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Aldo Dinucci Organizador Testando as Doutrinas de Epicteto Em um Laboratório Comportamental Humano JAMES BOND STOCKDALE Tradução e Notas: Aldo Dinucci; Joelson Nascimento; Marcus de Aquino Resende 2ª Edição INFOGRAPHICS Aracaju 2021 Título Original: Courage under fire: testing Epictetus’s doctrines in a labo- ratory of human behavior Autor: James Bond Stockdale Tradução e Notas: Aldo Dinucci; Joelson Nascimento; Marcus Resende Coragem sob Fogo: testando as doutrinas de Epicteto em um laboratório comportamental humano I James Bond Stockdale. p.40. –– (Hoover essays no. 6) 1. Conflito Vietnamita, 1961–1975––Prisioneiros e prisões 2. Conflito Vietnamita, 1961–1975––Narrativas pessoais, EUA. 3. Stockdale, James B. 4. Epicteto. 5. Prisioneiros de Guerra––Biografia. O Instituto Hoover para a Guerra, Revolução e Paz, fundado em 1919 na Universidade de Stanford pelo presidente norte-americano Herbert Hoover, é um centro interdisciplinar para estudos avançados sobre questões domésticas e internacionais. Hoover Essays No. 6 Copyright © 1993 by the Board of Trustees of the Leland Stanford Junior University All rights reserved. No part of this publication may be reproduced, stored in a retrieval system, or transmitted in any form or by any means, electronic, mechanical, photocopying, recording, or otherwise, without written permission of the publisher. First printing, 1993 Ensaios Hoover No. 6 Copyright © 1993 Board of Trustees of the Leland Stanford Junior University Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou armazenada ou transmitida sob qualquer forma por qualquer meio, seja eletrônico, mecânico, fotocópia, gravação ou outro, sem permissão por escrito do editor. Primeira edição: 1993. Primeira edição no Brasil: 2009. Segunda edição: 2021. EdiUFS - Editorial Prometeus - COMITÊ CIENTÍFICO: Dr. Aldo Dinucci, Brasil; Dr. Marcos Silva; Dr. Evaldo Becker; Dr. Marcos Balieiro; Dr. Arthur Eduardo Grupillo Chagas; Dr. Christian Lindberg L. Nascimento Copyright 2021 by Aldo Dinucci org. Editoração/Capa Infographics/Joelma Silva Tradução e Notas Aldo Dinucci Joelson Nascimento Marcus de Aquino Resende Revisão Aldo Dinucci Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, por qualquer meio, processo ou finalidade comercial, constitui violação dos direitos autorais (Lei 9.610/98). Dinucci, Aldo. (Org.) D587c Coragem sob fogo. Testando as Doutrinas de Epicteto em um Laboratório Comportamental Humano. /Aldo Dinucci. (Org.). -2. ed. Aracaju: Infographics, 2021. 76p. ISBN: 978-65-5730-039-8 (Obra traduzida – James Bond Stockdale. Tradução e Notas: Aldo Dinucci; Joelson Nascimento; Marcus de Aquino Resende) 1. Conflito- Vietnã 2. Prisioneiros-Guerra 3. Reflexões Epictetianas 4.Prisioneiros de Guerra- Biografia I - Título CDU: 94: 929 Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária: Jane Guimarães Vasconcelos Santos CRB-5/975 SUMÁRIO Sumário Testando as Doutrinas de Epicteto SUMÁRIO INVICTUS PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA: De Volta ao Mundo de Epicteto CORAGEM SOB FOGO Testando as Doutrinas de Epicteto em um Laboratório Comportamental Humano - por James B. Stockdale Apêndice 1: EPICTETO E STOCKDALE: ESTRATÉGIAS PARA COMBATER O ASSÉDIO MORAL Apêndice 2: SOBRE MANUAIS E EXERCÍCIOS Apêndice 3: O ESTOICISMO É MAIS DO QUE UM MANUAL Apêndice 4: REFLEXÕES EPICTETIANAS A PARTIR DAS AÇÕES DE UM PILOTO DE CAÇA Apêndice 5: FORTALEZA E RESISTÊNCIA NO ESTOICISMO Apêndice 6: O MANUAL DE EPICTETO (na tradução de Aldo Dinucci) INVICTUS Fora da noite que me cobre Negra como um abismo de polo a polo Agradeço a quaisquer deuses que houver Por minha alma invencível. No feroz aperto das circunstâncias Não tremi nem lamentei em voz alta. Sob os golpes de clava da fortuna Minha cabeça está ensanguentada, mas não curvada. Para além deste lugar de cólera e lágrimas Nada se insinua senão o Horror da sombra, E, apesar da ameaça dos anos, Encontra-me e haverá de encontrar-me destemido. Não importa quão estreita seja a passagem, Quão carregada de punição a sentença. Eu sou o mestre do meu destino: Eu sou o comandante da minha alma. WILLIAM E. HENLEY (Trad. Aldo Dinucci) PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA: De Volta ao Mundo de Epicteto Por Aldo Dinucci O almirante norte-americano James Bond Stockdale conheceu a obra de Epicteto ao estudar filosofia em Stanford. Como piloto de caças, simplesmente decorou o Manual de Epicteto, como é costume dos pilotos, que decoram manuais de instruções sobre os jatos que pilotam. Tempos depois, na guerra do Vietnã, seu caça foi abatido. Durante sua queda, Stockdale abandonava um mundo no qual ele era, nos EUA, um respeitado piloto e oficial de patente, um mundo no qual tinha casa, mulher e filhos, para adentrar em mundo no qual era um pária, um prisioneiro de guerra em Hanói, vivendo miseravelmente por cerca de sete anos e meio. Além disso, teve uma fratura em um dos joelhos que não foi tratada, o que fez com que ficasse manco. Stockdale percebeu, na própria carne, que essas coisas que temos em alta conta, nosso status, nossa carreira, nossa saúde, nossa família, nossa vida, são partes de um cenário, cuja estabilidade é apenas aparente. A verdade básica que os estoicos tomaram de Heráclito, Tudo flui, significa, vocês sabem, que nada permanece, que tudo está sempre em mudança. Impérios, como o romano, surgem e depois desaparecem, deixando para trás de si pouco mais que ruínas. Para a quase totalidade de nós, a mudança é mais drástica. Ora somos crianças. Depois já a velhice se insinua. E logo somos apenas uma foto envelhecida em um álbum esquecido ou um nome em um registro empoeirado, que depressa virará pó também. E não temos nenhum controle sobre a escalada dos acontecimentos. As coisas simplesmente acontecem. E o fluxo nos arrasta. Uma das lições mais duras, ao envelhecer, é perceber que o mundo que nos cerca morre antes de nós mesmos. Casas que conhecíamos são demolidas. Florestas aonde íamos são devastadas. Lojas e restaurantes que frequentávamos fecham. Artistas que amávamos morrem. E fenecem sucessiva ou alternadamente nossos avós e pais, ou então nossos próprios irmãos e filhos nos precedem na morte. E pouco a pouco vivemos em um mundo que não é mais o nosso, em um mundo estranho que não mais reconhecemos. De certa forma, a crise pandêmica pela qual passamos desnuda essa realidade. Sempre vivemos no mundo de Epicteto, mas nos iludíamos com a aparência de estabilidade. Agora não podemos mais ignorar: podemos morrer, nós e nossos entes queridos, amanhã; ditaduras podem destruir a frágil democracia construída por décadas. Os cenários vão sendo trocados com rapidez surpreendente. E pouco nos cabe senão cumprir o papel que nos foi dado: se pai, o de pai; se filho, o de filho, se cidadão, o de cidadão. A vida, afinal, é algo emprestado, e será retomada mais cedo ou mais tarde, seja por meio de morte natural e pacífica, seja por meio de um tumor doloroso, por um tiro ou um acidente. Não importa como, mas será retomada. Cumprir nosso papel da maneira melhor possível, da maneira mais digna possível, é o que nos resta, além de sermos gratos, pois há beleza na vida, apesar de todo sofrimento, toda injustiça e toda dor: Lembra que és um ator no drama teatral que o Dramaturgo escolher. Se Ele o quiser breve, breve será o drama, se longo, longo; se quiser que cumpras o papel de mendigo, cumpre também este papel de modo digno. E, da mesma forma, se coxo, se magistrado, se simples cidadão. Pois isto é teu: encenar belamente o papel que te é oferecido. Mas cabe a outro escolhê-lo. (Epicteto, Manual de Epicteto, capítulo 17, Tradução de Aldo Dinucci). CORAGEM SOB FOGO Testando as Doutrinas de Epicteto em um Laboratório Comportamental Humano - por James B. Stockdale[i]Ingressei na vida filosófica como um piloto naval de trinta e oito anos de idade quando cursava a graduação da universidade de Stanford. Eu servi à marinha por vinte anos e, quase sempre, dentro de uma cabine de piloto. Em 1962, iniciei meu segundo ano de estudos sobre relações internacionais com o objetivo de me tornar um planejador estratégico no Pentágono. Mas meu coração não estava ali. A vida em Stanford não me inspirava, e eu me via como alguém apenas trabalhando com um material enfadonho sobre como as nações se organizavam e se governavam. Estava velho demais para isso. Sabia como os sistemas políticos operavam; os ha- via derrotado por anos. Então, do jeito que costumamos chamar de “rápida inspeção” em um voo acrobático, cruzei pelos lados do departamento de filosofia de Stanford em uma manhã de inverno. Eu tinha cabelos grisalhos e usava roupas civis. Uma voz estrondou de um escritório: “Posso ajudá-lo?” A voz era de Philip Rhinelander, decano de Ciências e Humanidades, que ensinava Filosofia VI: Os Problemas do Bem e do Mal. Primeiramente ele pensou que eu era um professor, mas nós rapidamente descobrimos um ponto em comum na Marinha, porque ele servira durante a Segunda Guerra Mundial. Em quinze minutos concordamos que eu entraria no meio do seu curso de dois períodos e, para compensar minha falta de conhecimento, teríamos de nos reunir por uma hora semanal para aulas particulares em sua casa no campus de Stanford. Philip Rhinelander abriu-me os olhos. Naquele estudo tudo aconteceu para mim – minha inspiração, minha dedicação à vida filosófica. Daí em diante, saí do curso de relações internacionais - já tinha créditos suficientes para o mestrado - e ingressei no curso de filosofia. Começamos a trabalhar de Sócrates a Aristóteles e Descartes. E, então, passamos para Kant, Hume, Dostoievski e Camus. Enquanto isso, Rhinelander estava me analisando, tentando descobrir o que eu procurava. Ele percebeu que meu interesse nos Diálogos sobre a Religião Natural de Hume era bastante intenso. Na minha última sessão, ele alcançou o alto de sua estante de livros, me trouxe uma cópia do Encheiridion[ii] e disse: “Creio que você se interessará por isso”. Encheiridion significa “à mão”. Em outras palavras, um manual. Rhinelander explicou que seu autor, Epicteto, era um homem de inteligência e sensibilidade bastante incomuns, que, a partir de sua precoce e direta exposição à extrema crueldade e direta observação do abuso de poder e da autoindulgente libertinagem, amealhou sabedoria ao invés de amargura. Epicteto nasceu escravo por volta do ano 50 da nossa era e cresceu na Ásia Menor falando a língua grega de sua mãe escrava. Por volta dos quinze anos de idade, foi despachado para Roma acorrentado, em uma caravana de escravos, tendo sido tratado com selvageria por meses durante a viagem. Vendido em Roma como um inválido (seu joelho havia sido despedaçado e deixado sem tratamento), acabou sendo “comprado barato” por um liberto chamado Epafrodito, um secretário do imperador Nero. Foi levado para vi- ver no palácio de Nero em um período em que o imperador tratava com negligência o seu império por causa de viagens frequentes à Grécia como ator, músico e condutor de bigas de corrida. Quando em casa, em seus alojamentos em Roma, Nero se ocupava matando seu meio-irmão, sua esposa, sua mãe, sua segunda esposa. Finalmente, foi o senhor de Epicteto, Epafrodito, quem cortou a garganta de Nero quando este se atrapalhou em seu suicídio enquanto os soldados derrubavam a porta para prendê-lo. Isso pôs Epafrodito em maus lençóis, e, fortuitamente, o agora cauteloso escravo Epicteto percebeu que tinha livre acesso a Roma. Sendo um jovem sério e indubitavelmente desgostoso, gravitou para as magnânimas aulas públicas dos professores estoicos, que eram os filósofos de Roma naqueles dias. Epicteto eventualmente tornou- se aprendiz do melhor professor de estoicismo do império, Musônio Rufo e, depois de dez anos ou mais de estudo, alcançou, por seus próprios méritos, o status de filósofo. Com isso lhe adveio a verdadeira liberdade em Roma, e a preciosidade desse acontecimento foi devidamente celebrada pelo ex-escravo. Estudiosos afirmam que, em suas obras, a liberdade individual é elogiada seis vezes mais que no Novo Testamento. Os estoicos sustentam que todos os seres humanos são iguais aos olhos de Deus: homem e mulher, negro e branco, escravo e livre. Li cada um dos escritos de Epicteto duas vezes, através de duas traduções. Mesmo nos tradutores mais conservadores, Epicteto nos fala como um contemporâneo nosso. Isso é “palavra viva”, não o grego ático literário ao qual estamos habituados em homens dessa língua. O Encheirídion não foi realmente escrito por Epicteto, que era acima de tudo um professor determinado e um homem modesto, que nunca usaria seu tempo para transcrever suas próprias aulas, mas por um de seus mais meticulosos e determinados alunos. Seu nome é Arriano, um grego de origem aristocrática muito inteligente, com cerca de vinte anos. Depois de ouvir suas primeiras aulas, tem- se notícia de que Arriano exclamou algo como: “Filho da mãe! Temos de passar esse cara para o pergaminho!” Com o consentimento de Epicteto, Arriano anotou suas palavras de modo literal e as reuniu através de uma espécie de frenética taquigrafia que inventou. Ele organizou as aulas em livros. Nos dois anos em que esteve matriculado na escola de Epicteto, escreveu oito livros. Quatro deles desapareceram em algum momento antes da Idade Média. Foi aí que os quatro livros restantes foram reunidos sob o título Diatribes de Epicteto. Arriano organizou o Encheirídion de Epicteto depois de completar os oito livros. Trata- se tão somente dos melhores momentos daqueles oito livros “para os homens atarefados”. Rhinelander disse-me naquela última manhã: “Como um militar, penso que você terá um interesse especial nisso. Frederico, o Grande, nunca saía em campanha sem um exemplar desse livro de bolso em sua bagagem”. Jamais esquecerei aquele dia, e a essência do que esse extraordinário homem disse quando nos despedimos ficou profundamente gravada em minha mente. Foi algo muito próximo disso: o estoicismo é uma filosofia nobre que provou ser mais praticável do que um cínico moderno poderia esperar. O ponto de vista estoico é frequentemente mal interpretado, por- que o leitor casual não compreende que tudo gira em torno da “vida interior” do homem. Os estoicos fazem parecer pouco importante a dor física, mas isso não é fanfarronice. Eles estão falando dela comparando-a com a devastadora agonia da vergonha que eles imaginam que os homens bons experimentam quando sabem em seus corações que deixaram de cumprir seu dever diante de seus companheiros ou de Deus. Embora pagãos, os estoicos possuíam uma religião natural monoteística e muito contribuíram para o pensamento cristão. A paternidade de Deus e a irmandade dos homens eram conceitos estoicos antes do cristianismo. De fato, um dos primeiros teóricos estoicos, Crisipo, concebeu a primeira analogia entre o que se pode chamar de alma do universo com a respiração de um ser humano, pneuma em grego. Diz-se que essa concepção estoica de um pneuma celestial é a bisavó do Espírito Santo cristão. São Paulo, um judeu helenizado criado em Tarso, uma cidade estoica na Ásia Menor, sempre usou o termo grego pneuma, ou sopro, para “alma”. Rhinelander disse-me que a busca estoica por um pensamento disciplinado conquistou, naturalmente, apenas uma pequena minoria para seu padrão, mas esses poucos eram, em todos os lugares, os melhores. Como os seus correlatos cristãos, o calvinismo e o puritanismo, ele produziu as mais fortes personalidades de seu tempo. Sendo em sua teoria uma doutrina de impiedosa perfeição, produziu de fato homens de coragem, piedosos e de boa vontade. Rhinelander apontou três exemplos: Catão, o jovem, o Imperador Marco Aurélio e Epicteto. Catão foi o maior republicano de Roma que fez oposição a Júlio César. Ele foi evidentemente o herói de George Washington: estudiosos encontramcitações de Catão nos discursos de despedida de Washington – citações sem aspas. O Imperador Marco Aurélio levou o Império Romano ao auge de sua força e influência. E Epicteto, o grande mestre, fez sua parte na mudança do comando de Roma: das orgias que ele conheceu no palácio de Nero ao poder e à decência que testemunhou sob Marco Aurélio. Marco Aurélio foi o último dos cinco imperadores (todos com ligações com o estoicismo) que sucessivamente governaram durante o período que Edward Gibbon descreveu em seu Declínio e Queda do Império Romano da seguinte forma: “Se pedirmos a alguém para determinar o período da história do mundo no qual a raça humana foi mais feliz e próspera, ele, sem hesitação, poderá mencionar o período que vai da ascensão de Nerva (ano 96) à morte de Marco Aurélio (ano 180). Os reinos reunidos dos cinco imperadores dessa era são, possivelmente, o único período da história no qual a felicidade de um grande povo foi o único objetivo de governo”. Epicteto atraiu o mesmo tipo de ouvintes que Sócrates cinco séculos antes – jovens aristocratas destinados às carreiras nas áreas das finanças, das artes e do serviço público. As melhores famílias lhe enviavam seus melhores filhos na faixa dos vinte anos para serem ensinados no que consiste a vida feliz, de modo a se desfazerem da ideia de que eles mereciam se tornar playboys, para se conscientizarem de que sua função era servir aos seus semelhantes. Em sua inimitável e franca linguagem, Epicteto explicou que seu curso não era sobre “lucros ou rendimentos, paz ou guerra, mas sobre a felicidade e a infelicidade, o sucesso e o fracasso, a escravidão e a liberdade”. Seu aluno ideal não era alguém capaz de “falar fluentemente sobre princípios filosóficos como um tagarela inútil, mas falar sobre coisas que o farão forte se seu filho morrer, se seu irmão morrer, ou se ele mesmo tiver que morrer ou ser torturado”. “Que uns pratiquem ações judiciais; outros estudem problemas; outros, silogismos; aqui você pratica como morrer, como ser acorrentado, como ser torturado ou exilado”. Um homem é responsável por seus próprios “juízos, mesmo em seus sonhos, na embriaguez e na loucura da melancolia”. Cada um produz seu próprio bem e seu próprio mal, sua boa fortuna, sua má fortuna, sua felicidade e sua desgraça. E, para completar tudo isso, ele sustentava que é impensável que o erro de um homem possa ser a causa do sofrimento de outros. O sofrimento, como tudo mais no estoicismo, resume-se nisso: remorso por destruir a si mesmo. Assim, o que Epicteto ensinou aos seus alunos foi que não pode haver tal coisa como ser “vítima” de alguém. Você só pode ser “vítima” de si mesmo. Tudo está em como você disciplina a sua mente. Quem é o seu senhor? “Quem controla cada uma das coisas nas quais você pôs seu coração”? “Qual é o resultado a que toda virtude almeja? Serenidade”. “Mostre-me um homem que, embora doente, é feliz; que, embora em perigo, é feliz; que, embora na prisão, é feliz, e te mostrarei um estoico”. Quando me formei, Sybil[iii] e eu pegamos nossos quatro filhos e nossos pertences e rumamos para o sul da Califórnia. Eu estava para assumir o comando do esquadrão de combate 51, que utilizava Cruzaders supersônicos F8, primeiro na estação naval de Miramar, perto de San Diego, e depois, é claro, no mar, a bordo de vários porta-aviões no Pacífico Ocidental. Exatamente três anos depois de irmos para o nosso novo lar, perto de San Diego, meu avião foi abatido, e eu fui capturado no Vietnã do Norte. Durante aqueles três anos, fui enviado a três missões de sete meses cada através da costa do Vietnã. Na primeira, nos dedicamos a supervisionar os combates que estavam irrompendo no sul; na segunda, comandei a primeira incursão de bombardeio sobre o Vietnã do Norte; e, na terceira, estava voando em combate, quase diariamente, como o comandante de esquadra aérea do porta- aviões USS Oriskany. Mas, na cabeceira de minha cama, não importa em que porta-aviões eu me encontrasse, estavam meus livros de Epicteto, O Encheirídion e As Diatribes, e também As Memoráveis de Xenofonte, a Ilíada e a Odisseia (Epicteto esperava que seus alunos estivessem familiarizados com as obras de Homero). Não tive tempo para ser um leitor assíduo, mas passava várias horas por semana me aprofundando nessas leituras. Eu pensava que era óbvio para meus amigos mais íntimos, como certamente o era para mim, que eu era um homem mudado, quero dizer, um homem melhor, por ter sido introduzido à Filosofia e especialmente à de Epicteto. Eu estava trilhando um caminho diferente – certamente não um caminho antimilitarista, mas, em alguma medida, anti-organizacional. Contra o pano de fundo das imposturas e trapalhadas dos tempos de paz que as organizações militares parecem ter de atravessar, aceitar a necessidade de ser elegante e de improvisar de modo altruísta sob pressão para quebrar procedimentos padronizados e estabelecer uma nova maneira de operar. Eu tinha me tornado um homem imparcial – não indiferente, mas imparcial – capaz de lançar fora o livro de normas sem a menor hesitação quando ele não mais fizesse frente às circunstâncias externas. Fui capaz de colocar oficiais jovens acima de experientes, sem embaraço, quando os instintos de combate dos jovens eram mais confiáveis. Essa nova experiência de libertação das amarras e essa nova flexibilidade interior que eu havia adquirido me foram úteis mais tarde na prisão. Mas, reforçando a minha nova confiança, estava claro o entendi- mento de que eu havia encontrado a filosofia própria para as artes militares, tais como eu as praticava. Os estoicos romanos cunharam a fórmula Vivere Militare! –“Viver é ser um soldado!”. Epicteto diz nas Diatribes: “Não sabes que a vida é um serviço militar? Um deve montar guarda, outro deve sair em patrulha de reconhecimento, outro deve ir à batalha. Não percebes a que condição miserável levarás o exército, na medida em que ele contar contigo, se negligenciares as tuas responsabilidades quando alguma ordem severa recair sobre ti?” Manual de Epicteto: “Lembre que você é um ator no drama teatral que o Dramaturgo escolher. Se Ele o quiser breve, breve será o drama; se longo, longo; se quiser que você cumpra o papel de mendigo, cumpra também este papel de modo digno. E, da mesma forma, se coxo, se magistrado, se simples cidadão. Pois isto é seu: encenar belamente o papel que lhe é oferecido. Mas cabe a outro escolhê-lo”. “Cada um de nós, escravo ou homem livre, veio a esse mundo com concepções inatas sobre o que é bom e mau, nobre e vergonhoso, decente e indecente, felicidade e infelicidade, apropriado e inapropriado”. “Se você se considerar como um humano e como parte de um todo, será apropriado para você que ora esteja doente, ora viaje e corra riscos, ora passe necessidade, e que eventualmente morra antes da sua hora. Por que, então, você se atormenta? Queria que outro estivesse doente e com febre agora, que outro viajasse, que outro morresse? Pois é impossível, em um corpo tal como o nosso, isto é, neste universo que nos envolve, entre tais companheiros, que essas coisas não aconteçam, umas a uma pessoa, outras a outra.” Em 9 de setembro de 1965, voei a quinhentos nós direto para uma armadilha de fogo antiaéreo, em um pequeno avião A4 – as paredes da cabine não distavam sequer noventa centímetros uma da outra – que eu não conseguia mais controlar depois que irrompeu em chamas e seu sistema de controle deixou de funcionar. Depois de eu ter me ejetado do avião, tive cerca de 30 segundos para fazer minha última declaração em liberdade, antes de descer na rua principal de uma pequena vila que estava bem à minha frente. Ajudem-me, sussurrei para mim mesmo: “Cinco anos aqui, pelo menos. Estou deixando o mundo da tecnologia e entrando no mundo de Epicteto”. Do Manual de Epicteto, quando fui ejetado da aeronave, eu tinha “na ponta da língua” a compreensão de que um estoico sempre mantém arquivos separados em sua mente para (A) as coisas que “dependem dele”, e (B) as que “não dependem dele”. Outra maneirade dizer isto é (A) as coisas que “estão sob seu controle”, e (B) as que “não estão sob seu controle”. Outro modo ainda de dizer o mesmo é (A) as coisas que estão no âmbito de “sua vontade, de seu livre arbítrio”, e (B) as que estão além disso. Todas as que estão na categoria (B) são externas, além de meu controle, condenando-me, em última análise, ao medo e à ansiedade se cobiçá-las. Todas as coisas da categoria (A) dependem de mim, estão sob meu controle, estão no âmbito de minha vontade e são propriamente temas com os quais devo me ocupar e me envolver totalmente. Elas incluem minhas opiniões, minhas intenções, minhas aversões, minha própria aflição, minha própria alegria, meus juízos, minha atitude em relação aos acontecimentos, meu próprio bem e meu próprio mal. Para explicar por que “meu próprio bem e meu próprio mal” está na lista acima, quero fazer uma citação de Alexander Solzhenitsyn, de seu livro Gulag. Ele escreve sobre o momento na prisão em que percebeu a força dos seus poderes residuais, e começou, como traduzi para mim mesmo, a “crescer moralmente”, voando nos ventos ascendentes de uma euforia temporária à proporção em que você entende que está conhecendo a si mesmo e o mundo pela primeira vez. Ele chama isso de “ascender”, e intitula o capítulo no qual trata disso de “A Ascensão”: Só quando estava deitado na palha podre da prisão é que senti dentro de mim o despertar dos primeiros sentimentos do bem. Gradualmente me foi revelado que a linha que separa o bem do mal não passa entre Estados, nem entre classes, nem entre partidos políticos, mas diretamente através de cada coração humano, através de todos os corações humanos. É por isso que relembro os meus anos de encarceramento e digo, algumas vezes para espanto dos que estão ao meu redor, “Bendita seja, prisão, por ter sido uma parte de minha vida”. Compreendi isso muito antes de lê-lo. Solzhenitsyn entendeu, como eu e outros entendemos, que o bem e o mal não são simples abstrações que você discute, sobre as quais dá aulas e atribui a essa ou àquela pessoa. O único bem e o único mal que significam alguma coisa estão exatamente em seu próprio coração, em sua vontade, sob seu controle, onde depende de você. Manual de Epicteto, 32: “Se é algo que não está sob nosso controle, é absolutamente necessário que não seja um bem ou um mal”. Diatribes: “O mal reside no mau uso da intenção moral, e o bem, no contrário. O curso da vontade determina a boa e a má fortuna, e o equilíbrio entre a infelicidade e a felicidade”. Em resumo, o que os estoicos dizem é “Trabalhe com o que está sob seu controle e terá muito o que fazer”. O que não depende de você? O que está fora de seu controle? O que não está sujeito a você, em última análise? Para os iniciantes, vamos tomar o “seu posto na vida[iv]”. Enquanto eu desço suavemente e silenciosamente em direção àquela pequena aldeia, em minha curta viagem de paraquedas, estou na iminência de aprender quão insignificante é o meu controle sobre o meu posto na vida. Isso não depende absolutamente de mim. Neste momento, eu estou deixando de ser o líder de mais de cem pilotos e uns mil homens e, sabe Deus, todo tipo de status simbólico e reputação para me tornar um objeto de desprezo. Eu serei identificado como um “criminoso”. Mas isso não é nem metade da revelação do que é a compreensão de sua própria fragilidade - que você pode ser reduzido, pelo vento, pela chuva, pelo gelo, pela água do mar ou pelos homens a uma situação de abandono e completo desespero, incapaz de controlar até mesmo os próprios intestinos – em questão de minutos. E, ainda mais que isso, vai se deparar com fragilidades que você nunca pensou ter - como, por exemplo, tremer descontroladamente enquanto é amarrado com cordas de torniquete, com cuidado, por um profissional, com as mãos para trás, o tronco dobrado e inclinado em direção aos tornozelos, que foram presos a pinos conectados a uma barra de ferro, que, com o crescimento da ansiedade, sabendo que a circulação sanguínea do tronco superior foi interrompida, sentindo o crescimento da dor induzida e uma experiência de claustrofobia se aproximando, pode levar você a dar, repentinamente e impulsivamente, respostas, às vezes respostas corretas, a questões sobre qualquer assunto que eles sabem que você tem conhecimento. A partir de agora vou me referir a essa experiência apenas como “tortura nas cordas”. O posto na vida, então, pode ser mudado, em questão de minutos, de um honrado, competente e educado indivíduo para o de um homem tomado pelo pânico, soluçando e amaldiçoando a si mesmo. E daí? Viver com a falsa pretensão de que você sempre controlará seu posto na vida é caminhar para uma iminente queda; você está pedindo para sofrer uma desilusão. Assegure-se então de que, no fundo de seu coração, no seu eu interior, você trata seu posto na vida com indiferença, não com desprezo, mas apenas com indiferença. E o mesmo vale para uma longa lista de coisas que algumas pessoas que não refletem creem ter o controle garantido em última instância: o próprio corpo, propriedades, riqueza, saúde, vida, morte, prazer, sofrimento, reputação. Considere a “reputação”, por exemplo. Faça o que quiser, a reputação é tão instável quanto o posto. São os outros que decidem sobre qual é a sua reputação. Tente torná-la tão boa quanto possível, mas não se prenda a ela. Não seja ávido por ela nem a persiga através de labirintos. Como diz Epicteto: “O que são as tragédias senão o retrato em versos trágicos dos sofrimentos de humanos que admiraram as coisas externas?” No âmago de seu coração, quando você conseguir a chave e abrir a velha escrivaninha onde realmente estão guardadas as suas coisas, não permita que a “reputação” se misture com o seu anseio moral ou com a sua vontade — estas duas coisas são demasiado importantes. Assegure-se de que a “reputação” esteja em uma caixa dentro da gaveta de baixo com a etiqueta “questões indiferentes”. Como Epicteto diz: “Quem almeja ou evita as coisas que não estão sob seu controle não pode ser confiável nem livre, mas deverá ser arrastado e atirado de um lado para o outro e terminar submetendo- se aos outros”. Sei das dificuldades de assimilar isso rapidamente. Você continua pensando em questões práticas. Todos têm que jogar o jogo da vida. Você não pode simplesmente andar por aí dizendo: “Não dou a mínima para a riqueza, a saúde ou se eu for mandado para a prisão ou não”. Epicteto levou tempo para explicar melhor o que quis dizer. Ele disse que todos devem jogar o jogo da vida – que os melhores o jogam com “habilidade, estilo, presteza e graça”. Mas, como na maioria dos jogos, você joga com uma bola. Seu time intensamente se esforça para fazer o gol. Depois do jogo, o que se faz com a bola? Ninguém se importa. Não vale a pena se importar com ela. A competição, o jogo, é o que interessa a todos. A bola foi “usada” para tornar o jogo possível, mas em si mesma não tem valor algum que justifique que se lute por ela. Uma vez terminado o jogo, a bola é algo indiferente. Epicteto, em outra ocasião, usa o exemplo do jogo de dados. Os dados, uma vez exibidos seus números, se tornam também coisas indiferentes. Mas decidir se é preciso aceitar os números ou lançar os dados novamente é um ato voluntário e, portanto, não é algo indiferente. O ponto de Epicteto é que o nosso uso das coisas externas não é algo indiferente, porque nossas ações são produtos de nossa vontade, e nós temos total controle sobre ela, mas os dados, por si mesmos, como a bola, são coisas sobre as quais não temos controle algum. São coisas externas que não podemos nos permitir cobiçar ou levar a sério sob pena de colocarmos nossos corações nelas e nos tornarmos escravos dos que as controlam. As explicações desse conceito parecem tão modernas, muito embora eu não tenha feito senão citações literais das reflexões de Epicteto para seus alunos na colônia grega de Nicópolis, há dois mil anos atrás. Retomei esses pensamentos essenciais na prisão. Relembrei também várias observações que modelam atitudes.Aqui está Epicteto, ensinando a escapar dessas armadilhas: “O senhor de alguém é quem possui o poder para conservar ou suprimir as coisas desejadas por esse alguém. Portanto, quem ansiar ser livre não deve desejar nem evitar coisa alguma que esteja sob o controle de outro. Caso contrário, necessariamente será escravo” (Manual de Epicteto, 14). E aqui está a razão pela qual nunca se deve suplicar: “Pois é preferível ter de morrer sem aflição e sem medo que viver inquieto na abundância” (Manual de Epicteto, 12). Suplicar implica negociar, fazer tratos, acordos, retaliar, disputar. Se você quiser estar livre de “medo e culpa”, que são os estranguladores cruciais, os reais destruidores, a longo prazo, da vontade, você tem de se livrar de todos os seus sentimentos naturais de fazer acordo, para encontrar pessoas no meio do caminho. Você tem de aprender a manter-se indiferente, nunca dar margem para acordos, nunca se nivelar aos seus adversários. Você tem de tornar-se o que Ivan Denisovich chamou de um “prisioneiro enjaulado movendo-se lentamente.” Tudo isso, ao longo dos três anos anteriores, eu tinha, sem saber, guardado para o futuro. Agora, relembrando a minha ejeção do A-4, posso ainda ouvir os gritos ao entardecer, os tiros de pistola e o uivo das balas rasgando meu paraquedas e ver punhos se elevando na rua abaixo enquanto meu paraquedas se prendia em uma árvore, pondo-me, porém, são e salvo no chão. Com a liberação das duas presilhas que me prendiam ao paraquedas, fui imediatamente linchado por dez ou quinze brutamontes que eu já havia visto em minha visão periférica, bloqueando a estrada à minha direita. Não quero exagerar ou mostrar que me surpreendi com a minha recepção. Quando o linchamento e o espancamento acabaram, e duraram dois ou três minutos, até que um homem com um capacete de cortiça lá chegasse para soprar o seu apito de policial, eu estava com uma perna gravemente fraturada e tive a certeza de que carregaria as sequelas disso por toda a vida. Meu pressentimento acabou se revelando verdadeiro. Mais tarde senti algum alívio – mínimo – a partir de uma advertência de Epicteto da qual me recordei: “Claudicar é um impedimento para a perna, mas não para a vontade. Diga isso, portanto, para cada uma das coisas que lhe acontecem. Com efeito, você descobrirá que o impedimento é próprio de alguma outra coisa, mas não seu” (Manual de Epicteto, 9). Mas, durante o intervalo de tempo entre o puxar da alavanca de ejeção do assento do avião e a minha aterrissagem na rua, tinha- me torna- do um homem com uma missão. Não posso explicar isso sem revelar uma pequena carga emocional que fez parte do legado de minha geração de militares em 1965. No rescaldo da guerra da Coreia, apenas dez anos antes, todos nos lembrávamos de ter lido sobre e ter visto notícias televisivas acerca de investigações do governo quanto à conduta de alguns prisioneiros de guerra norte-americanos na Coreia do Norte e na China. Havia uma famosa série de artigos na revista New Yorker que mais tarde tornou-se um livro intitulado In Every War But One. A ideia central do livro era que, nos campos de prisioneiros para americanos, era cada um por si. Desde aqueles dias, tenho conhecido oficiais que foram prisioneiros nessa guerra, e agora vejo muitas dessas matérias como seleções de observação[v] e narrativas irresponsáveis. Contudo, houve casos de jovens soldados que foram confundidos pelas circunstâncias, amedrontados até a morte, em clima frio, tratando-se como cães lutando por restos, atirando uns aos outros na neve para morrer, e ninguém fazendo nada a respeito. Isso não podia continuar, e Eisenhower nomeou uma comissão para criar o texto do código de conduta dos combatentes norte- americanos. O texto reflete uma forma de juramento pessoal. Artigo 4: “Se me tornar um prisioneiro de guerra, serei leal aos meus colegas prisioneiros. Não darei informações nem tomarei parte de ação alguma que possa comprometer meus camaradas. Se eu for o mais antigo, ficarei no comando. Caso contrário, obedecerei às ordens daqueles acima de mim e os protegerei a qualquer custo”. Em outras palavras, a partir do momento em que Eisenhower assinou o documento, os prisioneiros de guerra norte-americanos nunca mais poderiam desobedecer a hierarquia de comando; a guerra continua por trás das grades. Como um oficial que tem acesso a informações privilegiadas, eu sabia de toda a situação – que os norte-vietnamitas já mantinham cerca de vinte e cinco prisioneiros, provavelmente em Hanói, que eu era o único comandante aéreo que sobrevivera a uma ejeção, e que eu seria o mais antigo entre eles, o oficial em comando, e assim continuaria a ser, muito provavelmente, por toda essa guerra, que eu estava certo de que iria durar no mínimo mais outros cinco anos. E aqui estava eu começando aleijado e atirado ao chão, deitado de costas. Epicteto mostrou-se correto. Depois de uma intervenção cirúrgica muito precária, usei muletas durante dois meses, e a perna deformada, curando-se por si mesma, estava forte o suficiente para sustentar-me semas muletas depois de um ano. Tudo o que relatei até aqui foi apenas um revés temporário em relação às coisas que eram importantes para mim. E me era muito importante ter sido designado para desempenhar o papel de líder em comando de uma colônia norte-americana expatriada, que foi destinada a permanecer autônoma e sem comunicação com Washington por anos a fio. Eu tinha quarenta e dois anos (ainda com muletas, arrastando uma perna, consideravelmente abaixo do peso, com cabelos chegando aos ombros, sem um banho e com uma barba que não tinha visto uma navalha desde que fora capturado do Oriskany) quando assumi o comando (clandestinamente, é claro, os norte-vietnamitas nunca reconheceriam nossa hierarquia sobre cerca de cinquenta norte- americanos). A colônia de exilados cresceria para mais de quatrocentos – todos oficiais graduados, pilotos ou especialistas em eletrônica. Eu estava determinado a “bem interpretar o papel que me fora destinado”. A palavra-chave inicial para todos nós era “fragilidade”. Todos nós, antes de estar à distância de um grito de outro norte- americano, éramos, então, submetidos à tortura nas cordas. Isso era um verdadeiro choque para as nossas mentes – e, como todo choque, seu impacto em nossa estrutura psicológica foi muito mais impressionante, duradouro e significativo que em nossos membros e torsos. Era nessas sessões em que éramos levados à submissão, e em que nos faziam deixar escapar confissões repugnantes de culpa e colaboração norte-americana, tudo registrado em antigos gravadores. E então éramos colocados no que eu chamava de “banho de água fria”, por um mês ou mais, em total isolamento, para “meditarmos sobre nossos crimes”. O que nós, na verdade, interpretávamos era o que mesmo o norte-americano mais acomodado via como uma traição a si mesmo e a tudo em que acreditava. Foi nesse lugar que aprendi o que significava o “dano estoico”. Um ombro quebrado, um osso quebrado em minhas costas, uma perna quebrada por duas vezes eram bagatelas se comparados a isso. Epicteto: “Não busque um dano pior do que este: destruir o homem leal, que respeita a si próprio e que se comporta com dignidade que há dentro de você”. Quando colocado em cela comum, dificilmente um norte- americano vindo dessa experiência deixava de responder algo como o seguinte ao primeiro murmúrio do prisioneiro da cela ao lado: “Você não quer falar comigo; sou um traidor”. E, porque estávamos igualmente fragilizados, parecia ser de praxe que todos respondêssemos alguma coisa assim: “Escute, amigo, não há virgens aqui. Você deveria ter ouvido o tipo de declaração que fiz. Deixe isso pra lá! Estamos todos juntos nisso. Qual é o seu nome? Fale-me sobre você”. Ouvir isso era, para a maioria dos novos prisioneiros, que acabavam de sair da primeira sessão de tortura e do “banho de água fria”, um ponto de virada em suas vidas. Mas o processo de aprendizagem dos novos prisioneiros estava apenas começando. Em pouco tempo eles perceberiamque as coisas não eram exatamente como alguns lhes tinham ensinado nos campos de treinamento de sobrevivência. Que, se você se mostrasse inflexível, oferecendo resistência desde o princípio, os interrogadores perderiam o interesse em você, e você se veria apenas relegado ao tédio, como se estivesse “fora da guerra”, “definhando em sua cela”, como os romancistas ignorantes do assunto adoram descrever a situação. Não, a guerra ia para trás das grades – não existia isso de os carcereiros desistirem de você por o considerarem um caso perdido. As crenças políticas deles faziam com que acreditassem que você poderia enxergar as coisas do jeito deles e que isso era só questão de tempo. E então você era levado inúmeras vezes à sala de interrogatório, particularmente nas ocasiões em que fosse pego quebrando alguma das inúmeras regras colocadas na parede de sua cela – armadilhas que beneficiavam o oficial comunista se seu interrogador conseguisse que você caísse como uma presa fácil em seu instrumento afiado de humilhação. A moeda corrente na mesa de jogo, quando você e o interrogador estavam frente a frente em um duelo de sagacidade, era a vergonha. Aprendi que, a menos que ele impusesse a vergonha sobre mim, ou a menos que eu a impusesse sobre mim mesmo, ele nada tinha em seu favor (o uso da força estava disponível, mas era preciso a autorização do oficial comunista). Para Epicteto, emoções são atos da vontade. O medo não é algo que vem das sombras da noite e envolve você. Epicteto imputou a você total responsabilidade de despertar, parar e controlar o medo. Esta era uma das maiores exigências do estoicismo sobre uma pessoa. Os estoicos podem ser vistos como totalmente preguiçosos quando são descritos como pessoas in- diferentes a quase tudo, exceto ao bem e ao mal, pessoas que fazem um uso mesquinho das emoções, como pena e compaixão. Mas junte a isso a exigência de total responsabilidade por cada uma de suas próprias emoções, e você está falando de uma pessoa cheia do que fazer. Eu murmurava um mantra quando era conduzido, sob a mira de armas, para o meu interrogatório diário: “Controle o medo, controle a culpa, controle o medo, controle a culpa”. E eu desenvolvi maneiras de desviar meu olhar fixo de pânico para esconder o medo e a culpa que, com certeza, se revelavam quando eu temporariamente perdia o meu controle durante um interrogatório. Você poderia ser espancado por não obedecer à ordem de olhar diretamente no rosto de seu interrogador, e eu concentrava meu olhar no lóbulo de sua orelha esquerda. O interrogador parece ter se acostumado com esse meu olhar, provavelmente ele pensou que eu era um pouco estrábico. Controlar as emoções é difícil, mas pode ser fortalecedor. Epicteto: “Porque é dentro de você que tanto a sua destruição quanto a sua salvação residem”. Epicteto: “O assento no julgamento e uma prisão são cada qual um lugar, um alto, outro baixo, mas a atitude de sua vontade pode manter-se a mesma, se você quiser mantê-la a mesma, em ambos os lugares”. Nós organizamos uma sociedade clandestina através de nossa comunicação em código com batidas na parede – uma sociedade com nossas próprias leis, tradições, costumes e até mesmo heróis. Para explicar como isso se processava, como instruíamos um ao outro a se submeter a mais tortura, a recusar obedecer a exigências específicas, intencionalmente desmascarando o blefe dos nossos carcereiros e literalmente forçando-os a repetir toda a amarração das cordas para outra sessão de submissão, eu vou citar uma declaração que poderia ter vindo de pelo menos metade daqueles maravilhosos e competitivos jovens pilotos, com os quais me encontrava preso: “Estamos em uma situação na qual nunca estivemos antes. Mas nós merecemos manter o nosso respeito próprio para termos o sentimento de que estamos reagindo. Não podemos nos negar a fazer cada coisa humilhante que eles nos exigem, mas depende de você, comandante, escolher as coisas que todos nós devemos nos recusar a fazer, mesmo quando eles nos torturarem novamente. Nós merecemos dormir à noite. Merecemos, no mínimo, ter a satisfação de obedecer às ordens de nosso comandante. Dê-nos a lista; pelo que devemos ser torturados?” Sei que isso soa como uma lógica estranha, mas, em certo sentido, foi o primeiro passo para reivindicarmos o que era legitimamente nosso. Epicteto disse: “O juiz lhe fará algumas coisas que são tidas como aterrorizantes; mas como ele pode impedir-lhe de receber o castigo com o qual ele o ameaçou?” Esse é o meu tipo de estoicismo. Você tem o direito de fazer com que o firam, e eles não gostam de fazer isso. Quando meu companheiro de prisão Ev Alvarez, o primeiro piloto capturado por eles, foi liberado com o resto de nós, o oficial comunista da prisão lhe disse: “Vocês, norte- americanos, não se pareciam em nada com os franceses. Nós podíamos confiar que eles seriam sensatos.” Ah! Refleti muito sobre como essas primeiras ordens deveriam ser. Era preciso que fossem ordens que pudessem ser obedecidas, não do tipo “proteja a si mesmo”, como uma maneira de repetir alguma diplomacia do governo dos Estados Unidos, como dizer seu “nome, patente, número de identificação militar e data de nascimento”, que não tinha nenhuma função relevante na sala de tortura. Minha atitude mental era: nós, que estamos aqui subjugados pelas armas, somos os especialistas, senhores do nosso destino, ignore os ecos da culpa induzida pelos decretos governamentais vazios, jogue no lixo o manual de treinamento e escreva o seu próprio manual. Minhas ordens saiam codificadas como acrônimos fáceis de lembrar. A principal era “BACK US: Não se curvar (Bow) em público; ficar fora do Ar (Air); não admitir Crimes (Crimes); nunca dar um beijo de despedida neles (never Kiss them goodbye). “US” poderia ser interpretado como United States (Estados Unidos)[vi], mas realmente significava Unity over Self (unidade acima da individualidade). Solitários, em uma prisão de inimigos, se safam com acordos, eis porque minha primeira regra em prol da união naquele lugar era que cada um de nós tinha que agir a partir do denominador comum mais básico, nunca negociar por causa própria, mas somente por todos os prisioneiros. A vida na prisão tornou-se uma louca mistura de um velho e um novo regime. O velho era a rotina política da prisão, principalmente para os dissidentes e os inimigos domésticos do Estado. Esse regime foi concebido e posto em prática por comunistas antiquados do Terceiro Mundo, do perfil de Ho Chi Min. Girava em torno da ideia de “arrependimento” por seus “crimes” causados por comportamento antissocial. Prisioneiros norte- americanos, criminosos comuns de rua e inimigos políticos do Estado estavam todos na mesma prisão. Nunca vimos um campo de prisioneiros de guerra[vii] como aparecem nas exibições dos filmes. A prisão comunista era um misto de clínica psiquiátrica e reformatório escolar. O protocolo norte-vietnamita fora criado para fazer com que todos os prisioneiros demonstrassem vergonha curvando-se diante de todos os guardas, de cabeças baixas, nunca olhando para o céu, com frequentes sessões com seu interrogador, se não por nenhuma outra razão, para verificar sua atitude e, caso esta fosse considerada “errada”, então, talvez, ser levado para a mesa de tortura, para a confissão de culpa, para o pedido de perdão e para a inevitável recompensa da expiação dos pecados. O novo regime, imposto sobre o anterior, era somente para os norte-americanos. Era uma fábrica de propaganda, supervisionada por jovens oficiais burocratas do exército, fluentes em inglês, com metas políticas a atingir, estabelecidas pelo braço político do governo: entrevistas de imprensa com visitantes norte-americanos de esquerda, filmes de propaganda a serem gravados (estrelando intimidados “piratas aéreos norte-americanos”) e assim por diante. Uma resumida história de como essa bifurcada filosofia de prisão progrediu é que a filmagem da propaganda e das entrevistas começou a se voltar contra os vietnamitas. Inteligentes prisioneiros de guerra,que eram universitários norte-americanos, temperavam suas interpretações nos filmes com frases de duplo sentido, gestos vistos como engraçados e obscenos pelas audiências do público ocidental e pegadinhas. Um dos meus melhores amigos, torturado para dar nomes de pilotos que ele sabia que tinham deixado a força aérea em oposição à guerra, disse que eram somente dois: os tenentes Clark Kent e Ben Casey, na época personagens populares de ficção nos Estados Unidos). Aquela piada foi manchete de primeira página do San Diego Union, e alguém enviou uma cópia para o governo de Hanói. Como resultado desse amigável gesto de um cidadão norte-americano, Nels Taner foi submetido a três dias sucessivos de tortura nas cordas, seguidos por 123 dias com as pernas algemadas. Tudo em isolamento, é claro. Então, depois de várias dessas peripécias, que custaram aos vietnamitas muitos embaraços, o Vietnã do Norte resolveu fazer sua propaganda com apenas uma pequena parte (menos de cinco por cento) dos norte-americanos nos quais eles podiam confiar não estar interpretando: verdadeiros solitários que, por razões diversas, nunca se juntaram à organização dos prisioneiros, nunca desejaram entrar em nossa rede de códigos, conhecidos como pessoas desprezíveis a quem começamos a chamar de “traidores”. A grande maioria de meus companheiros estava furiosa com os atos desses indivíduos e chamaram para si a responsabilidade de memorizar dados com os quais se poderia condená-los em uma corte marcial norte- americana. Mas, quando retornamos aos EUA, o governo se colocou contra as acusações que eu organizara. A esmagadora maioria dos outros norte-americanos em Hanói era, sob todos os aspectos, de “honrados prisioneiros”, mas isso não é o mesmo que dizer que havia algo como um regime homogêneo de prisão que todos nós compartilhávamos. As pessoas gostam de pensar que, porque estávamos todos no sistema prisional de Hanói, tínhamos experiências comuns. Não era assim. Esses regimes divergentes se acentuaram quando a nossa organização prisional ridicularizou a tentativa de propaganda deste monstro de duas cabeças que eles chamavam de “Autoridade Prisional”. Eles começaram a se vingar da liderança de minha organização e tentavam quebrar o moral dos demais, enganando-os com um programa de anistia, no qual eles competiriam para ver quem era libertado mais cedo através de submissão aos desejos do Vietnã do Norte. Em maio de 1967, o sistema de som da prisão bradou: “Aqueles de vocês que verdadeiramente se arrependerem estarão aptos para voltar para casa antes do fim da guerra. Aqueles poucos inflexíveis que insistirem em incitar os outros criminosos a se opor à autoridade do campo serão enviados a um lugar escuro especial”. Imediatamente proibi que qualquer norte-americano aceitasse a libertação antecipada, mas isso não quer dizer que eu era um cavaleiro solitário montado em um cavalo branco. Eu não precisei me esforçar para convencer os outros prisioneiros, a ideia foi aceita com evidente alívio e espontâneo júbilo pela esmagadora maioria. Adivinhem quem foi para o “lugar escuro”. Eles isolaram minha equipe de líderes – eu e meu grupo de dez homens de elite – e nos enviaram para o exílio. Os vietnamitas tinham trabalhado duro para entender nossos hábitos, e sabiam quais entre nós eram os causadores de problemas e quais eram os que “não criavam caso”. Eles isolaram aqueles em quem eu mais confiava: todos tinham uma longa experiência de passagens pela solitária e pela tortura nas cordas. Nem todos eram veteranos: tivemos veteranos na prisão que sequer se comunicavam com seu vizinho de cela. Um de meus dez homens tinha apenas vinte e quatro anos – nasceu depois de eu já estar na marinha. Ele era um dos resultados da minha maneira de recepcioná-los quando eles entravam no sistema prisional: “Quando as atitudes e a patente estão fora de sintonia, escolha o cara com as atitudes”. Todos nós ficamos em solitária durante o período de encarceramento, começando com dois anos com as pernas algemadas em uma pequena prisão de alta segurança que ficava bem ao lado do “Pentágono” do Vietnã do Norte – seu Ministério da Defesa, uma típica construção francesa antiga. Existem histórias e mais histórias depois disso, mas o que aconteceu em meu caso foi uma longa luta de vingança entre a “Autoridade da Prisão” e aqueles que se negavam a deixar de ser os protetores dos seus irmãos. As consequências atingiram o patamar do colapso nervoso. Um, dos onze que éramos, morreu naquela pequena prisão que chamávamos Alcatraz, mas, mesmo incluindo ele, não havia um homem sequer com menos de três anos e meio de solitária, e quatro de nós tínhamos mais de quatro anos. Para dar a você uma ideia proporcional do tempo em que cada um dos quatrocentos prisioneiros ficou em solitária, cem deles nunca ficaram, mais da metade dos outros trezentos ficaram menos de um ano, e metade daqueles que ficaram menos de um ano pegaram menos de um mês. Assim, a média para os quatrocentos era consideravelmente me- nos de seis meses. Howie Rutledge, um dos quatro de nós com mais de quatro anos, retornou aos estudos e conquistou um mestrado depois de voltarmos para casa, e sua dissertação se concentrava sobre a questão de se, a longo prazo, a erosão da razão humana pode ser mais eficientemente atingida pela tortura ou pelo isolamento social. Ele enviou questionários a todos nós que tínhamos sido torturados por, pelo menos, dez vezes, e a outros que haviam passado por extremos maus tratos na prisão. E descobriu que os que tinham menos de dois anos de isolamento e foram muito torturados diziam que a tortura foi decisiva. Mas os que tinham mais de dois anos de isolamento e foram muito torturados diziam que, para uma mudança de comportamento a longo prazo, o isolamento era o caminho a percorrer. No meu ponto de vista, você pode se acostumar a ser torturado repetidamente – existem alguns truques para minimizar suas perdas nesse jogo. Mas, mantenha um ser humano, mesmo um ser humano muito obstinado, em isolamento por três anos ou mais, e ele começará a procurar por um amigo - qualquer amigo, independente de nacionalidade ou ideologia. Epicteto, uma vez, dirigiu uma fala aos professores de sua escola, queixando-se da tendência habitual dos novos professores de suavizar a dura realidade dos desafios do estoicismo para apresentar uma imagem otimista e promissora de como eles poderiam cumprir, sem sofrimento, as duras exigências da boa vida. Epicteto disse: “Homens, a sala de aula do filósofo é um hospital: os estudantes devem sair dela não com prazer, mas sofrendo”. Se a sala de aula de Epicteto era um hospital, minha prisão era um laboratório – um laboratório comportamental humano. Escolhi testar os fundamentos do ensino de Epicteto em face das exigências dos desafios da vida real em meu laboratório. E, como vocês podem ver, penso que Epicteto foi aprovado com louvor. É difícil falar em público sobre os desafios da vida real naquele laboratório, porque as pessoas fazem todas as perguntas erradas: “Como era a comida?” Essa é sempre a primeira pergunta e, em um lugar como o que eu estive, é de tão pouca importância que você quer chorar. “Eles feriram você fisicamente?” “Que tipo de instrumento eles usaram para feri-lo?” Sempre o instrumento, ou o soro da verdade, ou o tratamento de choques elétricos – tudo aquilo que frustraria totalmente a intenção de uma pessoa que seriamente tenta quebrar a sua determinação. Todas essas coisas dariam a você um sentimento de superioridade moral, que é a última coisa que um interrogador deseja. Não estou falando de lavagem cerebral, não existe tal coisa. Estou falando que, tendo olhado sobre a borda e visto o fundo do poço, entendi a verdade daquele elemento central do pensamento estoico: o que derruba um homem não é a dor, mas a vergonha! Por que aqueles homens, no “banho de água fria”, após a sua primeira experiência de tortura, sentiam-se tão inferiores e indignos quando o primeiro norte-americano entrava em contato com eles? Epicteto conheceu bema natureza humana. Naquele laboratório prisional, eu não sei de um único caso em que alguém tenha sido capaz de se desvencilhar de seus tormentos de consciência com alguma psicologia popular de divã de causa e efeito. Epicteto enfatiza inúmeras vezes que uma pessoa que coloca a causa de suas ações em outras pessoas ou em forças externas não está sendo honesta consigo mesma. Deve-se conviver com os próprios juízos se se deseja ser honesto consigo mesmo (e o “banho de água fria” tende a tornar você honesto). “Mas se alguém me submete ao medo da morte, ele me obriga a fazer algo,” diz um estudante. “Não”, diz Epicteto, “não é a morte, nem o exílio, nem o sofrimento, nem coisa alguma a causa de fazer ou não algo, mas apenas a sua opinião e as decisões de sua vontade”. “O que se colhe seguindo seus ensinamentos?”, alguém perguntou a Epicteto. “Tranquilidade, determinação e liberdade”, ele respondeu. Você só pode ter essas coisas se for honesto e assumir a responsabilidade por suas próprias ações. Você tem de compreender isso claramente! Você está no comando de si mesmo. Eu pregava essas coisas na prisão? Decerto que não. Você logo aprendia que, se o sujeito da cela estava bem, isso significava que ele tinha pensamentos filosóficos alinhados ao seu modo de ser. Logo você entendia que, quando se ousava lançar elevadas sugestões filosóficas através do muro, sempre se obtinha respostas muito relutantes. Não. Nunca usei o código de bater na parede para comunicar o estoicismo, ou sequer falei sobre ele uma única vez. Mas alguns prisioneiros com percepção afiada leram os sinais em minhas ações. Depois de um de meus isolamentos mais longos fora do bloco de celas da prisão, fui colocado em um lugar que me permitia comunicar-me com outro prisioneiro através da linguagem de sinais, e meu ponto de contato foi um homem chamado Dave Hatcher. Como era o procedimento padrão em um primeiro contato após um longo período de isolamento, não começamos a conversa com uma troca intensa de informação, mas, primeiro, definimos um perigoso código de sinais. Em segundo lugar, inventamos uma história para cada um de nós caso fôssemos pegos e, por fim, estabelecemos um sistema de comunicação alternativa, caso o sistema de códigos fosse comprometido – precauções de um “prisioneiro enjaulado que age com cuidado e estratégia”. O sistema alternativo de comunicação de Hatcher comigo era uma mensagem deixada em uma pia velha perto de um lugar que chamávamos de “A Casa da Moeda”; a ala do bloco de celas de isolamento onde Hatcher ficava, chamávamos de “Las Vegas”- um lugar para o qual ele achava, com razão, que eu iria em breve. Todos os dias nos comunicávamos por sinais, por quinze minutos, sobre um muro entre o seu bloco de celas e a minha “terra de ninguém”. Então voltei a me encrencar. Naquele momento, o oficial comunista da prisão já tinha me isolado e me colocado sob vigilância praticamente constante durante todo o ano por eu ter organizado um motim em “Alcatraz” para que nos tirassem das algemas nas pernas. Fui isolado de todos os blocos de celas da prisão. Eu tinha carcereiros particulares, e eles me pegaram com uma mensagem em um pedaço de papel, pronta para ser enviada, que deu pistas para eles que eu conhecia o procedimento padrão dos interrogadores durante a tortura. O resultado poderia ser implicar meus amigos em “atividades obscuras” (como os norte- vietnamitas as chamavam). Passei pelas torturas nas cordas mais de doze vezes e sabia que podia guardar segredo – desde que eles não soubessem que eu sabia disso. Mas aquela mensagem encontrada em um pedaço de papel poderia levar mais pessoas a morrerem naquele lugar. Tínhamos perdido alguns prisioneiros em violentas sessões de punição – penso que em torturas que se excederam – e eu estava ficando farto disso. Era outono de 1969, eu já havia representado o papel de ator por quatro anos e nada parecia me aguardar senão a morte. Eu estava só, na sala principal de tortura, em uma parte isolada da prisão, na noite anterior ao dia em que eles me disseram que eu iria confessar tudo. Havia um clima misterioso na prisão. Ho Chi Minh tinha acabado de morrer, e podia-se ouvir um triste canto fúnebre em sua homenagem. Eu deveria ficar a noite toda sentado sobre grilhões de ferro. Minha cadeira estava perto da única janela com vidros da prisão. Consegui me mover lentamente, balançando minha cadeira de um lado para o outro e quebrar a janela, sem que fosse visto. Então, cortei as artérias de meu pulso com grandes estilhaços de vidro. Logo perdi os sentidos, mas um guarda, que fazia patrulhamento, encontrou- me desmaiado sobre uma piscina de sangue, porém ainda respirando. Os vietnamitas soaram o alarme, chamaram o médico deles e me salvaram. Por quê? Só encontrei essa resposta depois de vários anos após ter sido libertado, quando compreendi que, naquela mesma semana, Sybil tinha estado em Paris exigindo tratamento humano para os prisioneiros. Ela era notícia no mundo todo, uma figura pública, e a última coisa que os norte-vietnamitas precisavam era que eu morresse. Havia um grande grupo de oficiais norte- vietnamitas importantes na sala enquanto o médico me trazia de volta à vida. A tortura na prisão, nos moldes que conhecemos e sofremos em Hanói, terminou para todos naquela noite. É claro que levou meses para que tivéssemos a certeza de que a tortura realmente havia acabado. Tudo o que eu sabia naquela ocasião era que, naquela manhã, depois de meus braços serem cobertos e enfaixados, o oficial comunista em pessoa trouxe uma ótima xícara de chá doce quente, disse ao guarda prisional para tirar as algemas de minhas pernas e me pediu que sentasse à mesa com ele. “Por que você fez isso, Sto-Dale? Você sabe que eu respondo ao comando geral do exército. Eles me pediram um relatório completo esta manhã”. (Não era algo incomum falarmos assim naquele momento). Mas ele jamais mencionou a mensagem escrita em um pedaço de papel que eles haviam descoberto, nem ninguém mais depois disso. Isso não tinha precedentes. Depois de dois meses isolado em uma minúscula cela que chamávamos “Calcutá” para que meus braços sarassem, eles me vendaram e me levaram direto para o bloco de celas “Las Vegas”. O isolamento e a vigilância particular tinham terminado. Fui colocado só, claro, na “Casa da Moeda”. Dave Hatcher sabia que eu estava de volta porque fui conduzido sob sua janela e, embora ele não pudesse espiar, podia ouvir, e através dos anos tinha habituado os seus ouvidos a reconhecer o meu jeito peculiar de caminhar, o meu modo manco de andar. Logo o fio enferrujado sobre a pia do banheiro estava dobrado para o norte – o sinal de Dave Hatcher para “uma mensagem no fundo da garrafa debaixo da pia para Stockdale.” Como um velho piloto de guerra, olhei para trás para checar se havia alguém às minhas costas, observei rapidamente a mensagem e cuidadosamente a escondi em minhas calças do pijama prisional. De volta para a cela, depois que o guarda fechou a porta, sentei sobre o vaso sanitário (onde eu poderia disfarçadamente lançar a mensagem se o orifício de observação da porta da cela se movesse) e desdobrei o papel toalha de baixa qualidade no qual Hatcher, com excrementos de rato, escreveu, sem comentário ou assinatura, a última estrofe do poema de Ernest Henley, Invictus: Não importa quão estreita seja a passagem, Quão carregada de punição a sentença. Eu sou o mestre do meu destino: Eu sou o comandante da minha alma.[viii] * * * Apêndice 1: EPICTETO E STOCKDALE: ESTRATÉGIAS PARA COMBATER O ASSÉDIO MORAL Aldo Dinucci (Doutor em Filosofia, Professor do DFL/UFS) O presente texto se baseia em uma palestra que fiz para alunos do ensino médio em Tobias Barreto, cidade do interior de Sergipe, em outubro de 2017. Minha ideia era falar para os jovens sobre estratégias para combater o assédio moral e a manipulação, usando como ferramentas o pensamento de Epicteto e James Bond Stockdale. De Epicteto, vamos usar as duas principais premissas de seu pensa- mento. Para estefilósofo, as coisas do mundo dividem-se em dois grupos: ‘sob nosso controle’ e ‘não sob nosso controle’. As primeiras dependem de nós. As segundas não. As primeiras são boas ou más. As segundas não. Entre as primeiras, estão nossas operações mentais, como julgar, pensar, analisar, decidir. As segundas são tudo o mais que acontece no mundo e que não depende de nossos juízos, pensamentos, análises e decisões: nosso parentesco, a época e o lugar em que nascemos, assim como nossos corpos e nossa classe social. Agora vem a questão, e com ela a segunda premissa: em que sentido as coisas que não estão sob nosso controle e que não dependem de nós não são nem boas nem más? No sentido em que elas são os materiais para a ação e que podem ser bem ou mal usadas. Cabe a nós nos posicionar diante dos acontecimentos. Como agir é algo que nos concerne, isso é algo inteiramente sob nossa responsabilidade. Embora não sejam nem boas nem más, as coisas que não dependem de nós não se equivalem quanto à dificuldade de lidar com elas. Há coisas fáceis e há coisas difíceis de lidar. Por exemplo: estar no domingo à tarde em uma praia ensolarada tomando banho de sol não envolve muita dificuldade. Mas viver em um ambiente hostil no qual as pessoas a todo o momento tentam nos agredir física e moralmente é muito mais difícil. A partir disso, podemos entender o estoicismo de Epicteto como uma doutrina que nos prepara para agir diante de situações difíceis de modo a manter nossa sanidade mental e nossa integridade moral. Stockdale, em seus sete anos e meio como prisioneiro de guerra no Vietnã, aplicou a doutrina de Epicteto em um ambiente de hostilidade no qual se buscava isolar os prisioneiros e manter seu moral baixo. O assédio moral, segundo o site http://www.assediomoral.org/, pode ser definido como “a exposição [...] a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas [...] desestabilizando a relação da vítima com o ambiente”. Retirei da citação as referências ao trabalho, pois tais situações de assédio ocorrem também no lar, na escola, em todo tipo de associação humana. As situações humilhantes podem ser diversas, como piadinhas, tratamento desrespeitoso, imposição de tarefas incompatíveis, exclusão de atividades sociais, propagação de boatos que firam a reputação. A finalidade de humilhar alguém é destruir-lhe a autoestima e excluí-lo do meio social, é matá-lo socialmente. A seguir, destacaremos três estratégias para lutar contra o assédio moral e não permitir que os assediadores alcancem seu objetivo, libertando-nos do jugo deles e preservando nossa integridade moral. Descartamos por princípio a alternativa violenta, que pode ser o primeiro impulso de alguém submetido a assédio, por ser indevida social e legalmente. O alvo de assédio se vê em uma situação extremamente dolorosa, pois é atingido, enquanto ser humano, em sua dimensão social. Todos sabem que o humano sem o convívio adequado com outros http://www.assediomoral.org/ humanos se encontra em situação precária e perigosa, dada a necessidade do ser humano de estabelecer laços de afeto saudáveis e recíprocos com outros seres humanos. No cerne das estratégias indicadas a seguir está a ideia de que temos que tentar, em meio a situações difíceis, desfavoráveis e dolorosas, recusar o papel de vítima. Em outras palavras, se somos alvo de assédio, temos que, agindo ao mesmo tempo com firmeza e de forma moralmente correta, sair da passividade e do isolamento aos quais os assediadores buscam nos lançar. Para isso ocorrer, é fundamental: 1. Buscar união e apoio: se os assediadores querem eliminar social- mente o assediado, então cabe ao assediado buscar união, buscar pessoas que o apoiem. Primeiro, no próprio ambiente de assédio, o que é o mais difícil, pois, em geral, os assediadores constrangem os demais a darem as costas ao assediado. Segundo, buscar apoio familiar, amigos fora do ambiente hostil, apoio institucional (através de ouvidorias), apoio legal, apoio espiritual (caso a pessoa for religiosa). 2. Não fazer acordos: essa lição de Stockdale é difícil de aprender e de aplicar, mas é essencial para combater o assédio, tanto enquanto alvos quanto enquanto potencialmente cúmplices de situações de assédio. Como dissemos, nós, seres humanos, somos por natureza sociais, e por isso estimamos muito ser admitidos e fazer parte de grupos. Porém, muitas vezes, o preço do ingresso ao grupo é se comprometer com algum valor desumanizante, alguma opinião racista, classista, sexista etc. Muitas vezes concordamos com coisas tais, ou nos silenciamos diante da expressão de tais opiniões, porque não queremos criar atritos com as pessoas que compõem esse grupo. Mas aqui vale lembrar: as piadinhas e gracejos racistas, sexistas, classistas, por exemplo, têm consequências reais e nada engraça- das: pessoas são destratadas, excluídas e mesmo mortas em razão delas, pois essas piadas e opiniões, em última análise, sugerem que seus alvos não merecem respeito e devem ser eliminados do convívio social. Então cabe ao humano íntegro não compactuar com tais valores através do silêncio. Por mais duro que seja, é preciso discordar frontalmente, se retirar após o fato, é preciso demonstrar não estar de acordo com as opiniões expressas. 3. Fazer a coisa certa: não basta não compactuar com valores desumanizantes, mas é preciso também, como estratégia final para eliminar o assédio, promover valores humanizantes, como a defesa do meio-ambiente, os direitos humanos, a ideia de que há apenas uma humanidade, bem como dar o exemplo na vida diária. No nosso país, imperam os maus exemplos: pessoas dirigem pelas ruas como lunáticos; outras, furam filas; outras, são incapazes de nos cumprimentar, embora nos conheçam; há infinitos maus exemplos à nossa disposição. Que sejamos, então, exemplos do contrário. Apêndice 2: SOBRE MANUAIS E EXERCÍCIOS Marcos Balieiro (Doutor em Filosofia, Professor do DFL/UFS) Em Coragem sob Fogo, discurso proferido no Great Hall do King’s College em 1993, James Bond Stockdale faz a seguinte afirmação acerca da atitude mental que havia adotado durante seu período como prisioneiro de guerra: [...] nós, que estamos aqui subjugados pelas armas, somos os especialistas, senhores do nosso destino, ignore os ecos da culpa induzida dos decretos governamentais vazios, jogue no lixo o manual de treinamento e escreva o seu próprio manual. A consideração de que se deveria escrever seu próprio manual parece curiosa, especialmente quando nos lembramos de que ele havia memorizado o Manual de Epicteto, à maneira como pilotos memorizam manuais de instruções de seus caças. O discurso de Stockdale, como se sabe, tem o subtítulo “Testando as Doutrinas de Epicteto em um Laboratório Comportamental Humano”, de modo que seria de se esperar que o ora- dor empreendesse algo como a defesa de um conjunto de preceitos que constassem do livro em que um aluno do antigo estoico sistematizou seus preceitos, para que pudessem ser levados à mão. Por outro lado, Stockdale testou seu estoicismo em uma situação bastante desoladora, na qual não bastava estar a par deste ou daquele conceito. Decorar um texto certamente não o teria preparado para enfrentar os horrores que ele descreve em seu discurso. Não à toa, ele faz questão de lembrar que Epicteto considerava que seu aluno ideal deveria ser capaz de “falar sobre coisas que o farão forte se seu filho morrer, se seu irmão morrer, ou se ele mesmo tiver de morrer ou ser torturado”. O estoicismo, segundo essa concepção, não seria um conjunto de doutrinas que permiti- riam vencer uma discussão de intelectuais empedernidos, mas consistiria, antes de qualquer outra coisa, em um conjunto de preceitos que teriam por objetivo a orientação da conduta por meio de práticas que permitiram temperar o caráter. Não por acaso, Stockdale faz questão de lembrar que os poucos que aderiram à busca estoica por disciplina foram, em seu tempo, “os melhores”, os dotados de maior fibra moral. Isso só teria sido possível porque,no esforço de atingirem um estado de indiferença a tudo, exceto ao bem e ao mal, seria necessária uma atitude de “total responsabilidade por cada uma de suas próprias emoções”. Esse é um aspecto importante porque nos permite refletir sobre o lugar que manuais podem vir a ter no que diz respeito ao estoicismo. Epicteto, por exemplo, não escreveu seu próprio manual. Os preceitos que encontramos no Encheirídion são uma espécie de síntese das aulas transcritas por um discípulo, Arriano. Desse modo, podemos inferir que Epicteto estaria, a exemplo de Sócrates, mais preocupado em ensinar uma filosofia que fosse diretamente informada pela vida prática, ainda que não se opusesse à ideia de que seus preceitos circulassem por meio de transcrições. Isso é algo que fica evidente quando prestamos atenção ao fato de várias passagens do manual de Epicteto consistirem em exercícios, os quais dizem respeito a considerações que é preciso ter sempre diante de si. Exemplos incluem passagens como “Que estejam diante dos teus olhos, a cada dia, a morte, o exílio e todas as coisas que se afiguram terríveis, sobretudo a morte. Assim, jamais ponderarás coisas abjetas, nem aspirarás a coisa alguma excessivamente” (EPICTETO, 2012, p. 22), ou “Quanto a cada uma das coisas que sucedem contigo, lembra, voltando a atenção para ti mesmo, de buscar alguma capacidade que sirva para cada uma delas” (EPICTETO, 2012, p. 18). Não pretendemos, aqui, analisar o conteúdo mesmo dessas doutrinas, mas deixar claro que o filósofo busca oferecer preceitos que ganharão sentido, principalmente, quando forem remetidos à prática daquele que pretender levá-los a sério. Outro manual de teor bastante peculiar é aquele que Marco Aurélio escreveu para si mesmo. Ainda que essa obra circule, atualmente, com o título mais pomposo de Meditações (que o leitor não espere grandes semelhanças com certa obra moderna de caráter quase que exclusivamente especulativo), o nome original do texto poderia ser mais propriamente traduzido por algo como “notas para uso próprio”. O início do texto deixa bastante claro, por seu tom inequivocamente pessoal, que não se trata de mera retórica ou de estratégia de marketing: De meu avô, Vero, aprendi a apreciar as boas maneiras, e a refrear toda ira. Da fama e do caráter obtidos por meu pai, aprendi a modéstia e o comportamento viril. De minha mãe, aprendi a ser religioso e liberal, e a me precaver não apenas contra a prática de qualquer mal, mas também contra quaisquer más intenções que adentrassem meus pensamentos, e a me contentar com uma dieta frugal muito diferente da moleza e do luxo tão comuns entre os ricos. [...] (MARCO AURÉLIO, 1997, p. 25) Percebe-se, de saída, que Marco Aurélio considera suas “meditações” como um conjunto de preceitos que foram desenvolvidos não apenas a partir da reflexão filosófica fria, de gabinete, mas por meio de uma experiência do mundo. Isso não porque se trata de sermos moldados pela experiência (certamente não é o caso), mas porque é em face delas que o caráter deverá ser temperado; a prática nos confronta com aquilo a que devemos aprender a resistir. Em boa parte do texto, o imperador trata de registrar observações que, ao olhar desavisado, pareceriam apenas bons conselhos, mas se revelam, em última análise, exercícios que têm por propósito preparar a alma para que ela se torne capaz de lidar com adversidades de todos os tipos. Um bom exemplo é o seguinte: Diga a si próprio a cada manhã: hoje pode ser que eu tenha que lidar com um intrometido, com um ingrato, um insolente, um ardiloso, um invejoso ou um egoísta. Essas más qualidades se apoderaram deles por conta de sua ignorância de quais coisas são verdadeiramente boas ou más. Porém, eu compreendi inteiramente a natureza do bem, como sendo apenas o que é belo e honroso, e a do mal, que é sempre deformado e vergonhoso. (MARCO AURÉLIO, 1997, p. 33) Logo em seguida, o filósofo considera que não pode ser ferido pelos tipos maldosos que mencionara, porque não permitirá que o envolvam em nada que seja desonroso ou deformado. Ainda, como bom adepto do cosmopolitismo estoico, tratará de não se enfurecer contra seus semelhantes, que, por piores que sejam, foram formados pela natureza de maneira tal que os seres humanos todos se apoiem mutuamente. De qualquer modo, novamente o que nos interessa, aqui, não é uma análise detalhada desta ou daquela tese: desejamos chamar a atenção para o fato de que Marco Aurélio apresenta esses preceitos como algo que é preciso ter sempre em mente, que se deve repetir a cada manhã, de modo a evitar que caracteres alheios possam nos afetar negativamente. A ideia de que a filosofia deva compreender uma série de exercícios práticos encontrou eco, também, em recepções modernas do estoicismo. Anthony Ashley Cooper, Terceiro Conde de Shaftesbury, nos oferece um bom exemplo em seus Askhmata. Chamam a atenção, nesse sentido, referências a estoicos antigos, como a menção óbvia a Marco Aurélio em passagens como “Lembra-te sempre: ‘Não te deixes perturbar, não cedas’, ‘Não te percas na conversação’” (SHAFTESBURY, 2016, p. 25), ou as referências a Arriano e a Epicteto no trecho “Tu, de tua parte, lembra-te disto: ‘regozijar-se é racional porque temos razão para nos regozijarmos juntos’... Não tenhas condolência e complacência senão ‘quando vires alguém chorando’” (SHAFTESBURY, 2016, p. 175). Mais uma vez, vemos um pensador que orienta mesmo suas pretensões teóricas pela necessidade de fazer com que estejam sempre diante de si os preceitos que, ainda que surjam da reflexão, nunca deixam de remeter à vida. De fato, é impossível esquecer, ao longo da leitura dos Askhmata, que se trata de preceitos que exigem prática reiterada. Isso é particularmente evidente em passagens como “Lembra-te [...] como, num mesmo instante, uma mudança de postura é seguida por absoluta mudança de espírito” (SHAFTESBURY, 2016, p. 25-6) ou “[...] abandona aquele outro jeito, aberto, franco, indecente, profuso. Mas então deves também abandonar os objetos, os desígnios, fins etc. Correspondentes e tornar-te um novo homem” (SHAFTESBURY, 2016, p. 26). Trata-se, aqui, de modificar, por meio de exercício constante, a própria maneira como o filósofo se porta no mundo. Vivemos em um tempo em que a filosofia se profissionalizou como atividade de professores sisudos. Com isso, é comum que seja vista como um conjunto de reflexões demasiadamente abstratas e distantes da vida comum. Pensadores como Epicteto, Marco Aurélio e Shaftesbury nos lembram de que, ao menos em certas concepções, a atividade filosófica sempre esteve relacionada a um problema bastante concreto, a saber, o de encontrar preceitos que conduzam a uma vida boa e feliz. Seria possível objetar, é verdade, que há algo de inconsistente em defender que esse tipo de filosofia depende de uma reflexão atenta e constante sobre a prática comum e, ao mesmo tempo, lembrar manuais que foram resultado de outras reflexões, sobre práticas de momentos excessivamente distantes. Essa objeção, porém, perde de vista o ponto principal: mais do que recuperar preceitos deste ou daquele autor, o que tentamos mostrar, aqui, foi que, ao fim e ao cabo, talvez a filosofia dependa, mais do que de qualquer outra coisa, de uma atitude. Isso é algo que as obras mencionadas aqui certamente ilustram de maneira bastante adequada. REFERÊNCIAS EPICTETO. O Manual de Epicteto. Tradução de Aldo Dinucci e Alfredo Julien. São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe, 2012. MARCO AURÉLIO. Meditations. Translated by Francis Hutcheson and James Moor. Indianapolis: Liberty Fund, 2008. SHAFTESBURY. Exercícios (Askhmata). Tradução de Pedro Paulo Pi- menta. São Paulo: UNESP, 2016. Apêndice 3: O ESTOICISMO É MAIS DO QUE UM MANUAL Marcus de Aquino Resende (Doutorando em filosofia PPGF/UFS) A história do piloto de caças da Marinha Americana, James Bond Stockdale, registrada originalmente por ele mesmo em seu livro Courage Under Fire: Testing Epictetus’s Doctrines in a Laboratory of Human Behavior,
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