Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO – Teorias, métodos e fontes JEIMES MAZZA CORREIA LIMA • JANOTE PIRES MARQUES [211] O CINEMA E A DIDÁTICA DA HISTÓRIA Sander Cruz Castelo1 Introdução INVESTIGAM-SE AS APROPRIAÇÕES possíveis do cinema na Didática da História, disciplina que se volta aos elementos constitutivos da educação histórica. Esta é entendida no sentido lato proposto pela historiografia alemã contemporânea. 1. A nova Didática da História alemã e o cinema Durante os anos de 1960 e 1970, historiadores alemães como Jörn Rüsen e Klaus Bergmann refundaram a Didática da História. Incomodados com o abismo existente entre a história acadêmica e a vida prática, eles reformularam a disciplina, retirando-a de uma posição pragmática e externa, ou seja, de mediação entre a História acadêmica e a escolar, e recolocando-a no centro das reflexões sobre a ciência da História, entendida como norteadora da vida prática e da moral (RÜSEN, 2006). * Esta pesquisa conta com dois bolsistas de iniciação científi ca (IC-UECE e IC-FUNCAP). Agradeço o apoio das duas instituições citadas. 1 Professor Doutor do Curso de História da Faculdade de Educação, Ci- ências e Letras do Sertão Central (FECLESC), unidade da Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail: sandercruzcastelo@uol.com.br. 20844 - Janote - História da Educação.indd 21120844 - Janote - História da Educação.indd 211 27/01/2012 10:13:2627/01/2012 10:13:26 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO – Teorias, métodos e fontes RUI MARTINHO RODRIGUES • ANTÔNIO GERMANO MAGALHÃES JR [212] Para eles, visto que todos, especialistas e leigos, detêm uma consciência histórica, a História científica não é mais do que uma versão extremamente racionalizada e autorrefletida desta. Havia, contudo, se esquecido disso. Para Rüsen (1987, p. 15-16; 2001, p. 29-35), a matriz disciplinar da História comporta cinco fatores, interligados, que garantem a sua cientificidade. São eles, resumidamente: interesses, perspectivas, regras, formas e funções. Os interesses (“cognitivos” ou “de conhecimento”) dizem respeito à demanda, intrínseca, de orientação existencial dos homens no presente. Ela ocupa, portanto, a esfera da práxis, igualando historiadores e não historiadores, ansiosos por superar a evasão do tempo (REIS, 2009). Tem que ver, pois, com o desejo humano de identidade. As perspectivas (“orientadoras sobre o passado”) ocupam- se com o reconhecimento das transformações humanas e sociais no tempo, mediante ideias. Aqui, já adentramos, sem dúvida, na esfera acadêmica. Tratam-se de teorias, paradigmas, prefigurações da realidade. Modos de pensar-ver (BARROS, 2011, p. 67-8), pois. Redes lançadas ao mar para pegar peixes (realidade a ser apreendida), no dizer de Martinho Rodrigues (2007, p. 157). As regras são os “métodos de pesquisa”. Procedimentos por meio dos quais se selecionam, autenticam, identificam e se analisam os vestígios humanos. São de exclusivo uso dos especialistas, treinados para tanto. As formas são os suportes por meio dos quais se representam o passado. A Historiografia, no caso em apreço. Lembro, todavia, que não se deve menosprezar o fato de que a 20844 - Janote - História da Educação.indd 21220844 - Janote - História da Educação.indd 212 27/01/2012 10:13:2627/01/2012 10:13:26 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO – Teorias, métodos e fontes JEIMES MAZZA CORREIA LIMA • JANOTE PIRES MARQUES [213] História é tão arte (literatura) quanto ciência, tendo oscilado, durante sua existência, entre os dois gêneros, ora pendendo mais para um lado, ora para o outro. A narrativa não pode ser reduzida a meio, reles expressão, etapa final e menor da produção do saber. Como os outros fatores, detém um grau de autonomia. A maneira como se narra conforma o sentido do relato, que pode ser enquadrado como romântica, trágica, cômica ou satiricamente (WHITE, 1995). As funções denotam a utilidade da historiografia no meio social. Retornamos a esfera da práxis. Aqui, a historiografia tanto pode servir para desconstruir as instrumentalizações da memória pelo poder quanto para atender ao anseio humano por orientação existencial (RÜSSEN, 1987, p. 18). Como dito, tratam-se de fatores interdependentes, posto que são necessários, porém insuficientes sozinhos (RÜSSEN, 1987, p. 15). Em síntese: (...) interesses de conhecimento são traduzidos em perspectivas orientadoras sobre o passado, que por sua vez fundamentam os princípios metódicos de pesquisa; o saber histórico obtido através da pesquisa poderá assim, uma vez formulado pela historiografia (isto é, endereçado a pessoas interessadas), desempenhar funções práticas de orientação existencial (sobretudo na formação da identidade histórica). (RÜSSEN, 1987, p. 16; grifo meu). Detentora de uma nova face, expandida, a um tempo empírica, reflexiva e normativa (BERGMANN, 1989/1990), a nova Didática da História ocupar-se-ia, também, pois, com a escrita e a compreensão histórica. Como afirma Rüsen: 20844 - Janote - História da Educação.indd 21320844 - Janote - História da Educação.indd 213 27/01/2012 10:13:2627/01/2012 10:13:26 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO – Teorias, métodos e fontes RUI MARTINHO RODRIGUES • ANTÔNIO GERMANO MAGALHÃES JR [214] A narração histórica é mais do que uma simples forma específica de historiografia. Intérpretes contemporâneos dessa discussão (por exemplo, Hayden White e Paul Ricoeur) apresentam a narração histórica como um procedimento mental básico que dá sentido ao passado com a finalidade de orientar a vida prática através do tempo. Para entender completamente essa operação, nós temos que identificar primeiro os procedimentos da narração histórica, definir seus diversos componentes, descrever sua coerência e interrelações e construir uma tipologia que inclua sua aparência sob diferentes circunstâncias e tempos. Quando isso for feito, nós poderemos obter um entendimento de como o passado adquire sua modelagem histórica específica e de como a história é constituída por atos discursivos específicos, formas de comunicação e padrões de pensamento. Tudo isso pode nos dar um insight dentro da função cultural da história mentalidade e da argumentação histórica na vida social. Aqui a teoria da história (que analisa os fundamentos dos estudos históricos) e a didática da história (que analisa os fundamentos da educação histórica) coincidem em suas análises das operações narrativas da consciência histórica com suas conseqüentes conexões sistemáticas. Fazendo isso elas superam a infeliz separação que tem existido entre a reflexão acadêmica da natureza da história e a reflexão didática do uso da história na vida prática. A didática da história está recuperando a posição que tinha ocupado quando do início da história como uma disciplina profissional, isto é, cumprindo um papel central no processo de reflexão na atividade dos historiadores. A disciplina da história não pode mais ser considerada uma atividade divorciada das necessidades da vida prática. (2006, p. 14-5). 20844 - Janote - História da Educação.indd 21420844 - Janote - História da Educação.indd 214 27/01/2012 10:13:2627/01/2012 10:13:26 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO – Teorias, métodos e fontes JEIMES MAZZA CORREIA LIMA • JANOTE PIRES MARQUES [215] Rüsen pontua que a ampliação das fronteiras da Didática da História, não se restringindo mais ao aprendizado e ao ensino escolar, impõe à disciplina a análise de “todas as formas e funções do raciocínio e conhecimento histórico na vida cotidiana, prática. Isso inclui o papel da história na opinião pública e as representações nos meios de comunicação de massa (...)” (2006, p. 12). Bergmann, de seu lado, ao imputar à Didática da História o escopo amplo de “uma disciplina que pesquisa a elaboração da História e sua recepção, que é formação de uma consciência histórica, se dá num contexto social e histórico e é conduzida por terceiros, intencionalmente ou não”, reserva a ela, entre outras atribuições, a de tratar “da exposição/representação da História feita pelos mass-media e meios de comunicação de massa, como, p. ex., filme, televisão, vídeo, rádio e imprensa.” (1989/1990, p. 30-1). Para Rüsen, trata-se de uma missão transdisciplinar: Este é um novo campo [“a análise da função do conhecimento e da explicação histórica na vida pública”] para a didática da história. Sendo que existem muito poucas abordagens teóricas e metodológicas para este problema, não existem muitos estudos empíricos disponíveis sobre o assunto. O que temos feito são os primeiros passos na definição da disciplina, discussões sobre quais são os problemas e o que deveria e poderia ser feito. A fim de estabelecer uma estratégia de pesquisa adequada nessa área para a didática da história, é necessário sintetizar suas perspectivas, questões e métodos com aquelas disciplinas especializadas que analisam a vida pública. Por exemplo, se alguém aplicar 20844 - Janote - História da Educação.indd 21520844 - Janote - História da Educação.indd 215 27/01/2012 10:13:2627/01/2012 10:13:26 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO – Teorias, métodos e fontes RUI MARTINHO RODRIGUES • ANTÔNIO GERMANO MAGALHÃES JR [216] uma abordagem moderna da didática da história aos usos e funções da história nos meios de comunicação de massa, ele precisa chegar a um acordo com o jornalismo. Isso significa que os insights específicos da didática da história – seu conceito da especificidade do entendimento histórico e o reconhecimento da função da história em dar forma à identidade social e individual – têm de ser transformados na linguagem do nosso entendimento da comunicação de massa – que está, por exemplo, dentro da semântica do cinema e da poética da comunicação visual. (2006, p. 13). Como se vê, o cinema, como outros meios de comunicação de massa, desponta, nesse prisma, como via privilegiada para se entender “as funções e os usos da História na vida pública”, um dos objetos da nova Didática da História (RÜSEN, 2006). Como os historiadores que se ativeram a essa questão têm respondido ao desafio? Depende de qual fator da disciplina, dentre os cinco supracitados, eles elegem como a mais importante. As funções ideológicas do filme Aqueles que creem mais vivamente na cientificidade da História, elegendo a instância métodica (regras) como a mais importante da disciplina, tendem a privilegiar a função ideológica da História na vida pública. O cinema, nesse viés, seria instrumento dos poderes hegemônicos (políticos e econômicos, notadamente), legitimando-os. Ideologia, grosso modo. Historiadores como o francês Marc Ferro, o espanhol Caparros Lera e o estadunidense Marc Carnes se irmanam neste aspecto. 20844 - Janote - História da Educação.indd 21620844 - Janote - História da Educação.indd 216 27/01/2012 10:13:2627/01/2012 10:13:26 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO – Teorias, métodos e fontes JEIMES MAZZA CORREIA LIMA • JANOTE PIRES MARQUES [217] Alinhados com uma história contextual do filme, os dois primeiros atribuem a este o caráter de fonte histórica. Cotejando-o com outros vestígios da mesma época, pode- se desvelar no filme um conteúdo oculto, servil aos poderes instituídos. 2.1. Marc Ferro e a contra-análise da sociedade Marc Ferro fala numa contra-análise da sociedade, empreendida por meio da revelação do conteúdo latente ou não visível do filme. Atendendo a quatro coordenadas2, o historiador poderia identificar os lapsos do criador cinematográfico, denunciadores da retórica do poder. O historiador debruçou- se, especialmente, sobre os regimes totalitários (nazismo e stalinismo) e simpatizantes (regime de Vichy, na França) em suas investigações sobre o cinema. 2.2. Caparrós Lera e a Metodologia Filme-História Caparrós Lera, por sua vez, formulou, com outros, a Metodologia Filme-História3. Acreditando, como Ferro, que o filme testemunha a História, evidenciando mais o tempo em que é produzido do que aquele que procura retratar (PRICE, 2011), privilegiou também a história contemporânea em suas investigações fílmicas, notadamente a espanhola. 2 O cinema, agente da história; os modos de ação da linguagem cinemato- gráfi ca; sociedade que produz, sociedade que o recebe; leitura cinemato- gráfi ca da história, leitura histórica do fi lme (FERRO, 1992). 3 Baseada nos seguintes aspectos: Contextualização (“contexto histórico” e “fílmico”), Processo de criação artística e industrial (“produção”, “dis- tribuição” e “exibição”), Análise (“elementos ideológicos” e “estéticos”, “valores e mensagens conotadas”, “contextualização nos meios de comu- nicação de massa”), Impacto do fi lme (“consequências imediatas” e “a largo prazo”) e Conclusões (LERA, 1997). 20844 - Janote - História da Educação.indd 21720844 - Janote - História da Educação.indd 217 27/01/2012 10:13:2627/01/2012 10:13:26 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO – Teorias, métodos e fontes RUI MARTINHO RODRIGUES • ANTÔNIO GERMANO MAGALHÃES JR [218] 2.3. Marc Carnes e o passado imperfeito Já Marc Carnes (1997) sugere ao historiador que corrija os filmes históricos, apontando seus erros factuais e interpretativos. O filme expressaria um passado imperfeito, sem reconhecê-lo como tal. No livro organizado por ele, em cada artigo um historiador é encarregado de analisar como determinado filme tratou a história. Além do texto-base, um quadro intitulado História encima outro denominado Hollywood4, contendo, além do texto contrastivo, oposição entre representação sobrevivente do personagem histórico retratado no filme e foto, a caráter, da estrela que o interpreta. Essas contraposições insinuam a incomunicabilidade entre historiadores e cineastas: Mas, se todos os passados que se imagina são imperfeitos, as imperfeições são distintas. Os historiadores profissionais, por exemplo, vão buscar nos registros históricos os mais sólidos fragmentos de evidência: depois moldam-nos em significados e servem-nos em formas de livros que, sempre cheios de notas de rodapé e recendendo a arquivos bolorentos, são no entanto lidos e admirados, discutidos e considerados. Já a História segundo Hollywood é diferente. Ela preenche os irritantes vácuos onde não há registros históricos e elimina as ambigüidades e complexidades difíceis. (...) A História hollywoodiana brilha porque é moralmente sem ambigüidades, isenta de complexidades monótonas, perfeita. (CARNES, 1997, p. 9). 4 Termo usado genericamente “para distinguir cinema de verdade históri- ca” (CARNES, 1997, p. 10). 20844 - Janote - História da Educação.indd 21820844 - Janote - História da Educação.indd 218 27/01/2012 10:13:2627/01/2012 10:13:26 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO – Teorias, métodos e fontes JEIMES MAZZA CORREIA LIMA • JANOTE PIRES MARQUES [219] Mais: num país como os EUA, os filmes antigos, reprisados constantemente na TV, “funcionam como uma escola noturna, um grande repositório de consciência histórica (...). Para muita gente, a história hollywoodiana é a única que existe.” (1997, p. 9). O cinema, como outras ficções, “inspira e diverte”, ensina, mesmo, “verdades importantes sobre a condição humana”. Não substitui, todavia, “a História que tenha sido escrita penosamente a partir das melhores análises e evidências disponíveis.” (1997, p.10). As funções educativas do filme Os historiadores que salientam a filiação da História à arte, privilegiando, logo, a forma (narrativa) como a instância suprema da disciplina, tendem a valorizar a função educativa do filme. Os cineastas, aqui, são tomados como historiadores, ao menos em potencial, visto que também constroem representações sobre o passado. O objeto maior dessa corrente narrativista são, pois, os chamados filmes históricos. O cinema interessa ao historiador mais como narrativa (forma) do que como vestígio ou fonte (submetida a regras). Parafraseando Ferro, a leitura cinematográfica da História se impõe sobre a leitura histórica do cinema. 3.1. Robert Rosenstone e a história em imagens Um desses historiadores, o norte-americanoRobert Rosenstone, sensibilizou-se com os cineastas que se debruçam sobre a História ao se envolver com duas adaptações fílmicas 20844 - Janote - História da Educação.indd 21920844 - Janote - História da Educação.indd 219 27/01/2012 10:13:2627/01/2012 10:13:26 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO – Teorias, métodos e fontes RUI MARTINHO RODRIGUES • ANTÔNIO GERMANO MAGALHÃES JR [220] de obras suas5. Entendera, então, que as incompreensões entre historiadores e cineastas deviam-se menos à “seriedade” e “honestidade” destes do que à “natureza e necessidades do próprio meio audiovisual.” (1998, p. 105-6). Haveria elementos positivos e negativos da história em imagens. Dentre os positivos, cita a explicação a grande número de pessoas de episódios históricos significativos, antes somente de conhecimento dos especialistas; o fato do filme histórico exibir “bom número de fatos autênticos”; humanizar o passado; interpretar os temas; defender o “compromisso político” como “componente histórico” e “pessoal”; e conectar o passado com o presente (1998, p. 106). Dentre os elementos negativos do filme histórico, aponta a excessiva ficcionalização do passado, a ausência de rigor, a compressão do passado, a linearidade explicativa e a interpretação única dos fatos (1998, p. 106). Estes e outros elementos negativos de menor importância seriam, contudo, contornáveis. Os filmes de argumento podem ser fiéis ao passado (não inventar personagens e fatos); quanto a relatar conflitos humanos e condensar a história, os livros fazem o mesmo; sobre a tendência de destacar o individual em detrimento do coletivo, pode-se fazer o contrário; se eles trazem pouca informação tradicional (em razão dos limites de sua duração), apresentam “outros tipos de informações”, podendo fazer-nos ver, ouvir e sentir. Essa ênfase na informação visual e emocional altera, de forma ainda desconhecida, “nosso conceito de passado.” (1998, p. 109-10). 5 “Depois destas experiências, não me queixo mais dos erros dos fi lmes históricos, dos ‘doendes’ (sic) de Hollywood, dos efeitos lamentáveis de contar com recursos pequenos e dos limites do gênero dramático ou mesmo do documentário” (ROSENSTONE, 1998, p. 106). 20844 - Janote - História da Educação.indd 22020844 - Janote - História da Educação.indd 220 27/01/2012 10:13:2627/01/2012 10:13:26 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO – Teorias, métodos e fontes JEIMES MAZZA CORREIA LIMA • JANOTE PIRES MARQUES [221] No caso dos documentários, antepostos, às vezes, pelos historiadores, aos filmes de argumento, como fidedignos à história, não obstante a “voz onisciente”, centram-se em heróis e configuram os acontecimentos num sentido determinado (“início-conflito-resolução”). Sofrem, além disso, da “necessidade de imagens” ilustrativas e do “movimento pérpetuo”6. Quanto a “abrir uma janela para o passado”, possibilitando vê-lo, pode induzir a equívocos, pois devemos recordar que na tela não vemos os fatos em si, nem sequer tal como foram vividos por seus protagonistas, e sim imagens selecionadas daqueles fatos, cuidadosamente montadas em sequência para elaborar um relato ou defender um ponto de vista concreto. (ROSENTONE, p. 110-1). Outro dado a justificar o diálogo entre o cinema e a História é a hegemonia das imagens na contemporaneidade, tempo em que os cineastas superam os historiadores na produção da memória coletiva. Os últimos, não obstante a revalorização da narrativa nas últimas décadas, não têm conseguido produzir relatos “que interessam a todo mundo.” (1998, p. 107). A história escrita, assim como a história visual, está limitada por suas convenções. O relato histórico difere do “passado em si”. Ele é uma “ficção narrativa”, refém das “convenções de gênero” e do “ponto de vista (irônico, trágico, heróico e romântico)” escolhido pelo historiador. (1998, p.111). 6 “(...) ai daquele aspecto do tema que não possa ser visualizado ou resu- mido” (ROSENSTONE, 1998, p.111) 20844 - Janote - História da Educação.indd 22120844 - Janote - História da Educação.indd 221 27/01/2012 10:13:2627/01/2012 10:13:26 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO – Teorias, métodos e fontes RUI MARTINHO RODRIGUES • ANTÔNIO GERMANO MAGALHÃES JR [222] As normas de verificação das ficções visuais não podem ser as mesmas das ficções narrativas (história escrita): Não trato de afirmar que a história e a ficção sejam a mesma coisa nem defender os erros da maioria das películas de Hollywood. A história em imagens deve ter normas de verificação, mas – e aqui se radica a chave – normas que devem estar em consonância com as possibilidades do meio. É impossível julgar uma película histórica com as normas que regem um texto, já que cada meio tem seus próprios e necessários elementos de representação. (1998, p. 112). O cinema disponibiliza outras maneiras de “representar a história”, auxiliando a “narrativa histórica” a recuperar a influência que tinha quando era mais próxima da “imaginação literária”. Abre “novos campos de interpretação do passado”, apresenta novos questionamentos sobre o que é a história, sua função, suas motivações e sua utilidade. Demais, fornece nova forma de “reconstruir a história”, concebida agora como “indagação auto-reflexiva, uma representação consciente e como uma forma mista de drama e análise.” (1998, p.114-5). Desafio da “cultura visual” à “escrita” assemelha- se àquele imposto no passado pela “história escrita à tradição oral”. Superando o realismo narrativo que dita a história “científica” desde os oitocentos7, apresentando a “complexidade, indeterminação e multiplicidade” dos fatos, o cinema tem evidenciando as “convenções e limites da história escrita”. No futuro, a hegemonia da cultura visual 7 “(...) ai daquele aspecto do tema que não possa ser visualizado ou resu- mido” (ROSENSTONE, 1998, p.111) 20844 - Janote - História da Educação.indd 22220844 - Janote - História da Educação.indd 222 27/01/2012 10:13:2627/01/2012 10:13:26 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO – Teorias, métodos e fontes JEIMES MAZZA CORREIA LIMA • JANOTE PIRES MARQUES [223] pode modificar a “natureza de nossa relação com o passado”, e consequentemente, nosso presente8 (1998, p. 112-115). 3.2 Hayden White e a historiofotia Inspirado em Rosentone9, o estadunidense Hayden White também aproxima a narrativa histórica escrita da (audio) visual. Conforme o autor, “toda história escrita é produto de um processo de condensação, deslocamento, simbolização e qualificação, exatamente como na produção da representação fílmica. É somente o meio que difere, não o modo com que as mensagens são produzidas” (WHITE, 1988, tradução minha). Cria, mesmo, um neologismo, “historiophoty”, para diferenciar a “representação da história e do nosso pensamento acerca dele em imagens visuais e discurso fílmico” da “historiografia”, a história escrita. Avança em relação aos trabalhos anteriores, efetivamente, ao insinuar a necessidade da formulação de uma gramática dos filmes históricos: 8 “A História não existe até que seja reconstruída e sua recriação é fruto de ideias e valores subjacentes. Nosso rigor, nossa história ‘científi ca’ é fruto da mesma disciplina histórica, de uma concepção da história fi lha de uma relação concreta com a palavra impressa, de uma economia ra- cionalizada e de determinadas concepções dos direitos individuais e do Estado nacional. Porém, devemos recordar que muitas culturas carecem destes elementos e não têm ido nada mal. Esta afi rmação é somente uma forma de assinalar - como todos sabemos, porém raramente desconhe- cemos – que existem muitas formas de reconstruir e explicar o passado” (ROSENSTONE, 1998, p. 115). 9 “Devemos resgatar a afi rmativa de Platão de que quando muda o gosto musical, os muros da cidade estremecem. Na atualidade, creio que de- vemos colocar-nos a seguinte pergunta: se o modo de reconstrução se modifi ca, o que pode começar a estremecer?” (ROSENSTONE, 1998, p.115). 20844 - Janote - História da Educação.indd22320844 - Janote - História da Educação.indd 223 27/01/2012 10:13:2627/01/2012 10:13:26 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO – Teorias, métodos e fontes RUI MARTINHO RODRIGUES • ANTÔNIO GERMANO MAGALHÃES JR [224] Não conheço o suficiente sobre teoria fílmica para especificar mais precisamente os elementos equivalentes às dimensões léxicas, gramáticas e sintáticas da linguagem falada ou escrita, de um distinto discurso fílmico. (...) Sequências de tomadas e o uso da montagem ou close-ups podem ser feitos para afirmar tão efetivamente quanto as frases, sentenças ou sequências de sentenças no discurso falado ou escrito. (WHITE, 1988, [tradução minha]). 3.3. Michèle Lagny e a escrita fílmica da história Para a francesa Michèle Lagny, o filme tanto pode ser “arquivo”, “documento” e “testemunho” como escritura e “interpretação da história”. A autora defende duas hipóteses. A primeira é a de que a “operação historiográfica” (“descrever, analisar e interpretar”) pode ser feita pelo filme, graças às “múltiplas combinações possíveis” dos elementos (enquadramento, montagem e diálogo entre som e imagem) que o compõem. Ele pode, especialmente, traduzir a pluralidade e heterogeneidade da “temporalidade histórica”. A segunda hipótese é a de que o filme pode, a um tempo, “apresentar” e “criticar” uma narrativa, atendendo, logo, à “nova exigência dos historiadores”: demonstrar as “certezas e os limites de sua pesquisa e de sua reflexão” (“dúvida epistemológica”). (LAGNY, 2000, p. 19)10. Há duas formas dominantes de história no cinema: “testemunha” (“filme de montagem”) e recomposição do 10 A “conceituação” no cinema se efetua na “representação”. Não na ima- gem, mas na sua construção. Não no que é narrado, mas na sua estrutu- ração (LAGNY, 2000, p. 26). 20844 - Janote - História da Educação.indd 22420844 - Janote - História da Educação.indd 224 27/01/2012 10:13:2627/01/2012 10:13:26 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO – Teorias, métodos e fontes JEIMES MAZZA CORREIA LIMA • JANOTE PIRES MARQUES [225] passado (“filme de reconstituição” ou de “ficção”). Em ambos, a imagem tem a “dupla função, contraditória, de prova e ilusão”. Os historiadores preferem os primeiros, por serem mais analíticos que sintéticos, facultando, com mais facilidade, “distinguir as fontes e as interpretações e avaliar o valor destas e a autenticidade daquelas” (2000, p. 20). Os segundos, se não atendem tão satisfatoriamente à necessidade de autenticação da História, fazem-no melhor no que tange à da explicação, havendo “mais liberdade para significar um propósito graças às representações globalizantes, já que podem autorizar a encenação de personagens e situações de valor emblemático e fazê-los endossar as significações procuradas” (2000, p. 22). Com base nesse poder de síntese do filme, Lagny tipifica as funções historiográficas da narrativa fílmica. A história- lenda apoia-se na linearidade narrativa (montagem normal, aparência de desenvolvimento independentemente dos fatos), apresentando-se como evidente. Aos historiadores, ela serve como “índice”, testemunhando a ideologia de um grupo, em determinado tempo e espaço (2000, p. 23). A narrativa fílmica também serve para evidência das teses historiográficas. Encenação dupla da história, “representação de segundo grau dos acontecimentos passados, que só são conhecidos através das representações que deixaram deles próprios nos documentos que consultamos e que devemos interpretar”, ela se assume como uma interpretação historiográfica. Disjunções narrativas e distanciamento do espectador frisam que acontecimentos, além de complexos, são passíveis de várias interpretações. (2000, p. 24-5). 20844 - Janote - História da Educação.indd 22520844 - Janote - História da Educação.indd 225 27/01/2012 10:13:2627/01/2012 10:13:26 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO – Teorias, métodos e fontes RUI MARTINHO RODRIGUES • ANTÔNIO GERMANO MAGALHÃES JR [226] A história-crítica, por sua vez, critica as teses e fontes da história. Além de tese, conforma reflexão sobre a escrita da história. Alguns historiadores (pós-modernos) rechaçam as sínteses narrativas, tidas como artificiais. Para eles, a temporalidade histórica, além de “plural e heterogênea”11, é captada somente fragmentariamente (“paradoxos do real”). Recusando a “racionalização global do passado”, colocando na berlinda a possibilidade de compreensão do passado, insinuam que a história é “impossível” (2000, p. 30). Alguns filmes seguem essa linha, abandonando a coerência narrativa, apostando, ao contrário, na fragmentação, redução dos pontos de vista, anacronismo e “fantasmagoria” (ou seja, na exibição dos “sinais de enunciação” e na “reflexividade”). Mostram que o presente é “incompreensível” e a história “incontrolável”, duvidando da capacidade da história de “reconstruir o passado”, tratando as interpretações como falsificações. (2000, p.30). Para os que creem que na História incontrolável, a história é, ao menos em parte, enigmática. A vida somente é inteligível mediante fragmentos. No máximo, estamos autorizados a “sugerir relações entre os fenômenos” (2000, p. 31). 11 Para Lagny, o fi lme é especialmente apto para expor a “multitemporalida- de” na história. Senão, vejamos. O antes e o depois, denotando a passagem do tempo em fi lmes lineares (causa e consequência), pode ser expresso por meio de elipses, fl ashbacks (incluída a retrospecção e a introspecção), fl ashforwards e da montagem paralela. O tempo coletivo, indicando as ligações entre o privado e o público, e a pluralidade e contradição deste, é exposto mediante a “organização do espaço de referência dos grupos e dos fatos”. Já a densidade temporal e a pluralidade dos tempos aludem à capacidade do fi lme de apresentar a superposição, simultânea, de rit- mos temporais diferentes (curta, média e, especialmente, a longa duração [“tempo da natureza”]). (2000, p. 27-9) 20844 - Janote - História da Educação.indd 22620844 - Janote - História da Educação.indd 226 27/01/2012 10:13:2627/01/2012 10:13:26 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO – Teorias, métodos e fontes JEIMES MAZZA CORREIA LIMA • JANOTE PIRES MARQUES [227] Para os que acreditam numa História caótica, a história é “sucessão de instantes (...), heterogêneos uns em relação aos outros, cuja duração é incerta e as interrelações não são asseguradas”, apartando o tempo vivido e o histórico (e seus diversos níveis) (2000, p. 31). Nesse contexto de insegurança da História, os filmes históricos tendem a confundir o presente e o passado (como na memória), em prejuízo da “reorganização cognitiva” deste. Outros filmes exploram o “‘potencial imaginativo e poético do fatual’ para extrair do passado uma visão reflexiva”, que também pode ser crítica e política. “Forma limite”, aproxima-se mais do mito que da História (2000, p. 32-4). Considerações finais Para alguns historiadores, o cinema não ajudaria a deslocar somente o eixo da ciência da História (tarefa que os historiadores alemães supracitados atribuem à Didática). Jorge Nóvoa, arrimado nas sugestões de Ferro (1992) de uma nova ciência ancorada no audiovisual, chega a propor a refundação do paradigma científico, com base no cinema. Este seria o “laboratório” de uma razão poética transdisciplinar, que fundiria razão e emoção, especulação e empirismo, objetividade e subjetividade. Os elementos necessários à elaboração da epistemologia dessa nova ‘ciência’ (...) contém as questões não somente ligadas à comunicação de emoções, de sentimentos e de devaneios, como ainda das informações, dos saberes ou a interpretação de um evento político, policial ou 20844 - Janote - História da Educação.indd 22720844 - Janote - História da Educação.indd 227 27/01/2012 10:13:2627/01/2012 10:13:26 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO – Teorias, métodos e fontes RUI MARTINHO RODRIGUES • ANTÔNIO GERMANO MAGALHÃES JR [228] existencial qualquer, assim como uma tese explicativa sobre um fenômeno científico natural ou histórico,social ou psicológico. (NÓVOA, 2009, p. 160). Robert Rosenstone, de seu lado, radicaliza, em sua última obra, suas proposições sobre a validade do filme histórico como discurso sobre o passado, tratando parte dos cineastas como verdadeiros historiadores. Resumindo sua tese, “os cineastas (alguns deles) podem ser, e já são, historiadores, mas, por necessidade, as regras de interação de suas obras com o passado são, e devem ser, diferentes das regras que governam a história escrita” (2010, p. 22). Sobre esses cineastas, afirma: (...) todos parecem obcecados e oprimidos pelo passado. Todos continuam voltando a tratar do assunto fazendo filmes históricos, não como uma fonte simples de escapismo ou entretenimento, mas como uma maneira de entender como as questões e os problemas levantados continuam vivos para nós no presente. Em seus filmes dramáticos, esses diretores fazem o mesmo tipo de pergunta sobre o passado que os historiadores – não apenas o que aconteceu ou por que aquilo aconteceu, mas qual o significado para nós, hoje, daqueles eventos. Perguntas desse tipo obviamente não são respondidas como um acadêmico as responderia, mas sim dentro das possibilidades do gênero dramático e da mídia visual. Na totalidade de suas obras, os melhores desses cineastas historiadores fornecem uma interpretação ampla e uma perspectiva mais abrangente de algum tópico, aspecto ou tema do passado. (...) Dizer que suas obras são façanhas de “historiadores” é, como foi mencionado anteriormente, ampliar e alterar a noção do que esse termo significa. 20844 - Janote - História da Educação.indd 22820844 - Janote - História da Educação.indd 228 27/01/2012 10:13:2627/01/2012 10:13:26 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO – Teorias, métodos e fontes JEIMES MAZZA CORREIA LIMA • JANOTE PIRES MARQUES [229] (...) Minha preferência pessoal é manter a palavra “historiador” e defini-la como alguém que dedica uma parte significativa de sua carreira a criar significado (em qualquer mídia) a partir do passado (2010, p. 173-4). Nesse sentido, o métier do historiador e o do cineasta não podem ser reduzidos à situação narrativa, básica, em que “alguém conta a alguém uma história, na qual o passado é tornado presente, de forma que possa ser compreendido, e o futuro é esperado.” (RÜSEN, 2001. p. 159). Referências bibliográficas BARROS, José D’ Assunção. Teoria da História: 1. Princípios e conceitos fundamentais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. BERGMANN, Klaus. A história na reflexão didática. Revista Brasileira de História, vol. 9, nº 19, set. 1989/fev. 1990. CARNES, Mark C. (org). Passado imperfeito: a história no cinema. Rio de Janeiro: Record, 1997. FERRO, Marc. Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. LERA, José Maria Caparrós. “Análisis crítico del cine argumental”. História, Antropologia y Fuentes Orales, 2, 18, 1997. LAGNY, Michèle. “Escrita fílmica e leitura da história”. Cadernos de Antropologia e Imagem. Rio de Janeiro, v.10, nº1, 2000. MARTINHO RODRIGUES, Rui Martinho. Pesquisa acadêmica: como facilitar o processo de preparação de suas etapas. São Paulo: Atlas, 2007. NÓVOA, Jorge. Cinematógrafo. Laboratório da razão poética e do novo pensamento. In: NÓVOA, Jorge; FRESSATO, Soleni Biscouto; FEIGELSSON, Kristian (orgs.). Cinematógrafo: um olhar sobre a história. Salvador: EDUFBA; São Paulo: UNESP, 2009. 20844 - Janote - História da Educação.indd 22920844 - Janote - História da Educação.indd 229 27/01/2012 10:13:2627/01/2012 10:13:26 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO – Teorias, métodos e fontes RUI MARTINHO RODRIGUES • ANTÔNIO GERMANO MAGALHÃES JR [230] PRICE, C. R. ¿Es El cine un testimonio de la Historia. Acesso em 25/10/2011. Disponível em: http://caparroscinema.blogspot.com/. REIS, José Carlos. História, a ciência dos homens no tempo. Londrina: EDUEL, 2009. ROSENSTONE, Robert. A história nos filmes, os filmes na História. São Paulo: Paz e Terra, 2010. ______. “História em imagens, história em palavras: reflexões sobre a possibilidade de plasmar a história em imagens”. O Olho da História: revista de história contemporânea. Salvador, v. 1, nº 1, set/1998. RÜSEN, Jörn. Didática da História: passado, presente e perspectivas a partir do caso alemão. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 1, nº 2, 2006. ______. Reflexão sobre os fundamentos e mudança de paradigma na ciência histórica alemã-ocidental. In: NEVES, Abílio Afonso Baeta; GERTZ, René E (orgs.). A nova historiografia alemã. Porto Alegre: UFRS, 1987 ______. Razão histórica – teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: UNB, 2001. WHITE, Hayden. “Historiography and Historiophoty”. The American Historical Review, v. 93, nº 5, dec/1988. ______. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Edusp, 1995. 20844 - Janote - História da Educação.indd 23020844 - Janote - História da Educação.indd 230 27/01/2012 10:13:2627/01/2012 10:13:26
Compartilhar