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2015 FilosoFia Política Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser Prof. Gesiel Anacleto Copyright © UNIASSELVI 2015 Elaboração: Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser Prof. Gesiel Anacleto Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. 100 L685f Leyser, Kevin Daniel dos Santos Filosofia política / Kevin Daniel dos Santos Leyser, Gesiel Anacleto. Indaial : UNIASSELVI, 2015. 340 p. : il. ISBN 978-85-7830-881-0 1. Filosofia. I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. Impresso por: III aPresentação Caro(a) acadêmico(a)! O presente Caderno de Estudos tem como objetivo sistematizar os elementos básicos da disciplina de Filosofia Política, o qual proporcionará um contato com os principais tópicos, autores e obras da área, além dos instrumentos necessários não apenas para acompanhar a disciplina ofertada, mas também para os estudos autônomos posteriores. Na primeira Unidade vamos nos concentrar em alguns autores e suas respectivas obras fundamentais à filosofia política. De Platão, analisaremos a Apologia de Sócrates (2008a), Críton (2008b) e A República (2001), de Aristóteles, A Política (1985, 2009) e de Maquiavel, O Príncipe (2001b, 2009a). No primeiro tópico desta Unidade, vamos introduzir as questões centrais que fundamentam a filosofia política. Estas questões nortearão todo o desenvolvimento desta disciplina lançando problemas perenes que perpassam desde a filosofia política clássica à filosofia política contemporânea. Assim, em segundo lugar, vamos analisar a Apologia de Sócrates (2008a), o contexto político da época, as acusações contra Sócrates e modelo de cidadania proposto por ele. Vamos estudar brevemente outro diálogo platônico, uma obra intitulada Críton (2008b), veremos questões como: a desobediência à lei justificada por princípios, a apologia de Críton e vamos aplicar as lições de Atenas ao nosso mundo atual. No segundo tópico, vamos estudar a famosa obra de Platão, A República (2001), mais especificamente, do Livro I ao V. Vamos introduzir, primeiramente, A República de Platão e os personagens centrais que compõem o seu diálogo: Céfalo, Polemarco, Trisímaco, Gláucon e Adimanto. Cada personagem com suas próprias características e argumentos serão centrais para a compreensão da proposta da República platônica, de seu pensamento político. A seguir, vamos nos concentrar no papel da “impetuosidade” para o estabelecimento da cidade justa. Então, já no Livro V da República, vamos analisar o controle das paixões, a proposta para a construção da cidade bela, a questão da justiça e do filósofo-rei. O que nos levará à discussão do que Platão tem a dizer sobre as democracias modernas. No terceiro tópico vamos analisar a obra A Política (1985, 2009), vamos nos ater nos Livros I-III, no conceito de Aristóteles de que o “homem é naturalmente o animal político”. Isso nos levará a uma polêmica tese aristotélica, aquela da naturalidade da escravatura. A seguir, vamos analisar, no Livro IV da obra, questões sobre o regime político ou as formas de governo, assim como as suas estruturas e instituições. Vamos nos ater um IV pouco sobre o regime democrático e sobre questões da lei, do conflito, do direito e da justiça natural. Na discussão do Livro VII, veremos a proposta da Politeia de Aristóteles e as soluções que ele propõe para os problemas das facções. Vamos também abordar a visão do filósofo sobre a propriedade e o comércio, assim como, discutir sobre o seu modelo para o melhor regime, a sua ciência política, sua percepção de um estadista e o seu método para o estudo da política. No quarto tópico, nos concentraremos na análise da obra O Príncipe (2001b, 2009a) de Nicolau Maquiavel, vamos discutir a famosa distinção que ele estabelece entre os “profetas armados” e os “profetas desarmados”. Um tema central que também será visto nesta parte é a visão de Maquiavel sobre o bem e o mal, a virtude e o vício, e um problema central do pensamento de Maquiavel, o “problema das mãos sujas”, tal como seu papel na compreensão do envolvimento político. Na segunda Unidade vamos analisar algumas obras fundamentais à filosofia política moderna. De Thomas Hobbes, analisaremos o Leviatã (2003), de John Locke, o Segundo Tratado sobre o Governo Civil (1994, 1998a) e de Jean- Jacques Rousseau, o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1999b) e O Contrato Social (1996, 1999c). No tópico sobre Thomas Hobbes, abordaremos temas como a arte, a ciência, a política, e a legitimidade da autoridade no pensamento hobbesiano. Vamos focar na primeira parte, “Do homem”, de sua obra o Leviatã, aprofundando temas centrais como a individualidade, o conhecimento, o estado de natureza, as paixões do orgulho e do medo e as leis da natureza. Então, analisaremos a segunda parte da obra, intitulada “Da República”, discutindo temas como a doutrina do positivismo jurídico, o liberalismo e o estado moderno hobbesiano. No tópico sobre John Locke, veremos temas centrais do pensamento lockeano, como a teoria da lei natural, o estado de natureza, a propriedade e o trabalho. Analisaremos também a relação da perspectiva lockeana e o “espírito do capitalismo”, a ideia de um governo pelo consentimento, a proposta de um governo limitado e o papel do poder executivo na teoria de Locke. Para finalizar o tópico faremos uma comparação entre a teoria do liberalismo lockeano e a teoria da justiça de John Rawls. No tópico sobre Jean-Jacques Rousseau, vamos discutir sua concepção do Estado de Natureza, e sua proposta da transição do homem deste estado à sociedade. Veremos o papel do conceito de amour-propre e sua relação com a desigualdade e o mal-estar na civilização. A seguir, vamos nos focar em sua obra O contrato Social, analisando tanto o papel deste contrato social e o conceito de “vontade geral”. Finalizaremos nossa discussão das duas obras referidas com uma consideração ao legado dos escritos rousseaunianos. V Na terceira Unidade faremos uma análise sobre o totalitarismo a partir da obra de Hannah Arendt. Nosso estudo levará em conta os aspectos principais dos regimes totalitários que se instalaram na Alemanha e na Rússia. O estado moderno será assunto do segundo tópico tendo como embasamento teórico a obra de Eric Weil. O conteúdo desenvolvido a partir de Weil nos possibilita compreender a maneira como o indivíduo se relaciona com a comunidade da qual faz parte e qual a importância da sua participação política para o exercício pleno da cidadania. No terceiro e último tópico faremos um estudo da justiça, liberdade e igualdade a partir da magna obra Uma Teoria da Justiça de John Rawls. Esta obra consiste num clássico contemporâneo sobre a justiça como equidade. É apresentada como uma alternativa ao utilitarismo, pois a ideia principal visa à concepção dos princípios de justiça que tenham como meta principal a liberdade e a igualdade de todos. Lembre-se, sempre que é necessário realizar as leituras das obras e dos textos específicos referidos neste caderno, assim como dos textos complementares, para que de fato o conhecimento desta disciplina seja construído. Boa jornada a todos, rumo à edificação da educação e sucesso frente aos desafios intelectuais, éticos e pessoais proporcionados pelo estudo da filosofia política. Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser e Prof. Gesiel Anacleto VI Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estãode visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos! UNI VII VIII IX UNIDADE 1 – A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL ............ 1 TÓPICO 1 – PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON .............................................. 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 O QUE É A FILOSOFIA POLÍTICA? ................................................................................................ 4 2.1 O QUE É UM REGIME POLÍTICO? .............................................................................................. 6 2.2 QUEM É UM ESTADISTA? O QUE É UM ESTADISTA? .......................................................... 9 2.3 QUAL É O MELHOR REGIME? .................................................................................................... 10 3 A CIDADANIA SOCRÁTICA: PLATÃO E A APOLOGIA .......................................................... 12 3.1 O CONTEXTO POLÍTICO DO DIÁLOGO .................................................................................. 14 3.2 AS ACUSAÇÕES CONTRA SÓCRATES ...................................................................................... 16 3.3 AS NUVENS: SOLAPANDO O MODELO DE CIDADANIA DE SÓCRATES ...................... 18 3.4 O “GIRO” SOCRÁTICO ................................................................................................................. 19 4 A CIDADANIA SOCRÁTICA: PLATÃO E CRÍTON .................................................................... 22 4.1 A DESOBEDIÊNCIA À LEI JUSTIFICADA POR PRINCÍPIOS ................................................ 24 4.2 A APOLOGIA DE CRÍTON............................................................................................................ 27 4.3 APLICANDO AS LIÇÕES SOCRÁTICAS AO NOSSO MUNDO CONTEMPORÂNEO ..... 31 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 33 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 35 TÓPICO 2 – OS FILÓSOFOS E OS REIS: PLATÃO E A REPÚBLICA ......................................... 37 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 37 2 PLATÃO E REPÚBLICA: LIVROS I-II ............................................................................................. 37 2.1 SOBRE O QUE É A REPÚBLICA DE PLATÃO? ......................................................................... 38 2.3 A CARTA SÉTIMA .......................................................................................................................... 42 2.4 O INÍCIO DA REPÚBLICA E A HIERARQUIA DOS PERSONAGENS ................................. 44 2.5 CÉFALO ............................................................................................................................................ 45 3 PLATÃO E A REPÚBLICA: LIVROS III-IV..................................................................................... 48 3.1 POLEMARCO .................................................................................................................................. 48 3.2 TRASÍMACO ................................................................................................................................... 3.3 GLÁUCON ....................................................................................................................................... 52 3.4 ADIMANTO ..................................................................................................................................... 53 3.5 A IMPETUOSIDADE E O ESTABELECIMENTO DA CIDADE JUSTA .................................. 56 4 PLATÃO E A REPÚBLICA: LIVRO V............................................................................................... 58 4.1 O CONTROLE DAS PAIXÕES ....................................................................................................... 59 4.2 UMA PROPOSTA PARA A CONSTRUÇÃO DE KALLIPOLIS ............................................... 60 4.3 A JUSTIÇA ........................................................................................................................................ 62 4.4 O FILÓSOFO-REI ............................................................................................................................. 64 4.5 PLATÃO E AS DEMOCRACIAS MODERNAS .......................................................................... 66 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 70 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 72 TÓPICO 3 – O REGIME MISTO E A NOMOCRACIA: ARISTÓTELES E A POLÍTICA ......... 73 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 73 2 ARISTÓTELES E A POLÍTICA: LIVROS I-III ................................................................................ 73 sumário X 2.1 O HOMEM É NATURALMENTE O ANIMAL POLÍTICO ....................................................... 76 2.2 A NATURALIDADE DA ESCRAVATURA .................................................................................. 80 3 ARISTÓTELES E A POLÍTICA: LIVRO IV ..................................................................................... 83 3.1 O QUE É UM REGIME POLÍTICO OU UMA FORMA DE GOVERNO? .............................. 84 3.3 O REGIME DEMOCRÁTICO ......................................................................................................... 88 3.4 A LEI, O CONFLITO E O REGIME ............................................................................................... 91 3.5 O PADRÃO ARISTOTÉLICO DE DIREITO NATURAL OU DE JUSTIÇA NATURAL ........ 93 4 ARISTÓTELES E A POLÍTICA: LIVRO VII ................................................................................... 94 4.1 POLITEIA: O REGIME QUE CONTROLA AS FACÇÕES COM MAIOR SUCESSO ............ 95 4.2 A IMPORTÂNCIA DA PROPRIEDADE E DO COMÉRCIO PARA A REPÚBLICA PRÓSPERA ........................................................................................................................................96 4.3 A REPÚBLICA ARISTOCRÁTICA: UM MODELO PARA O MELHOR REGIME ................ 98 4.4 O QUE É A CIÊNCIA POLÍTICA DE ARISTÓTELES? .............................................................. 101 4.5 QUEM É UM ESTADISTA? ............................................................................................................ 103 4.6 O MÉTODO DE CIÊNCIA POLÍTICA DE ARISTÓTELES ....................................................... 104 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 107 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 109 TÓPICO 4 – NOVOS MÉTODOS E SISTEMAS: MAQUIAVEL E O PRÍNCIPE ....................... 111 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 111 2 QUEM ERA MAQUIAVEL? ................................................................................................................ 111 2.1 O PRÍNCIPE: O TÍTULO E A DEDICAÇÃO DO LIVRO ........................................................... 115 2.2 A DISTINÇÃO ENTRE PROFETAS ARMADOS E DESARMADOS ....................................... 117 2.3 O BEM E O MAL, A VIRTUDE E O VÍCIO .................................................................................. 118 3 NOVOS MÉTODOS E SISTEMAS ................................................................................................... 120 3.1 COMENTÁRIOS SOBRE TITO LÍVIO .......................................................................................... 121 3.2 O PROBLEMA DAS “MÃOS SUJAS” ........................................................................................... 123 3.3 MAQUIAVEL ERA UM MAQUIAVÉLICO? ............................................................................... 126 3.4 O QUE MAQUIAVEL ALCANÇOU? ........................................................................................... 129 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 132 RESUMO DO TÓPICO 4........................................................................................................................ 134 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 137 UNIDADE 2 – FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU .......... 139 TÓPICO 1 – THOMAS HOBBES E O LEVIATÃ: O ESTADO SOBERANO ............................... 141 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 141 2 QUEM FOI THOMAS HOBBES? ...................................................................................................... 141 2.1 HOBBES, MAQUIAVEL E ARISTÓTELES................................................................................... 145 2.2 A ARTE, A CIÊNCIA E A POLÍTICA EM HOBBES ................................................................... 147 2.3 O QUE TORNA A AUTORIDADE LEGÍTIMA POSSÍVEL? ..................................................... 149 2.4 UM RELATO PLAUSÍVEL DO “ESTADO DE NATUREZA” ................................................... 151 3 HOBBES E A INDIVIDUALIDADE: PARTE 1 – DO HOMEM .................................................. 152 3.1 HOBBES e A VISÃO CÉTICA DO CONHECIMENTO ............................................................. 154 3.2 O ESTADO DE NATUREZA .......................................................................................................... 155 3.3 ORGULHO E MEDO: AS PAIXÕES QUE DOMINAM A NATUREZA HUMANA ............. 157 3.4 AS LEIS DA NATUREZA ............................................................................................................... 159 4 A TEORIA DA SOBERANIA DE HOBBES: PARTE 2 – DA REPÚBLICA ................................ 163 4.1 A DOUTRINA DO POSITIVISMO JURÍDICO: A LEI É O QUE O SOBERANO COMANDA ...................................................................................................................................... 165 4.2 O LIBERALISMO HOBBESIANO ................................................................................................. 169 4.3 HOBBES E O ESTADO MODERNO ............................................................................................. 171 XI RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 174 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 178 TÓPICO 2 – JOHN LOCKE E O SEGUNDO TRATADO: O GOVERNO CONSTITUCIONAL ........................................................................................................ 179 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 179 2 QUEM É JOHN LOCKE? ..................................................................................................................... 179 2.1 JOHN LOCKE E A TEORIA DA LEI NATURAL ........................................................................ 182 2.2 A LEI NATURAL E O ESTADO DE NATUREZA ...................................................................... 185 2.3 A PROPRIEDADE, O TRABALHO E A TEORIA DA LEI NATURAL .................................... 191 3 LOCKE E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO .................................................................................. 193 3.1 GOVERNO PELO CONSENTIMENTO ....................................................................................... 196 3.2 O GOVERNO LIMITADO DE LOCKE ......................................................................................... 201 4 O PODER EXECUTIVO NA TEORIA DO GOVERNO DE LOCKE .......................................... 202 4.1 A TEORIA DA JUSTIÇA DE RAWLS E A TEORIA DO LIBERALISMO DE LOCKE ........... 209 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 213 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 218 TÓPICO 3 – JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE E O CONTRATO SOCIAL ...................................................................................................... 219 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 219 2 QUEM É JEAN-JACQUES ROUSSEAU? ......................................................................................... 219 2.1 O ESTADO DE NATUREZA DE ROUSSEAU ............................................................................. 223 2.2 A TRANSIÇÃO DO HOMEM, DA NATUREZA À SOCIEDADE: CIVILIZAÇÃO E PROPRIEDADE ................................................................................................................................ 228 3 O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE: A PARTICIPAÇÃO E A DEMOCRACIA ....... 230 3.1 AMOUR-PROPRE: A CAUSA MAIS DURÁVEL DA DESIGUALDADE ............................... 231 3.2 O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO .............................................................................................. 236 3.3 O CONTRATO SOCIAL ................................................................................................................. 239 4 O CONTRATO SOCIAL E A VONTADE GERAL ........................................................................ 241 4.1 APLICAÇÕES DA VONTADE GERAL ........................................................................................ 247 4.2 O LEGADO DE ROUSSEAU ..........................................................................................................248 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 252 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 259 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 264 UNIDADE 3 – FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA ....................................................... 265 TÓPICO 1 – O TOTALITARISMO ....................................................................................................... 267 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 267 2 HANNAH ARENDT ............................................................................................................................ 267 3 ESTADO TOTALITÁRIO ................................................................................................................... 269 3.1 A MENTIRA E O TERROR ............................................................................................................. 269 3.2 A POLÍCIA SECRETA TOTALITÁRIA ......................................................................................... 270 3.3 A PROPAGANDA ........................................................................................................................... 272 3.4 AS MASSAS ...................................................................................................................................... 275 4 O ANTISSEMITISMO E OS APÁTRIDAS ..................................................................................... 278 5 “TUDO É POSSÍVEL” .......................................................................................................................... 282 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 284 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 286 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 287 XII TÓPICO 2 – A MORAL, O ESTADO, A SOCIEDADE E O INDIVÍDUO.................................... 289 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 289 2 ERIC WEIL ............................................................................................................................................. 290 3 A DISCUSSÃO NA CONSTRUÇÃO SOCIAL ............................................................................... 291 4 O ESTADO MODERNO ...................................................................................................................... 295 5 CIDADANIA ......................................................................................................................................... 301 6 A MORAL E A POLÍTICA .................................................................................................................. 302 7 O VALOR SOCIAL ............................................................................................................................... 306 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 307 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 308 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 309 TÓPICO 3 – JUSTIÇA, LIBERDADE E IGUALDADE ..................................................................... 311 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 311 2 JOHN RAWLS ....................................................................................................................................... 311 3 UMA ALTERNATIVA AO UTILITARISMO ................................................................................... 313 4 A JUSTIÇA COMO EQUIDADE ...................................................................................................... 315 4.1 O PRINCÍPIO DE DIFERENÇA .................................................................................................... 320 4.2 A ESTRUTURA BÁSICA DA SOCIEDADE ................................................................................. 321 5 O CONCEITO DE LIBERDADE E A LIBERDADE IGUAL ......................................................... 324 5.1 TOLERÂNCIA .................................................................................................................................. 325 6 DEVER E OBRIGAÇÃO ...................................................................................................................... 327 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................... 328 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 329 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 331 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 332 REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 333 1 UNIDADE 1 A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS Esta unidade tem por objetivos: • conceituar e delimitar o campo de investigação da Filosofia Política; • conhecer questões centrais à Filosofia Política em Platão, Aristóteles e Ma- quiavel; • analisar as contribuições dos pensadores à Filosofia Política a partir de suas obras: Apologia de Sócrates, Críton e A República (Platão); Política (Aristóteles) e; O Príncipe (Maquiavel). • compreender o pensamento da Filosofia Política Clássica (Platão e Aristó- teles) e a transição paradigmática no pensamento político de Maquiavel. Esta unidade está dividida em quatro tópicos e no final de cada um deles você encontrará atividades que reforçarão o seu aprendizado. TÓPICO 1 - PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON TÓPICO 2 - OS FILÓSOFOS E OS REIS: PLATÃO E A REPÚBLICA TÓPICO 3 - A POLÍTICA DE ARISTÓTELES E O REGIME MISTO TÓPICO 4 - NOVOS MÉTODOS E SISTEMAS: MAQUIAVEL E O PRÍNCIPE 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON 1 INTRODUÇÃO Neste tópico, em primeiro lugar, vamos introduzir as questões centrais que fundamentam a filosofia política. Questões como: O que é a filosofia política? O que é um regime político? O que é um estadista? Qual é o melhor regime? Estas questões nortearão todo o desenvolvimento desta disciplina, lançando problemas perenes que perpassam desde a filosofia política clássica à filosofia política contemporânea. Por mais que os problemas permaneçam, as respostas aos mesmos são variadas e divergem entre os autores, constituindo assim um campo heterogêneo e rico, com propostas distintas para as questões centrais da filosofia política. São estas respostas às questões centrais da filosofia política que constituem o material analisado nesta disciplina. É óbvio que seria impossível contemplar todos os autores, desde os clássicos aos contemporâneos. Por isso, optamos por alguns autores específicos do período da filosofia política clássica: Sócrates/Platãoe Aristóteles; da transição deste período ao Moderno: Maquiavel – os quais serão vistos nesta primeira unidade. Autores do período da filosofia política moderna: Hobbes, Locke e Rousseau, que serão vistos na Unidade 2; e autores do período da filosofia política contemporânea: Hannah Arendt, Eric Weil e John Rawls, que serão vistos na Unidade 3. Optamos por analisar obras específicas de cada autor referido acima, consagradas como centrais para compreender seu pensamento político. A leitura dessas obras deverá acompanhar a leitura deste Caderno de Estudos. Na medida em que você avança nos tópicos das unidades, recomendamos sempre retornar à leitura atenta das obras discutidas, pois assim poderá compreender com mais profundidade cada tema abordado, ampliando sua capacidade de análise e interpretação. Assim, em segundo lugar, vamos analisar neste tópico a obra de Platão (428/427 AEC – 348/347 AEC) intitulada Apologia de Sócrates (2008a), cuja leitura, como referido, é obrigatória para esta disciplina. Neste diálogo de Platão vamos discutir o contexto político da época, as acusações contra Sócrates e o modelo de cidadania proposto por ele, quem consideramos ser o fundador da filosofia política. A seguir, em terceiro lugar, vamos analisar brevemente outro diálogo platônico, uma obra intitulada Críton (2008b), que também é de leitura obrigatória UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL 4 para esta disciplina. Aqui veremos questões como: a desobediência à lei justificada por princípios, a apologia de Críton, e vamos aplicar as lições de Atenas ao nosso mundo de hoje. Por fim, você poderá ler o resumo deste tópico 1 e depois realizar a sua autoatividade. 2 O QUE É A FILOSOFIA POLÍTICA? Vamos começar levantando a seguinte questão: o que é filosofia política? O costume dita que de início se diga algo sobre o assunto em questão. De algum modo isto será “pôr a carroça na frente dos bois”, pois, como podemos dizer o que é filosofia política antes de fazê-lo? De qualquer modo, vamos expor questões úteis. Em um sentido, podemos dizer que filosofia política é simplesmente uma ramificação ou o que chamamos de um subcampo do campo da ciência política. Sim, ela existe ao lado de outras áreas da investigação política, como, por exemplo, a política comparativa e as relações internacionais. Todavia, em outro sentido, a filosofia política é algo muito diferente do que um simples subcampo; parece ser a parte mais antiga e fundamental da ciência política. Seu propósito é desnudar, por assim dizer, os conceitos fundamentais e categorias que enquadram o estudo da política. A este respeito aparenta menos como meramente uma ramificação da ciência política e mais como a fundação da disciplina como tal. O estudo da filosofia política frequentemente inicia, como também faremos neste Caderno de Estudos, com o estudo dos grandes livros ou alguns dos grandes livros de nosso campo. A filosofia política é a mais antiga das ciências sociais, e pode ostentar uma riqueza de pesos pesados, desde Platão e Aristóteles a Maquiavel, Hobbes, Hegel, Tocqueville, Nietzsche, e assim por diante. Poderíamos dizer que a melhor maneira de aprender o que é filosofia política seria simplesmente estudar e ler os trabalhos daqueles que moldaram o campo. Entretanto, para fazer isso, devemos reconhecer que é um trabalho com riscos, com frequência, riscos graves por si sós. Por exemplo, por que estudar estes autores e não outros? Uma lista de supostos grandes pensadores ou grandes textos não é, de algum modo, arbitrária, dizendo-nos mais sobre o que tal lista exclui que o que ela inclui? Além disso, poderia parecer que o estudo de grandes livros e grandes pensadores do passado pode facilmente degenerar em um tipo de antiquarismo, em um tipo de pedantismo. Nós nos encontramos facilmente intimidados por uma lista de nomes famosos e acabamos não pensando em nós mesmos. Seguindo nessa linha de pensar, será que o estudo de livros antigos, com frequência muito antigos, não põe em risco passar despercebidas as questões que enfrentamos na atualidade? A ciência política não faz nenhum progresso? Afinal, economistas não leem mais Adam Smith. Não hesitaria em afirmar que muitos não leriam Adam Smith em um curso de Economia, assim como é provável que muitos não lessem Freud em um curso de Psicologia. Então, por que a ciência TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON 5 2 O QUE É A FILOSOFIA POLÍTICA? política, aparentemente singular entre as ciências sociais, continua a estudar Aristóteles, Locke, e outros autores e suas obras antigas? Estas são todas questões reais, as levantamos agora para que possam pensar sobre estas questões na medida em que fazem as suas leituras e trabalhos desta disciplina. Uma razão pela qual sugerimos que continuemos a ler estes livros não é porque a ciência política não faz nenhum progresso, ou que de alguma forma está exclusivamente fixada em um passado antigo, mas porque estas obras nos fornecem as perguntas mais básicas que continuam a orientar o nosso campo. Nós continuamos a fazer as mesmas perguntas que foram feitas por Platão, Maquiavel, Hobbes e outros. Nós podemos não aceitar as suas respostas, e é bem provável que nós não o façamos, mas suas perguntas são, muitas vezes, formuladas com uma clareza e discernimento inigualável. O fato é que ainda existem pessoas no mundo, muitas pessoas, que se consideram aristotélicos, tomistas, lockeanos, kantianos, até mesmo marxistas podem ser encontrados nas várias universidades nacionais e internacionais. Estas doutrinas simplesmente não foram refutadas, ou substituídas, ou historicamente superadas; elas permanecem, em muitos aspectos, constitutivas de nossas perspectivas e atitudes mais básicas. Assim, a filosofia política não é apenas algum tipo de estranho apêndice histórico ligado ao tronco da ciência política; é constitutiva de seus problemas mais profundos. Se você duvida da importância do estudo das ideias políticas para a política, considere as obras de um economista famoso, John Maynard Keynes. Keynes escreveu em 1935: “as ideias dos economistas e dos filósofos políticos, estejam elas certas ou erradas, têm mais importância do que geralmente se percebe [...]. Os homens objetivos”, Keynes continua, “que se julgam livres de qualquer influência intelectual são, em geral, escravos de algum economista defunto. Os insensatos, que ocupam posições de autoridade, que ouvem vozes no ar, destilam seus arrebatamentos inspirados em algum escriba acadêmico de certos anos atrás” (KEYNES, 1996, p. 349). Portanto, esta disciplina será dedicada ao estudo dos "escribas acadêmicos" que escreveram livros que continuam a impressionar e criar as formas de autoridade com a qual estamos familiarizados. Mas uma coisa que não devemos fazer é abordar estas obras como se elas fornecessem de alguma forma respostas prontas e acabadas para os problemas atuais. Só nós podemos fornecer respostas para os nossos problemas. Pelo contrário, as grandes obras nos fornecem, por assim dizer, um repositório de questões fundamentais ou permanentes que os cientistas políticos ainda continuam a confiar em seu trabalho. Os grandes pensadores são grandes não porque eles criaram um conjunto de peças de museu que podem ser catalogadas, admiradas e depois ignoradas como uma espécie de galeria de antiguidades em um museu de arte, mas sim, porque eles definiram os problemas que todos os pensadores e estudiosos posteriores tiveram de usar, a fim de dar sentido ao seu mundo. Mais uma vez, nós ainda pensamos em termos dos conceitos básicos e categorias que foram criadas há muito tempo. UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL 6 Então, uma coisa que você vai notar rapidamente é que não há respostas permanentes em um estudo da filosofia política. Um ditado corriqueiro no mundo acadêmico é que para "cada questão deve ter uma resposta correta, para cada pergunta umaresposta". Isso em si é uma proposta eminentemente contestável. Entre os grandes pensadores há uma profunda divergência sobre as respostas até para as questões mais fundamentais em relação à justiça, aos direitos, à liberdade. Em filosofia política, uma resposta nunca é suficiente para responder a uma pergunta com uma declaração "porque Platão diz isso", ou "porque Nietzsche diz isso". Não há autoridades finais a esse respeito na filosofia, porque até mesmo os maiores pensadores discordam profundamente um com o outro sobre suas respostas, e é precisamente este desacordo um com o outro que torna possível para nós, os leitores de hoje, entrar em sua conversação. Somos chamados primeiro a ler e ouvir, e depois a avaliar "quem está certo?" e "como sabemos isso?". A única maneira de decidir não é submeter-se à autoridade, não importa de quem for a autoridade, mas de confiar em nossos próprios poderes da razão e do juízo; em outras palavras, a liberdade da mente humana para determinar para nós o que parece certo ou melhor. Mas o que são esses problemas a que estamos nos referindo? Quais são esses problemas que constituem o objeto de estudo da política? Quais são as perguntas que os cientistas políticos tentam responder? Essa lista pode ser longa, mas não infinita. Entre as questões mais antigas e ainda mais fundamentais estão: O que é a justiça? Quais são os objetivos de uma sociedade decente? Como deve ser educado um cidadão? Por que eu deveria obedecer à lei, e quais são os limites, se houver, à minha obrigação? O que constitui o fundamento da dignidade humana? É a liberdade? É a virtude? É o amor, é a amizade? E, claro, a questão da mais alta importância, como diria Strauss (1978, p. 241), “mesmo que os filósofos políticos e cientistas políticos raramente a pronunciem, quid sit deus, o que é Deus, será que ele existe? E o que isso implica para as nossas obrigações como seres humanos e cidadãos?” Esses são alguns dos problemas mais básicos e fundamentais do estudo da política. Ainda assim poderíamos perguntar: onde é que se entra neste debate? Em quais perguntas e pensadores devemos focar? 2.1 O QUE É UM REGIME POLÍTICO? Talvez a pergunta mais antiga e mais fundamental que examinaremos, no decurso deste Caderno de Estudos, é esta: o que é um regime político ou formas de governo? O que são os regimes políticos? O que são as políticas de regimes? O termo "regime" é um termo familiar. Com frequência ouvimos, hoje, sobre mudanças de regimes, mas o que é isso? Quantos tipos existem? Como eles são definidos? O que os mantém e o que os faz ruir? Existe uma forma de governo única e melhor? Essas são perguntas que consideraremos. O conceito de regime é talvez a mais antiga e fundamental das ideias políticas. Ela remonta a Platão e mesmo antes dele. Na verdade, o livro que você deverá ler como parte desta disciplina, a República (2001) de Platão, é, TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON 7 2.1 O QUE É UM REGIME POLÍTICO? uma tradução da palavra grega politea, que significa constituição ou regime. A República é um livro sobre o regime e toda a filosofia política posterior “consiste de uma série de notas de rodapé a Platão” (WHITEHEAD, 2010, p. 39), e isso significa que ela deve fornecer uma série de variações, por assim dizer, sobre a concepção de Platão do melhor regime. Mas o que é um regime? Em termos gerais, um regime indica uma forma de governo, se é governado por um, por alguns, por muitos ou, como mais comum, uma mistura, uma combinação destas três formas de governo dominantes. O regime é definido em primeira instância pela forma como as pessoas são regidas e como os cargos públicos são distribuídos, seja por eleição, por nascimento, por sorteio, por qualidades e realizações pessoais notáveis, e o que constitui os direitos e responsabilidades de um povo. Portanto, o regime refere-se, sobretudo, a uma forma de governo. O mundo político não se apresenta simplesmente como uma variedade infinita de formas diferentes. Ele é estruturado e ordenado em alguns tipos básicos de regimes. Consideramos ser esta questão uma das mais importantes proposições e ideias da ciência política. Mas há um corolário dessa visão. Pois o regime é sempre algo particular, está em uma relação de oposição a outros tipos de regimes e, como consequência, a possibilidade de conflito, de tensão e guerra está embutida na própria estrutura da política. Regimes são necessariamente partidários, isso quer dizer que incutem certas lealdades e paixões da mesma forma que uma pessoa pode sentir partidarismo referente a um time de futebol. Lealdade feroz e partidarismo são inseparáveis do caráter da política de regime. Estes adendos passionais não são apenas algo que ocorre entre os diferentes regimes, mas mesmo dentro de um mesmo regime, como entre diferentes partidos e grupos que lutam pelo poder, pela honra, e por diversos interesses. Henry Adams uma vez refletiu cinicamente que a “política, na prática, seja qual for a ideologia, sempre consistiu na organização sistemática do ódio” (1907, p. 5, tradução nossa), e há mais do que uma pitada de verdade nisso, embora ele não tenha dito que é também uma tentativa de canalizar e redirecionar esses ódios e animosidades em direção a um bem comum. Isso levanta a questão de saber se é possível transformar a política, para substituir a inimizade e o conflito entre facções com a amizade, para substituir o conflito com a harmonia? Hoje, é a esperança de muitas pessoas, tanto aqui como no exterior, de que possamos até mesmo superar, até mesmo transcender completamente a estrutura básica da política de regime e organizar o nosso mundo em torno de normas globais de justiça e do direito internacional. É possível uma coisa dessas? Essa possibilidade não pode ser descartada, mas tal mundo – um mundo administrado por tribunais de direito internacional, por juízes e tribunais judiciais – já não seria um mundo político. A política só tem lugar dentro do contexto do particular. Só é possível dentro da estrutura do próprio regime. UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL 8 Mas um regime é mais do que simplesmente um conjunto de estruturas e instituições formais. É constituído pelo modo de vida, pelas práticas morais e religiosas, hábitos, costumes e sentimentos que fazem um povo ser o que eles são. O regime constitui um ethos, ou seja, um caráter distintivo, que nutre tipos humanos específicos. Cada regime molda um caráter comum, um tipo de caráter comum com traços e qualidades peculiares. Assim, o estudo da política de regime é, em parte, um estudo dos distintos tipos de caracteres nacionais que constituem um corpo de cidadãos. Para dar um exemplo do que quero dizer, quando Tocqueville estudou o regime americano ou o regime democrático, propriamente falando, em A democracia na América (2000, 2005), ele começou com as instituições políticas formais como enumeradas na Constituição, coisas como a separação de poderes, a divisão entre o Estado e o governo federal e assim por diante. Mas, depois passou a olhar para práticas informais, tais como os costumes e a moral dos americanos, as suas tendências em formar pequenas associações cívicas, o moralismo peculiar e a vida religiosa, a atitude defensiva sobre a democracia e assim por diante. Todos estes costumes, hábitos morais e intelectuais ajudaram a constituir o regime democrático. Neste sentido, o regime descreve o caráter ou a “afinação” de uma sociedade. O que uma sociedade considera mais louvável e o que almeja alcançar. Você não pode entender um regime a menos que entenda o que aquele povo representa, o que eles almejam, assim como a estrutura das suas instituições, dos seus direitos e privilégios. Isso levanta mais um conjunto de perguntas que iremos considerar ao longo desta disciplina neste Caderno de Estudos. Como os regimes são fundados? O que os traz à existência e os sustenta ao longo do tempo? Para pensadorescomo Tocqueville, por exemplo, os regimes estão incorporados nas estruturas profundas da história humana que têm determinado durante longos séculos a forma das nossas instituições políticas e a maneira como pensamos sobre elas. Outras vozes dentro da tradição, como Platão, Maquiavel e Rousseau, acreditavam que os regimes podem ser fundados conscientemente por meio de atos deliberados de grandes estadistas ou “pais fundadores”. Esses estadistas – Maquiavel, por exemplo, refere-se a Rômulo, Moisés e Ciro, como os fundadores exemplares; podemos pensar em homens como Washington, Jefferson, Adams e similares – são formadores de povos e instituições. O primeiro capítulo do livro O Federalista, por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, já começa levantando esta questão em termos mais claros. “Estava reservado à América resolver essa importante questão”, escreve Hamilton, “se os homens são capazes de dar a si mesmos um bom governo por própria reflexão e escolha, ou se a Providência os condenou a receberem eternamente a sua Constituição política, da força ou do acaso” (2003, p. 13). Vemos Hamilton fazendo a pergunta básica sobre a fundação das instituições políticas: são elas criadas, como ele escreve, pela "reflexão e escolha", ou seja, por um ato deliberado de política e inteligência humana consciente, ou os regimes sempre são produtos do acidente, da circunstância, do costume e da história? TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON 9 2.2 QUEM É UM ESTADISTA? O QUE É UM ESTADISTA? A ideia de que os regimes podem ser criados ou fundados por um conjunto de atos deliberados levanta outra questão que vamos estudar, e que é inseparável do estudo dos regimes políticos. Quem é um estadista? O que é um estadista? Mais uma vez, uma das questões mais antigas da ciência política, todavia raramente levantada pela ciência política de hoje, que é muito cética em relação à prática de um estadista. Em seu sentido mais antigo, ciência política era simplesmente uma ciência da arte de governar. Foi direcionada ao estadista ou estadistas em potencial encarregados de conduzir o “navio” do Estado. Quais são as qualidades necessárias para um governar sadio? Como a arte de governar difere de outros tipos de atividades? Deve um bom estadista, como Platão acreditava, por exemplo, ser um filósofo versado em poesia, matemática e metafísica? Ou é o governar, como acreditava Aristóteles, uma habilidade puramente prática, exigindo julgamento baseado na deliberação e na experiência? Um vestígio de crueldade e uma disposição para agir imoralmente são necessários para a arte de governar, como Maquiavel argumentou infamemente? Deve o estadista ser capaz de literalmente transformar a natureza humana, como afirma Rousseau, ou o soberano é mais ou menos um burocrata sem rosto ao modo de um diretor executivo, um CEO (Chief Executive Officer) moderno, como, por exemplo, alguém como Hobbes parece ter acreditado? Todos os textos que vamos abordar neste Caderno de Estudos e que recomendamos a leitura integral – a Apologia de Sócrates, Críton e A República (Platão); a Política (Aristóteles); O Príncipe (Maquiavel); Leviatã (Hobbes); o Segundo Tratado Sobre o Governo Civil (Locke); Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e O Contrato Social (Rousseau); Origens do Totalitarismo (Arendt); Filosofia Política (Eric Weil); Uma Teoria da Justiça (Rawls) – têm opiniões diferentes sobre as qualidades de um estadista e quais são as qualidades necessárias para fundar e manter Estados. Tudo isso é outra maneira de dizer, ou pelo menos implicar, que a filosofia política é uma disciplina eminentemente prática, um campo prático. Seu objetivo não é simplesmente a contemplação, o seu objetivo não é meramente a reflexão, mas é dar conselhos. Nenhum dos autores que vamos abordar neste Caderno de Estudos foi um estudioso enclausurado e desapegado do mundo, embora este seja um preconceito muito comum contra a filosofia política. Todavia, os grandes pensadores estavam muito longe de serem apenas intelectuais desapegados. Platão empreendeu três viagens longas e perigosas para Sicília, a fim de aconselhar o rei Dionísio. Aristóteles era um tutor de Alexandre, o Grande. Maquiavel passou grande parte de sua carreira no Serviço Exterior, como assessor de sua Florença natal, e escreveu como um conselheiro dos Médici. Hobbes foi o tutor de uma família real que acompanhou o rei para o exílio durante a Guerra Civil Inglesa. Locke foi associado com o Círculo de Shaftesbury e também foi forçado ao exílio depois de ser acusado de conspirar contra o rei inglês. Rousseau não tinha conexões políticas oficiais, mas ele sempre assinou seu nome como Jean-Jacques Rousseau, "cidadão de Genebra", e foi procurado para escrever constituições para a Polônia e para a ilha de Córsega. Finalmente, Tocqueville foi membro da Assembleia Nacional Francesa, cuja experiência da democracia americana afetou UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL 10 profundamente a forma como ele via o futuro da Europa. Assim, os grandes pensadores políticos estiveram tipicamente engajados na política de seu tempo e fornecem, desse modo, modelos de como pensaríamos sobre a nossa política. 2.3 QUAL É O MELHOR REGIME? O estudo dos regimes políticos, implícita ou explicitamente, levanta uma questão que vai além do limite de uma determinada sociedade. Um regime constitui o modo de vida de um povo, o que eles acreditam que faz sua vida valer a pena, ou, para colocá-lo de forma ligeiramente diferente, o que um povo representa. Embora estejamos mais familiarizados com o caráter de um regime democrático moderno como o nosso, o estudo da filosofia política é, em muitos aspectos, uma espécie de imersão no que poderíamos chamar de política comparada; quer dizer que nos introduz as variedades de regimes, cada um com seu próprio conjunto distinto de reivindicações ou princípios, cada um disputando e em potencial conflito com todos os outros. Subjacente a essa “cacofonia” de regimes jaz a pergunta perene: qual destes regimes é o melhor? O que uma reivindicação tem ou deveria ter sobre a nossa lealdade e consentimento racional? A filosofia política é sempre guiada pela questão do melhor regime. Mas o que é o melhor regime? Até mesmo levantar tal questão parece constituir obstáculos insuperáveis. Não seria isso um julgamento completamente subjetivo, o que pensamos ser o melhor regime? Como poderíamos começar esse tipo de estudo? O melhor regime é, como os antigos tendiam a acreditar – Platão, Aristóteles e outros –, uma república aristocrática em que apenas os poucos virtuosos habitualmente governam; ou o melhor regime é, como acreditam os modernos, uma república democrática em que, em princípio, o cargo político está aberto a todos apenas em virtude de sua participação na sociedade? Será que o melhor regime seria uma pequena sociedade fechada que através de gerações faria um sacrifício supremo para atingir a autoperfeição? Ou será que o melhor regime seria uma grande ordem cosmopolita envolvendo todos os seres humanos, talvez até mesmo uma espécie de Liga Universal das Nações consistindo de todos os homens e mulheres livres e iguais? Qualquer que seja a forma que o melhor regime assuma, será sempre a favor de certo tipo de ser humano com certo conjunto de traços de caráter. O tipo de homem comum, que é encontrado nas democracias; os que possuem gostos seletos e dinheiro, nas aristocracias; o guerreiro ou até mesmo o sacerdote, nas teocracias. Isto, finalmente, levanta a questão da relação entre o melhor regime ou o bom regime, e o que podemos dizer que são os regimes realmente existentes, regimes dos quais somos todos familiarizados. Qual a função que o melhor regime tem na ciência política? Como é que pode conduzir nossas ações aqui e agora? Este assunto recebeu um tipo de formulação clássica na distinção aristotélica, do que ele chamou de o bomser humano (o homem de bem) e o bom cidadão. Para o bom cidadão – iremos discorrer detalhadamente sobre este assunto quando falarmos da Política de Aristóteles – você poderia dizer que o patriotismo é o TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON 11 2.3 QUAL É O MELHOR REGIME? suficiente, sustentar e defender as leis de seu próprio país, simplesmente porque elas são as suas próprias leis é tanto necessário quanto suficiente. Tal ponto de vista da virtude do cidadão colide na objeção óbvia de que o bom cidadão de um regime vai estar em desacordo com o bom cidadão de outro: um bom cidadão do Irã contemporâneo não será o mesmo que um bom cidadão do Brasil contemporâneo. Mas o bom cidadão, Aristóteles prossegue, não é o mesmo que o bom ser humano. Onde o bom cidadão é relativo ao regime, pode-se dizer específico ao regime, o bom ser humano é bom em todos os lugares. O bom ser humano ama o que é bom simplesmente, não porque é seu, mas porque é bom. Algo semelhante a isso foi demonstrado no elogio de Abraham Lincoln a Henry Clay. Lincoln (2009, p.133, tradução nossa) escreveu sobre Clay: “ele amava o seu país, em parte porque era o seu próprio país, mas principalmente porque era um país livre". Seu ponto é que Clay exibiu, pelo menos no dizer de Lincoln, algo do filósofo, o que ele amava era uma ideia, a ideia de liberdade. Essa ideia não era a propriedade de um país em particular, mas era constitutivo de qualquer boa sociedade. O bom ser humano, ao que parece, seria um filósofo, ou pelo menos teria algo filosófico sobre ele, e que só poderia sentir-se totalmente em casa no melhor regime. Todavia, é óbvio que o melhor regime carece de realidade. Nós todos sabemos que ele nunca existiu. Aparentemente o melhor regime encarna um paradoxo supremo. É superior em algumas maneiras a todos os regimes reais, mas não possui nenhuma existência concreta em qualquer lugar. Isso torna difícil (e este é o ponto de Aristóteles) para o filósofo ser um bom cidadão de qualquer regime real. A filosofia nunca vai se sentir totalmente ou verdadeiramente em casa em qualquer sociedade particular. O filósofo nunca pode ser verdadeiramente fiel a alguém ou alguma coisa, a não ser ao que é o melhor. Pense nisso, pois levanta uma questão sobre temas sobre o amor, a lealdade e amizade. Esta tensão entre o melhor regime e qualquer regime real é o espaço que torna a filosofia política possível. Se pudéssemos habitar no melhor regime, a filosofia política seria desnecessária ou redundante, simplesmente esvaneceria. A filosofia política existe e só existe na "zona de indeterminação" entre o "é" e o "dever ser", entre o real e o ideal. É por isso que a filosofia política é sempre e necessariamente um empreendimento potencialmente perturbador. Aqueles que embarcam na busca pelo conhecimento do melhor regime podem retornar não sendo as mesmas pessoas que eram antes. Você pode voltar com muitas lealdades e fidelidades diferentes do que as que você tinha no início. Mas há alguma compensação por isso. Os gregos antigos tinham uma bela palavra para esta missão, para este desejo de conhecimento do melhor regime. Chamavam de Eros, ou amor. A busca de conhecimento do melhor regime deve, necessariamente, ser acompanhada, sustentada e elevada pelo Eros. Você pode não ter percebido no momento que iniciou a ler este Caderno de Estudos, desta disciplina específica, mas o estudo da filosofia política pode ser o maior tributo que pagamos ao amor. Pense nisso, e enquanto você está pensando sobre o assunto, pode começar a ler a obra Apologia de Sócrates, de Platão, que vamos discutir logo a seguir. UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL 12 3 A CIDADANIA SOCRÁTICA: PLATÃO E A APOLOGIA Vamos iniciar esta parte com Platão, mais especificamente, com a Apologia de Sócrates (2008a), de Platão. Este é o melhor texto de introdução ao estudo da filosofia política. Por quê? Deixe-me dar-lhe duas razões. Primeiro, mostra Sócrates, o renomado fundador da nossa disciplina, o fundador da Filosofia Política, explicando-se e justificando-se, justificando seu modo de vida perante um júri de seus pares. Mostra Sócrates falando em um fórum público, defendendo a utilidade da filosofia para a vida política. E, em segundo lugar, a Apologia demonstra também a vulnerabilidade da filosofia política em sua relação com a cidade, em sua relação com o poder político. A Apologia coloca em julgamento não apenas um indivíduo em particular, Sócrates, mas coloca em julgamento a própria ideia de filosofia. Desde o início, a filosofia e a cidade, a filosofia e a vida política, estiveram em uma espécie de tensão uma com a outra. Sócrates é acusado, como veremos, pela cidade por corromper a juventude e por impiedade contra os deuses. Em outras palavras, ele é acusado de traição, um crime capital. Nenhuma outra obra de que temos conhecimento nos ajuda a pensar melhor através do conflito, necessário e inevitável, entre a liberdade da mente e as exigências da vida política. Estas duas coisas, esses dois bens, por assim dizer, a liberdade de espírito e a vida política, são compatíveis ou estão necessariamente em conflito um com o outro? Isso parece ser a questão fundamental que a Apologia nos pede para considerar. Há gerações, a Apologia tem se destacado como um símbolo contra a violação da liberdade de expressão. Ela define o caso de um indivíduo comprometido com a vida examinada acima de, e contra uma multidão intolerante e preconceituosa. A afirmação mais clara deste ponto de vista do indivíduo ajustado contra a multidão é encontrada em uma obra de um libertário civil muito famoso, do século XIX, um homem chamado John Stuart Mill. Em seu famoso tratado, chamado simplesmente de Sobre a Liberdade, Mill escreveu: "Não será demais recordar à humanidade que houve, uma vez, um homem chamado Sócrates entre quem e as autoridades legais, e mais a opinião pública do seu tempo, se verificou uma colisão memorável." (2010, p. 55). Uma e outra vez Sócrates tem sido descrito como um mártir da liberdade de expressão e ele tem sido até mesmo comparado, em vários momentos, a Jesus, a Galileu, a Sir Thomas More, e tem sido usado como um modelo a seguir por pensadores e ativistas políticos desde Henry David Thoreau, a Gandhi e a Martin Luther King. Assim, Sócrates se tornou um símbolo central de resistência política e de resistência ao poder político. Essa leitura da Apologia, você pode dizer, é uma espécie de defesa da liberdade de expressão e uma advertência contra os perigos da censura e perseguição. Embora esta tenha sido uma interpretação muito influente ao longo dos séculos, pelo menos no último século e meio, você tem que se perguntar: é esta a leitura que Platão pretendia? Será que Platão queria que lêssemos o diálogo dessa maneira? Como alguns professores de filosofia clássica costumam dizer: "Você lê Platão do seu jeito, eu o lerei do jeito dele." Mas, como é que Platão TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON 13 3 A CIDADANIA SOCRÁTICA: PLATÃO E A APOLOGIA pretende que este diálogo seja entendido? Perceba que Sócrates nunca se defende com base na doutrina da liberdade de expressão ilimitada. Ele não faz essa afirmação. Ele não faz a afirmação sobre a utilidade geral da liberdade ou da fala ilimitada. Ao contrário, ele mantém como ele expressa, perto do final do discurso de defesa, que somente a vida examinada vale a pena ser vivida. Somente aqueles que se dedicam à luta contínua para esclarecer seus pensamentos, para remover as fontes de contradição e incoerência, apenas essas pessoas se pode dizer que vivem uma vida que vale a pena. "A vida não examinada não vale a pena ser vivida" (PLATÃO, 2008a, p. 163, 38a), Sócrates confiante, desafiadoramente afirma aos seus ouvintes, à sua audiência. Nada mais importa para ele. A sua missão para a autoperfeição parece ser altamente individual, altamente pessoal, em muitos aspectos, e não uma doutrinageral sobre o valor da liberdade de expressão. Todavia, podes pensar, mesmo, que Sócrates pareça estar envolvido nessa busca altamente pessoal para autoperfeição, há algo profundamente político sobre a Apologia e sobre o seu ensino que não se pode evitar. No núcleo do diálogo ou no centro deste discurso há uma disputa, uma discussão com seus acusadores sobre a questão, talvez nunca declarada explicitamente, de quem tem o direito de educar os futuros cidadãos e estadistas da cidade de Atenas. O discurso de defesa de Sócrates, como qualquer diálogo platônico, é, em última análise, um diálogo sobre a educação. Quem tem o direito de ensinar, quem tem o direito de educar? Esta é, em muitos aspectos, para Sócrates, a questão política fundamental de todos os tempos. É a questão de quem realmente governa ou, talvez, por outras palavras, quem deve ou deveria governar. Lembre-se também de que a cidade que levou Sócrates a julgamento não era apenas qualquer cidade, era um tipo peculiar de cidade, foi Atenas. Esta cidade-estado foi, até tempos relativamente recentes na história da humanidade, a mais famosa democracia que já existiu. Isso perdurou provavelmente até a democracia americana. Foi, portanto, até ao século XVIII ou XIX, a mais famosa democracia que já existiu. O discurso de Sócrates perante o júri é talvez a tentativa mais famosa de colocar a própria democracia em julgamento. Não é meramente Sócrates que está em julgamento. Sócrates tem a intenção de colocar a democracia de Atenas em si em julgamento. A Apologia não força somente Sócrates a defender-se ante a cidade de Atenas, mas Sócrates coloca a cidade de Atenas em julgamento e a faz defender-se perante o tribunal superior da filosofia. Assim, o debate que se seguiu no âmbito do diálogo pode ser lido como uma disputa sobre quem tem título de governar. É o povo? É o tribunal de Atenas, o demos (usando a palavra grega para "o povo"), ou é Sócrates o filósofo-rei que deve ser investido de autoridade política suprema? Esta é a busca. Ela é retomada de uma forma muito viva, muito mais explícita, na República, mas percorre durante toda a Apologia e você não pode realmente entender este diálogo a menos que perceba que aquela é a pergunta que Sócrates levanta do começo ao fim. UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL 14 3.1 O CONTEXTO POLÍTICO DO DIÁLOGO Vamos agora falar um pouco sobre o contexto político deste diálogo. Não há nada de errado com a leitura da Apologia como uma espécie de símbolo do indivíduo justo confrontado com uma multidão injusta, ou com um governo político injusto. É uma questão que Platão retoma na República quando um personagem no livro chamado Gláucon, que consta como o irmão de Platão, pergunta a Sócrates se realmente é melhor ser justo ou apenas ter a reputação de justiça? E Sócrates diz que é melhor ser justo, mesmo que isso resulte em perseguição e morte. Entretanto, o julgamento não é apenas um símbolo duradouro da justiça contra a injustiça, é um evento histórico real que ocorre em um determinado momento político e isso tem um peso decisivo sobre como compreenderemos o processo, tanto a favor e contra Sócrates. Vamos discorrer um pouco sobre esse contexto. O julgamento de Sócrates tem lugar no ano de 399 antes da era comum (AEC). Alguns de vocês sabem que esse julgamento segue muito rapidamente após a famosa Guerra do Peloponeso. Esta foi a guerra narrada por um contemporâneo, de Sócrates, um homem chamado Tucídides, que escreveu a história da Guerra do Peloponeso, uma guerra que ocorreu entre as duas grandes potências do mundo grego, entre os espartanos e seus aliados e Atenas e seus aliados. A Atenas que lutou nesta guerra contra Esparta era uma Atenas no auge de seu poder político e prestígio sob a liderança de seu primeiro cidadão Péricles. Foi sob a sua liderança que Atenas construiu a famosa Acrópole. Ele tinha estabelecido Atenas como uma potência naval poderosa e temível e criou um nível sem precedentes de vida artística e cultural, ainda hoje conhecido simplesmente como o Século de Péricles ou a Atenas de Péricles. Mas Atenas também foi algo completamente sem precedentes no mundo, era uma democracia. Ainda hoje, a expressão "democracia ateniense" conota um ideal da forma mais completa de governo democrático que já existiu. “Nossa cidade, em seu conjunto, é a escola de toda a Hélade” (TUCÍDIDES, 2001, p. 111), isto é o que Péricles se vangloria aos seus ouvintes na famosa oração fúnebre contada por Tucídides. "Mantemos nossa cidade aberta a todo o mundo e nunca, por atos discriminatórios, impedimos alguém de conhecer e ver qualquer coisa que, não estando oculta, possa ser vista por um inimigo e ser-lhe útil” (2001, p. 110), Péricles se vangloria mais uma vez. A pergunta que talvez você queira fazer sobre isso é como poderia a primeira sociedade mais livre e mais aberta do mundo sentenciar à morte um homem que falou abertamente sobre sua própria ignorância e professou cuidar de nada mais do que da virtude e da excelência humana? Vejamos, pois, na eclosão da Guerra do Peloponeso, Sócrates tinha um pouco menos de 40 anos de idade. E, nós aprendemos com o discurso que o próprio Sócrates serviu no exército e na defesa de seu país. A Guerra do Peloponeso foi travada ao longo de um período de tempo considerável, um período de quase 30 anos e foi concluída no ano 404 AEC com a derrota de Atenas, a instalação de uma oligarquia pró-espartana, um regime pró-espartano conhecido simplesmente Jefferson Santos TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON 15 3.1 O CONTEXTO POLÍTICO DO DIÁLOGO como os Trinta Tiranos, ou a Tirania dos Trinta, que governaram Atenas por um ano. No ano seguinte, 403 AEC, os tiranos, os Trinta, como eram chamados, foram expulsos e um governo democrático foi restabelecido em Atenas. Apenas três anos depois, três homens, chamados Ânito, Meleto e Lícon, os quais fizeram parte do movimento de resistência democrática contra a oligarquia espartana, fizeram acusações contra Sócrates. As acusações contra ele foram: corromper a juventude e de descrença nos deuses que a cidade acredita. Os nomes de Ânito e Meleto, como você pode ler na Apologia, aparecem no próprio discurso. Assim, as acusações contra Sócrates não brotaram do nada. Talvez devêssemos reformular a pergunta. Não, por que os atenienses levaram Sócrates a julgamento? Mas, por que lhe permitiram exercer a sua prática de desafiar a lei e a autoridade da lei durante o tempo que ele assim o fez? Adicione a isso o fato de que quando Sócrates foi levado a julgamento, a democracia só recentemente tinha sido restabelecida, mas que muitos amigos e ex-alunos de Sócrates tinham eles próprios sido implicados no governo dos Trinta Tiranos. Entre os membros dos Trinta havia um homem chamado Crítias, e há, na verdade, um diálogo platônico nomeado após ele. Era um parente de Platão e de outro homem chamado Cármides, tio de Platão, cujo nome é também o título de um diálogo platônico. O próprio Platão nos diz muito sobre eles, mais tarde em sua vida, em sua famosa Carta VII. Platão foi convidado por seus parentes para ajudar a formar uma parte do governo dos Trinta e relata: “Imaginei que iriam governar o Estado, tirando-o da vida injusta para colocá-lo na senda da justiça, de modo que passei a observá-los muito diligentemente, a fim de ver quais seriam as suas ações”, prossegue Platão; “realmente vi aqueles homens, em pouco tempo, levarem as pessoas a relembrar o governo anterior como uma idade de ouro” (PLATÃO, 2011a, p. 61). Então, o ponto que estamos sugerindo é que muitos dos estudantes e associados de Sócrates, incluindo o próprio Platão, tinham alguma ligação com aquele governo oligárquico que tinha governado Atenas por um breve tempo. Portanto, Sócrates não era ele mesmo acima de qualquer suspeita. Muitas vezes, ainda hoje, julgamos os professores por seus alunos, pela companhia que mantêm, não é? Ninguém está acimada suspeita. O próprio Sócrates tinha sido um colaborador próximo de um homem chamado Alcibíades, provavelmente, o ateniense mais proeminente da geração após Péricles. Alcibíades foi o homem que projetou a desastrosa expedição contra Siracusa, na Sicília, o que o levou a desertar e refugiar-se em Esparta. Sua complexa relação com Sócrates é, aliás, narrada em um discurso de Alcibíades, que estando bêbado, aparece em um diálogo de Platão, O Banquete (2011b), também chamada de o Simpósio. UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL 16 Você pode, portanto, perceber que o julgamento de Sócrates, o pequeno discurso Apologia que deves ter lido, tem lugar à sombra da derrota militar, da resistência, da conspiração e da traição. Sócrates tinha 70 anos na época do julgamento. Era um ambiente político altamente carregado. Muito mais volátil do que, por exemplo, o tipo de querelas partidárias que vemos hoje em nossa república. FIGURA 1 - O BANQUETE DE PLATÃO FONTE: Pintura a óleo na tela, de Anselm Feuerbach (1829-1880). Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Jahrhundertausstellung_1906_ KatNr._0484.jpg>. Acesso em: 1º fev. 2015. 3.2 AS ACUSAÇÕES CONTRA SÓCRATES Agora, vamos passar do contexto político do discurso para as acusações. Eu digo acusações porque, quando você lê atentamente a Apologia vai ver que havia, na verdade, dois conjuntos de acusações contra Sócrates. Logo no início do discurso, Sócrates afirma que seus acusadores atuais, Ânito e Meleto, fazem acusações contra ele que na verdade são elas próprias derivadas de uma geração anterior de acusadores que foram responsáveis por, segundo ele, difamá-lo e criar um preconceito desfavorável contra ele. “Meus acusadores são de dois tipos: os que recentemente acusaram-me, e os que, como eu dizia, fizeram-no há muito tempo. E considerai que devo defender-me primeiramente destes últimos”, prossegue Sócrates, “posto que os ouvistes fazerem suas acusações antes e com muito maior intensidade” (PLATÃO, 2008a, p. 139, 18e). Sócrates deixa claro que compreende que muitos membros do júri terão formado um parecer desfavorável sobre ele. Este discurso foi um dia antes de ocorrerem formas intensas de seleção do júri, onde se solicitava às pessoas: "Você tem um parecer do caso?". Muitos dos jurados teriam conhecido Sócrates, ou certamente teriam ouvido falar dele e, segundo ele, já teriam formado um parecer desfavorável sobre ele por causa da geração anterior de acusadores. Ele faz referência a um poeta cômico, uma referência inequívoca ao dramaturgo Aristófanes. Este foi quem criou o preconceito inicial contra Sócrates. Qual foi o preconceito que Aristófanes tinha criado? A alusão a Sócrates e o poeta cômico é uma parte do que Platão chama, no Livro X da República (2001), de a TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON 17 3.2 AS ACUSAÇÕES CONTRA SÓCRATES velha querela entre a filosofia e a poesia. Esta discussão é uma parte importante dos diálogos de Platão, é um tema central, não só do Simpósio, em que Aristófanes e Sócrates são mostrados juntos na mesma mesa de jantar. Mas também é uma característica fundamental da República, que abordaremos no próximo tópico, onde Sócrates oferece uma proposta elaborada para a censura e controle da poesia, se é para ser compatível com as exigências da justiça política. Na verdade, você não pode entender a República, a menos que entenda o contexto poético dela e o engajamento, de longa data, de Sócrates com a tradição poética, assim como a disputa entre ele e o homem que ele chama de poeta cômico. O núcleo dessa disputa entre o filósofo e o poeta, entre Sócrates e Aristófanes não é apenas um juízo estético ou não é simplesmente uma discussão estética, é profundamente político. Ele chega à essência da questão de quem está mais bem preparado para educar as futuras gerações de cidadãos e líderes cívicos. São os filósofos ou são os poetas os verdadeiros legisladores da humanidade? Usando a máxima de Shelley (2002, p. 195), “os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo”, será? Qual deles legisla para a humanidade na época de Sócrates? Os gregos já tinham uma longa tradição de educação poética, que remonta aos séculos dos tempos de Homero e Hesíodo, que estabeleceram certos modelos exemplares de virtude heroica e vida cívica. Os épicos homéricos foram para o mundo grego o que a Bíblia era ou é para o nosso mundo, em alguns aspectos, a autoridade máxima em relação à maneira dos deuses, sua relação com o mundo e o tipo de virtudes apropriadas para os seres humanos. As virtudes endossadas pela tradição poética, da qual Aristófanes é o grande herdeiro representante aqui, eram as virtudes de uma cultura guerreira, de povos guerreiros e de homens em guerra. Foram estas qualidades que nortearam os gregos durante séculos e que contribuíram para a sua ascensão ao poder. Contribuiu para a ascensão tanto de Atenas quanto a de Esparta para a grandeza, de um povo pequeno e disperso a uma grande potência mundial e lhes permitiu atingir um nível de realização artística, intelectual e política semelhante à Florença renascentista, à Inglaterra elisabetana e à Cultura de Weimar. Então, o que está em jogo nesta querela entre Sócrates e a tradição poética que ele alude? Em primeiro lugar, a maneira de Sócrates ensinar é muito diferente daquela dos poetas. Os poetas são oraculares, basta lembrar-se da primeira linha da Ilíada de Homero: "Canta, ó Deusa, a cólera de Aquiles" (HOMERO, 2013, p. 109). Os poetas são oraculares, eles clamam aos deuses e às deusas para inspirá-los com música, para enchê-los com a inspiração para contar histórias de pessoas com força, coragem e raiva sobre-humanas. Por outro lado, pode- se dizer que o método de Sócrates não é oracular, não é por contar histórias, mas é pela conversação, é um método argumentativo, usando o termo que ele mesmo aplica, é dialético. Sócrates faz argumentos e ele quer que os outros se engajem com ele, para descobrir qual argumento pode resistir melhor ao teste do escrutínio racional e do debate. Não há argumentos na Ilíada nem na Odisseia de Homero. Você ouve histórias fortes e convincentes, mas nenhum argumento. Sócrates faz, em outras palavras, a essência desta nova educação política, um contínuo questionamento e não a narração de histórias e a recitação de versos. Ele questiona, portanto, os métodos de ensino dos poetas. UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL 18 Mas, em segundo lugar, Homero e os poetas cantam as virtudes de homens em guerra. Sócrates quer substituir o cidadão guerreiro e suas virtudes por um novo tipo de cidadão e um conjunto totalmente novo de virtudes. O novo cidadão socrático, vamos chamá-lo assim neste momento, pode ter algumas características em comum com o antigo guerreiro homérico. Mas, em última análise, Sócrates quer substituir o combate militar com um novo tipo de habilidade verbal, o combate verbal, no qual a pessoa com o melhor argumento é declarada vitoriosa. O melhor argumento prevalece. O famoso método socrático da argumentação é basicamente tudo o que resta da antiga cultura pré-socrática de luta e combate. O novo cidadão socrático é para ser treinado na arte da argumentação e da dialética. Falaremos um pouco mais adiante sobre o que isso significa. 3.3 AS NUVENS: SOLAPANDO O MODELO DE CIDADANIA DE SÓCRATES FIGURA 2 – REPRESENTAÇÃO DA PEÇA AS NUVENS, DE ARISTÓFANES FONTE: Imagem de Steven S. Tigner. Disponível em: <http://faculty.ccri. edu/paleclerc/intro/soc_trial.shtml>. Acesso em: 25 jan. 2015 É como um desafiante dos poetas e de tudo o que eles representam (a tradição da educação poética de séculos) que Sócrates se apresenta. A Apologia mostra Sócrates oferecendo um novo modelo de cidadania, um novo tipo de cidadão. Seu desafio aos poetas é, de certa forma, a base para o ressentimento que é construído contra ele, presente nas acusações de Aristófanes e dos acusadores
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