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Coragem sob Fogo e o Manual de Epicteto - James Bond Stockdale et al

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Prévia do material em texto

Aldo Dinucci Organizador
 
 
 
Testando as Doutrinas de Epicteto
Em um Laboratório Comportamental Humano
 
 
JAMES BOND STOCKDALE
 
Tradução e Notas:
Aldo Dinucci; Joelson Nascimento; Marcus de Aquino
Resende 2ª Edição
 
 
 
 
INFOGRAPHICS
Aracaju 2021
 
 
Título Original: Courage under fire: testing Epictetus’s doctrines in a labo- ratory of
human behavior
Autor: James Bond Stockdale
Tradução e Notas: Aldo Dinucci; Joelson Nascimento; Marcus Resende Coragem
sob Fogo: testando as doutrinas de Epicteto em um laboratório comportamental
humano I James Bond Stockdale.
p.40. –– (Hoover essays no. 6)
1. Conflito Vietnamita, 1961–1975––Prisioneiros e prisões
2. Conflito Vietnamita, 1961–1975––Narrativas pessoais, EUA. 3. Stockdale,
James B. 4. Epicteto. 5. Prisioneiros de Guerra––Biografia.
 
 
 
O Instituto Hoover para a Guerra, Revolução e Paz, fundado em 1919 na
Universidade de Stanford pelo presidente norte-americano Herbert Hoover, é
um centro interdisciplinar para estudos avançados sobre questões
domésticas e internacionais.
 
Hoover Essays No. 6
Copyright © 1993 by the Board of Trustees of the Leland Stanford Junior
University
All rights reserved. No part of this publication may be reproduced, stored in a
retrieval system, or transmitted in any form or by any means, electronic,
mechanical, photocopying, recording, or otherwise, without written permission of
the publisher.
First printing, 1993
 
Ensaios Hoover No. 6
Copyright © 1993 Board of Trustees of the Leland Stanford Junior University
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser
reproduzida ou armazenada ou transmitida sob qualquer forma por qualquer meio,
seja eletrônico, mecânico, fotocópia, gravação ou outro,
sem permissão por escrito do editor.
Primeira edição: 1993. Primeira edição no Brasil: 2009. Segunda edição:
2021.
 
 
EdiUFS - Editorial Prometeus - COMITÊ CIENTÍFICO: Dr. Aldo Dinucci, Brasil; Dr.
Marcos Silva; Dr. Evaldo Becker; Dr. Marcos Balieiro; Dr. Arthur Eduardo Grupillo
Chagas; Dr. Christian Lindberg L. Nascimento
 Copyright 2021 by Aldo Dinucci org.
Editoração/Capa
Infographics/Joelma Silva
 
Tradução e Notas Aldo Dinucci Joelson Nascimento
Marcus de Aquino Resende
Revisão
Aldo Dinucci
 
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor. A reprodução
não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, por qualquer meio,
processo ou finalidade comercial, constitui violação dos direitos autorais (Lei
9.610/98).
 
Dinucci, Aldo. (Org.)
D587c Coragem sob fogo. Testando as Doutrinas de Epicteto em um Laboratório
Comportamental Humano. /Aldo Dinucci. (Org.).
-2. ed. Aracaju: Infographics, 2021.
 
 
76p.
ISBN: 978-65-5730-039-8
 
 
(Obra traduzida – James Bond Stockdale. Tradução e Notas: Aldo Dinucci; Joelson Nascimento; Marcus de
Aquino Resende)
 
1. Conflito- Vietnã 2. Prisioneiros-Guerra 3. Reflexões Epictetianas
4.Prisioneiros de Guerra- Biografia
I - Título
CDU: 94: 929
Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária: Jane Guimarães Vasconcelos Santos CRB-5/975
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO
 
Sumário
Testando as Doutrinas de Epicteto
SUMÁRIO
INVICTUS
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA: De Volta ao Mundo de Epicteto
CORAGEM SOB FOGO
Testando as Doutrinas de Epicteto em um Laboratório Comportamental Humano
- por James B. Stockdale
Apêndice 1: EPICTETO E STOCKDALE: ESTRATÉGIAS PARA COMBATER O
ASSÉDIO MORAL
Apêndice 2: SOBRE MANUAIS E EXERCÍCIOS
Apêndice 3: O ESTOICISMO É MAIS DO QUE UM MANUAL
Apêndice 4: REFLEXÕES EPICTETIANAS A PARTIR DAS AÇÕES DE UM
PILOTO DE CAÇA
Apêndice 5: FORTALEZA E RESISTÊNCIA NO ESTOICISMO
Apêndice 6: O MANUAL DE EPICTETO (na tradução de Aldo Dinucci)
 
 
 
 
 
 
INVICTUS
 
Fora da noite que me cobre
Negra como um abismo de polo a polo
Agradeço a quaisquer deuses que houver
Por minha alma invencível.
 
No feroz aperto das circunstâncias
Não tremi nem lamentei em voz alta.
Sob os golpes de clava da fortuna
Minha cabeça está ensanguentada, mas não curvada.
 
Para além deste lugar de cólera e lágrimas
Nada se insinua senão o Horror da sombra,
E, apesar da ameaça dos anos,
Encontra-me e haverá de encontrar-me destemido.
 
Não importa quão estreita seja a passagem,
Quão carregada de punição a sentença.
Eu sou o mestre do meu destino:
Eu sou o comandante da minha alma.
 
WILLIAM E. HENLEY
(Trad. Aldo Dinucci)
 
 
 
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA: De Volta ao
Mundo de Epicteto
 
 
Por Aldo Dinucci
 
O almirante norte-americano James Bond Stockdale conheceu
a obra de Epicteto ao estudar filosofia em Stanford. Como piloto de
caças, simplesmente decorou o Manual de Epicteto, como é
costume dos pilotos, que decoram manuais de instruções sobre os
jatos que pilotam. Tempos depois, na guerra do Vietnã, seu caça foi
abatido.
Durante sua queda, Stockdale abandonava um mundo no qual
ele era, nos EUA, um respeitado piloto e oficial de patente, um
mundo no qual tinha casa, mulher e filhos, para adentrar em mundo
no qual era um pária, um prisioneiro de guerra em Hanói, vivendo
miseravelmente por cerca de sete anos e meio. Além disso, teve
uma fratura em um dos joelhos que não foi tratada, o que fez com
que ficasse manco. Stockdale percebeu, na própria carne, que essas
coisas que temos em alta conta, nosso status, nossa carreira, nossa
saúde, nossa família, nossa vida, são partes de um cenário, cuja
estabilidade é apenas aparente. A verdade básica que os estoicos
tomaram de Heráclito, Tudo flui, significa, vocês sabem, que nada
permanece, que tudo está sempre em mudança. Impérios, como o
romano, surgem e depois desaparecem, deixando para trás de si
pouco mais que ruínas. Para a quase totalidade de nós, a mudança
é mais drástica. Ora somos crianças. Depois já a velhice se insinua.
E logo somos apenas uma foto envelhecida em um álbum
esquecido ou um nome em um registro empoeirado, que depressa
virará pó também.
 
E não temos nenhum controle sobre a escalada dos
acontecimentos. As coisas simplesmente acontecem. E o fluxo nos
arrasta. Uma das lições mais duras, ao envelhecer, é perceber que o
mundo que nos cerca morre antes de nós mesmos. Casas que
conhecíamos são demolidas. Florestas aonde íamos são
devastadas. Lojas e restaurantes que frequentávamos fecham.
Artistas que amávamos morrem. E fenecem sucessiva ou
alternadamente nossos avós e pais, ou então nossos próprios
irmãos e filhos nos precedem na morte. E pouco a pouco vivemos
em um mundo que não é mais o nosso, em um mundo estranho que
não mais reconhecemos.
 
De certa forma, a crise pandêmica pela qual passamos
desnuda essa realidade. Sempre vivemos no mundo de Epicteto,
mas nos iludíamos com a aparência de estabilidade. Agora não
podemos mais ignorar: podemos morrer, nós e nossos entes
queridos, amanhã; ditaduras podem destruir a frágil democracia
construída por décadas. Os cenários vão sendo trocados com
rapidez surpreendente. E pouco nos cabe senão cumprir o papel
que nos foi dado: se pai, o de pai; se filho, o de filho, se cidadão, o
de cidadão.
 
A vida, afinal, é algo emprestado, e será retomada mais cedo
ou mais tarde, seja por meio de morte natural e pacífica, seja por
meio de um tumor doloroso, por um tiro ou um acidente. Não importa
como, mas será retomada. Cumprir nosso papel da maneira melhor
possível, da maneira mais digna possível, é o que nos resta, além de
sermos gratos, pois há beleza na vida, apesar de todo sofrimento,
toda injustiça e toda dor:
 
Lembra que és um ator no drama teatral que o Dramaturgo
escolher. Se Ele o quiser breve, breve será o drama, se longo,
longo; se quiser que cumpras o papel de mendigo, cumpre também
este papel de modo digno. E, da mesma forma, se coxo, se
magistrado, se simples cidadão. Pois isto é teu: encenar belamente
o papel que te é oferecido. Mas cabe a outro escolhê-lo. (Epicteto,
Manual de Epicteto, capítulo 17, Tradução de Aldo Dinucci).
 
 
 
CORAGEM SOB FOGO
Testando as Doutrinas de Epicteto em um Laboratório
Comportamental Humano - por James B. Stockdale[i]Ingressei na vida filosófica como um piloto naval de trinta e oito
anos de idade quando cursava a graduação da universidade de
Stanford. Eu servi à marinha por vinte anos e, quase sempre, dentro
de uma cabine de piloto. Em 1962, iniciei meu segundo ano de
estudos sobre relações internacionais com o objetivo de me tornar
um planejador estratégico no Pentágono. Mas meu coração não
estava ali. A vida em Stanford não me inspirava, e eu me via como
alguém apenas trabalhando com um material enfadonho sobre
como as nações se organizavam e se governavam. Estava velho
demais para isso. Sabia como os sistemas políticos operavam; os
ha- via derrotado por anos.
Então, do jeito que costumamos chamar de “rápida inspeção”
em um voo acrobático, cruzei pelos lados do departamento de
filosofia de Stanford em uma manhã de inverno. Eu tinha cabelos
grisalhos e usava roupas civis. Uma voz estrondou de um escritório:
“Posso ajudá-lo?” A voz era de Philip Rhinelander, decano de
Ciências e Humanidades, que ensinava Filosofia VI: Os Problemas
do Bem e do Mal.
Primeiramente ele pensou que eu era um professor, mas nós
rapidamente descobrimos um ponto em comum na Marinha, porque
ele servira durante a Segunda Guerra Mundial. Em quinze minutos
concordamos que eu entraria no meio do seu curso de dois períodos
e, para compensar minha falta de conhecimento, teríamos de nos
reunir por uma hora semanal para aulas particulares em sua casa no
campus de Stanford.
Philip Rhinelander abriu-me os olhos. Naquele estudo tudo
aconteceu para mim – minha inspiração, minha dedicação à vida
filosófica. Daí em diante, saí do curso de relações internacionais - já
tinha créditos suficientes para o mestrado - e ingressei no curso de
filosofia. Começamos a trabalhar de Sócrates a Aristóteles e
Descartes. E, então, passamos para Kant, Hume, Dostoievski e
Camus. Enquanto isso, Rhinelander estava me analisando, tentando
descobrir o que eu procurava. Ele percebeu que meu interesse nos
Diálogos sobre a Religião Natural de Hume era bastante intenso. Na
minha última sessão, ele alcançou o alto de sua estante de livros,
me trouxe uma cópia do Encheiridion[ii] e disse: “Creio que você se
interessará por isso”.
Encheiridion significa “à mão”. Em outras palavras, um manual.
Rhinelander explicou que seu autor, Epicteto, era um homem de
inteligência e sensibilidade bastante incomuns, que, a partir de sua
precoce e direta exposição à extrema crueldade e direta observação
do abuso de poder e da autoindulgente libertinagem, amealhou
sabedoria ao invés de amargura.
Epicteto nasceu escravo por volta do ano 50 da nossa era e
cresceu na Ásia Menor falando a língua grega de sua mãe escrava.
Por volta dos quinze anos de idade, foi despachado para Roma
acorrentado, em uma caravana de escravos, tendo sido tratado com
selvageria por meses durante a viagem. Vendido em Roma como um
inválido (seu joelho havia sido despedaçado e deixado sem
tratamento), acabou sendo “comprado barato” por um liberto
chamado Epafrodito, um secretário do imperador Nero. Foi levado
para vi- ver no palácio de Nero em um período em que o imperador
tratava com negligência o seu império por causa de viagens
frequentes à Grécia como ator, músico e condutor de bigas de corrida.
Quando em casa, em seus alojamentos em Roma, Nero se ocupava
matando seu meio-irmão, sua esposa, sua mãe, sua segunda
esposa. Finalmente, foi o senhor de Epicteto, Epafrodito, quem cortou
a garganta de Nero quando este se atrapalhou em seu suicídio
enquanto os soldados derrubavam a porta para prendê-lo.
Isso pôs Epafrodito em maus lençóis, e, fortuitamente, o agora
cauteloso escravo Epicteto percebeu que tinha livre acesso a Roma.
Sendo um jovem sério e indubitavelmente desgostoso, gravitou para
as magnânimas aulas públicas dos professores estoicos, que eram
os filósofos de Roma naqueles dias. Epicteto eventualmente tornou-
se aprendiz do melhor professor de estoicismo do império, Musônio
Rufo e, depois de dez anos ou mais de estudo, alcançou, por seus
próprios méritos, o status de filósofo. Com isso lhe adveio a
verdadeira liberdade em Roma, e a preciosidade desse
acontecimento foi devidamente celebrada pelo ex-escravo.
Estudiosos afirmam que, em suas obras, a liberdade individual é
elogiada seis vezes mais que no Novo Testamento. Os estoicos
sustentam que todos os seres humanos são iguais aos olhos de
Deus: homem e mulher, negro e branco, escravo e livre.
Li cada um dos escritos de Epicteto duas vezes, através de
duas traduções. Mesmo nos tradutores mais conservadores,
Epicteto nos fala como um contemporâneo nosso. Isso é “palavra
viva”, não o grego ático literário ao qual estamos habituados em
homens dessa língua.
O Encheirídion não foi realmente escrito por Epicteto, que era
acima de tudo um professor determinado e um homem modesto,
que nunca usaria seu tempo para transcrever suas próprias aulas,
mas por um de seus mais meticulosos e determinados alunos. Seu
nome é Arriano, um grego de origem aristocrática muito inteligente,
com cerca de vinte anos. Depois de ouvir suas primeiras aulas, tem-
se notícia de que Arriano exclamou algo como: “Filho da mãe! Temos
de passar esse cara para o pergaminho!”
Com o consentimento de Epicteto, Arriano anotou suas
palavras de modo literal e as reuniu através de uma espécie de
frenética taquigrafia que inventou. Ele organizou as aulas em livros.
Nos dois anos em que esteve matriculado na escola de Epicteto,
escreveu oito livros. Quatro deles desapareceram em algum
momento antes da Idade Média. Foi aí que os quatro livros restantes
foram reunidos sob o título Diatribes de Epicteto. Arriano organizou
o Encheirídion de Epicteto depois de completar os oito livros. Trata-
se tão somente dos melhores momentos daqueles oito livros “para
os homens atarefados”. Rhinelander disse-me naquela última
manhã: “Como um militar, penso que você terá um interesse
especial nisso. Frederico, o Grande, nunca saía em campanha sem
um exemplar desse livro de bolso em sua bagagem”.
Jamais esquecerei aquele dia, e a essência do que esse
extraordinário homem disse quando nos despedimos ficou
profundamente gravada em minha mente. Foi algo muito próximo
disso: o estoicismo é uma filosofia nobre que provou ser mais
praticável do que um cínico moderno poderia esperar. O ponto de
vista estoico é frequentemente mal interpretado, por- que o leitor
casual não compreende que tudo gira em torno da “vida interior” do
homem. Os estoicos fazem parecer pouco importante a dor física,
mas isso não é fanfarronice. Eles estão falando dela comparando-a
com a devastadora agonia da vergonha que eles imaginam que os
homens bons experimentam quando sabem em seus corações que
deixaram de cumprir seu dever diante de seus companheiros ou de
Deus.
Embora pagãos, os estoicos possuíam uma religião natural
monoteística e muito contribuíram para o pensamento cristão. A
paternidade de Deus e a irmandade dos homens eram conceitos
estoicos antes do cristianismo. De fato, um dos primeiros teóricos
estoicos, Crisipo, concebeu a primeira analogia entre o que se pode
chamar de alma do universo com a respiração de um ser humano,
pneuma em grego. Diz-se que essa concepção estoica de um
pneuma celestial é a bisavó do Espírito Santo cristão. São Paulo, um
judeu helenizado criado em Tarso, uma cidade estoica na Ásia
Menor, sempre usou o termo grego pneuma, ou sopro, para “alma”.
Rhinelander disse-me que a busca estoica por um pensamento
disciplinado conquistou, naturalmente, apenas uma pequena minoria
para seu padrão, mas esses poucos eram, em todos os lugares, os
melhores. Como os seus correlatos cristãos, o calvinismo e o
puritanismo, ele produziu as mais fortes personalidades de seu
tempo. Sendo em sua teoria uma doutrina de impiedosa perfeição,
produziu de fato homens de coragem, piedosos e de boa vontade.
Rhinelander apontou três exemplos: Catão, o jovem, o Imperador
Marco Aurélio e Epicteto. Catão foi o maior republicano de Roma que
fez oposição a Júlio César. Ele foi evidentemente o herói de George
Washington: estudiosos encontramcitações de Catão nos discursos
de despedida de Washington – citações sem aspas. O Imperador
Marco Aurélio levou o Império Romano ao auge de sua força e
influência. E Epicteto, o grande mestre, fez sua parte na mudança do
comando de Roma: das orgias que ele conheceu no palácio de Nero
ao poder e à decência que testemunhou sob Marco Aurélio.
Marco Aurélio foi o último dos cinco imperadores (todos com
ligações com o estoicismo) que sucessivamente governaram
durante o período que Edward Gibbon descreveu em seu Declínio e
Queda do Império Romano da seguinte forma: “Se pedirmos a
alguém para determinar o período da história do mundo no qual a
raça humana foi mais feliz e próspera, ele, sem hesitação,
poderá mencionar o período que vai da ascensão de Nerva (ano 96)
à morte de Marco Aurélio (ano 180). Os reinos reunidos dos cinco
imperadores dessa era são, possivelmente, o único período da
história no qual a felicidade de um grande povo foi o único objetivo
de governo”.
Epicteto atraiu o mesmo tipo de ouvintes que Sócrates cinco
séculos antes – jovens aristocratas destinados às carreiras nas
áreas das finanças, das artes e do serviço público. As melhores
famílias lhe enviavam seus melhores filhos na faixa dos vinte anos
para serem ensinados no que consiste a vida feliz, de modo a se
desfazerem da ideia de que eles mereciam se tornar playboys, para
se conscientizarem de que sua função era servir aos seus
semelhantes.
Em sua inimitável e franca linguagem, Epicteto explicou que
seu curso não era sobre “lucros ou rendimentos, paz ou guerra, mas
sobre a felicidade e a infelicidade, o sucesso e o fracasso, a
escravidão e a liberdade”. Seu aluno ideal não era alguém capaz de
“falar fluentemente sobre princípios filosóficos como um tagarela
inútil, mas falar sobre coisas que o farão forte se seu filho morrer, se
seu irmão morrer, ou se ele mesmo tiver que morrer ou ser
torturado”. “Que uns pratiquem ações judiciais; outros estudem
problemas; outros, silogismos; aqui você pratica como morrer, como
ser acorrentado, como ser torturado ou exilado”. Um homem é
responsável por seus próprios “juízos, mesmo em seus sonhos, na
embriaguez e na loucura da melancolia”. Cada um produz seu
próprio bem e seu próprio mal, sua boa fortuna, sua má fortuna, sua
felicidade e sua desgraça. E, para completar tudo isso, ele
sustentava que é impensável que o erro de um homem possa ser a
causa do sofrimento de outros. O sofrimento, como tudo mais no
estoicismo, resume-se nisso: remorso por destruir a si mesmo.
Assim, o que Epicteto ensinou aos seus alunos foi que não
pode haver tal coisa como ser “vítima” de alguém. Você só pode ser
“vítima” de si mesmo. Tudo está em como você disciplina a sua
mente. Quem é o seu senhor? “Quem controla cada uma das coisas
nas quais você pôs seu coração”? “Qual é o resultado a que toda
virtude almeja? Serenidade”. “Mostre-me um homem que, embora
doente, é feliz; que, embora em perigo, é feliz; que, embora na
prisão, é feliz, e te mostrarei um estoico”.
Quando me formei, Sybil[iii] e eu pegamos nossos quatro filhos
e nossos pertences e rumamos para o sul da Califórnia. Eu estava
para assumir o comando do esquadrão de combate 51, que
utilizava Cruzaders supersônicos F8, primeiro na estação naval de
Miramar, perto de San Diego, e depois, é claro, no mar, a bordo de
vários porta-aviões no Pacífico Ocidental. Exatamente três anos
depois de irmos para o nosso novo lar, perto de San Diego, meu
avião foi abatido, e eu fui capturado no Vietnã do Norte.
Durante aqueles três anos, fui enviado a três missões de sete
meses cada através da costa do Vietnã. Na primeira, nos dedicamos
a supervisionar os combates que estavam irrompendo no sul; na
segunda, comandei a primeira incursão de bombardeio sobre o
Vietnã do Norte; e, na terceira, estava voando em combate, quase
diariamente, como o comandante de esquadra aérea do porta-
aviões USS Oriskany. Mas, na cabeceira de minha cama, não
importa em que porta-aviões eu me encontrasse, estavam meus
livros de Epicteto, O Encheirídion e As Diatribes, e também As
Memoráveis de Xenofonte, a Ilíada e a Odisseia (Epicteto esperava
que seus alunos estivessem familiarizados com as obras de
Homero). Não tive tempo para ser um leitor assíduo, mas passava
várias horas por semana me aprofundando nessas leituras.
Eu pensava que era óbvio para meus amigos mais íntimos,
como certamente o era para mim, que eu era um homem mudado,
quero dizer, um homem melhor, por ter sido introduzido à Filosofia e
especialmente à de Epicteto. Eu estava trilhando um caminho
diferente – certamente não um caminho antimilitarista, mas, em
alguma medida, anti-organizacional. Contra o pano de fundo das
imposturas e trapalhadas dos tempos de paz que as organizações
militares parecem ter de atravessar, aceitar a necessidade de ser
elegante e de improvisar de modo altruísta sob pressão para
quebrar procedimentos padronizados e estabelecer uma nova
maneira de operar. Eu tinha me tornado um homem imparcial – não
indiferente, mas imparcial – capaz de lançar fora o livro de normas
sem a menor hesitação quando ele não mais fizesse frente às
circunstâncias externas. Fui capaz de colocar oficiais jovens acima
de experientes, sem embaraço, quando os instintos de combate dos
jovens eram mais confiáveis. Essa nova experiência de libertação
das amarras e essa nova flexibilidade interior que eu havia adquirido
me foram úteis mais tarde na prisão.
Mas, reforçando a minha nova confiança, estava claro o
entendi- mento de que eu havia encontrado a filosofia própria para
as artes militares, tais como eu as praticava. Os estoicos romanos
cunharam a fórmula Vivere Militare! –“Viver é ser um soldado!”.
Epicteto diz nas Diatribes: “Não sabes que a vida é um serviço
militar? Um deve montar guarda, outro deve sair em patrulha de
reconhecimento, outro deve ir à batalha. Não percebes a que
condição miserável levarás o exército, na medida em que ele contar
contigo, se negligenciares as tuas responsabilidades quando alguma
ordem severa recair sobre ti?” Manual de Epicteto: “Lembre que
você é um ator no drama teatral que o Dramaturgo escolher. Se Ele
o quiser breve, breve será o drama; se longo, longo; se quiser que
você cumpra o papel de mendigo, cumpra também este papel de
modo digno. E, da mesma forma, se coxo, se magistrado, se
simples cidadão. Pois isto é seu: encenar belamente o papel que lhe
é oferecido. Mas cabe a outro escolhê-lo”. “Cada um de nós, escravo
ou homem livre, veio a esse mundo com concepções inatas sobre o
que é bom e mau, nobre e vergonhoso, decente e indecente,
felicidade e infelicidade, apropriado e inapropriado”. “Se você se
considerar como um humano e como parte de um todo, será
apropriado para você que ora esteja doente, ora viaje e corra riscos,
ora passe necessidade, e que eventualmente morra antes da sua
hora. Por que, então, você se atormenta? Queria que outro estivesse
doente e com febre agora, que outro viajasse, que outro morresse?
Pois é impossível, em um corpo tal como o nosso, isto é, neste
universo que nos envolve, entre tais companheiros, que essas coisas
não aconteçam, umas a uma pessoa, outras a outra.”
Em 9 de setembro de 1965, voei a quinhentos nós direto para
uma armadilha de fogo antiaéreo, em um pequeno avião A4 – as
paredes da cabine não distavam sequer noventa centímetros uma da
outra – que eu não conseguia mais controlar depois que irrompeu em
chamas e seu sistema de controle deixou de funcionar. Depois de eu
ter me ejetado do avião, tive cerca de 30 segundos para fazer minha
última declaração em liberdade, antes de descer na rua principal de
uma pequena vila que estava bem à minha frente. Ajudem-me,
sussurrei para mim mesmo: “Cinco anos aqui, pelo menos. Estou
deixando o mundo da tecnologia e entrando no mundo de Epicteto”.
Do Manual de Epicteto, quando fui ejetado da aeronave, eu
tinha “na ponta da língua” a compreensão de que um estoico sempre
mantém arquivos separados em sua mente para (A) as coisas que
“dependem dele”, e (B) as que “não dependem dele”. Outra maneirade dizer isto é (A) as coisas que “estão sob seu controle”, e (B) as
que “não estão sob seu controle”. Outro modo ainda de dizer o
mesmo é (A) as coisas que estão no âmbito de “sua vontade, de seu
livre arbítrio”, e (B) as que estão além disso. Todas as que estão na
categoria (B) são externas, além de meu controle, condenando-me,
em última análise, ao medo e à ansiedade se cobiçá-las. Todas as
coisas da categoria (A) dependem de mim, estão sob meu controle,
estão no âmbito de minha vontade e são propriamente temas com os
quais devo me ocupar e me envolver totalmente. Elas incluem minhas
opiniões, minhas intenções, minhas aversões, minha própria aflição,
minha própria alegria, meus juízos, minha atitude em relação aos
acontecimentos, meu próprio bem e meu próprio mal.
Para explicar por que “meu próprio bem e meu próprio mal”
está na lista acima, quero fazer uma citação de Alexander
Solzhenitsyn, de seu livro Gulag. Ele escreve sobre o momento na
prisão em que percebeu a força dos seus poderes residuais, e
começou, como traduzi para mim mesmo, a “crescer moralmente”,
voando nos ventos ascendentes de uma euforia temporária à
proporção em que você entende que está conhecendo a si mesmo e
o mundo pela primeira vez. Ele chama isso de “ascender”, e intitula
o capítulo no qual trata disso de “A Ascensão”:
 
Só quando estava deitado na palha podre da prisão é que senti
dentro de mim o despertar dos primeiros sentimentos do bem.
Gradualmente me foi revelado que a linha que separa o bem do mal
não passa entre Estados, nem entre classes, nem entre partidos
políticos, mas diretamente através de cada coração humano, através
de todos os corações humanos. É por isso que relembro os meus
anos de encarceramento e digo, algumas vezes para espanto dos
que estão ao meu redor, “Bendita seja, prisão, por ter sido uma parte
de minha vida”.
 
Compreendi isso muito antes de lê-lo. Solzhenitsyn entendeu,
como eu e outros entendemos, que o bem e o mal não são simples
abstrações que você discute, sobre as quais dá aulas e atribui a
essa ou àquela pessoa. O único bem e o único mal que significam
alguma coisa estão exatamente em seu próprio coração, em sua
vontade, sob seu controle, onde depende de você. Manual de
Epicteto, 32: “Se é algo que não está sob nosso controle, é
absolutamente necessário que não seja um bem ou um mal”.
Diatribes: “O mal reside no mau uso da intenção moral, e o bem, no
contrário. O curso da vontade determina a boa e a má fortuna, e o
equilíbrio entre a infelicidade e a felicidade”. Em resumo, o que os
estoicos dizem é “Trabalhe com o que está sob seu controle e terá
muito o que fazer”.
O que não depende de você? O que está fora de
seu controle? O que não está sujeito a você, em última análise?
Para os iniciantes, vamos tomar o “seu posto na vida[iv]”. Enquanto
eu desço suavemente e silenciosamente em direção àquela
pequena aldeia, em minha curta viagem de paraquedas, estou na
iminência de aprender quão insignificante é o meu controle sobre o
meu posto na vida. Isso não depende absolutamente de mim. Neste
momento, eu estou deixando de ser o líder de mais de cem pilotos e
uns mil homens e, sabe Deus, todo tipo de status simbólico e
reputação para me tornar um objeto de desprezo. Eu serei
identificado como um “criminoso”. Mas isso não é nem metade da
revelação do que é a compreensão de sua própria fragilidade - que
você pode ser reduzido, pelo vento, pela chuva, pelo gelo, pela água
do mar ou pelos homens a uma situação de abandono e completo
desespero, incapaz de controlar até mesmo os próprios intestinos –
em questão de minutos. E, ainda mais que isso, vai se deparar com
fragilidades que você nunca pensou ter - como, por exemplo, tremer
descontroladamente enquanto é amarrado com cordas de
torniquete, com cuidado, por um profissional, com as mãos para
trás, o tronco dobrado e inclinado em direção aos tornozelos, que
foram presos a pinos conectados a uma barra de ferro, que, com o
crescimento da ansiedade, sabendo que a circulação sanguínea do
tronco superior foi interrompida, sentindo o crescimento da dor
induzida e uma experiência de claustrofobia se aproximando, pode
levar você a dar, repentinamente e impulsivamente, respostas, às
vezes respostas corretas, a questões sobre qualquer assunto que
eles sabem que você tem conhecimento. A partir de agora vou me
referir a essa experiência apenas como “tortura nas cordas”.
O posto na vida, então, pode ser mudado, em questão de
minutos, de um honrado, competente e educado indivíduo para o de
um homem tomado pelo pânico, soluçando e amaldiçoando a si
mesmo. E daí? Viver com a falsa pretensão de que você sempre
controlará seu posto na vida é caminhar para uma iminente queda;
você está pedindo para sofrer uma desilusão. Assegure-se então de
que, no fundo de seu coração, no seu eu interior, você trata seu
posto na vida com indiferença, não com desprezo, mas apenas com
indiferença.
E o mesmo vale para uma longa lista de coisas que algumas
pessoas que não refletem creem ter o controle garantido em última
instância: o próprio corpo, propriedades, riqueza, saúde, vida, morte,
prazer, sofrimento, reputação. Considere a “reputação”, por exemplo.
Faça o que quiser, a reputação é tão instável quanto o posto. São os
outros que decidem sobre qual é a sua reputação. Tente torná-la tão
boa quanto possível, mas não se prenda a ela. Não seja ávido por
ela nem a persiga através de labirintos. Como diz Epicteto: “O que
são as tragédias senão o retrato em versos trágicos dos sofrimentos
de humanos que admiraram as coisas externas?” No âmago de seu
coração, quando você conseguir a chave e abrir a velha
escrivaninha onde realmente estão guardadas as suas coisas, não
permita que a “reputação” se misture com o seu anseio moral ou
com a sua vontade — estas duas coisas são demasiado
importantes. Assegure-se de que a “reputação” esteja em uma caixa
dentro da gaveta de baixo com a etiqueta “questões indiferentes”.
Como Epicteto diz: “Quem almeja ou evita as coisas que não estão
sob seu controle não pode ser confiável nem livre, mas deverá ser
arrastado e atirado de um lado para o outro e terminar submetendo-
se aos outros”.
Sei das dificuldades de assimilar isso rapidamente. Você
continua pensando em questões práticas. Todos têm que jogar o
jogo da vida. Você não pode simplesmente andar por aí dizendo:
“Não dou a mínima para a riqueza, a saúde ou se eu for mandado
para a prisão ou não”. Epicteto levou tempo para explicar melhor o
que quis dizer. Ele disse que todos devem jogar o jogo da vida – que
os melhores o jogam com “habilidade, estilo, presteza e graça”. Mas,
como na maioria dos jogos, você joga com uma bola. Seu time
intensamente se esforça para fazer o gol. Depois do jogo, o que se
faz com a bola? Ninguém se importa. Não vale a pena se importar
com ela. A competição, o jogo, é o que interessa a todos. A bola foi
“usada” para tornar o jogo possível, mas em si mesma não tem valor
algum que justifique que se lute por ela.
Uma vez terminado o jogo, a bola é algo indiferente. Epicteto,
em outra ocasião, usa o exemplo do jogo de dados. Os dados, uma
vez exibidos seus números, se tornam também coisas indiferentes.
Mas decidir se é preciso aceitar os números ou lançar os dados
novamente é um ato voluntário e, portanto, não é algo indiferente. O
ponto de Epicteto é que o nosso uso das coisas externas não é algo
indiferente, porque nossas ações são produtos de nossa vontade, e
nós temos total controle sobre ela, mas os dados, por si mesmos,
como a bola, são coisas sobre as quais não temos controle algum.
São coisas externas que não podemos nos permitir cobiçar ou levar
a sério sob pena de colocarmos nossos corações nelas e nos
tornarmos escravos dos que as controlam.
As explicações desse conceito parecem tão modernas, muito
embora eu não tenha feito senão citações literais das reflexões de
Epicteto para seus alunos na colônia grega de Nicópolis, há dois mil
anos atrás.
Retomei esses pensamentos essenciais na prisão. Relembrei
também várias observações que modelam atitudes.Aqui está
Epicteto, ensinando a escapar dessas armadilhas: “O senhor de
alguém é quem possui o poder para conservar ou suprimir as coisas
desejadas por esse alguém. Portanto, quem ansiar ser livre não
deve desejar nem evitar coisa alguma que esteja sob o controle de
outro. Caso contrário, necessariamente será escravo” (Manual de
Epicteto, 14). E aqui está a razão pela qual nunca se deve suplicar:
“Pois é preferível ter de morrer sem aflição e sem medo que viver
inquieto na abundância” (Manual de Epicteto, 12). Suplicar implica
negociar, fazer tratos, acordos, retaliar, disputar.
Se você quiser estar livre de “medo e culpa”, que são os
estranguladores cruciais, os reais destruidores, a longo prazo, da
vontade, você tem de se livrar de todos os seus sentimentos
naturais de fazer acordo, para encontrar pessoas no meio do
caminho. Você tem de aprender a manter-se indiferente, nunca dar
margem para acordos, nunca se nivelar aos seus adversários. Você
tem de tornar-se o que Ivan Denisovich chamou de um “prisioneiro
enjaulado movendo-se lentamente.”
Tudo isso, ao longo dos três anos anteriores, eu tinha, sem
saber, guardado para o futuro. Agora, relembrando a minha ejeção do
A-4, posso ainda ouvir os gritos ao entardecer, os tiros de pistola e o
uivo das balas rasgando meu paraquedas e ver punhos se elevando
na rua abaixo enquanto meu paraquedas se prendia em uma árvore,
pondo-me, porém, são e salvo no chão. Com a liberação das duas
presilhas que me prendiam ao paraquedas, fui imediatamente
linchado por dez ou quinze brutamontes que eu já havia visto em
minha visão periférica, bloqueando a estrada à minha direita.
Não quero exagerar ou mostrar que me surpreendi com a
minha recepção. Quando o linchamento e o espancamento
acabaram, e duraram dois ou três minutos, até que um homem com
um capacete de cortiça lá chegasse para soprar o seu apito de
policial, eu estava com uma perna gravemente fraturada e tive a
certeza de que carregaria as sequelas disso por toda a vida. Meu
pressentimento acabou se revelando verdadeiro. Mais tarde senti
algum alívio – mínimo – a partir de uma advertência de Epicteto da
qual me recordei: “Claudicar é um impedimento para a perna, mas
não para a vontade. Diga isso, portanto, para cada uma das coisas
que lhe acontecem. Com efeito, você descobrirá que o impedimento
é próprio de alguma outra coisa, mas não seu” (Manual de Epicteto,
9).
Mas, durante o intervalo de tempo entre o puxar da alavanca
de ejeção do assento do avião e a minha aterrissagem na rua, tinha-
me torna- do um homem com uma missão. Não posso explicar isso
sem revelar uma pequena carga emocional que fez parte do legado
de minha geração de militares em 1965.
No rescaldo da guerra da Coreia, apenas dez anos antes,
todos nos lembrávamos de ter lido sobre e ter visto notícias
televisivas acerca de investigações do governo quanto à conduta de
alguns prisioneiros de guerra norte-americanos na Coreia do Norte e
na China. Havia uma famosa série de artigos na revista New Yorker
que mais tarde tornou-se um livro intitulado In Every War But One. A
ideia central do livro era que, nos campos de prisioneiros para
americanos, era cada um por si. Desde aqueles dias, tenho
conhecido oficiais que foram prisioneiros nessa guerra, e agora vejo
muitas dessas matérias como seleções de observação[v] e narrativas
irresponsáveis. Contudo, houve casos de jovens soldados que
foram confundidos pelas circunstâncias, amedrontados até a morte,
em clima frio, tratando-se como cães lutando por restos, atirando uns
aos outros na neve para morrer, e ninguém fazendo nada a respeito.
Isso não podia continuar, e Eisenhower nomeou uma comissão
para criar o texto do código de conduta dos combatentes norte-
americanos. O texto reflete uma forma de juramento pessoal. Artigo
4: “Se me tornar um prisioneiro de guerra, serei leal aos meus
colegas prisioneiros. Não darei informações nem tomarei parte de
ação alguma que possa comprometer meus camaradas. Se eu for o
mais antigo, ficarei no comando. Caso contrário, obedecerei às
ordens daqueles acima de mim e os protegerei a qualquer custo”.
Em outras palavras, a partir do momento em que Eisenhower
assinou o documento, os prisioneiros de guerra norte-americanos
nunca mais poderiam desobedecer a hierarquia de comando; a
guerra continua por trás das grades. Como um oficial que tem
acesso a informações privilegiadas, eu sabia de toda a situação –
que os norte-vietnamitas já mantinham cerca de vinte e cinco
prisioneiros, provavelmente em Hanói, que eu era o único
comandante aéreo que sobrevivera a uma ejeção, e que eu seria o
mais antigo entre eles, o oficial em comando, e assim continuaria a
ser, muito provavelmente, por toda essa guerra, que eu estava certo
de que iria durar no mínimo mais outros cinco anos. E aqui estava
eu começando aleijado e atirado ao chão, deitado de costas.
Epicteto mostrou-se correto. Depois de uma intervenção
cirúrgica muito precária, usei muletas durante dois meses, e a perna
deformada, curando-se por si mesma, estava forte o suficiente para
sustentar-me semas muletas depois de um ano. Tudo o que relatei
até aqui foi apenas um revés temporário em relação às coisas que
eram importantes para mim. E me era muito importante ter sido
designado para desempenhar o papel de líder em comando de uma
colônia norte-americana expatriada, que foi destinada a permanecer
autônoma e sem comunicação com Washington por anos a fio. Eu
tinha quarenta e dois anos (ainda com muletas, arrastando uma
perna, consideravelmente abaixo do peso, com cabelos chegando
aos ombros, sem um banho e com uma barba que não tinha visto
uma navalha desde que fora capturado do Oriskany) quando assumi
o comando (clandestinamente, é claro, os norte-vietnamitas nunca
reconheceriam nossa hierarquia sobre cerca de cinquenta norte-
americanos). A colônia de exilados cresceria para mais de
quatrocentos – todos oficiais graduados, pilotos ou especialistas em
eletrônica. Eu estava determinado a “bem interpretar o papel que me
fora destinado”.
A palavra-chave inicial para todos nós era “fragilidade”. Todos
nós, antes de estar à distância de um grito de outro norte-
americano, éramos, então, submetidos à tortura nas cordas. Isso
era um verdadeiro choque para as nossas mentes – e, como todo
choque, seu impacto em nossa estrutura psicológica foi muito mais
impressionante, duradouro e significativo que em nossos membros e
torsos. Era nessas sessões em que éramos levados à submissão, e
em que nos faziam deixar escapar confissões repugnantes de culpa
e colaboração norte-americana, tudo registrado em antigos
gravadores. E então éramos colocados no que eu chamava de
“banho de água fria”, por um mês ou mais, em total isolamento, para
“meditarmos sobre nossos crimes”. O que nós, na verdade,
interpretávamos era o que mesmo o norte-americano mais
acomodado via como uma traição a si mesmo e a tudo em que
acreditava. Foi nesse lugar que aprendi o que significava o “dano
estoico”. Um ombro quebrado, um osso quebrado em minhas
costas, uma perna quebrada por duas vezes eram bagatelas se
comparados a isso. Epicteto: “Não busque um dano pior do que
este: destruir o homem leal, que respeita a si próprio e que se
comporta com dignidade que há dentro de você”.
Quando colocado em cela comum, dificilmente um norte-
americano vindo dessa experiência deixava de responder algo como
o seguinte ao primeiro murmúrio do prisioneiro da cela ao lado:
“Você não quer falar comigo; sou um traidor”. E, porque estávamos
igualmente fragilizados, parecia ser de praxe que todos
respondêssemos alguma coisa assim: “Escute, amigo, não há
virgens aqui. Você deveria ter ouvido o tipo de declaração que fiz.
Deixe isso pra lá! Estamos todos juntos nisso. Qual é o seu nome?
Fale-me sobre você”. Ouvir isso era, para a maioria dos novos
prisioneiros, que acabavam de sair da primeira sessão de tortura e
do “banho de água fria”, um ponto de virada em suas vidas.
Mas o processo de aprendizagem dos novos prisioneiros
estava apenas começando. Em pouco tempo eles perceberiamque as coisas não eram exatamente como alguns lhes tinham
ensinado nos campos de treinamento de sobrevivência. Que, se
você se mostrasse inflexível, oferecendo resistência desde o
princípio, os interrogadores perderiam o interesse em você, e você
se veria apenas relegado ao tédio, como se estivesse “fora da
guerra”, “definhando em sua cela”, como os romancistas ignorantes
do assunto adoram descrever a situação. Não, a guerra ia para
trás das grades – não existia isso de os carcereiros desistirem de
você por o considerarem um caso perdido. As crenças políticas
deles faziam com que acreditassem que você poderia enxergar as
coisas do jeito deles e que isso era só questão de tempo. E então
você era levado inúmeras vezes à sala de interrogatório,
particularmente nas ocasiões em que fosse pego quebrando
alguma das inúmeras regras colocadas na parede de sua cela –
armadilhas que beneficiavam o oficial comunista se seu
interrogador conseguisse que você caísse como uma presa fácil
em seu instrumento afiado de humilhação. A moeda corrente na
mesa de jogo, quando você e o interrogador estavam frente a
frente em um duelo de sagacidade, era a vergonha. Aprendi que, a
menos que ele impusesse a vergonha sobre mim, ou a menos que
eu a impusesse sobre mim mesmo, ele nada tinha em seu favor (o
uso da força estava disponível, mas era preciso a autorização do
oficial comunista).
Para Epicteto, emoções são atos da vontade. O medo não é
algo que vem das sombras da noite e envolve você. Epicteto
imputou a você total responsabilidade de despertar, parar e controlar
o medo. Esta era uma das maiores exigências do estoicismo sobre
uma pessoa. Os estoicos podem ser vistos como totalmente
preguiçosos quando são descritos como pessoas in- diferentes a
quase tudo, exceto ao bem e ao mal, pessoas que fazem um uso
mesquinho das emoções, como pena e compaixão. Mas junte a isso
a exigência de total responsabilidade por cada uma de suas próprias
emoções, e você está falando de uma pessoa cheia do que fazer.
Eu murmurava um mantra quando era conduzido, sob a mira de
armas, para o meu interrogatório diário: “Controle o medo, controle a
culpa, controle o medo, controle a culpa”. E eu desenvolvi maneiras
de desviar meu olhar fixo de pânico para esconder o medo e a culpa
que, com certeza, se revelavam quando eu temporariamente perdia
o meu controle durante um interrogatório. Você poderia ser
espancado por não obedecer à ordem de olhar diretamente no rosto
de seu interrogador, e eu concentrava meu olhar no lóbulo de sua
orelha esquerda. O interrogador parece ter se acostumado com
esse meu olhar, provavelmente ele pensou que eu era um pouco
estrábico. Controlar as emoções é difícil, mas pode ser fortalecedor.
Epicteto: “Porque é dentro de você que tanto a sua destruição
quanto a sua salvação residem”. Epicteto: “O assento no julgamento
e uma prisão são cada qual um lugar, um alto, outro baixo, mas a
atitude de sua vontade pode manter-se a mesma, se você quiser
mantê-la a mesma, em ambos os lugares”.
Nós organizamos uma sociedade clandestina através de nossa
comunicação em código com batidas na parede – uma sociedade
com nossas próprias leis, tradições, costumes e até mesmo heróis.
Para explicar como isso se processava, como instruíamos um ao
outro a se submeter a mais tortura, a recusar obedecer a exigências
específicas, intencionalmente desmascarando o blefe dos nossos
carcereiros e literalmente forçando-os a repetir toda a amarração
das cordas para outra sessão de submissão, eu vou citar uma
declaração que poderia ter vindo de pelo menos metade daqueles
maravilhosos e competitivos jovens pilotos, com os quais me
encontrava preso: “Estamos em uma situação na qual nunca
estivemos antes. Mas nós merecemos manter o nosso respeito
próprio para termos o sentimento de que estamos reagindo. Não
podemos nos negar a fazer cada coisa humilhante que eles nos
exigem, mas depende de você, comandante, escolher as coisas que
todos nós devemos nos recusar a fazer, mesmo quando eles nos
torturarem novamente. Nós merecemos dormir à noite. Merecemos,
no mínimo, ter a satisfação de obedecer às ordens de nosso
comandante. Dê-nos a lista; pelo que devemos ser torturados?”
Sei que isso soa como uma lógica estranha, mas, em certo
sentido, foi o primeiro passo para reivindicarmos o que era
legitimamente nosso. Epicteto disse: “O juiz lhe fará algumas coisas
que são tidas como aterrorizantes; mas como ele pode impedir-lhe
de receber o castigo com o qual ele o ameaçou?” Esse é o meu tipo
de estoicismo. Você tem o direito de fazer com que o firam, e eles
não gostam de fazer isso. Quando meu companheiro de prisão Ev
Alvarez, o primeiro piloto capturado por eles, foi liberado com o
resto de nós, o oficial comunista da prisão lhe disse: “Vocês, norte-
americanos, não se pareciam em nada com os franceses. Nós
podíamos confiar que eles seriam sensatos.” Ah!
Refleti muito sobre como essas primeiras ordens deveriam
ser. Era preciso que fossem ordens que pudessem ser
obedecidas, não do tipo “proteja a si mesmo”, como uma maneira
de repetir alguma diplomacia do governo dos Estados Unidos,
como dizer seu “nome, patente, número de identificação militar e
data de nascimento”, que não tinha nenhuma função relevante na
sala de tortura. Minha atitude mental era: nós, que estamos aqui
subjugados pelas armas, somos os especialistas, senhores do
nosso destino, ignore os ecos da culpa induzida pelos decretos
governamentais vazios, jogue no lixo o manual de treinamento e
escreva o seu próprio manual. Minhas ordens saiam codificadas
como acrônimos fáceis de lembrar. A principal era “BACK US: Não
se curvar (Bow) em público; ficar fora do Ar (Air); não admitir
Crimes (Crimes); nunca dar um beijo de despedida neles (never
Kiss them goodbye). “US” poderia ser interpretado como United
States (Estados Unidos)[vi], mas realmente significava Unity over
Self (unidade acima da individualidade). Solitários, em uma prisão
de inimigos, se safam com acordos, eis porque minha primeira
regra em prol da união naquele lugar era que cada um de nós tinha
que agir a partir do denominador comum mais básico, nunca
negociar por causa própria, mas somente por todos os
prisioneiros.
A vida na prisão tornou-se uma louca mistura de um velho e
um novo regime. O velho era a rotina política da prisão,
principalmente para os dissidentes e os inimigos domésticos do
Estado. Esse regime foi concebido e posto em prática por
comunistas antiquados do Terceiro Mundo, do perfil de Ho Chi Min.
Girava em torno da ideia de “arrependimento” por seus “crimes”
causados por comportamento antissocial. Prisioneiros norte-
americanos, criminosos comuns de rua e inimigos políticos do
Estado estavam todos na mesma prisão. Nunca vimos um campo de
prisioneiros de guerra[vii] como aparecem nas exibições dos filmes. A
prisão comunista era um misto de clínica psiquiátrica e reformatório
escolar. O protocolo norte-vietnamita fora criado para fazer com que
todos os prisioneiros demonstrassem vergonha curvando-se diante
de todos os guardas, de cabeças baixas, nunca olhando para o céu,
com frequentes sessões com seu interrogador, se não por nenhuma
outra razão, para verificar sua atitude e, caso esta fosse considerada
“errada”, então, talvez, ser levado para a mesa de tortura, para a
confissão de culpa, para o pedido de perdão e para a inevitável
recompensa da expiação dos pecados.
O novo regime, imposto sobre o anterior, era somente para os
norte-americanos. Era uma fábrica de propaganda, supervisionada
por jovens oficiais burocratas do exército, fluentes em inglês, com
metas políticas a atingir, estabelecidas pelo braço político do
governo: entrevistas de imprensa com visitantes norte-americanos
de esquerda, filmes de propaganda a serem gravados (estrelando
intimidados “piratas aéreos norte-americanos”) e assim por diante.
Uma resumida história de como essa bifurcada filosofia de
prisão progrediu é que a filmagem da propaganda e das entrevistas
começou a se voltar contra os vietnamitas. Inteligentes prisioneiros
de guerra,que eram universitários norte-americanos, temperavam
suas interpretações nos filmes com frases de duplo sentido, gestos
vistos como engraçados e obscenos pelas audiências do público
ocidental e pegadinhas. Um dos meus melhores amigos, torturado
para dar nomes de pilotos que ele sabia que tinham deixado a força
aérea em oposição à guerra, disse que eram somente dois: os
tenentes Clark Kent e Ben Casey, na época personagens populares
de ficção nos Estados Unidos). Aquela piada foi manchete de
primeira página do San Diego Union, e alguém enviou uma cópia
para o governo de Hanói. Como resultado desse amigável gesto de
um cidadão norte-americano, Nels Taner foi submetido a três dias
sucessivos de tortura nas cordas, seguidos por 123 dias com as
pernas algemadas. Tudo em isolamento, é claro.
Então, depois de várias dessas peripécias, que custaram aos
vietnamitas muitos embaraços, o Vietnã do Norte resolveu fazer sua
propaganda com apenas uma pequena parte (menos de cinco por
cento) dos norte-americanos nos quais eles podiam confiar não estar
interpretando: verdadeiros solitários que, por razões diversas, nunca
se juntaram à organização dos prisioneiros, nunca desejaram entrar
em nossa rede de códigos, conhecidos como pessoas desprezíveis
a quem começamos a chamar de “traidores”. A grande maioria de
meus companheiros estava furiosa com os atos desses indivíduos e
chamaram para si a responsabilidade de memorizar dados com os
quais se poderia condená-los em uma corte marcial norte-
americana. Mas, quando retornamos aos EUA, o governo se
colocou contra as acusações que eu organizara.
A esmagadora maioria dos outros norte-americanos em
Hanói era, sob todos os aspectos, de “honrados prisioneiros”, mas
isso não é o mesmo que dizer que havia algo como um regime
homogêneo de prisão que todos nós compartilhávamos. As
pessoas gostam de pensar que, porque estávamos todos no
sistema prisional de Hanói, tínhamos experiências comuns. Não
era assim. Esses regimes divergentes se acentuaram quando a
nossa organização prisional ridicularizou a tentativa de
propaganda deste monstro de duas cabeças que eles chamavam
de “Autoridade Prisional”. Eles começaram a se vingar da liderança
de minha organização e tentavam quebrar o moral dos demais,
enganando-os com um programa de anistia, no qual eles
competiriam para ver quem era libertado mais cedo através de
submissão aos desejos do Vietnã do Norte.
Em maio de 1967, o sistema de som da prisão bradou: “Aqueles
de vocês que verdadeiramente se arrependerem estarão aptos para
voltar para casa antes do fim da guerra. Aqueles poucos inflexíveis
que insistirem em incitar os outros criminosos a se opor à autoridade
do campo serão enviados a um lugar escuro especial”.
Imediatamente proibi que qualquer norte-americano aceitasse a
libertação antecipada, mas isso não quer dizer que eu era um
cavaleiro solitário montado em um cavalo branco. Eu não precisei me
esforçar para convencer os outros prisioneiros, a ideia foi aceita com
evidente alívio e espontâneo júbilo pela esmagadora maioria.
Adivinhem quem foi para o “lugar escuro”. Eles isolaram minha
equipe de líderes – eu e meu grupo de dez homens de elite – e nos
enviaram para o exílio. Os vietnamitas tinham trabalhado duro para
entender nossos hábitos, e sabiam quais entre nós eram os
causadores de problemas e quais eram os que “não criavam caso”.
Eles isolaram aqueles em quem eu mais confiava: todos tinham uma
longa experiência de passagens pela solitária e pela tortura nas
cordas. Nem todos eram veteranos: tivemos veteranos na prisão que
sequer se comunicavam com seu vizinho de cela. Um de meus dez
homens tinha apenas vinte e quatro anos – nasceu depois de eu já
estar na marinha. Ele era um dos resultados da minha maneira de
recepcioná-los quando eles entravam no sistema prisional: “Quando
as atitudes e a patente estão fora de sintonia, escolha o cara com as
atitudes”. Todos nós ficamos em solitária durante o período de
encarceramento, começando com dois anos com as pernas
algemadas em uma pequena prisão de alta segurança que ficava
bem ao lado do “Pentágono” do Vietnã do Norte – seu Ministério da
Defesa, uma típica construção francesa antiga. Existem histórias e
mais histórias depois disso, mas o que aconteceu em meu caso foi
uma longa luta de vingança entre a “Autoridade da Prisão” e aqueles
que se negavam a deixar de ser os protetores dos seus irmãos. As
consequências atingiram o patamar do colapso nervoso. Um, dos
onze que éramos, morreu naquela pequena prisão que chamávamos
Alcatraz, mas, mesmo incluindo ele, não havia um homem sequer
com menos de três anos e meio de solitária, e quatro de nós
tínhamos mais de quatro anos. Para dar a você uma ideia
proporcional do tempo em que cada um dos quatrocentos prisioneiros
ficou em solitária, cem deles nunca ficaram, mais da metade dos
outros trezentos ficaram menos de um ano, e metade daqueles que
ficaram menos de um ano pegaram menos de um mês. Assim, a
média para os quatrocentos era consideravelmente me- nos de seis
meses.
Howie Rutledge, um dos quatro de nós com mais de quatro
anos, retornou aos estudos e conquistou um mestrado depois de
voltarmos para casa, e sua dissertação se concentrava sobre a
questão de se, a longo prazo, a erosão da razão humana pode ser
mais eficientemente atingida pela tortura ou pelo isolamento social.
Ele enviou questionários a todos nós que tínhamos sido torturados
por, pelo menos, dez vezes, e a outros que haviam passado por
extremos maus tratos na prisão. E descobriu que os que tinham
menos de dois anos de isolamento e foram muito torturados diziam
que a tortura foi decisiva. Mas os que tinham mais de dois anos de
isolamento e foram muito torturados diziam que, para uma mudança
de comportamento a longo prazo, o isolamento era o caminho a
percorrer. No meu ponto de vista, você pode se acostumar a ser
torturado repetidamente – existem alguns truques para minimizar
suas perdas nesse jogo. Mas, mantenha um ser humano, mesmo
um ser humano muito obstinado, em isolamento por três anos ou
mais, e ele começará a procurar por um amigo - qualquer amigo,
independente de nacionalidade ou ideologia.
Epicteto, uma vez, dirigiu uma fala aos professores de sua
escola, queixando-se da tendência habitual dos novos professores
de suavizar a dura realidade dos desafios do estoicismo para
apresentar uma imagem otimista e promissora de como eles
poderiam cumprir, sem sofrimento, as duras exigências da boa vida.
Epicteto disse: “Homens, a sala de aula do filósofo é um hospital: os
estudantes devem sair dela não com prazer, mas sofrendo”. Se a
sala de aula de Epicteto era um hospital, minha prisão era um
laboratório – um laboratório comportamental humano. Escolhi testar
os fundamentos do ensino de Epicteto em face das exigências dos
desafios da vida real em meu laboratório. E, como vocês podem ver,
penso que Epicteto foi aprovado com louvor.
É difícil falar em público sobre os desafios da vida real naquele
laboratório, porque as pessoas fazem todas as perguntas erradas:
“Como era a comida?” Essa é sempre a primeira pergunta e, em um
lugar como o que eu estive, é de tão pouca importância que você
quer chorar. “Eles feriram você fisicamente?” “Que tipo de
instrumento eles usaram para feri-lo?” Sempre o instrumento, ou o
soro da verdade, ou o tratamento de choques elétricos – tudo aquilo
que frustraria totalmente a intenção de uma pessoa que seriamente
tenta quebrar a sua determinação. Todas essas coisas dariam a
você um sentimento de superioridade moral, que é a última coisa
que um interrogador deseja. Não estou falando de lavagem cerebral,
não existe tal coisa. Estou falando que, tendo olhado sobre a borda
e visto o fundo do poço, entendi a verdade daquele elemento central
do pensamento estoico: o que derruba um homem não é a dor, mas
a vergonha!
Por que aqueles homens, no “banho de água fria”, após a sua
primeira experiência de tortura, sentiam-se tão inferiores e indignos
quando o primeiro norte-americano entrava em contato com eles?
Epicteto conheceu bema natureza humana. Naquele laboratório
prisional, eu não sei de um único caso em que alguém tenha sido
capaz de se desvencilhar de seus tormentos de consciência com
alguma psicologia popular de divã de causa e efeito. Epicteto
enfatiza inúmeras vezes que uma pessoa que coloca a causa de
suas ações em outras pessoas ou em forças externas não está
sendo honesta consigo mesma. Deve-se conviver com os próprios
juízos se se deseja ser honesto consigo mesmo (e o “banho de água
fria” tende a tornar você honesto). “Mas se alguém me submete ao
medo da morte, ele me obriga a fazer algo,” diz um estudante. “Não”,
diz Epicteto, “não é a morte, nem o exílio, nem o sofrimento, nem
coisa alguma a causa de fazer ou não algo, mas apenas a sua
opinião e as decisões de sua vontade”. “O que se colhe seguindo
seus ensinamentos?”, alguém perguntou a Epicteto. “Tranquilidade,
determinação e liberdade”, ele respondeu. Você só pode ter essas
coisas se for honesto e assumir a responsabilidade por suas
próprias ações. Você tem de compreender isso claramente! Você
está no comando de si mesmo. Eu pregava essas coisas na prisão?
Decerto que não. Você logo aprendia que, se o sujeito da cela
estava bem, isso significava que ele tinha pensamentos filosóficos
alinhados ao seu modo de ser. Logo você entendia que, quando se
ousava lançar elevadas sugestões filosóficas através do muro,
sempre se obtinha respostas muito relutantes.
Não. Nunca usei o código de bater na parede para comunicar o
estoicismo, ou sequer falei sobre ele uma única vez. Mas alguns
prisioneiros com percepção afiada leram os sinais em minhas
ações. Depois de um de meus isolamentos mais longos fora do
bloco de celas da prisão, fui colocado em um lugar que me permitia
comunicar-me com outro prisioneiro através da linguagem de sinais,
e meu ponto de contato foi um homem chamado Dave Hatcher.
Como era o procedimento padrão em um primeiro contato após um
longo período de isolamento, não começamos a conversa com uma
troca intensa de informação, mas, primeiro, definimos um perigoso
código de sinais. Em segundo lugar, inventamos uma história para
cada um de nós caso fôssemos pegos e, por fim, estabelecemos um
sistema de comunicação alternativa, caso o sistema de códigos
fosse comprometido – precauções de um “prisioneiro enjaulado que
age com cuidado e estratégia”. O sistema alternativo de
comunicação de Hatcher comigo era uma mensagem deixada em
uma pia velha perto de um lugar que chamávamos de “A Casa da
Moeda”; a ala do bloco de celas de isolamento onde Hatcher ficava,
chamávamos de “Las Vegas”- um lugar para o qual ele achava, com
razão, que eu iria em breve. Todos os dias nos comunicávamos por
sinais, por quinze minutos, sobre um muro entre o seu bloco de
celas e a minha “terra de ninguém”.
Então voltei a me encrencar. Naquele momento, o oficial
comunista da prisão já tinha me isolado e me colocado sob
vigilância praticamente constante durante todo o ano por eu ter
organizado um motim em “Alcatraz” para que nos tirassem das
algemas nas pernas. Fui isolado de todos os blocos de celas da
prisão. Eu tinha carcereiros particulares, e eles me pegaram com
uma mensagem em um pedaço de papel, pronta para ser enviada,
que deu pistas para eles que eu conhecia o procedimento padrão
dos interrogadores durante a tortura. O resultado poderia ser
implicar meus amigos em “atividades obscuras” (como os norte-
vietnamitas as chamavam). Passei pelas torturas nas cordas mais
de doze vezes e sabia que podia guardar segredo – desde que
eles não soubessem que eu sabia disso. Mas aquela mensagem
encontrada em um pedaço de papel poderia levar mais pessoas a
morrerem naquele lugar. Tínhamos perdido alguns prisioneiros em
violentas sessões de punição – penso que em torturas que se
excederam – e eu estava ficando farto disso. Era outono de 1969,
eu já havia representado o papel de ator por quatro anos e nada
parecia me aguardar senão a morte. Eu estava só, na sala principal
de tortura, em uma parte isolada da prisão, na noite anterior ao dia
em que eles me disseram que eu iria confessar tudo. Havia um
clima misterioso na prisão. Ho Chi Minh tinha acabado de morrer, e
podia-se ouvir um triste canto fúnebre em sua homenagem. Eu
deveria ficar a noite toda sentado sobre grilhões de ferro. Minha
cadeira estava perto da única janela com vidros da prisão. Consegui
me mover lentamente, balançando minha cadeira de um lado para o
outro e quebrar a janela, sem que fosse visto. Então, cortei as
artérias de meu pulso com grandes estilhaços de vidro. Logo perdi
os sentidos, mas um guarda, que fazia patrulhamento, encontrou-
me desmaiado sobre uma piscina de sangue, porém ainda
respirando. Os vietnamitas soaram o alarme, chamaram o médico
deles e me salvaram.
Por quê? Só encontrei essa resposta depois de vários anos
após ter sido libertado, quando compreendi que, naquela mesma
semana, Sybil tinha estado em Paris exigindo tratamento humano
para os prisioneiros. Ela era notícia no mundo todo, uma figura
pública, e a última coisa que os norte-vietnamitas precisavam era
que eu morresse. Havia um grande grupo de oficiais norte-
vietnamitas importantes na sala enquanto o médico me trazia de
volta à vida.
A tortura na prisão, nos moldes que conhecemos e sofremos
em Hanói, terminou para todos naquela noite.
É claro que levou meses para que tivéssemos a certeza de
que a tortura realmente havia acabado. Tudo o que eu sabia naquela
ocasião era que, naquela manhã, depois de meus braços serem
cobertos e enfaixados, o oficial comunista em pessoa trouxe uma
ótima xícara de chá doce quente, disse ao guarda prisional para tirar
as algemas de minhas pernas e me pediu que sentasse à mesa com
ele. “Por que você fez isso, Sto-Dale? Você sabe que eu respondo
ao comando geral do exército. Eles me pediram um relatório
completo esta manhã”. (Não era algo incomum falarmos assim
naquele momento). Mas ele jamais mencionou a mensagem escrita
em um pedaço de papel que eles haviam descoberto, nem
ninguém mais depois disso. Isso não tinha precedentes. Depois de
dois meses isolado em uma minúscula cela que chamávamos
“Calcutá” para que meus braços sarassem, eles me vendaram e me
levaram direto para o bloco de celas “Las Vegas”. O isolamento e a
vigilância particular tinham terminado. Fui colocado só, claro, na
“Casa da Moeda”.
Dave Hatcher sabia que eu estava de volta porque fui
conduzido sob sua janela e, embora ele não pudesse espiar, podia
ouvir, e através dos anos tinha habituado os seus ouvidos a
reconhecer o meu jeito peculiar de caminhar, o meu modo manco de
andar. Logo o fio enferrujado sobre a pia do banheiro estava
dobrado para o norte – o sinal de Dave Hatcher para “uma
mensagem no fundo da garrafa debaixo da pia para Stockdale.”
Como um velho piloto de guerra, olhei para trás para checar se
havia alguém às minhas costas, observei rapidamente a
mensagem e cuidadosamente a escondi em minhas calças do
pijama prisional. De volta para a cela, depois que o guarda fechou a
porta, sentei sobre o vaso sanitário (onde eu poderia
disfarçadamente lançar a mensagem se o orifício de observação da
porta da cela se movesse) e desdobrei o papel toalha de baixa
qualidade no qual Hatcher, com excrementos de rato, escreveu, sem
comentário ou assinatura, a última estrofe do poema de Ernest
Henley, Invictus:
 
Não importa quão estreita seja a passagem,
Quão carregada de punição a sentença.
Eu sou o mestre do meu destino:
Eu sou o comandante da minha alma.[viii]
 
* * *
 
 
 
 
 
Apêndice 1: EPICTETO E STOCKDALE: ESTRATÉGIAS PARA
COMBATER O ASSÉDIO MORAL
 
 
Aldo Dinucci (Doutor em Filosofia, Professor do DFL/UFS)
 
 
O presente texto se baseia em uma palestra que fiz para alunos do
ensino médio em Tobias Barreto, cidade do interior de Sergipe, em
outubro de 2017. Minha ideia era falar para os jovens sobre
estratégias para combater o assédio moral e a manipulação, usando
como ferramentas o pensamento de Epicteto e James Bond
Stockdale.
 
De Epicteto, vamos usar as duas principais premissas de seu
pensa- mento. Para estefilósofo, as coisas do mundo dividem-se
em dois grupos: ‘sob nosso controle’ e ‘não sob nosso controle’. As
primeiras dependem de nós. As segundas não. As primeiras são
boas ou más. As segundas não. Entre as primeiras, estão nossas
operações mentais, como julgar, pensar, analisar, decidir. As
segundas são tudo o mais que acontece no mundo e que não
depende de nossos juízos, pensamentos, análises e decisões:
nosso parentesco, a época e o lugar em que nascemos, assim como
nossos corpos e nossa classe social.
 
Agora vem a questão, e com ela a segunda premissa: em que
sentido as coisas que não estão sob nosso controle e que não
dependem de nós não são nem boas nem más? No sentido em que
elas são os materiais para a ação e que podem ser bem ou mal
usadas. Cabe a nós nos posicionar diante dos acontecimentos.
Como agir é algo que nos concerne, isso é algo inteiramente sob
nossa responsabilidade.
 
Embora não sejam nem boas nem más, as coisas que não
dependem de nós não se equivalem quanto à dificuldade de lidar
com elas. Há coisas fáceis e há coisas difíceis de lidar. Por
exemplo: estar no domingo à tarde em uma praia ensolarada
tomando banho de sol não envolve muita dificuldade. Mas viver
em um ambiente hostil no qual as pessoas a todo o momento
tentam nos agredir física e moralmente é muito mais difícil. A partir
disso, podemos entender o estoicismo de Epicteto como uma
doutrina que nos prepara para agir diante de situações difíceis de
modo a manter nossa sanidade mental e nossa integridade moral.
 
Stockdale, em seus sete anos e meio como prisioneiro de guerra no
Vietnã, aplicou a doutrina de Epicteto em um ambiente de
hostilidade no qual se buscava isolar os prisioneiros e manter seu
moral baixo.
 
O assédio moral, segundo o site http://www.assediomoral.org/, pode
ser definido como “a exposição [...] a situações humilhantes e
constrangedoras, repetitivas e prolongadas [...] desestabilizando a
relação da vítima com o ambiente”. Retirei da citação as referências
ao trabalho, pois tais situações de assédio ocorrem também no lar,
na escola, em todo tipo de associação humana. As situações
humilhantes podem ser diversas, como piadinhas, tratamento
desrespeitoso, imposição de tarefas incompatíveis, exclusão de
atividades sociais, propagação de boatos que firam a reputação. A
finalidade de humilhar alguém é destruir-lhe a autoestima e excluí-lo
do meio social, é matá-lo socialmente.
 
A seguir, destacaremos três estratégias para lutar contra o assédio
moral e não permitir que os assediadores alcancem seu objetivo,
libertando-nos do jugo deles e preservando nossa integridade moral.
Descartamos por princípio a alternativa violenta, que pode ser o
primeiro impulso de alguém submetido a assédio, por ser indevida
social e legalmente.
 
O alvo de assédio se vê em uma situação extremamente dolorosa,
pois é atingido, enquanto ser humano, em sua dimensão social.
Todos sabem que o humano sem o convívio adequado com outros
http://www.assediomoral.org/
humanos se encontra em situação precária e perigosa, dada a
necessidade do ser humano de estabelecer laços de afeto
saudáveis e recíprocos com outros seres humanos.
 
No cerne das estratégias indicadas a seguir está a ideia de que
temos que tentar, em meio a situações difíceis, desfavoráveis e
dolorosas, recusar o papel de vítima. Em outras palavras, se somos
alvo de assédio, temos que, agindo ao mesmo tempo com firmeza e
de forma moralmente correta, sair da passividade e do isolamento
aos quais os assediadores buscam nos lançar. Para isso ocorrer, é
fundamental:
 
1. Buscar união e apoio: se os assediadores querem eliminar
social- mente o assediado, então cabe ao assediado buscar união,
buscar pessoas que o apoiem. Primeiro, no próprio ambiente de
assédio, o que é o mais difícil, pois, em geral, os assediadores
constrangem os demais a darem as costas ao assediado. Segundo,
buscar apoio familiar, amigos fora do ambiente hostil, apoio
institucional (através de ouvidorias), apoio legal, apoio espiritual
(caso a pessoa for religiosa).
 
2. Não fazer acordos: essa lição de Stockdale é difícil de
aprender e de aplicar, mas é essencial para combater o assédio,
tanto enquanto alvos quanto enquanto potencialmente cúmplices de
situações de assédio. Como dissemos, nós, seres humanos, somos
por natureza sociais, e por isso estimamos muito ser admitidos e
fazer parte de grupos. Porém, muitas vezes, o preço do ingresso ao
grupo é se comprometer com algum valor desumanizante, alguma
opinião racista, classista, sexista etc. Muitas vezes concordamos
com coisas tais, ou nos silenciamos diante da expressão de tais
opiniões, porque não queremos criar atritos com as pessoas que
compõem esse grupo. Mas aqui vale lembrar: as piadinhas e
gracejos racistas, sexistas, classistas, por exemplo, têm
consequências reais e nada engraça- das: pessoas são destratadas,
excluídas e mesmo mortas em razão delas, pois essas piadas e
opiniões, em última análise, sugerem que seus alvos não merecem
respeito e devem ser eliminados do convívio social. Então cabe ao
humano íntegro não compactuar com tais valores através do
silêncio. Por mais duro que seja, é preciso discordar frontalmente,
se retirar após o fato, é preciso demonstrar não estar de acordo com
as opiniões expressas.
 
3. Fazer a coisa certa: não basta não compactuar com valores
desumanizantes, mas é preciso também, como estratégia final para
eliminar o assédio, promover valores humanizantes, como a defesa
do meio-ambiente, os direitos humanos, a ideia de que há apenas
uma humanidade, bem como dar o exemplo na vida diária. No
nosso país, imperam os maus exemplos: pessoas dirigem pelas
ruas como lunáticos; outras, furam filas; outras, são incapazes de
nos cumprimentar, embora nos conheçam; há infinitos maus
exemplos à nossa disposição. Que sejamos, então, exemplos do
contrário.
 
 
 
Apêndice 2: SOBRE MANUAIS E EXERCÍCIOS
 
 
Marcos Balieiro (Doutor em Filosofia, Professor do DFL/UFS)
 
Em Coragem sob Fogo, discurso proferido no Great Hall do King’s
College em 1993, James Bond Stockdale faz a seguinte afirmação
acerca da atitude mental que havia adotado durante seu período
como prisioneiro de guerra:
 
[...] nós, que estamos aqui subjugados pelas armas, somos os
especialistas, senhores do nosso destino, ignore os ecos da culpa
induzida dos decretos governamentais vazios, jogue no lixo o
manual de treinamento e escreva o seu próprio manual.
 
A consideração de que se deveria escrever seu próprio manual
parece curiosa, especialmente quando nos lembramos de que ele
havia memorizado o Manual de Epicteto, à maneira como pilotos
memorizam manuais de instruções de seus caças. O discurso de
Stockdale, como se sabe, tem o subtítulo “Testando as Doutrinas
de Epicteto em um Laboratório Comportamental Humano”, de
modo que seria de se esperar que o ora- dor empreendesse algo
como a defesa de um conjunto de preceitos que constassem do
livro em que um aluno do antigo estoico sistematizou seus
preceitos, para que pudessem ser levados à mão.
 
Por outro lado, Stockdale testou seu estoicismo em uma situação
bastante desoladora, na qual não bastava estar a par deste ou
daquele conceito. Decorar um texto certamente não o teria
preparado para enfrentar os horrores que ele descreve em seu
discurso. Não à toa, ele faz questão de lembrar que Epicteto
considerava que seu aluno ideal deveria ser capaz de “falar sobre
coisas que o farão forte se seu filho morrer, se seu irmão morrer,
ou se ele mesmo tiver de morrer ou ser torturado”. O estoicismo,
segundo essa concepção, não seria um conjunto de doutrinas que
permiti- riam vencer uma discussão de intelectuais empedernidos,
mas consistiria, antes de qualquer outra coisa, em um conjunto de
preceitos que teriam por objetivo a orientação da conduta por meio
de práticas que permitiram temperar o caráter.
 
Não por acaso, Stockdale faz questão de lembrar que os poucos
que aderiram à busca estoica por disciplina foram, em seu tempo,
“os melhores”, os dotados de maior fibra moral. Isso só teria sido
possível porque,no esforço de atingirem um estado de indiferença
a tudo, exceto ao bem e ao mal, seria necessária uma atitude de
“total responsabilidade por cada uma de suas próprias emoções”.
Esse é um aspecto importante porque nos permite refletir sobre o
lugar que manuais podem vir a ter no que diz respeito ao
estoicismo. Epicteto, por exemplo, não escreveu seu próprio
manual. Os preceitos que encontramos no Encheirídion são uma
espécie de síntese das aulas transcritas por um discípulo, Arriano.
Desse modo, podemos inferir que Epicteto estaria, a exemplo de
Sócrates, mais preocupado em ensinar uma filosofia que fosse
diretamente informada pela vida prática, ainda que não se
opusesse à ideia de que seus preceitos circulassem por meio de
transcrições.
 
Isso é algo que fica evidente quando prestamos atenção ao fato de
várias passagens do manual de Epicteto consistirem em 
exercícios, os quais dizem respeito a considerações que é preciso
ter sempre diante de si. Exemplos incluem passagens como “Que
estejam diante dos teus olhos, a cada dia, a morte, o exílio e todas
as coisas que se afiguram terríveis, sobretudo a morte. Assim,
jamais ponderarás coisas abjetas, nem aspirarás a coisa alguma
excessivamente” (EPICTETO, 2012, p. 22), ou “Quanto a cada
uma das coisas que sucedem contigo, lembra, voltando a atenção
para ti mesmo, de buscar alguma capacidade que sirva para cada
uma delas” (EPICTETO, 2012, p. 18). Não pretendemos, aqui,
analisar o conteúdo mesmo dessas doutrinas, mas deixar claro que
o filósofo busca oferecer preceitos que ganharão sentido,
principalmente, quando forem remetidos à prática daquele que
pretender levá-los a sério.
 
Outro manual de teor bastante peculiar é aquele que Marco Aurélio
escreveu para si mesmo. Ainda que essa obra circule, atualmente,
com o título mais pomposo de Meditações (que o leitor não espere
grandes semelhanças com certa obra moderna de caráter quase
que exclusivamente especulativo), o nome original do texto poderia
ser mais propriamente traduzido por algo como “notas para uso
próprio”. O início do texto deixa bastante claro, por seu tom
inequivocamente pessoal, que não se trata de mera retórica ou de
estratégia de marketing:
 
De meu avô, Vero, aprendi a apreciar as boas maneiras, e a refrear
toda ira. Da fama e do caráter obtidos por meu pai, aprendi a
modéstia e o comportamento viril. De minha mãe, aprendi a ser
religioso e liberal, e a me precaver não apenas contra a prática de
qualquer mal, mas também contra quaisquer más intenções que
adentrassem meus pensamentos, e a me contentar com uma dieta
frugal muito diferente da moleza e do luxo tão comuns entre os
ricos. [...] (MARCO AURÉLIO, 1997, p. 25)
 
Percebe-se, de saída, que Marco Aurélio considera suas
“meditações” como um conjunto de preceitos que foram
desenvolvidos não apenas a partir da reflexão filosófica fria, de
gabinete, mas por meio de uma experiência do mundo. Isso não
porque se trata de sermos moldados pela experiência (certamente
não é o caso), mas porque é em face delas que o caráter deverá
ser temperado; a prática nos confronta com aquilo a que devemos
aprender a resistir. Em boa parte do texto, o imperador trata de
registrar observações que, ao olhar desavisado, pareceriam
apenas bons conselhos, mas se revelam, em última análise,
exercícios que têm por propósito preparar a alma para que ela se
torne capaz de lidar com adversidades de todos os tipos. Um bom
exemplo é o seguinte:
 
Diga a si próprio a cada manhã: hoje pode ser que eu tenha que
lidar com um intrometido, com um ingrato, um insolente, um
ardiloso, um invejoso ou um egoísta. Essas más qualidades se
apoderaram deles por conta de sua ignorância de quais coisas são
verdadeiramente boas ou más. Porém, eu compreendi inteiramente
a natureza do bem, como sendo apenas o que é belo e honroso, e
a do mal, que é sempre deformado e vergonhoso. (MARCO
AURÉLIO, 1997, p. 33)
 
Logo em seguida, o filósofo considera que não pode ser ferido
pelos tipos maldosos que mencionara, porque não permitirá que o
envolvam em nada que seja desonroso ou deformado. Ainda,
como bom adepto do cosmopolitismo estoico, tratará de não se
enfurecer contra seus semelhantes, que, por piores que sejam,
foram formados pela natureza de maneira tal que os seres
humanos todos se apoiem mutuamente. De qualquer modo,
novamente o que nos interessa, aqui, não é uma análise detalhada
desta ou daquela tese: desejamos chamar a atenção para o fato de
que Marco Aurélio apresenta esses preceitos como algo que é
preciso ter sempre em mente, que se deve repetir a cada manhã,
de modo a evitar que caracteres alheios possam nos afetar
negativamente.
 
A ideia de que a filosofia deva compreender uma série de
exercícios práticos encontrou eco, também, em recepções
modernas do estoicismo. Anthony Ashley Cooper, Terceiro Conde
de Shaftesbury, nos oferece um bom exemplo em seus Askhmata.
Chamam a atenção, nesse sentido, referências a estoicos antigos,
como a menção óbvia a Marco Aurélio em passagens como
“Lembra-te sempre: ‘Não te deixes perturbar, não cedas’, ‘Não te
percas na conversação’” (SHAFTESBURY, 2016, p. 25), ou as
referências a Arriano e a Epicteto no trecho “Tu, de tua parte,
lembra-te disto: ‘regozijar-se é racional porque temos razão para
nos regozijarmos juntos’... Não tenhas condolência e complacência
senão ‘quando vires alguém chorando’” (SHAFTESBURY, 2016, p.
175).
 
Mais uma vez, vemos um pensador que orienta mesmo suas
pretensões teóricas pela necessidade de fazer com que estejam
sempre diante de si os preceitos que, ainda que surjam da
reflexão, nunca deixam de remeter à vida. De fato, é impossível
esquecer, ao longo da leitura dos Askhmata, que se trata de
preceitos que exigem prática reiterada. Isso é particularmente
evidente em passagens como “Lembra-te [...] como, num mesmo
instante, uma mudança de postura é seguida por absoluta
mudança de espírito” (SHAFTESBURY, 2016, p. 25-6) ou “[...]
abandona aquele outro jeito, aberto, franco, indecente, profuso.
Mas então deves também abandonar os objetos, os desígnios, fins
etc. Correspondentes e tornar-te um novo homem”
(SHAFTESBURY, 2016, p. 26). Trata-se, aqui, de modificar, por
meio de exercício constante, a própria maneira como o filósofo se
porta no mundo.
 
Vivemos em um tempo em que a filosofia se profissionalizou como
atividade de professores sisudos. Com isso, é comum que seja
vista como um conjunto de reflexões demasiadamente abstratas e
distantes da vida comum. Pensadores como Epicteto, Marco
Aurélio e Shaftesbury nos lembram de que, ao menos em certas
concepções, a atividade filosófica sempre esteve relacionada a um
problema bastante concreto, a saber, o de encontrar preceitos que
conduzam a uma vida boa e feliz. Seria possível objetar, é
verdade, que há algo de inconsistente em defender que esse tipo
de filosofia depende de uma reflexão atenta e constante sobre a
prática comum e, ao mesmo tempo, lembrar manuais que foram
resultado de outras reflexões, sobre práticas de momentos
excessivamente distantes. Essa objeção, porém, perde de vista o
ponto principal: mais do que recuperar preceitos deste ou daquele
autor, o que tentamos mostrar, aqui, foi que, ao fim e ao cabo,
talvez a filosofia dependa, mais do que de qualquer outra coisa, de
uma atitude. Isso é algo que as obras mencionadas aqui
certamente ilustram de maneira bastante adequada.
 
REFERÊNCIAS
EPICTETO. O Manual de Epicteto. Tradução de Aldo Dinucci e
Alfredo Julien. São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe,
2012.
MARCO AURÉLIO. Meditations. Translated by Francis Hutcheson
and James Moor. Indianapolis: Liberty Fund, 2008.
SHAFTESBURY. Exercícios (Askhmata). Tradução de Pedro Paulo
Pi- menta. São Paulo: UNESP, 2016.
 
 
 
Apêndice 3: O ESTOICISMO É MAIS DO QUE UM
MANUAL
 
 
Marcus de Aquino Resende (Doutorando em filosofia
PPGF/UFS)
 
A história do piloto de caças da Marinha Americana, James Bond
Stockdale, registrada originalmente por ele mesmo em seu livro
Courage Under Fire: Testing Epictetus’s Doctrines in a Laboratory
of Human Behavior,

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