corpo, o que lhe possibilita lutar com a força do Santo, em uma espécie de fusão imaginária. Em oposição, surgia a figura do Diabo, da qual tinha medo. Dizia em voz baixa: “Não posso falar dele, senão me mata”. A seguir acrescenta: “Meu irmão é o diabo” e diz, com voz de choro, “Shalivam, por favor, me protege, Shalivam”! Fica evidente o caráter persecutório que a figura do irmão vai encarnando no discurso de Rafael, o qual aponta para a ausência de um significante que possa fazer corte e diferença entre eles. É interessante notar o quanto esse aspecto persecutório, presente no delírio construído por Rafael em relação à presença do irmão-semelhante, tem seu funcionamento calcado na estrutura narcísica do duplo, destacada no início deste texto. É a função simbólica que permite ao sujeito se destacar dessa ancoragem no narcisismo, com o ingresso na dimensão da rivalidade com o outro, agora na posição de semelhante. A esse respeito, Bergès e Balbo (1997) afirmam que “posso permitir-me ser rival de meu outro, pois existe uma diferença, e essa diferença é até mesmo a única aposta de nossa rivalidade. Porém, quando não há nenhuma diferença, como no gêmeo, a rivalidade só pode ser mortal” (p.138). Esses autores acres- centam, ainda, que “o significante, ao ser diferença absoluta, questiona a gemelaridade” (p.135). Para finalizar, vou trazer um pequeno relato, feito por Françoise Dolto (1991), a respeito de dois irmãos gêmeos. Dolto fala de dois gêmeos que nunca haviam sido separados, e que não eram diferenciados pelas pessoas, com exceção da mãe e de um bebê nascido depois deles, e que já os interpelava com ajuda de fonemas distintos, discrimi- nando-os sem erro. Um dia um dos meninos ficou gripado e não foi à escola, ficando distante do irmão. Quando a mãe volta para casa, escuta uma súplica do filho que brin- cava sozinho no quarto. Ela se aproxima da porta entreaberta e vê o menino suplicar sua imagem no espelho do armário, pegar o cavalo de madeira e subir 102 Gerson Smiech Pinho 102 em cima. [...]... lhe diz: ‘X (o prenome do irmão), X não quer brincar com o cavalo’. A mãe, perturbada, entende que a criança tomou sua imagem no espelho pela presença efetiva do irmão. Ela se aproxima do espelho, segurando-o em seus braços, pega o cavalo com eles e fala da imagem que o espelho dá a ver, que é a sua, mas não é nem ela, nem o cavalo, nem o irmão ausente” (Dolto, 1991, p. 41-2). Françoise Dolto interpreta essa cena falando da distinção entre a ima- gem escópica, não-viva, que se dá a ver, e aquilo que denomina imagem incons- ciente do corpo, absolutamente vital. Esta última opera para além daquilo que se coloca a nível
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