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ASPECTOS DO DESENVOLVIMENTO DA APRENDIZAGEM - LEITURA E ESCRITA ASPECTOS DO DESENVOLVIMENTO DA APRENDIZAGEM – LEITURA E ESCRITA 1 1 Sumário NOSSA HISTÓRIA .......................................................................................... 3 PARTE 1 .......................................................................................................... 4 DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM .................................................... 4 APRENDIZAGEM, DESENVOLVIMENTO E PROCESSOS ........................... 8 CULTURAIS ................................................................................................. 8 AS CRIANÇAS, A SALA DE AULA E A APRENDIZAGEM DA .................... 17 LINGUAGEM ESCRITA COMO UM PROCESSO DISCURSIVO ................ 17 DESENVOLVIMENTO, APRENDIZAGEM E ENSINO DA ............................ 24 LINGUAGEM ESCRITA ................................................................................ 24 PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NA ALFABETIZAÇÃO ....................... 29 RABISCAR? ............................................................................................... 29 A ALFABETIZAÇÃO COMO UM PROCESSO .............................................. 32 ALGUMAS ESTRATÉGIAS ........................................................................... 33 PARA O ENSINO DA LEITURA E ESCRITA ................................................. 33 LÍNGUA ESCRITA ..................................................................................... 35 À ESCRITA ................................................................................................ 36 PARTE 3 .................................................................................................... 38 AS DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM, A LEITURA E A ESCRITA .... 38 AS DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM ................................................... 38 A LEITURA .................................................................................................... 52 A ESCRITA .................................................................................................... 59 REFERÊNCIAS ............................................................................................. 67 ________. A escrita infantil: evolução e dificuldades. Portalegre: Artes Médicas, 1988. .................................................................................................. 67 2 2 DAVIDSON, H. H. et al. Characteristics of successful school achievers from a severely deprived environment. City Univ. of New York, 1962. .............. 69 ELKIND, D. Crianças e adolescentes – ensaios interpretativos sobre Jean Piaget. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. ........................................................ 69 MARCHESI, A. Desenvolvimento psicológico e educação: psicologia da educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. ................................................. 69 3 3 NOSSA HISTÓRIA A nossa história inicia com a realização do sonho de um grupo de empresários, em atender à crescente demanda de alunos para cursos de Graduação e Pós-Graduação. Com isso foi criado a nossa instituição, como entidade oferecendo serviços educacionais em nível superior. A instituição tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua. Além de promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicação ou outras normas de comunicação. A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de forma confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir uma base profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma das instituições modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela inovação tecnológica, excelência no atendimento e valor do serviço oferecido. 4 4 PARTE 1 DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM Antes de entrarem para a escola, os alunos já vinham realizando, no seu dia-a-dia, aprendizagens diversas, referentes à sobrevivência e ao desenvolvimento biológico dos primeiros anos de vida, como os movimentos e a percepção; ao desenvolvimento dos sistemas simbólicos, como a linguagem, os gestos, os desenhos, as brincadeiras. Eles aprenderam observando e imitando os outros com os quais conviveram com os quais construíram práticas sociais que demandaram o desenvolvimento de habilidades relacionadas com as funções psicológicas superiores – percepção, memória, atenção, imaginação –, que estão presentes na vida cotidiana. Na perspectiva sócio histórica, que consideramos a mais adequada, essa compreensão dos mecanismos de aprendizagem na vida cotidiana é a que deve orientar a ação educativa, sobretudo no que se refere à leitura e à escrita, porque pode alterar positivamente a prática pedagógica do professor. Pode-se entender o conceito de funções psicológicas superiores elaborados por Vygotsky (A formação social da mente, 1989 p. 59 -65 ) como as funções que possibilitam às pessoas realizarem operações mentais (“psicológicas”) articulando gestos, movimentos e/ ou instrumentos culturais (brinquedos, lápis, caderno, computador, etc.) com signos (símbolos que constituem linguagem, seja essa linguagem verbal – falada ou escrita –, gestual, musical, etc.), para resolverem problemas como lembrar, comparar coisas, relatar, escolher, etc. As funções psicológicas superiores decorrem da internalização dos processos culturais, ou seja, da reconstrução interna de operações externas. As crianças 5 5 desenvolvem a capacidade de controlar e dirigir seu próprio comportamento e essa habilidade se torna possível pelo desenvolvimento de novas funções psicológicas, que lhes possibilitam o uso de signos verbais e não verbais e de instrumentos, como, por exemplo, contar nos dedos , amarrar um barbante no dedo para s e lembrar de algo (p.1 4 2 -1 4 3 ). Nas ações e operações mentais das pessoas, os instrumentos e os signos – que são sociais culturais – fazem a mediação entre o sujeito, o mundo (os objetos) e os outros sujeitos. Por isso, instrumentos e signos são constitutivos de funções psicológicas de origem cultural, internalizadas por meio das relações intersubjetivas, que, para Vygotsky, constituem o plano “da relação do sujeito com o outro” (Góes, 1 9 9 1, p.1 9). De acordo com Lima (1997, p. 2), todas as experiências vividas na escola ganharão significado quando articuladas ao processo global de desenvolvimento do indivíduo e não concebidas como um aglomerado de experiências independentes, vividas exclusivamente no âmbito escolar. Neste Caderno, vez por outra vamos citar as palavras ou as ideias dos autores em que nos baseamos. Nas citações, indicaremos o sobrenome do autor ou autora, a data de publicação da obra consultada e, quando for o caso, a página onde está o trecho citado. Para identificar o autor ou autora, basta localizar o sobrenome na lista bibliográfica no final do Caderno; para identificar a obra, é só conferir a data de publicação. A escola é uma das possibilidades de desenvolvimento para o ser humano, seja em que idade for. Sendo assim, os professores precisam prestar atenção ao período de formação e ao contexto de desenvolvimento de seus alunos. Sabemos que a escola tem sua especificidade e que o processo de escolarização transforma as experiências cotidianas, se pensarmos de forma dinâmica essasrelações. As aprendizagens na vida cotidiana têm significados inerentes, isto é, elas são significativas em si mesmas, uma vez que decorrem das 6 6 práticas sociais e culturais, das condições de vida e da organização de cada grupo humano. Já as aprendizagens na escola encontram seu significado na história das ideias e no complexo desenvolvimento da consciência humana, aspectos bem menos evidentes que os das aprendizagens na vida cotidiana. O conhecimento aprendido na escola pode não ter uma aplicabilidade imediata na vida cotidiana, mas a importância de aprender a ler e escrever vão ser percebida pelos alunos se eles sentirem que os conceitos escolares e o processo de construção desses conceitos são pertinentes para o seu desenvolvimento global. E será por essa via – a do desenvolvimento do sujeito – que o aprendizado da leitura e da escrita poderá atingir a vida prática do aluno, na medida em que a forma pela qual ele percebe o cotidiano vai sendo afetada pelo desenvolvimento promovido pelas aprendizagens escolares (LIMA, 1997). Afinal, o que estamos entendendo por desenvolvimento? O que estamos entendendo por aprendizagem? Entendemos desenvolvimento como um processo mediado pela sociedade e pela cultura, que ocorre individual e coletivamente, com possíveis componentes de caráter universal, ainda que também com elementos culturais específicos dos diferentes grupos e dos contextos em que o desenvolvimento acontece (COLL, 1999, p. 85). Ele apresenta duas dinâmicas, uma interna, pessoal, individual, e outra externa, vinculada às interações com outras pessoas. Assim, os fatores biológicos e a experiência genérica com o meio ambiente, embora sejam necessários ao desenvolvimento, não são suficientes para explicá-lo. As interações sociais, com outras pessoas nos ajudando e dando suporte, constituem fatores essenciais para o nosso desenvolvimento. Daí a necessidade de se considerar o valor e o papel das interações na sala de aula quando se ensina a ler e escrever. No caso das crianças, a brincadeira pode ser o meio principal de desenvolvimento cultural, especialmente na faixa etária de seis ou sete anos, idade em que elas estão iniciando a aprendizagem da leitura e da escrita. A aprendizagem, segundo Vygotsky (1989), é um processo mediado, individual e coletivo, que faz despertar processos internos de desenvolvimento. 7 7 Esse processo envolve pelo menos três componentes: a memória, a consciência e a emoção. A esses se somam outros componentes, como o próprio desenvolvimento, a linguagem e o papel da cultura no processo de desenvolvimento humano (LIMA, 1997). Vygotsky viveu de 1896 a 1934. A obra a que nos referimos foi escrita entre 19 0 e 1934 e publicada postumamente, pela primeira vez, em 1935, na União Soviética. A data de 1989 corres ponde à publicação da tradução brasileira que consultamos. Para explicar como a aprendizagem desperta processos internos de desenvolvimento, Vygotsky (1989, p. 97) recorre ao conceito de “zona de desenvolvimento proximal”, que ele define como “a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes”. Para esse autor, a zona de desenvolvimento proximal (ZDP) permite uma visão prospectiva, isto é, uma projeção do futuro, porque indica aquilo que os alunos ainda podem e devem aprender com ajuda dos professores ou de colegas e revela o curso interno de seu desenvolvimento. O desenvolvimento proximal pressupõe compartilhamento de saberes e ações para que os alunos aprendam e se desenvolvam como sujeitos sociais. Mais do que um suporte, a zona de desenvolvimento proximal é uma possibilidade de construção compartilhada de conhecimento. Ao aprenderem, por exemplo, a escrita, os alunos desenvolvem a “capacidade de participarem em atividades colaborativas qualitativamente novas” (BAQUERO, 1998, p. 115). Nessa perspectiva, o sujeito é um sujeito interativo, social, que se faz indivíduo na sua relação com o outro, intersubjetivamente. 8 8 A partir dos pressupostos explicitados nesta Introdução, esta primeira parte do Caderno está estruturada em três seções, cada uma em torno de um foco relacionado aos conceitos de desenvolvimento e de aprendizagem. A primeira busca articular os conceitos de desenvolvimento, de aprendizagem e de cultura, considerados centrais para se pensar os processos de ensino aprendizagem da leitura e da escrita. A segunda trata da aprendizagem da linguagem escrita, refletindo sobre diferentes formas de se ensinar e de se aprender a ler e a escrever de acordo com três abordagens psicológicas: a associacionista behaviorista, a construtivista piagetiana e o sócio histórico vygotskyana. Essas abordagens são articuladas, ainda, com a concepção de ensino-aprendizagem da Etnografia Interacional, adotada pelo Grupo de Estudo do Discurso em Sala de Aula da Universidade de Santa Bárbara, na Califórnia, Estados Unidos, de acordo com os trabalhos de Castanheira (2004) e Kelly e Green (1998). A terceira e última seção procura retomar e integrar os focos anteriormente discutidos, sempre com ênfase no ensino da linguagem escrita, no contexto da aprendizagem e do desenvolvimento cultural das crianças. O Grupo de Estudo do Discurso em Sala de Aula da Universidade de S anta Bárbara (em inglês, S anta Barbara Classroom Discourse Group), em funcionamento desde 1990, é composto por professores universitários e da escola elementar e secundária, pesquisadores e alunos de pós-graduação, que compartilham um referencial teórico comum no estudo da linguagem e da escrita como processos sociais. Esse grupo vem explorando conhecimentos etnográficos e sociolinguísticos no estudo das práticas de letramento em salas de aula. Ver, a respeito, Castanheira (2004, p. 83 -84). APRENDIZAGEM, DESENVOLVIMENTO E PROCESSOS CULTURAIS A partir da reflexão inicial sobre suas experiências de ensino, podemos desenvolver nossa discussão sobre as relações entre aprendizagem, desenvolvimento e processos culturais no aprendizado da leitura e da escrita de uma determinada língua, que, no nosso caso, é o português. Neste espaço, vamos nos deter nos processos de desenvolvimento e de aprendizagem das crianças de escolas públicas que iniciam seu processo de 9 9 ensino-aprendizagem da leitura e da escrita basicamente aos seis anos ou sete anos de idade. Antes que tenha início esse aprendizado específico, tais crianças já aprenderam o português falado e fazem uso de suas regras e estruturas – mesmo que não saibam denominar os conhecimentos linguísticos, culturais e psicológicos dos quais se apropriaram ao longo de seus poucos anos. Ao se apropriarem desse conhecimento, se apropriam também de uma cultura, ou de culturas – pois os alunos que chegam às nossas escolas provêm de grupos étnicos e sociais diferentes, com costumes e valores diferentes, e é fundamentalmente pela linguagem falada que se fazem membros desses grupos e aprendem seus modos de fazer, de agir, de pensar, de sentir. Desse modo, respeitar os diferentes dialetos de nossos alunos e tomá-los como instrumento de reflexão, focalizando as diferenças e semelhanças entre a linguagem falada e a linguagem escrita, torna-se tarefa importante na prática de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita. Aprender a ler e escrever diz respeito à aprendizagem de uma determinada linguagem escrita e, portanto, de uma determinada cultura ou de diversas culturas, que podem ser bastante diferentes das que são aprendidas via linguagem falada, no grupo familiar. Isso nãoquer significar que quando se aprendem diferentes dialetos, aprendem-se, necessariamente, outras culturas; mas significa, sim, que se podem aprender variações da mesma cultura. As culturas são construídas nas interações do dia-a-dia dos grupos humanos e, portanto, também das salas de aulas de que fazemos parte nós e nossos alunos. Assim, clarear o conceito de cultura nos parece central, mesmo considerando que fazer essa conceituação não é algo simples ou fácil. Segundo Agar (2002), cultura é um conceito complicado, com cem anos de história por detrás. 10 10 No entendimento desse autor, cultura refere-se aos modos de um povo, comunidade ou grupo fazer, ver, ser, sentir e estar no mundo. Não é algo estático, mas são processos dinâmicos, construídos pelos diferentes grupos culturais a que pertencemos. As pessoas usam a cultura para viver, o tempo todo. Cultura é mais do que aquilo que um povo tem, é algo que “acontece” na vida das pessoas. Você se dá conta de sua cultura, por exemplo, quando se encontra com outras pessoas e percebe as diferenças entre vocês, ou quando toma consciência de algo em si mesmo e procura compreender as diferenças entre você e os outros, o que abre caminhos para outras formas de ser. A cultura, então, é um sistema de significação que um grupo social cria, “inventa”, para preencher as diferenças entre ele e os outros grupos. A cultura é construída socialmente, por meio da linguagem, e muda o tempo todo. “A cultura está na linguagem, e a linguagem está carregada de cultura”, afirma Agar (2002, p. 28). Assim, a linguagem, que está impregnada de cultura, também muda o tempo todo. Os significados “naturais” e “certos” acerca de quem você é e de como o mundo funciona mudam, por exemplo, quando você se situa e interage no moderno mundo multicultural. A cultura é um sistema conceitual, cuja superfície aparece nas palavras quando as pessoas usam a linguagem. E a linguagem não é um objeto isolado, não é apenas um sistema composto de palavras e de regras que determinam como ligar as palavras umas às outras para formar uma frase. A linguagem é uma prática social e, consequentemente, as maneiras de produzir sentido com a linguagem, falando, escrevendo ou compreendendo, dependem de interações e ações, dependem do contexto em que a atividade linguística ocorre. A linguagem é uma atividade criadora e constitutiva do conhecimento e, por isso mesmo, transformadora, como diz Smolka (1999, p. 57). Pela linguagem, na interação com os outros, conhecemos a realidade que nos cerca, formulamos e reformulamos nossa maneira de entender o mundo, a sociedade, nós mesmos. Mulheres e homens mudam a si mesmos, por meio das palavras, porque são capazes de discernir, refletir, criar, inventar, eleger, decidir, organizar e agir, ou seja, é pela interação e ação que o ser humano se constrói, se transforma, cria e recria a si mesmo, dialogando e criando significações para os seus atos e falas. 11 11 Para saber mais a respeito da concepção de linguagem e de língua, consulte o Caderno “Língua, texto e interação” dos Módulos 1 e 2 deste Programa de Formação Continuada, que desenvolve essas noções com mais profundidade. Especialmente na escola, as palavras funcionam como meio de comunicação, como modo de organizar as ações e interações, como portadoras de novos conhecimentos e, também, como objeto de estudo. A reflexão sobre o que se leu e se escreveu, como e sob que condições se aprendeu esse bem cultural, para que ele serve, promove a tomada de consciência dos alunos quanto ao funcionamento da linguagem escrita, quanto às suas diferenças com relação à linguagem falada e, ainda, quanto aos seus usos e funções na cultura. Estamos tratando da linguagem como “linguagem em uso, que é empregada para fazer alguma coisa e para significar alguma coisa, linguagem que é produzida e interpretada no contexto do mundo real” (CAMERON, 2001, p. 13), ou seja, no contexto de salas de aulas, de culturas. É com base nesses conceitos de cultura e de linguagem que analisaremos um evento, relatado por Smolka (1999), ocorrido em uma sala de aula de alfabetização considerado a mais fraca da 1ª série, em 1989, numa cidade do Estado de São Paulo. A autora nos apresenta uma vivência de leitura nessa sala de aula, em que uma aluna lê uma frase corretamente, mas a interpreta a partir da sua experiência pessoal, de sua vivência sociocultural: A professora escreve na lousa: “A mamãe afia a faca”. E pede para uma criança ler. A criança lê corretamente. Um adulto pergunta à criança: – Quem é a mamãe? – É a minha mãe, né? – E o que é que é “afia”? A criança hesita, pensa e responde: – Sou eu, porque ela (a mamãe) diz: “vem cá, minha fia”. 12 12 A professora, desconcertada, intervém: – Não, “afia” é amola a faca! Ao analisar esse evento, Smolka (1999, p. 59) considera que ele suscita polêmicas de natureza linguística, psicológica e social. Do ponto de vista linguístico, podemos começar ressaltando o aspecto semântico, isto é, relativo ao significado das palavras. Além da dubiedade da significação atribuída à sequência /afia/pela professora e pela aluna, valeria lembrar, por exemplo, a múltipla possibilidade de interpretação da palavra amola, passível de ser entendida como substantivo (a mola) ou como verbo, com duas acepções (amola = afia; amola = chateia, aborrece). Há também questões gramaticais envolvidas, relativas à fonologia, à morfologia e à sintaxe. Na dimensão fonético- fonológica, há um conflito de “pronúncia”, que tem a ver com a variação social da língua – na variedade padrão, pronuncia-se /filha/; em muitas variedades regionais não padrão do português do Brasil, pronuncia-se /fia/. A diferença de pronúncia vai provocar dupla possibilidade de interpretação morfológica, concernente à classe gramatical das palavras: afia = verbo; a fia = artigo mais substantivo. As dimensões fonético-fonológica e morfológica vão repercutir na sintaxe: na interpretação da professora, há ali uma oração composta de sujeito, verbo e complemento do verbo (a mamãe afia a faca); na interpretação da aluna, há uma sequência de palavras, uma lista, sem estrutura oracional (a mamãe, a fia, a faca). Do ponto de vista social e cultural, deve-se avaliar que a criança (da qual não se tem indicadores socioculturais) decifra corretamente, mas interpreta o que decifrou tendo como base sua vivência sociocultural. Isso lhe possibilita construir sentidos para as palavras decifradas e não apenas decodificá-las. Ela faz uso da palavra “afia” no contexto escolar de decifração de uma frase solta, isolada (retirada de uma cartilha), demonstrando diferenças de linguagem que revelam diferenças socioculturais. 13 13 Do ponto de vista psicológico e cognitivo, portanto, não se pode dizer que a menina cometeu um erro, porque, a partir de seu conhecimento linguístico e cultural e levando em conta o tipo de frase que costuma aparecer na cartilha usada na sua sala de aula, ela realizou operações psicológicas adequadas, raciocínios plausíveis, para chegar à conclusão que comunicou à professora. Considerando o que discutimos sobre desenvolvimento e aprendizagem na Introdução desta parte do Caderno e tendo em vista que os conhecimentos escolares podem transformar os conhecimentos cotidianos, vamos procurar refletir junto com Vygotsky (1989), sobre o processo de internalização da cultura pelas crianças, que se faz em duas direções: primeiro ele acontece no nível interpessoal e depois no nível intrapessoal, ou seja, primeiro entre pessoas, nas interações sociais, por exemplo, entre alunos e alunos e entre alunos e professores; depois, no interior do próprio sujeito, quando ele compreende o funcionamento dalíngua e passa, por exemplo, a usá-la para escrever bilhetes para os colegas e professores. Dessa forma, os sujeitos aprendizes apropriam- se da cultura na qual vivem a partir de suas relações com os adultos, principalmente imitando-os, para, depois, construírem seu próprio entendimento dessa cultura. Esse entendimento traz sempre uma reconstrução interna dos processos vivenciados e imitados. A aluna protagonista do evento aqui exemplificado faz uso de sua vivência sociocultural na aprendizagem da leitura dentro daquela sala de aula e coloca um desafio para sua professora: o de proporcionar-lhe situações de ensino-aprendizagem que lhe possibilitem ir além de sua vivência cultural local e construir um sentido mais global para o que ela lê. Esse processo envolve não só aprendizagem, mas também desenvolvimento da capacidade de abstração e de generalização do pensamento, ou seja, ao aprender a ler e a construir sentidos para o que leem, os alunos podem e devem desenvolver sua capacidade de pensar abstrata e generalizadamente, porque esses fatores são fundamentais para todo aprendizado escolar. Para isto, 14 14 precisam mobilizar, nas oportunidades de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita – interações sociais que ocorrem na sala de aula –, as funções psicológicas superiores (atenção voluntária, memória mediada por instrumentos e signos, percepção e formação de conceitos), que, como já dissemos, são de origem cultural. Para Vygotsky (1982 e 1989), é o aprendizado escolar e social que pode proporcionar às crianças esse desenvolvimento cultural, transformando o ser humano de ser biológico em ser histórico-cultural. A data de 1982 corresponde à edição da tradução espanhola consultada. A obra original é de 1934. A aprendizagem, então, é vista como um processo construído através da linguagem nas interações e ações entre professores e alunos, tanto no plano individual quanto no plano coletivo. Por meio da linguagem, os conceitos cotidianos vão dando lugar à elaboração de conceitos científicos: novas palavras são aprendidas e os significados das palavras corriqueiras vão sendo ampliados com novas acepções. Por isso, pode-se considerar a aprendizagem como um processo discursivo que implica a elaboração conceitual da palavra, que, por sua vez, só pode acontecer quando as pessoas se encontram e fazem uso da linguagem em seus grupos culturais. O processo discursivo a que nos referimos diz res peito àquilo que as pessoas falam e fazem dentro da sala de aula. Os discursos são criados, por todos os participantes, por meio da linguagem falada e escrita e das ações realizadas no contexto das oportunidades de aprendizagem; eles não estão prontos antes de alunos e professores entrarem nas suas salas de aula. Vale retomar aqui o evento da aluna que necessitava reelaborar conceitualmente a palavra “afia” e a expressão usada por sua mãe, “a fia”. Para isto, ela precisa aprender a completar os vazios, a articular e relacionar termos. O fato de existir a possibilidade da interpretação que ela atribuiu à frase “A mamãe afia a faca” revela que, no funcionamento da língua, não há uma lógica única e obrigatória explicitada pela gramática, mas há, sempre, necessidade de atividade mental das pessoas, produzindo compreensão, articulando sentido à 15 15 sequência de sons ouvidos ou de palavras lidas. É o que a menina faz, reelaborando conceitualmente a sequência escrita e explicando sua interpretação à professora: “A fia sou eu, porque ela (a mãe) diz: vem cá minha fia, (traz) a faca” (SMOLKA, 1999, p. 59 e 61). Para que os processos de reelaboração ocorram com sucesso, é importante o estabelecimento de zonas de desenvolvimento proximal nas interações sociais entre colegas e professor, pela criação de oportunidades de aprendizagem por meio de brincadeiras, jogos, práticas de leitura e escrita, atividades colaborativas de reflexão sobre a língua, enfim, situações em que os alunos, coletiva e individualmente, reconstruam e reelaborem conceitos. Esse processo de aprendizagem e desenvolvimento envolve tanto aspectos sociais, históricos, culturais, linguísticos, como aspectos cognitivos e afetivos. Todos esses aspectos são processos construídos e não são inerentes à condição étnica, de gênero ou de classe social (GOMES, 2004) – o que torna injustificável toda e qualquer atitude preconceituosa ou discriminatória. Assim, é fundamental levar em conta o contexto sociocultural de nossos alunos ao se ensinar a ler e a escrever. Do ponto de vista da psicologia sócio histórica, mostrase essencial saber quem são as crianças, seus interesses, seu cotidiano, seus gostos culturais, suas práticas de leitura e de escrita. O que eles já sabem sobre leitura e sobre escrita também são saberes fundamentais a serem considerados nesse processo. Vivemos num mundo de escrita e nossos alunos já chegam com alguns conhecimentos sobre a língua que vivenciam em seu cotidiano. Esses conhecimentos precisam ser valorizados e considerados ao se ensinar a ler e a escrever, tendo em vista os grupos socioculturais aos quais os alunos pertencem. 16 16 A necessidade de estarmos atentos e sensíveis a essas questões já havia sido apontada nos trabalhos construtivistas de Ferreiro e Teberosky (1985), que se basearam nos estudos psicogenéticos de Piaget sobre o desenvolvimento infantil. Essas pesquisadoras entendem que as crianças, ao se apropriarem da escrita como um sistema de representação, isto é, ao aprenderem a ler e a escrever, lidam com esse sistema como objeto conceitual, como objeto de conhecimento. A partir desse pressuposto, as autoras, examinando as hipóteses que os alunos levantam e as operações que realizam ao praticarem a escrita, demonstraram como eles aprendem a ler e a escrever determinada língua. Para essas autoras, é necessário que os estudantes compreendam como funciona e como se estrutura a linguagem escrita, é necessário que se possibilite aos alunos a construção dos conceitos de leitura e de escrita, para que eles se tornem autônomos e façam uso desses instrumentos culturais na vida e na escola. Para maior aprofundamento, consulte a referência à abordagem da psicogênese e da escrita no Caderno “Alfabetização e letramento”, que faz parte deste Módulo. Antes dessa descoberta importante, pesquisadores como Vygotsky e Luria já haviam estudado e descrito o que leva uma criança a escrever, ou seja, que trajetória possibilita que as crianças aprendam a ler e a escrever. Esses estudiosos investigaram a “pré-história da linguagem escrita”, que, para eles, começa com o aparecimento do gesto, que contém a futura escrita. “O gesto é a escrita no ar”, diz Vygotsky (1989, p. 121). Entre os gestos e a escrita, há dois domínios: os rabiscos e os jogos das crianças. Por meio deles, as crianças atribuem significado aos objetos e ao mundo que as rodeia. Por meio dos gestos (apontar com o dedo, dramatizações, mímicas), rabiscos e jogos (no sentido de brincadeiras infantis inventadas quando as crianças estão sozinhas ou junto com outras crianças), elas atribuem a função de signo ao objeto e lhe dão significado (VYGOTSKY, 1989, p. 123). A representação simbólica na brincadeira é, essencialmente, para Vygotsky, uma forma particular de linguagem num estágio precoce, atividade essa que leva, diretamente, à linguagem escrita. 17 17 Por isso, no processo de alfabetização, as crianças precisam aprender não apenas o uso e as funções do código escrito, mas sim a linguagem escrita. As diferenças entre a perspectiva construtivista e a sócio histórica serão explicitadas na próxima seção, cujo tema é a compreensão do fenômeno de ler e escrever, do ponto de vista da psicologia sócio histórica.AS CRIANÇAS, A SALA DE AULA E A APRENDIZAGEM DA LINGUAGEM ESCRITA COMO UM PROCESSO DISCURSIVO Para desenvolvermos nossa conversa sobre a aprendizagem da escrita pelas crianças, seria conveniente refletirmos sobre as formas convencionais de ensino-aprendizagem da linguagem escrita, que se baseiam na concepção de que a língua é um sistema fechado, cujo ensino demandaria apenas transmissão e memorização. Paralelamente a essa compreensão de língua, no âmbito da psicologia, a orientação é associacionista. A teoria da associação defende que ideias simples podem ser vinculadas para formar ideias complexas. Propõe duas leis da associação: a semelhança ou similaridade, e a contiguidade no tempo e no espaço. Quanto mais semelhantes e contíguas duas ideias, tanto mais prontamente elas se associam. As ideias complexas são construídas mecanicamente, por meio de um amálgama de ideias simples (SCHULTZ e SCHULTZ, 1981, p. 50). Nessa perspectiva, institui-se um trabalho que vai das partes para o todo (letras, sílabas, palavras, frases e pseudotextos) e do simples para o complexo (de sílabas simples para sílabas complexas), com o objetivo de ensinar a decifrar palavras escritas por meio da repetição 18 18 mecânica de partes e consequente memorização, supondo-se que, somadas, as partes vão formar o todo que é o texto. Nesse contexto, a cópia mecânica de algo que não se entende e sobre o qual não se faz nenhuma reflexão torna-se uma prática diária. O associacionismo mantém a concepção de que os elementos da atividade mental são isolados, ou seja, de que as funções psicológicas (atenção, percepção, memória) atuam independentemente umas das outras. E, além disso, estende as leis de funcionamento da memória para todas as outras funções psicológicas. A memória vem associada à retenção (a conhecida “decoreba” de sílabas, por exemplo), estocagem, conservação e recuperação de dados no cérebro (SMOLKA, 1997, p. 70). Ela é vista, por essa corrente psicológica, como sinônimo de aprendizagem. A palavra memória, então, equivale a “aprender de cor” e é substituída pelo termo aprendizagem. A abordagem sociocultural procura romper com essa visão limitadora do funcionamento mental: Não se pode ensinar às crianças através de explicações artificiais, por memorização compulsiva e repetição apenas. O que uma criança necessita é de adquirir novos conceitos e palavras para atribuir sentido ao que aprende. E um conceito não é apenas a soma de certas ligações associativas formadas pela memória, assim como não é, também, apenas um simples hábito mental; é um complexo e genuíno ato de pensamento, um ato de generalização que envolve a atenção deliberada, a lógica, a abstração e a capacidade de comparar e diferenciar. Esses processos psicológicos não são adquiridos por simples repetição ou rotina pedagógica, mas por um longo esforço mental por parte da criança, em interação com adultos e outras crianças (VYGOTSKY, 1989, p. 58). Dessa forma, aprender a ler e a escrever é muito mais do que adquirir habilidades básicas de decifração e escrita de palavras e pseudotextos. É, principalmente, construir, obter e atribuir sentido para o que se aprende, por meio de usos funcionais da linguagem, que sejam relevantes e significativos para os aprendizes. Sendo assim, no processo de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita, deve-se enfatizar a criação de contextos sociais que 19 19 estimulem a produção de zonas de desenvolvimento proximal, entendidas como espaços de possibilidades que se estabelecem com base nas capacidades ou competências já consolidadas pela criança, em direção a outras que estão em vias de se tornar desenvolvimento efetivo, graças à ajuda ou mediação de outro mais experiente – como é o caso do professor. Nesses contextos, as crianças aprendem interativamente a usar, provar e manipular a linguagem, colocando-a a serviço da atribuição de sentido para o que leem e escrevem (GOMES, 1997, p. 47). Vygotsky focaliza a escrita como uma atividade simbólica que, tal como outras atividades simbólicas (gesto, desenho, jogo, etc.), envolve a representação de uma coisa por outra, a utilização de signos auxiliares para representar significados (FONTANA e CRUZ, 1997). Um trabalho didático baseado no associacionismo, ao contrário, tende a ignorar os significados e ensina as crianças a desenhar letras e com elas construir palavras, mas não ensina a linguagem escrita. O associacionismo enfatiza de tal forma a mecânica de ler o que está escrito, que acaba obscurecendo a linguagem escrita como tal, isto é, como um sistema particular de símbolos e signos. Já para Vygotsky (1982 e 1989), a compreensão e o domínio da escrita como linguagem constitui um ponto crítico, um momento decisivo, no desenvolvimento cultural da criança. O autor se interessa pela gênese do aprendizado da escrita, que ele chama de “pré-história da linguagem escrita”, para compreender o que leva a criança a aprender a escrever, o que cria condições para que esse aprendizado ocorra. Nesse sentido, ele interpreta o gesto como manifestação simbólica preliminar, como escrita no ar, como signo visual que contém a futura escrita da criança. Os rabiscos e os desenhos das crianças são vistos como outros domínios que unem os gestos e a linguagem escrita, assim como o jogo ou o brinquedo. Todos esses domínios representam formas particulares de linguagem, exercem funções simbólicas que possibilitam a aprendizagem da linguagem escrita como uma atividade simbólica. Gesto, jogo e desenho, 20 20 mediados pela fala, constituem momentos diferentes de um processo unificado de desenvolvimento da linguagem escrita. Esses aprendizados são fundamentais, segundo Vygotsky (1989), para as crianças entre três e seis anos de idade, pois vão contribuir para a elaboração do simbolismo na própria escrita, assim como para o progresso na atenção e na memória. Já na década de 30 do século passado, Vygotsky escrevia sobre a capacidade de aprender a ler de crianças com quatro anos de idade. Entretanto, chamava a atenção para que a escrita e a leitura fossem algo de que as crianças de fato necessitassem e que tivesse sentido para elas. Desse modo, o autor valorizava o ensino da linguagem escrita e não a escrita de letras. Com o propósito de compreender o processo de apropriação da linguagem escrita, ainda hoje algumas perguntas estão sendo respondidas: Quando se aprende a ler e escrever, aprende-se o quê? Para quê? Sob quais condições? O que conta como aprendizagem da leitura e da escrita na sala de aula, para alunos e professores? Essa última pergunta pode ser assim desdobrada: O que é considerado válido, legítimo, adequado, no processo de aprendizagem da leitura e da escrita, numa sala de aula específica? O que, nessa sala de aula, contribui significativamente para esse aprendizado? Outras perguntas são acrescidas a essas: Quem são os alunos, do ponto de vista de etnia, idade, gênero, classe social? O que lhes interessa ler? O que lhes interessa escrever? Para quem? Como? Quando? Perguntar o que conta como ler e escrever numa sala de aula remete-nos ao contexto dessa sala, mas implica também a compreensão de que a construção de significados é uma unidade de um processo constituído de contextos interacionais particulares criados nessa sala, porém interdependente e relacionado com outros contextos criados em outros lugares sociais, com seus símbolos, textos e valores. Portanto, o que conta como aprendizagem da leitura e da escrita no contexto da sala de aula só pode ser analisado se são consideradas as interações discursivas, as ações dos participantes e as suas histórias (GOMES, 2004). Antes de alunos e professores entrarem para a sala de aula, o que vai contar o que vai ser estudado e compreendidocomo leitura e 21 21 escrita, não está definido, mas deve e pode ser construído pelos participantes da sala de aula. Pensando dessa forma, considera-se que já não basta se perguntar como as crianças aprendem a ler e a escrever, focalizando as fases de construção individual desse conhecimento do ponto de vista psicogenético, considerando o erro como construtivo e analisando o conflito cognitivo, conforme os postulados de Ferreiro e Teberosky (1985). Torna-se importante explicitar o contexto de produção dessa aprendizagem e o processo de construção desse contexto nas salas de alfabetização, como propõe a perspectiva sociocultural, porque isso possibilita contemplar e buscar compreender tanto a dimensão individual quanto a coletiva do processo de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita. Conflito cognitivo, do ponto de vista piagetiano, refere-se ao desequilíbrio cognitivo provocado na forma de pensar e de agir das crianças pelas intervenções de um adulto. Por exemplo, quando as crianças estão aprendendo a escrever, elas elaboram hipóteses sobre como se escreve uma palavra. Essas hipóteses podem estar distantes da escrita oficial, mas revelam a compreensão das crianças sobre a linguagem escrita, naquele momento, revelando também o processo cognitivo que estão construindo. Quando um adulto interfere e faz perguntas que provocam outras reflexões e entendimentos por parte dos alunos, instaura-se um conflito no modo como eles pensam, escrevem e agem. É esse conflito que a psicogênese chama de conflito cognitivo. No caso da alfabetização, provocar esse conflito tem a intenção de fazer com que as crianças, individualmente, internamente, avancem em seu processo de compreensão da linguagem escrita. Quando se procura responder à pergunta o que conta como leitura e escrita numa determinada sala de aula, tem-se a chance de entender a natureza socialmente construída da aprendizagem e o fato de que instituições sociais como escola, por exemplo, se mantenham em contínuo processo de (ré) estruturação (CASTANHEIRA, 2004, p. 39): estruturam e reestruturam suas regras de funcionamento, seus currículos, seus métodos de ensino aprendizagem, trocam seus professores, por exemplo. Cada escola é única, 22 22 assim como cada sala, entretanto isto não quer dizer que não apresentem universalidades. Quer dizer, sim, que em cada escola e em cada sala de aula acontecem experiências únicas, particulares, e que necessitamos enxergar não só as semelhanças, mas também as diferenças entre as escolas e as salas de aula. Essas diferenças são produzidas no contexto interacional local e estabelecem o que se entende por ensinar/aprender leitura e escrita naquele contexto, naquela sala de aula. A aprendizagem da leitura e da escrita é um processo cuja essência se constitui não só pelo que os alunos e professores fazem, mas também pelo que eles pensam e falam sobre essa aprendizagem e sobre o que fazem com ela. Portanto, é necessário compreender “o significado da leitura para os participantes envolvidos na situação da leitura por meio do exame dos critérios e procedimentos usados por eles na definição do que é e do que não é considerado como ato de leitura, nos diferentes contextos em que ela é utilizada”, como propõe Castanheira (2004, p. 40). Como o processo é tanto individual quanto coletivo, a construção de oportunidades de aprendizagem para todos requer que se considerem as diferenças de entendimento e de produção de cada um e as diferenças socioculturais, pois as práticas sociais de leitura e de escrita desenvolvidas pelos alunos fora da escola influenciam sua aprendizagem dentro da escola. Há estudos recentes, como os de Bloome e Bayley (1992), Kelly e Green (1998), Castanheira (2000), Castanheira (2004) e Gomes (2004), demonstrando que, quando o trabalho de ensino-aprendizagem se faz numa perspectiva contextualizada, isto é, quando atenta para os critérios e procedimentos estabelecidos pelo grupo e para as diferenças individuais que ocorrem no contexto de cada sala de aula, os resultados são diferenciados de uma turma para outra, ainda que o conteúdo tratado seja o mesmo e que os professores tenham estabelecido o mesmo objetivo e desenvolvido as mesmas atividades, sob a orientação pedagógica de um mesmo livro didático, por exemplo. Os padrões de comunicação estabelecidos dentro das salas de aula diferenciam-se em razão das diferenças entre as pessoas, que têm demandas sociais e 23 23 individuais diferentes. Nessa perspectiva, como observaram Collins e Green (1992) e Castanheira (2000 e 2004), a sala de aula funciona como uma cultura, em que os membros constroem formas padronizadas de interações sociais dia após dia, momento após momento. Esse entendimento da sala de aula como cultura está baseado na etnografia interacional, desenvolvida pelo Grupo de Estudo do Discurso em Sala de Aula de Santa Bárbara (Santa Barbara Classroom Discourse Group) e procura entender as ações, os conhecimentos e os objetos culturais que “os membros de um grupo precisam usar, produzir, prever e interpretar para participar de sua vida diária”, como afirmam Putney, Green, Dixon, Duran e Yeager (2000), citados por Castanheira (2004, p. 46). Depois dessa discussão, já podemos compreender por que não basta perguntar e responder como as crianças aprendem a ler e a escrever individualmente, pois esse aprendizado é contextualizado e envolve práticas culturais dentro das salas de alfabetização. Envolve, portanto, a compreensão de regras e princípios que orientam as ações e interações dos participantes de uma sala de aula e, para isso, é necessário observar o que alunos e professores fazem, dizem, com quem, para quem, sob quais condições, quando e onde, com que propósitos e com que resultados para a própria pessoa e para o grupo. Voltemos à prática de leitura relatada por Smolka (1999), para realimentar nossa reflexão sobre o tema. Não bastaria, no caso do desempenho da aluna de nosso exemplo, apenas instaurar um conflito cognitivo, conforme preconizam as abordagens psicogenéticas e construtivistas, propondo à aluna, por exemplo, uma pergunta, um problema que a levasse a refazer sua compreensão da palavra “afia”. Essa atitude pedagógica seria útil e promotora de mudança, mas não suficiente, porque o conflito não é só cognitivo, ele é também social e cultural. Assim sendo, é necessário também levar em consideração, nas 24 24 práticas de leitura e de escrita na sala de aula, a escrita enquanto fenômeno social – suas funções e configurações, sua dimensão simbólica – e ainda o processo de conceituação e elaboração desses aspectos pelos alunos, suas experiências e usos da leitura e da escrita, além de compreender as ações e interações que são construídas no dia-a-dia da sala de aula. Isso nos leva a pensar que não se ensina e não se aprende apenas a ler e a escrever palavras e textos, mas a usar uma forma de linguagem, uma forma de interação verbal, uma atividade, um trabalho simbólico. Portanto, para além da concepção inovadora de aprendizagem como construção de conhecimento, assumida por Ferreiro e Teberosky e Ferreiro e Palácio, é fundamental considerar a concepção transformadora da linguagem, uma vez que não se pode pensar a elaboração cognitiva da escrita independentemente da sua função, do seu funcionamento, da sua constituição e da sua constitutividade na interação social (SMOLKA, 1999, p. 60). Isso implica ensinar/aprender a linguagem escrita e não a escrita de letras, como afirma Vygotsky (1982 e 1989). E põe em foco a necessidade de interações sociais entre alunos e professores e entre os próprios alunos, para construírem o fazer, o usar, o praticar e o conhecer a leitura e a escritacomo processos discursivos: “a criança aprende a ouvir, a entender o outro pela leitura; aprende a falar, a dizer o que quer pela escrita” (SMOLKA, 1999, p. 63). DESENVOLVIMENTO, APRENDIZAGEM E ENSINO DA LINGUAGEM ESCRITA Na tentativa de articular o que foi apresentado nas seções anteriores, procuraremos, ainda que rapidamente, interpretar cada abordagem psicológica em suas relações com a aprendizagem da linguagem escrita. 25 25 Na perspectiva associacionista, o produto do ensino da linguagem escrita é que é avaliado, pois a aprendizagem é considerada nada mais do que um reflexo do ensino. Como decorrência, concebe-se que há apenas uma resposta correta e que ela corresponde ao estímulo apresentado pelo professor. O erro é percebido como um desvio do modelo previsto e não como parte do processo de ensino e aprendizagem; a aprendizagem é vista como um fenômeno individual. Segundo Braggio (1992), essa perspectiva relega a leitura com significado para um estágio posterior, no qual as crianças já tenham aprendido a relação letra e som e já sejam capazes de soletrar. Dessa maneira, há uma excessiva preocupação com a decodificação mecânica da escrita, com perda quase total do significado no processo de aprendizagem. O conhecimento anterior da criança sobre a linguagem é ignorado no processo, bem como o contexto familiar e social de onde ela vem. A leitura e a escrita são vistas como fins em si mesmos, sem nenhum caráter funcional. A abordagem construtivista piagetiana ressalta a importância da relação entre professor e aluno e entre alunos, em cooperação, para o conhecimento da linguagem escrita a ser construído. Defende a capacidade de aprender do ser humano (entendido como “sujeito epistêmico”) e, portanto, dos alunos. Para essa abordagem, o meio influencia o desenvolvimento dos indivíduos de forma a acelerá-lo ou retardá-lo, mas a ação do sujeito é que é considerada fundamental para a construção do conhecimento. Entendesse que o conhecimento não está dado e que não é passivamente adquirido através da ação do meio sobre o sujeito. Sendo assim, o processo de construção é muito valorizado e os erros são analisados como hipóteses constitutivas do processo de ensino aprendizagem. A relativização do erro amplia as possibilidades de aprender e de ensinar, como também as possibilidades de intervenção do professor como agente provocador e reequilibrado. A cooperação entre os 26 26 estudantes é reconhecida e valorizada. Por todos esses aspectos, podemos considerar a perspectiva construtivista piagetiana um avanço em relação à abordagem anterior (GOMES, 2002). O conceito de sujeito epistêmico diz res peito ao sujeito que pens a, reflete, elabora hipóteses sobre o mundo que o cerca. É um sujeito ativo no processo de construção do conhecimento, enfim, um sujeito capaz de conhecer. Entretanto, a noção de “erro construtivo” mostra-se insuficiente para a compreensão das diversas produções dos aprendizes, já que esse olhar é retrospectivo, avaliando o que os alunos já sabem fazer em relação a uma resposta considerada correta ou a um nível de desempenho esperado, e não em relação à potencialidade de construções dos alunos. Esteban (1992, p. 82), ao analisar a produção escrita de um determinado aluno, faz a seguinte consideração sobre essa noção: O conceito de ‘erro construtivo’ não cria espaço para a avaliação do que se apresenta como potencial na resposta dada pela criança. A aprendizagem é redirecionada apenas para o acerto e não para a busca de conhecimento. É cristalizado o momento em que a criança se encontra no processo de construção de conhecimentos e a intervenção pedagógica não se reveste de novos instrumentos de ação no sentido de superar tal momento. A avaliação da aprendizagem não deixa de se fundamentar no passado do processo, qualificando os comportamentos como resultados do desenvolvimento consolidado – sem referência às possibilidades futuras nele implícitas – e limitando a aprendizagem no nível do desenvolvimento atingido. A abordagem sócio histórica Vygotskyana, ao afirmar que a cultura faz parte da natureza humana, redefine as relações entre desenvolvimento e aprendizagem, criando novas possibilidades de intervenção na sala de aula. Isso porque, sabendo que a aprendizagem estimula o desenvolvimento, sabemos também que o conteúdo escolar aprendido é incorporado como desenvolvimento mental pelos aprendizes. Assim, situações escolares muitas vezes desvalorizadas passam a ser valorizadas e compreendidas como 27 27 constitutivas do processo de ensino e aprendizagem. Entende-se que é na ação compartilhada ou dialógica que os aprendizes vão construindo novos conhecimentos, que não seriam possíveis pela ação exclusivamente individual. Nessa perspectiva, avança-se do sujeito ativo de Piaget para o sujeito interativo de Vygotsky. O professor recupera o seu papel e o ato de ensinar resgata a sua função. Valoriza-se o nível coletivo como instância necessária da construção de conhecimento, sem, no entanto, desconsiderar a ação intrapsíquica de cada um. A ênfase no erro é superada por uma forma de avaliação mais dinâmica e prospectiva, expressa no conceito de zona de desenvolvimento proximal. Entende-se que a criança, enquanto aprende, desenvolve suas capacidades cognitivas, afetivas e adquire novas habilidades e que, da mesma forma, ao se desenvolver, constrói estruturas que lhe possibilitam novas aprendizagens. Aprendizagem e desenvolvimento são concebidos como processos interdependentes e contínuos, cuja natureza pressupõe que um seja convertido no outro. Nessa perspectiva, a ação da criança não se dá apenas no nível individual, a fim de construir seu próprio conhecimento, mas sim no nível coletivo, interativamente, na co-construção de conhecimentos (GOMES, 2002). A formulação do conceito de zona de desenvolvimento proximal traz uma perspectiva de futuro para a prática pedagógica. A busca de conhecimentos – e não apenas de respostas corretas – restitui o papel do professor e a função do ensino; contrapõe-se a uma aprendizagem descontextualizada e institui uma profunda interação entre os indivíduos na prática pedagógica; promove avaliações prospectivas, isto é, com o olhar voltado para aquilo que ainda pode ser aprendido e desenvolvido com ajuda ou mediação dos outros e da linguagem. Sendo assim, procura-se trabalhar visando incluir os alunos no processo de ensino e aprendizagem. Aqueles que apresentam dificuldades 28 28 estariam juntos com os que não apresentam e com os professores, até que consigam realizar independentemente as tarefas propostas (GOMES, 2002). Na perspectiva sócio histórica, aprender é mais do que memorizar, porque envolve, além da memorização de conteúdos significativos para o aluno, o raciocínio, a capacidade de fazer relações entre o que se aprende na escola e o que se vive fora dela e entre os próprios conteúdo. Aprender é compreendido como um processo múltiplo, o que implica que deve haver também múltiplas formas de ensinar os conteúdos escolares. Assim sendo, avaliar esse processo exigem múltiplas metodologias, próprias para cada situação de ensino-aprendizagem vivenciada. Exige que reconheçamos as singularidades dos sujeitos aprendizes e suas formas de aprender. Exige que sejam reconhecidas as singularidades dos sujeitos que ensinam e suas formas de ensinar. Na relação entre professores e estudantes, o professor não está somente ‘dando uma aula’, ele está também “intervindo nos processos de desenvolvimento que estão em progresso em cada um de seus alunos”, de modo que “sua ação tem inúmeras consequências que não são visíveis nem imediatamente tangíveis, que extrapolam a mera transmissão e recepçãode informações”, como afirma Lima (1997, p. 21-22). Paralelamente, ainda de acordo com Lima, torna-se necessária a convergência de várias áreas do conhecimento – a Psicologia, as Neurociências, a Antropologia, a Sociologia, a Psicolinguística, a Sociolinguística – para que se possam compreender melhor as relações entre desenvolvimento e aprendizagem no cenário escolar. Essas áreas vêm estabelecendo diálogos fecundos e proporcionando outros e novos olhares para o aprendizado e o desenvolvimento do ser humano, auxiliando-nos a ver a sala de aula como cultura, onde a heterogeneidade e a diversidade linguística são componentes fundamentais para se descreverem e se explicarem os processos de ensino-aprendizagem da linguagem escrita e, assim, atuar neles de maneira mais adequada, considerando “os usos concretos da linguagem por falantes reais em comunidades heterogêneas de fala” (BRAGGIO, 1992, p. 29). 29 29 PARTE 2 PROCEDIMENTOS DE ENSINO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NA ALFABETIZAÇÃO No processo de aprendizagem da língua escrita, o trabalho com objetos significativos para o aluno, com certeza, contribuirá muito para o desenvolvimento da alfabetização. Quando o aluno percebe que portadores de textos estão ligados a assuntos do seu cotidiano, seu interesse é estimulado, pois entende que a língua escrita tem significado na sua realidade imediata. Independentemente do método adotado, o professor deve cuidar para oferecer um ambiente propício aos interesses e necessidades do aluno para que ocorra a aprendizagem. Os atos de brincar, dramatizar, simbolizar são valiosos para o desenvolvimento da alfabetização e devem ser desenvolvidos desde o ensino infantil. A criança que tem liberdade para brincar, dramatizar, se expressar, com certeza terá um desenvolvimento mais saudável. POR QUE BRINCAR, DRAMATIZAR, DESENHAR, RABISCAR? 30 30 O processo de aprendizagem da língua escrita, não se constitui numa trajetória linear e previsível que as crianças inevitavelmente irão passar. Tantas involuções quanto evoluções fazem parte do desenvolvimento da linguagem escrita de cada um. Para Vygotsky (1998), os gestos têm o significado de uma escrita no ar. É uma maneira de simbolizar atos, ações, sentimentos e objetos dentro do imaginário. “O gesto é o signo visual inicial que contém a futura escrita da criança, assim como uma semente contém um carvalho. ” (Vygotsky, 1998, p. 141). As atividades de dramatização desenvolvidas durante o período pré- escolar são treinamentos para a atividade de escrita, uma vez que os gestos constituem-se em escrita, uma escrita feita no ar e, os signos escritos são simples gestos que foram fixados. Vygotsky (1998) mostra o desenho como uma representação da língua escrita em primeiro estágio. Os rabiscos e os primeiros desenhos das crianças são entendidos como gestos ou tentativas de simbolizar a linguagem falada. Os desenhos podem ser interpretados como um estágio preliminar no desenvolvimento da linguagem escrita. Segundo Vygotsky (1998), quando as crianças desenham objetos complexos, elas o fazem a partir das suas qualidades gerais e não pelas partes componentes. A maneira global como as crianças realizam seus rabiscos e desenhos podem estar nos indicando a maneira como entendem a representação da língua escrita. A segunda esfera de atividades que une os gestos e a linguagem escrita é a dos jogos das crianças. Nesses momentos, as crianças utilizam diversos objetos para as brincadeiras e a cada objeto atribui um significado, onde realizará gestos representativos. O brinquedo simbólico das crianças pode ser entendido como um sistema muito complexo de “fala”. A brincadeira do faz-de-conta, muitas vezes esquecida ou entendida como banalidade dentro das escolas, é considerada por Vygotsky (1998), como uma das grandes contribuidoras do desenvolvimento da linguagem escrita, pois na brincadeira um objeto assume a função de signo. 31 31 “Assim como no brinquedo, também no desenho o significado surge, inicialmente, como um simbolismo de primeira ordem. Como já dissemos, os primeiros desenhos surgem como resultados de gestos manuais (gestos de mãos adequadamente equipadas com lápis); e o gesto, como vimos, constitui a primeira representação do significado. É somente mais tarde que, independentemente, a representação gráfica começa a designar algum objeto. A natureza dessa relação é que aos rabiscos já feitos no papel dá-se um nome apropriado”. (Vygotsky, 1998, p. 146) Vygotsky considera que existe um momento crítico na passagem dos simples rabiscos para o uso das grafias como sinais que representam ou significam algo. A criança passa a atribuir um significado ao desenho, porém ainda o encara como um objeto em si e não como uma representação, um símbolo. Para Vygotsky os símbolos de primeira ordem denotam diretamente objetos ou ações e os símbolos de segunda ordem compreendem a criação de sinais escritos representativos dos símbolos falados das palavras. Para que a criança consiga alcançar o segundo estágio, é necessário que ela descubra que além de desenhar as coisas, ela também pode desenhar a fala. O segredo do ensino da linguagem escrita é preparar e organizar adequadamente essa transição natural, pois quando ela é atingida, a criança passa a dominar o princípio da linguagem escrita, restando, então, aperfeiçoar esse método. Dessa maneira, torna-se importante, trabalhar desde cedo, com as crianças, as especificidades da língua escrita, como a escrita da esquerda para a direita, de cima para baixo, as diferenças entre letras e números, os espaços entre as palavras. O ensino da língua escrita pode partir da pré-escola, conforme propõe Vygotsky (1998), pois crianças mais novas são capazes de descobrir a função 32 32 simbólica da escrita. Entre 3 e 6 anos de idade as crianças têm domínio de signos arbitrários e progresso na atenção e na memória. O ensino tem que ser organizado de forma que a leitura e a escrita se tornem necessárias às crianças e que tenha significado para elas. O papel do professor como mediador e do outro como forma de interação são considerados primordiais por Vygotsky. O que propomos é “ensinar às crianças a linguagem escrita, e não apenas a escrita das letras”. (Vygotsky, 1998, p.157). Que a aprendizagem seja uma descoberta durante as situações de brinquedo e que aprendam a ler e a escrever da mesma maneira que aprenderam a falar. A ALFABETIZAÇÃO COMO UM PROCESSO No processo de alfabetização as etapas que o aluno analfabeto irá ultrapassar para atingir o seu objetivo não diferem de um indivíduo para outro. Segundo Lemle (2003), na fase inicial de alfabetização a criança deverá desenvolver a compreensão de que os sons da fala podem ser representados graficamente; mais adiante o aluno em fase de alfabetização deverá alcançar a percepção visual fina aguçada para que consiga distinguir as letras do alfabeto conscientemente. Ainda podemos afirmar com veemência que, para que o aluno seja capaz de ler e escrever é necessário adquirir a capacidade de perceber as unidades sucessivas de sons da fala utilizados para enunciar as palavras e de distingui-las conscientemente uma das outras e saber isolar, na corrente da fala, as unidades que deverão ser escritas entre dois espaços brancos. Lemle (2003), também ressalta que será necessário que o aluno absorva a ideia do conceito da unidade de palavra e que ela é o cerne da relação simbólica essencial numa mensagem linguística. Outras importantes compreensões que os alunos irão desenvolver são que a unidade de sentença33 33 é representada começando por letra maiúscula e terminando com ponto e a compreensão da organização da página da esquerda para a direita e a ordem significativa das linhas de cima para baixo. o contexto é essencial para o processo de alfabetização. As palavras apresentadas, as frases, as sílabas e as letras devem estar inseridas num contexto, de preferência da realidade imediata da criança. Os centros de interesse são uma das ideias básicas de Decroly, que sustentava a importância da globalização do ensino, ou seja, a supressão das barreiras e demarcações entre várias disciplinas escolares, devendo o professor um determinado assunto sob os seus diferentes ângulos. Em vez de apresentar os conteúdos em aulas separadas de linguagem, matemática, ciências, estudo, etc., o professor deveria explorar um determinado assunto sob os seus diferentes ângulos, encontrando as ligações entre as diversas áreas do conhecimento. Para um bom desenvolvimento do processo de alfabetização são necessários ainda, o comprometimento do professor com a tarefa da mediação entre os alunos e os conteúdos e a interação dos próprios alunos entre si e o professor. ALGUMAS ESTRATÉGIAS PARA O ENSINO DA LEITURA E ESCRITA Segundo Carvalho (2002), a aprendizagem da leitura se torna mais eficiente quando os leitores trazem o conhecimento a respeito das convenções, características, tipo de estrutura do texto cuja leitura vão iniciar. A diversidade de textos apresentados aos alunos traz convenções nem sempre tão claras para leitores iniciantes. É por isso que trabalhar desde cedo com os alunos a convenção da linguagem escrita pode ajudar a formar bons leitores e consequentemente bons escritores. Através do contato precoce 34 34 com a literatura infantil e de experiências agradáveis no período de alfabetização pode trazer resultados satisfatórios aos alunos por toda a sua vida acadêmica. “Aprender a ler como se a leitura fosse um ato mecânico, separado da compreensão, é um desastre que acontece todos os dias. Estudar palavras soltas, sílabas isoladas, ler textos idiotas e repetir sem fim exercícios de cópia, resulta em desinteresse e rejeição em relação à escrita.” (Carvalho, 2002). Ao entrarem na escola, os alunos já trazem consigo uma bagagem de conhecimentos. Com certeza já puderam visualizar muitas coisas escritas como cartazes, placas, faixas, jornais, revistas, embalagens etc., e provavelmente, entendem que a escrita tem algum significado, embora ainda não a compreendam. Segundo Carvalho (2002), conforme a classe social da pessoa, as experiências com a leitura e a escrita poderão variar. Em certas famílias, a leitura e a escrita fazem parte da vida cotidiana, em outras de classe social pobre, os atos de leitura e de escrita são raros ou mesmo inexistentes, seja porque as pessoas não aprenderam a ler, seja porque suas condições de vida e de trabalho não exigem o uso da língua escrita. As motivações das pessoas são diferentes e a escola se engana quando supõe que a leitura e a escrita têm o mesmo sentido para todos. Algumas pesquisas de autores contemporâneos acreditam que se a alfabetização for conduzida de forma a demonstrar que a leitura e a escrita têm função aqui e agora, e não apenas num futuro distante, incerto e imprevisível, o indivíduo poderá ter maior motivação para o esforço que a aprendizagem exige. Portanto, o trabalho de despertar o aluno para a compreensão da representação da fala através da língua escrita, serve de alicerce para o desenvolvimento de uma alfabetização significativa para os alunos. 35 35 ALGUMAS MANEIRAS DE INICIAR A COMPREENSÃO DA LÍNGUA ESCRITA O professor poderá levar os alunos a descobrirem um mundo cheio de coisas escritas, onde muitas dessas coisas escritas eles já conhecem. Num passeio pela escola, por exemplo, os alunos poderão tentar ler o que está escrito em placas, cartazes, o nome da escola na fachada, avisos, número das salas e do prédio da escola. No lado de fora da escola, o professor poderá pedir aos alunos que observem alguma coisa escrita e depois questiona-los sobre o que estava escrito, se eram letras ou números, onde estavam escritos, se são capazes de imaginar o sentido das palavras escritas encontradas na rua. Levar aos alunos alguns problemas: “o que pode estar escrito na frente do ônibus? E numa lata de óleo de cozinha?” Também podem servir de incentivo à leitura. Com a ajuda dos alunos, exemplos poderão ser buscados nas escritas de placas de ruas e praças, letreiros de ônibus e praças, placas de veículos, rótulos de uso comum, incluindo alimentos, produtos de limpeza e remédios, frases de para – choques de caminhões, cartazes de publicidade etc. Os alunos também poderão trazer de casa, coisas diferentes para serem trabalhadas em sala de aula: rótulos, embalagens, latas vazias, jornais velhos. Colocando o material a vista de todos, facilitará a observação e comparação dos produtos que trouxeram. Os comentários dos alunos também são úteis. Algumas perguntas exploratórias a respeito do material (o que será que está escrito aqui? Alguém conhece este rótulo ou este produto?) poderão ser trabalhadas. Estas atividades sugeridas exploram os conhecimentos que os alunos já traziam antes de entrar para a escola e irão ajuda-los a analisar os diversos usos da escrita no dia-a-dia. Os alunos também estarão descobrindo que letras e números são diferentes e que existe uma grande variedade de letras (cursiva, de imprensa, maiúsculas e minúsculas, etc.). A descoberta de que 36 36 mesmo sem saber, os alunos compreendem algumas coisas pode provocar o desejo de saber mais. ATIVIDADES EXPLORATORIAS E ESTÍMULO À LEITURA E À ESCRITA Levar ao alcance dos alunos diferentes portadores de texto, pode ser uma forma de incentivar a leitura e a escrita na fase de alfabetização. Cartas, listas, histórias, poesias, bilhetes, etc., poderão mostrar aos alunos a amplitude do mundo letrado e despertará a curiosidade para explorar cada vez mais este mundo. O trabalho com contas de água, luz e telefone, dinheiro (notas e moedas) e cheques ou documentos pessoais como carteira de trabalho, de identidade, título de eleitor também é um ótimo suporte para que o aluno saiba a utilidade da escrita e da leitura, pois são instrumentos utilizados no dia-a-dia das pessoas próximas e nas brincadeiras de faz-de-conta das próprias crianças. Algumas atividades com os portadores de textos dirigem a atenção da turma para aspectos formais da escrita, ao mesmo tempo em que ampliam as noções dos alunos sobre os diversos usos da leitura. Alguns aspectos formais deverão ser analisados nesses objetos, tais como a escrita dos textos (são escritos à mão, à máquina ou impressos?); que tipo de letras aparece; os textos são, ou não, entremeados com figuras, fotos, ilustrações (reconhecer o que é figura e o que é escrita); Os textos contêm letras e números, ou apenas letras? Outro aspecto importante a ser trabalhado é a distinção entre letras e números. Algumas crianças tendem a confundir letras e números, fazendo uso de algarismos, na escrita das palavras, como se fossem letras. Para ajudar aos alunos a ultrapassarem está dificuldade natural no processo de alfabetização, o professor deverá trabalhar as diferenças entre números e letras em diferentes contextos. 37 37 Segundo Carvalho (2002), trabalhar com o nome dos alunos é muito importante porque toda criança atribui estima especial ao próprio nome e se interessa por aprendê-lo e aqueles que já sabem “desenhar” a assinatura descobrem coisas novas observando a escrita dos nomes dos colegas. O ideal é que o professor desenvolvaum projeto pedagógico que trabalhe a escrita do nome como suporte para a alfabetização, que envolva atividades lúdicas, de escrita e leitura, bem organizadas e esquematizadas para que os alunos comecem a fazer as algumas comparações como: existem nomes com poucas e com muitas letras; existem nomes que começam ou que acabam com a mesma letra; os nomes mais extensos nem sempre são aqueles das pessoas mais altas; o tamanho das pessoas não tem relação com o tamanho de seu nome; os nomes dos alunos da turma podem ser classificados em vários grupos ou conjuntos: nomes que iniciem com a mesma letra, nomes que terminem com a mesma letra, nomes iguais, nomes que contém o mesmo número de letras. Para colher bons frutos no processo de alfabetização, é importante tornar esse período como uma fase de alegria, fantasias e realizações. Os alunos por si só tendem a desenvolver a linguagem escrita sem muita complicação e muitas vezes, o próprio professor censura e limita-os de desenvolver etapas importantes para o desenvolvimento da alfabetização. Deixar que os alunos brinquem mais, façam mais jogos de faz-de-conta, fantasiem, é importante para que desenvolvam a capacidade de simbolizar. As atividades de desenho livre também devem ser valorizadas, pois são os primeiros registros da representação da fala que os alunos apresentam vida escolar. O ensino das relações letras-sons é importante, mas não deve ser seguido com tamanha rigidez ao ponto que o ensino fique excessivamente centrado na decodificação e codificação, perdendo de vista o objetivo maior da alfabetização 38 38 que é “compreender o que foi lido, tirar proveito da leitura, seja em termos de informação ou de prazer (ou ainda de ambos)”. (Carvalho, 2005). PARTE 3 AS DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM, A LEITURA E A ESCRITA Historicamente, para Núnez Pérez e González-Pumariega (1998), até o final dos anos 60 e princípio dos anos 70, as investigações em torno do campo dos transtornos de aprendizagem se centraram fundamentalmente no estudo dos aspectos cognitivos (como, por exemplo, atenção, percepção e memória) que podiam conduzir os estudantes a terem problemas para a realização de suas tarefas escolares. No entanto, pouco a pouco, foram surgindo ideias para considerar o que pensam os alunos quando enfrentam essas tarefas, o significado e sentimento que lhes atribuem, como elementos que podem contribuir para uma melhor compreensão de como enfrentam as atividades escolares. Dessa forma, novas pesquisas começaram a ser realizadas, surgindo diferentes estudos sobre os aspectos psicológicos envolvidos nas dificuldades de aprendizagem. A ansiedade pode ser incluída nesses aspectos psicológicos como um afeto de importância para o estudo de sua relação com os problemas de aprendizagem da leitura e da escrita. Neste estudo, almeja-se alcançar uma melhor compreensão sobre essa relação, não se referindo às crianças que possuem perturbações emocionais muito sérias em termos patológicos. Este tópico está estruturado em três grandes tópicos, que abrangem as dificuldades de aprendizagem, a leitura, e a escrita, para que se possa compreender melhor o significado de cada um desses conceitos. AS DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM Os estudos das dificuldades de aprendizagem podem ser esclarecidos quando, teoricamente, podem-se abranger suas concepções, o que significam, e a relação existente entre elas e a ansiedade. 39 39 Concepções acerca das dificuldades de aprendizagem Núnez Pérez e González-Pumariega (1998) mencionam que, dentro da dimensão cognitiva da aprendizagem, é concebido, com devida relevância, o papel das variáveis, como as atitudes ou processos cognitivos, os conhecimentos prévios, os estilos cognitivos, intelectuais e de aprendizagem, assim como as estratégias gerais e específicas da aprendizagem; e as variáveis motivacionais mais importantes parecem ser expectativas de realizações futuras do aluno. Além desses tipos de variáveis (cognitivas e motivacionais), a aprendizagem e o rendimento escolar encontram-se relacionados a certas variáveis relativas à personalidade ou do tipo afetivo (como, por exemplo, ansiedade e estabilidade emocional). Piaget afirmou que, mesmo para as aprendizagens mais elementares, toda informação adquirida desde o exterior é sempre em função de um marco ou esquema interno mais ou menos estruturado (Paín,1985). É necessário um entendimento da aprendizagem em sua dimensão mais ampla, englobando, principalmente, as respostas afetivas das crianças (Mc Leod, 1989). Para Piaget, o que coordena todo o processo de desenvolvimento cognitivo é o processo de equilibração majorante, consubstanciado em um sistema de autorregulação, que produz as organizações estruturais necessárias para evitar a entropia do sistema, e ao mesmo tempo, dar-lhe uma direção. Sisto (1997) menciona que Piaget não nega que o fenômeno aprendizagem, responsável por mudanças no sistema cognitivo, possa possuir esse sistema de autorregularão que, ao mesmo tempo, permite e limita avanços, e que essas organizações teriam um funcionamento lógico-matemático, caracterizado por leis de compensação. Consoante aos trabalhos de Piaget, entende-se, que no sistema cognitivo, estariam funcionando integradamente diferentes níveis de 40 40 desenvolvimento, envolvendo as diferentes áreas de relação do ser cognoscente com o ambiente exógeno, caracterizando um sistema não-linear e assimétrico. O desenvolvimento teria também como função impor um sistema estrutural de funcionamento ao organismo e suas mudanças durante o seu crescimento (Sisto, 1997). Barca Lozano e Porto Rioboo (1998) expõem um conceito de aprendizagem que integra três aspectos. O primeiro é o de que a aprendizagem é um processo ativo, pois os alunos, necessariamente, têm que realizar uma série de atividades para que os conteúdos possam ser assimilados. O segundo menciona que a aprendizagem é um processo construtivo, porque as atividades que os alunos realizam têm como finalidade a construção do conhecimento. O terceiro aborda a aprendizagem como um processo significativo, pois o aluno deverá gerar estruturas cognitivas organizadas. Concebem, portanto, a aprendizagem como um processo de assimilação/adaptação de hábitos, conceitos, acontecimentos, procedimentos e atitudes, valores e normas; em que o sujeito adquire determinados esquemas cognitivo/mentais provenientes do meio a que pertence, através de sua própria estrutura cognitiva, com a finalidade de resolver tarefas e adaptar-se de forma ativa e construtiva. Para os autores, as aprendizagens ocorrem em meio a cinco grandes áreas, sendo as áreas “perceptiva/atencional, psicomotriz, linguística, sócio/afetiva e a do pensamento lógico” (p.48). Consideram que são, através dessas cinco áreas, que são organizadas e estruturadas as aprendizagens básicas universais. As últimas correspondem às funções superiores como linguagem, processos perceptivos, de atenção e de memória, raciocínio, psicomotricidade, pensamento lógico e desenvolvimento social, que têm um caráter universal, porque pode ser afirmado que todas as pessoas dependem da aquisição desses tipos de aprendizagens, independentemente da cultura a que pertencem. Por outro lado, deve-se pensar que também é necessário que ocorra o desenvolvimento das aprendizagens básicas instrumentais, que se referem a quatro grandes áreas: linguagem oral, leitura, escrita e matemática/cálculo. 41 41 Coll (1996) considera importante o estudo dos processos de mudança comportamentais provocados ou induzidos nas pessoas, como resultado de sua participação em atividades educativas, que consistem na análise dos processos de mudança que os participantes experimentamno ato educativo, de sua natureza e características, dos fatores que os facilitam, obstaculizam ou os impossibilitam da direção que tomam e dos resultados a que chegam. Quanto aos fatores ou variáveis de situações educativas, que condicionam esses processos de mudança comportamental, o autor esclarece que existem distintas possibilidades de organização e de sistematização. Quanto às situações educativas, é possível organizá-las em dois grupos: os fatores intrapessoais ou internos ao aluno e os fatores ambientais ou próprios da situação. Entre os primeiros, cabe citar a maturidade física e psicomotora; os mecanismos de aprendizagem; o nível e estrutura dos conhecimentos prévios; o nível de desenvolvimento evolutivo; as características relacionadas às aptidões; à afetividade (motivação e atitudes) e de personalidade (nível de ansiedade, auto conceito, sistema de valores). Entre os segundos, estão as características do professor (conhecimento da matéria, traços de personalidade, características afetivas); os fatores de grupo e sociais (relações interpessoais); as condições materiais (recursos didáticos e meios de ensino em geral) e as intervenções pedagógicas (métodos de ensino). Quanto às perturbações referentes à aprendizagem, Paín (1985) considera o problema da aprendizagem, por um lado, como um sintoma, no sentido de que o não aprender não configura um quadro permanente, mas ingressa numa constelação peculiar de comportamentos, em que se destaca como sinal de descompensação, sem determinantes orgânicos (na interação entre o indivíduo e seu meio, o primeiro sofre exigências externas que solicitam elaborações internas). Por outro lado, tal problema também pode ser resultante de uma disfunção intelectual, intrínseca ao indivíduo, presumivelmente envolvendo uma alteração do sistema nervoso central, podendo ou não vir acompanhada de outras condições ou influências. 42 42 Com o intuito de que sejam explicitadas as questões relativas às dificuldades de aprendizagem, serão detalhados os fatores referentes ao aluno, como também os que cabem ao ambiente. Para Prieto Sánchez (1998), quando alguns autores analisam as dificuldades de aprendizagem, referem-se aos déficits ou transtornos de tipo neurológico, incapacidades ou insuficiências que afetam direta ou negativamente o rendimento acadêmico. Os estudos mais comuns da maioria dos autores, que tratam desse tema, avaliam a discrepância que existe entre o nível de rendimento do aluno e o seu desenvolvimento intelectual ou capacidade de raciocínio. Tal discrepância demonstra que determinados alunos não podem aprender com procedimentos e materiais que são comuns para outros e, portanto, necessitam de estratégias educativas de intervenção. Ao comentar sobre o desenvolvimento intelectual, a autora se refere à aquisição e à melhora das ferramentas culturais de mediação, que são referentes às aprendizagens básicas instrumentais. Entretanto, entre os principais mecanismos que intervém em tal desenvolvimento, cabem destacar os processos gerais do raciocínio ou inteligência, entendidos em duplo sentido: capacidade de planejar, organizar e dirigir os recursos cognitivos que levam à aquisição das aprendizagens escolares; e a capacidade para colocar em funcionamento tais recursos, de maneira que permitam que tal aquisição seja eficiente. Fonseca (1995) comenta que, entre as inúmeras definições de dificuldades de aprendizagem, a do National Joint Committee of Learning Disabilities – NJCLD, 1988, é a que reúne maior consenso internacionalmente. Essa definição, para Fonseca (1995, p.71), compreende o seguinte conteúdo: “Dificuldades de aprendizagem (DA) é um termo geral que se refere a um grupo heterogêneo de desordens manifestadas por dificuldades significativas na aquisição e utilização da compreensão auditiva, da fala, da leitura, da escrita e do raciocínio matemático. Tais desordens, consideradas intrínsecas ao 43 43 indivíduo, presumindo-se que sejam devidas a uma disfunção do sistema nervoso central, podem ocorrer durante toda a vida. Problemas na auto regulação do comportamento, na percepção social e na interação social podem existir com as DA. Apesar das DA ocorrerem com outras deficiências (por exemplo, deficiência sensorial, deficiência mental, distúrbios socioemocionais) ou com influências extrínsecas (por exemplo, diferenças culturais, insuficiente ou inapropriada instrução, etc.), elas não são o resultado dessas condições”. Tal definição, na opinião do autor, é extremamente complexa, agrupando uma variedade de conceitos, critérios, teorias, modelos e hipóteses. Do ponto de vista teórico de Almeida et al. (1995), é sabido que a conceituação e a diferenciação entre distúrbios e dificuldades de aprendizagem têm causado polêmica, não havendo consenso entre os diferentes autores quanto à sua etiologia. Moysés e Collares (1992) apontam os distúrbios ou as dificuldades de aprendizagem como implicados em alterações biológicas, orgânicas, individuais, envolvendo uma disfunção neurológica. É necessário que se faça uma distinção entre os dois termos e acreditasse que as dificuldades de aprendizagem, apesar de se manifestarem no sujeito que aprende, não têm sua origem apenas nas características pessoais do aluno, envolvendo também fatores relacionados ao núcleo familiar, à escola e ao meio social. Dessa forma, os distúrbios referir-se-iam a alterações ou perturbações na aquisição do conhecimento, cujas explicações encontrariam respostas na clínica e nos discursos médicos, uma vez que o problema seria visto como uma entidade noológica, como uma “doença” ou uma “disfunção” (Almeida et al., 1995). As autoras concluem que o termo dificuldades de aprendizagem não pode ser entendido como distúrbio de aprendizagem. Comentam que o uso indiscriminado e bastante disseminado dos termos distúrbios, dificuldades, 44 44 perturbações ou disfunções de aprendizagem leva, muitas vezes, a rotulações que não contribuem para a compreensão, prevenção e minimização dos problemas que podem ocorrer na relação ensino aprendizagem. Acreditam que a imensa maioria dos problemas de aprendizagem, apontados pela escola, não constituem uma “doença”, uma patologia neurológica, pois se fosse esse o caso, estaria referindo-se a uma verdadeira epidemia. As dificuldades de aprendizagem seriam decorrentes de uma constelação de fatores (internos e/ou externos) de ordem pessoal, familiar, emocional, pedagógica e social que só adquirem sentido quando relacionados à história das relações e interações do sujeito com o seu meio, inclusive e sobretudo, o escolar. García Sánchez (1998) cita que as dificuldades de aprendizagem afetam crianças, jovens e adultos e não constituem um único problema, mas um conglomerado de problemas heterogêneos de dificuldades não acadêmicas com uma base principal na linguagem (processos fonológicos, morfológicos, processamento verbal na memória, processos visuais e auditivos, etc.), e dificuldades acadêmicas na leitura, na escrita, no soletrar e na matemática. Menciona que essa condição é diferente do baixo rendimento produzido por outras causas como por fatores ambientais; déficits sensoriais ou motores; dificuldades de atenção no controle dos impulsos ou hiperatividade; falta de motivação para aprender e outros transtornos do desenvolvimento. Dockrell e McShane (1997) apreciam que as dificuldades de aprendizagem podem ser relativas a uma dificuldade específica, conforme ocorre quando uma criança tem problemas em alguma área particular como a leitura; ou pode tratar-se de uma dificuldade geral, como ocorre quando a aprendizagem é mais lenta que o normal em uma série de tarefas. Comentam que para que possa ser identificada uma dificuldade de aprendizagem é necessárioconsiderar uma avaliação, pois a partir de seus resultados pode ser planejada a aplicação de um programa de intervenção. Qualquer avaliação ou intervenção com uma criança com problemas de aprendizagem implica necessariamente algumas hipóteses acerca da origem 45 45 deles e para que as avaliações sejam fiéis e válidas, o profissional deve conhecer o conjunto das variáveis que podem intervir na atuação infantil em tarefas específicas. Quanto à frequência das dificuldades de aprendizagem, os autores apontam que Rutter et al. (1970) realizaram um estudo detalhado com 2000 crianças e avaliaram que 16% das crianças com idade entre 9 e 11 anos apresentaram algum tipo de dificuldade que obstaculiza o seu processo educativo. Demonstram que, nos Estados Unidos, Meisels e Wasik (1989) constataram que estatísticas do Departamento de Educação indicam que aproximadamente 12% das pessoas de idades compreendidas entre 3 e 21 anos receberam algum tipo de ajuda na área educacional. Os principais tipos de dificuldades, por ordem de frequência, foram “alterações da fala, atraso mental, incapacidade para aprender, perturbações emocionais, deficiência mental e outras dificuldades relacionadas à saúde, déficits auditivos, déficits visuais, surdez e problemas de incapacidades múltiplas” (Dockrell e McShane, 1997, p.15). Os autores mencionados acima explicitam que, apesar dos esforços de investigação realizados e de muitas intenções para definir as dificuldades de aprendizagem, ainda não existe uma definição operacional comumente aceita, pois elas formam um grupo heterogêneo. Entendendo as dificuldades de aprendizagem Dockrell e McShane (1997) explicam que, para o entendimento das dificuldades de aprendizagem, devem-se compreender três aspectos que englobam a tarefa, a criança e o ambiente e a análise de cada um deles tem algo a contribuir para o tratamento das dificuldades de aprendizagem. Também 46 46 é importante que sejam inseridos os métodos que avaliam as habilidades cognitivas, assim como outros atributos psicológicos relevantes. Se analisarmos a tarefa ou as tarefas nas quais a criança apresenta dificuldades, temos que compreender quais seriam as habilidades necessárias para uma atuação com êxito. O objetivo da análise da tarefa é o de decompô-la em uma série de tarefas menores. Quando são conhecidas essas séries de tarefas, pode ser determinado em que medida uma criança que apresenta uma dificuldade pode realizar cada uma das subtarefas. Desse modo, tenta-se o mais precisamente possível identificar a natureza da dificuldade. Pode-se considerar, por exemplo, uma criança que tem dificuldades para escrever as letras. Cada letra pode ser decomposta nas linhas que a compõem e a forma em que se conectam entre si. Se a criança não conseguir traçar as linhas, pode ser decidido trabalhar o aperfeiçoamento de tal habilidade, porém, se ela conseguir traçar as linhas razoavelmente bem, a intervenção pode ser concentrada na habilidade para juntar essas linhas com a orientação apropriada para formar as letras. Quanto à criança, Dockrell e McShane (1997) discutem o seu sistema cognitivo em termos de sua habilidade para processar a informação, o que é decisivo para uma completa execução de uma determinada tarefa. O estudo do processo normal do desenvolvimento cognitivo oferece diretrizes úteis acerca do que se estudar em relação às crianças que têm dificuldades de aprendizagem, e uma vez que se conhece como é o desenvolvimento normal, pode-se perguntar de que modo difere o desenvolvimento das crianças com dificuldades de aprendizagem. No que se refere ao ambiente, ele representa o contexto externo no qual é manifestada a dificuldade infantil; é onde há a interação criança e tarefa. Compreender o papel do ambiente pode ser muito importante na relação com as dificuldades de aprendizagem, pois as crianças que as têm, podem ser mais dependentes do ambiente do que as que não as apresentam, já que estas podem ser mais fortes para combaterem as situações ambientais que podem ter um sério efeito nas crianças que apresentam um baixo rendimento. Compreender o ambiente é importante em dois sentidos: ele pode, em alguns 47 47 casos, ser um fator importante que contribua para os problemas das crianças; e também, pode não contribuir para a dificuldade, sendo possível, às vezes, modificá-lo para que seja facilitada a aquisição da habilidade de que a criança necessita. O ambiente contém regiões de perigo e insegurança, podendo ameaçar ou satisfazer, tendo o poder de produzir dor e aumentar a tensão, assim como o de trazer prazer e reduzira tensão (Hall, Lindzey e Campbell, 2000). Talvez as maiorias das dificuldades de aprendizagem sejam resultado de problemas educativos ou ambientais que não estão relacionados às habilidades cognitivas da criança. Remetendo-se um pouco mais à influência do ambiente, principalmente, porque, neste estudo, a variável ansiedade é também tratada como estado, ou seja, dependente de uma dada circunstância ambiental, o nível de ansiedade estado do aluno pode interferir positiva ou negativamente sobre a aprendizagem. Considera-se que o professor possa auxiliar os seus alunos em tarefas educacionais, principalmente, aqueles em que a ansiedade tem influência, produzindo o baixo rendimento. Até mesmo o tratamento médico da dislexia destituiu, provavelmente, os professores de seu papel essencial de qualquer distúrbio na aprendizagem léxica. Os fatores afetivos são, pelo menos, tão importantes quanto os fatores instrumentais. Os professores deveriam estar em condições de conhecer a importância dos fatores de relacionamento no ensino e deveriam saber que, em toda atividade pedagógica, há relações transferenciais e contratransferências (Ajuri guerra et al., 1984). As relações transferenciais correspondem a um vínculo afetivo intenso que pode se instalar de forma automática e atual entre o aluno e o professor, com muita frequência, sem se ter consciência, e no qual há a revivescência de afetos por parte do aluno, que substitui uma pessoa conhecida anteriormente, num bom ou mau sentido, pelo professor. A 48 48 contratransferência apresenta as mesmas características da transferência, diferenciando-se, somente, no fato de que consiste no professor reviver afetos suscitados pelo aluno (Chemama, 1995 e Fenichel, 1997). Ajuri guerra (1980) também aborda que as dificuldades de aprendizagem podem estar relacionadas a deficiências escolares. A propósito dessas relações entre psicanálise e educação, visando à diminuição dos problemas de aprendizagem relacionados à ansiedade, os professores não deveriam ter apenas informações acerca da técnica de ensino, mas também, uma formação relativa ao desenvolvimento da criança sob o ponto de vista da afetividade. As recentes pesquisas sobre o pensamento do professor e o processo de alfabetização têm fornecido informações e novos conhecimentos tanto sobre o papel e a atuação dos professores, quanto sobre o processo de ensinoaprendizagem (Teberosky e Cardoso, 1991). Para Assis (1990), a conduta dos professores em sala de aula também é um dos fatores que contribui de forma diferente e inter-relacionada para a configuração do desempenho escolar de uma criança, mas, dificilmente, pode ser especificado o “quantum” dessa influência e pouco se tem de conhecimento sobre ela. O papel do adulto, em uma situação de aprendizagem, é fundamental, porque ele é o intermediário entre a criança e o objeto de conhecimento; é ele que veicula esse objeto, tal como a mãe que medeia a relação do bebê com o mundo. Assim sendo, se a relação com o adulto for positiva, é mais provável que a criança receba bem o que virá dele; e, se for negativa,é provável que veja com desconfiança ou mesmo rejeite o que lhe é oferecido por ele. Além disso, aprender é tomar conhecimento de instrumentos (como a leitura e a escrita) que são de domínio do adulto e apropriar-se desses instrumentos é identificar-se com o adulto. Ora, se a criança tem uma imagem negativa do adulto, será menos provável que queira ser como ele é, caso contrário, se tiver uma imagem positiva, provavelmente, tentará assemelhar-se a ele (Assis, 1990). A autora continua mencionando que essas “imagens” do adulto são mais propriamente imagos parentais, pois se tratam de representações internas, mentais, que incluem um conjunto de significados, constituindo-se em ideias e sentimentos relacionados aos adultos. São formadas ao longo do 49 49 desenvolvimento da criança e dependem tanto de fatores constitucionais do próprio indivíduo, quanto das características dos adultos que fazem parte do ambiente. A criança com uma imago parental positiva tem recursos internos para lidar com situações adversas, internas e externas, e se ela sente tais recursos, provavelmente, enfrentará tais situações sem muita ansiedade, o que facilitará seu desempenho. Em contrapartida, a criança com uma imago parental negativa perde a confiança em si mesma, é como se não tivesse a quem recorrer ou não dispusesse de recursos para enfrentamento de situações antigênicas. Isto pode gerar angústia diante das exigências da escola, prejudicando lhe o desempenho. É indubitável que as crianças e as personalidades infantis sejam emocionalmente mais instáveis, e o organismo, se estiver em estado de tensão, tende a regressões emocionais (Fenichel, 1997). Seguindo o caminho que os estudos científicos indicaram, a escola começou, pouco a pouco, a traduzir o problema educativo dos fracassos e das dificuldades escolares em termos de doença e tratamento. A escola adquiriu o costume de não considerar mais o “mau aluno” como um culpado, mas sim, como um doente, continuando, dessa maneira, a não admitir suas responsabilidades (Stambak, Vial, Diatkine, Plaisance e Beauvais, 1984). Soifer (1992) aponta que, se o ambiente não conseguir ajudar a criança na elaboração das situações emocionais básicas, existe uma grande probabilidade de produzirem-se carências nessa esfera que, por sua vez, determinarão falhas em aprendizagens intelectuais posteriores. Algumas práticas institucionais e uma organização escolar apropriada podem reduzir, e, em alguns casos, evitar a manifestação de dificuldades de aprendizagem. A maior deficiência dos sistemas tradicionais de avaliações dos problemas de aprendizagem é a tendência de ignorar a natureza interativa do ensino e da aprendizagem (White e Hearing, 1980 apud Dockrell e McShane, 50 50 1997). Fernández (1990) diz que há necessidade da existência de planos de prevenção nas escolas (para que o professor possa ensinar com prazer e, com disso, seu aluno possa aprender com prazer). Núnez Pérez e González-Pumariega (1998) apontam que um dos objetivos prioritários da escola é favorecer o desenvolvimento e crescimento dos alunos, não só em seus aspectos cognitivos, mas também nos afetivos e sociais. A escola parece contribuir tanto com o êxito quanto com o fracasso acadêmico. Os autores ainda esclarecem que podem ser realizados programas de intervenção direta sobre os déficits afetivos e motivacionais em estudantes com dificuldades de aprendizagem. Citam que Mestre e Frias (1996) apresentam um programa específico de intervenção cuja finalidade é de que os estudantes possam solucionar os déficits cognitivos, afetivos e motivacionais que interferem negativamente em sua aprendizagem e rendimento, desenvolvendo estratégias que permitam enfrentar de maneira eficaz as situações que produzem ansiedade. Tal programa, referente à interação professor-aluno, engloba os seguintes aspectos: avaliação das situações problemáticas no âmbito escolar; redução da ansiedade frente às situações estressantes por meio de técnicas de relaxamento e de autocontrole; desenvolvimento de técnicas de solução de problemas; estratégias de aprendizagem afetivo-emocionais; mudanças de atitudes diante de situações estressantes e adaptação das expectativas e aspirações dos êxitos reais. Bueno (1995, apud Núnez Pérez e González-Pumariega, 1998) também aponta uma série de recomendações importantes, assim como, um método geral a que o professor possa recorrer durante a aula. A respeito das primeiras, é recomendado que o professor seja precavido em relação ao sentimento ou emoção do aluno, pois mensagens indulgentes do professor diante de um resultado negativo podem dar lugar a sentimentos de incompetência. Sugere ainda que as ajudas prestadas aos estudantes com dificuldades sejam oferecidas, quando forem requeridas, ou quando sejam necessárias, para que eles não se julguem incapazes de resolver problemas por si mesmos. 51 51 O professor até pode auxiliar o aluno a entender a relação existente entre pensamentos, motivação, emoção e conduta, ajudando a desenvolver sentimentos de controle sobre os resultados acadêmicos que os alunos obtêm, propiciando que as expectativas deles sejam mais positivas, de modo a afetar positivamente o rendimento. As crianças, que têm dificuldades de aprendizagem, necessitam de intervenções para que desenvolvam uma imagem positivas baseada na percepção de si mesma como pessoas capazes de aprender e de serem os agentes dessa aprendizagem, o que repercute favoravelmente tanto sobre sua conduta acadêmica, como também sobre a afetiva e social, contribuindo para a formação de uma personalidade mais equilibrada e madura (Núnez Pérez e González-Pumariega, 1998). Wigfield e Eccles (1989) mencionam que os programas voltados para o relaxamento e desensibilização lidam com o componente afetivo da ansiedade, produzindo diminuição dela, mas pouca mudança no desempenho em situações de avaliação e, por esse motivo, há a necessidade de se atuar também a nível cognitivo, como, por exemplo, utilizando programas baseados em desenvolvimento de altas verbalizações positivas através de videotapes. Também esclarecem que podem ser usados programas integrados ao currículo, a partir de uma identificação de quais aspectos das situações de avaliação que mais dificultam o desempenho dos alunos ansiosos. Existem evidências de que o desempenho de tais alunos pode ser melhorado, quando são modificadas as condições das provas, e dessa forma, podem ser obtidos indicadores mais precisos de sua aprendizagem. A partir de toda essa situação, os autores dizem que parece impossível distinguir as crianças cujas dificuldades surgem de fatores extracurriculares, da ordem da patologia individual (disfunções instrumentais, problemas de relacionamento), daqueles cujos problemas são criados ou acentuados pelo sistema escolar e pela defasagem existente entre esse sistema e o que configura a vida da criança. Parece igualmente impossível limitar-se a uma formulação dos problemas que, considerando primeiramente todas as 52 52 dificuldades de aprendizagem da língua escrita como patológicas, só levasse em conta os fatores de ordem individual, sem analisar também a realidade escolar e social que as determina maciçamente (Nünez Pérez e González- Pumariega, 1998). Assim sendo, a tarefa, a criança e o ambiente constituem elementos importantíssimos na conceituação das dificuldades de aprendizagem. A LEITURA Aprender sistemas complexos, como é o caso da aprendizagem da leitura e da escrita, envolve a memorização dos símbolos básicos e seu significado (a letra a representa um determinado som) e a compreensão do próprio sistema simbólico, de modo tal que o sujeito possa gerar qualquer elemento dosistema, ainda que nunca tenha encontrado aquele elemento específico (ler ou escrever palavras novas, ainda não-aprendidas) (Carraher e Schliemann, 1983). Carraher e Rego (1981) consideram que a língua portuguesa se caracteriza por ter um sistema de escrita alfabético que envolve a representação da palavra enquanto sequência de sons. Investigaram a hipótese de que o realismo nominal lógico (conceito piagetiano) poderia constituir um obstáculo na aprendizagem da leitura e da escrita. A pesquisa comprovou que as crianças elaboram hipóteses acerca da escrita, que estão de acordo com a fase de desenvolvimento cognitivo na qual elas se encontram. Concluiu-se que o sucesso na aprendizagem da leitura e da escrita não é apenas fruto de um treinamento de habilidades, mas implica, também, a superação de um determinado obstáculo cognitivo: o realismo nominal lógico. Só quando a criança compreende ser a palavra falada, independente das características do 53 53 objeto que representa, é que consegue acompanhar com facilidade o processo de alfabetização. Os problemas de aspecto fônico e sintático da língua (principalmente com as características da nossa língua que se baseia na relação sinal-som), geram dificuldades de aprendizagem que muito frequentes (Stambak, Vial, Diatkine, Plaisance e Beauvais, 1984). A leitura é uma capacidade muito complexa e as dificuldades de aprendizagem referentes a ela têm sido, seguramente, as mais estudadas pelos especialistas (Sánchez Miguel e Martínez Martín, 1998). Barone (1997) comenta que, de maneira geral, considera-se o processo de alfabetização apenas dentro de um ponto de vista pedagógico, como se essa importante aquisição dependesse somente de aspectos instrumentais e cognitivos. No entanto, ler é muito mais que decodificar uma escrita, ou mesmo, é mais que descobrir e reconstruir o sistema de representação da linguagem. Ler é engendrar sentido. Talvez mais do que as outras dificuldades de aprendizagem específicas, as dificuldades na leitura obstaculizam o progresso educativo em várias áreas, já que a leitura é uma via de acesso a uma ampla diversidade de informações (Dockrell e McShane, 1997). Procuram-se compreender teoricamente o processo da leitura, as dificuldades de aprendizagem nela existentes, e a sua relação com a ansiedade. O processo de leitura 54 54 Em uma pesquisa realizada por Elkind (1969), utilizando a teoria de Piaget sobre a percepção e a dificuldade da leitura, concluiu ter encontrado duas atividades perceptuais, a esquematização perceptual e a reorganização, que foram descritas como componentes essenciais para o processo de leitura. É possível encontrar, para Sánchez Miguel e Martínez Martín (1998), muitos tipos distintos de erros que pertencem às dimensões distintas da capacidade da leitura e os que mostram certa estabilidade e persistência englobam a inversão de palavras, omissões, confusões e inversões de algum som ou letra. Devido à diversidade de erros serem tão evidente, há a necessidade de ser introduzida alguma ordem nesse aglomerado de manifestações. Dessa forma, os erros podem ser agrupados como erros ortográficos, no sentido de respeitarem a ortografia convencional (como escrever “higiene” e “higiene”); aqueles que parecem afetar as regras mais básicas que relacionam as letras aos sons (“torneio”/ “troneio”), e parecem os mais graves; alguns que se relacionam à fluência, e outros com processos mais globais como a qualidade da expressão ou da compreensão. Dockrell e McShane (1997) apontam que a maioria dos estudos sobre as causas das dificuldades de aprendizagem da leitura têm-nas definido operacionalmente como uma discrepância entre a idade cronológica e a idade correspondente à leitura. Outros estudos consideram três tipos de déficits que se referem às dificuldades de descodificação: déficits perceptivos (a dificuldade no processamento de informação visual pode causar dificuldades de leitura, mas, elas não são, em sua maioria, resultadas de déficits gerais de percepção), déficits de processamento fonológico (correspondência da forma escrita de uma palavra a sua estrutura sonora, denominada de correspondência grafemafonema), e déficits de memória em curto prazo (visto que a transformação letrasom é importante na aquisição das habilidades de leitura, pode ser explicitado que uma memória empobrecida para o material auditivo, talvez obstaculize a habilidade para combinar os sons diante de uma palavra). De acordo com Ajuri guerra (1980), a criança começa a ler quando atinge certo grau de maturidade; a fase da leitura sobrevém após as fases de 55 55 organização oral, expressiva e compreensiva. A leitura é uma nova forma de compreensão verbal. O conhecimento das letras parece mais próximo do aprendizado perceptivo de dados novos e abstratos; o conhecimento das palavras está mais perto do plano das significações linguísticas, mas a leitura de uma frase implica já uma exploração de conjunto, de idas e voltas com uma recomposição dos diferentes fragmentos. Quanto ao aspecto fonológico, lemos com os olhos e com os ouvidos : (Dockrell e McShane, 1997). Quando lemos somente com os olhos, reconhecemos as palavras diretamente; quando lemos com os ouvidos, transformamos o input visual em uma representação fonológica. Comentam que os hábeis leitores reconhecem a maioria das palavras impressas (Henderson, 1982), mas uma palavra nova é lida fonologicamente (Perfetti, 1985). As crianças, que estão aprendendo a ler, estão em uma situação em que muitas das palavras, com as quais têm dificuldades, são novas. Assim, parece provável que, para ler, dependam consideravelmente do uso da estrutura fonológica da palavra (descodificação). Explicitam que a leitura não se desenvolve de forma isolada, pois ao mesmo tempo em que se ensina as crianças a lerem, também se ensinam a soletração e a escrita. A soletração requer converter os sons em letras, portanto, a sua prática aumentaria a consciência fonológica. Para Sánchez Miguel e Martínez Martín (1998), diante de uma palavra, é necessário transformar a sequência de grafemas em sons (ca > “ca”, dei > “dei”, ra > “ra”) e, uma vez executada essa operação, todos os sons podem ser integrados (“ca...dei...ra”) em uma única expressão (“cadeira”). Depois desse momento, a palavra oral pode ser reconstruída e reconhecida como familiar. No entendimento dos autores, existem duas maneiras de ler as palavras. A maneira fonológica, mencionada anteriormente, que supõe transformar as palavras escritas em uma palavra oral antes de ela ser reconhecida e a léxica, 56 56 que supõe o reconhecimento imediato da palavra sem que seja mediada pela linguagem. As palavras familiares permitem este tipo de leitura. Assim, dentro do sentido amplo da leitura, podem ser distinguidas as operações que implicam o reconhecimento das palavras, que se denomina descodificação (ler depende, consideravelmente, do uso da estrutura fonológica da palavra), e na compreensão do que é reconhecido. Requer processos que operam em diferentes níveis de representação, incluindo as letras, as palavras, sintagmas, orações e unidades mais amplas do texto (Dockrell e McShane, 1997; Sánchez Miguel e Martínez Martín, 1998). Dificuldades na leitura As dificuldades em leitura implicam normalmente uma falha no reconhecimento e na compreensão do material escrito, sendo que o primeiro é o mais básico de todos os processos, pois o reconhecimento de uma palavra é anterior à compreensão dela, e assim, esse transtorno manifesta-se por uma leitura oral lenta, com omissões, distorções e substituições de palavras, com interrupções, correções e bloqueios (Dockrell e McShane,1997 e Nicasio García,1998). No entanto, há crianças que têm, apenas, problemas nas operações relacionadas ao reconhecimento das palavras, e podem compreender uma explicação oral (nomeados por disléxicos). Também existe um outro grupo de crianças que leem bem as palavras, mas possuem sérias dificuldades para compreender o que leem (alunos com dificuldades na compreensão). O caso extremo desse problema constituiria os sujeitos hiperléxicos que são os alunos que leem mal as palavras e têm problemas tanto na compreensão oral, quanto na da escrita (Sánchez Miguel e Martínez Martín, 1998). Analisando detalhadamente as habilidades implicadas no reconhecimento e na compreensão, os disléxicos teriam a compreensão oral, 57 57 mas seriam deficitários no reconhecimento das palavras escritas e na compreensão dos textos. As crianças com dificuldades na compreensão e os hiperléxicos seriam bons no reconhecimento das palavras, mas falhariam na compreensão oral e na da escrita. E, o outro grupo seria deficitário no reconhecimento das palavras, e em ambas as formas de compreensão (oral e escrita). Entretanto, o que realmente ocorre na leitura de textos é a união das habilidades (reconhecimento e compreensão). Uma pessoa alfabetizada adequadamente não só adquire capacidade para ler e interpretar um texto, sem que também aumente a sua competência linguística (Sánchez Miguel e Martínez Martín, 1998). Dessa forma, o modelo explicitaria que, após a realização das operações de reconhecimento das palavras, a compreensão da linguagem oral e a da linguagem escrita caracterizar-se-ia por uma via de duas mãos. Uma outra classificação se refere à intenção de se agrupar os maus leitores quanto à execução, e assim, Dockrell e McShane (1997) citam que Border (1973) também teria proposto três tipos distintos de dislexia. Os disléxicos disfonéticos teriam alguma habilidade para reconhecer as palavras como um todo, mas teriam dificuldades para decompô-las em sons. Os disléxicos diseidéticos teriam as potencialidades e limitações contrárias, ou seja, teriam uma boa habilidade para decompor uma palavra em som, mas sua habilidade para reconhecer as palavras como um todo seria pobre. O grupo misto seria pouco eficaz em ambas as habilidades. Quanto aos critérios que definem tal dificuldade, Dockrell e McShane (1997) mencionam que mais do que ter uma dificuldade leitora, as crianças disléxicas têm que cumprir uma série de critérios traçados para descartar possíveis explicações para seu problema e dentre eles, podem ser citados visão e audição adequadas; ausência de incapacidades neurológicas ou físicas 58 58 graves; ausência de problemas emocionais ou sociais significativos; oportunidades adequadas para ler e aprender e ausência de carências socioeconômicas. Um problema importante encontrado nesses critérios de exclusão, na opinião dos autores, é o de que nenhum deles é considerado como uma condição necessária e nem suficiente para que uma criança seja considerada como disléxica, mas todas as crianças disléxicas demonstrariam alguns desses sintomas. E ainda, a maioria dos critérios não são medidas de habilidade leitora, e sim, variáveis correlacionadas à leitura. A crítica permeia o fato de que não se sabe se os problemas das crianças correspondem ou não a uma base cognitiva diferente das crianças que não têm sido diagnosticadas como disléxicas. Explicam também que o conceito de dislexia se refere à implicação de que existiriam comportamentos que diferenciariam a dislexia de outros tipos de dificuldades de leitura, mas alguns estudos concluíram que não há provas que apoiem a existência de uma síndrome especial de dislexia distinta da de outros casos de dificuldades específicas de leitura. E ainda, há a suposição de que a síndrome seja de origem genética, e se a causa da dislexia é genética, então, não é provável que afete seletivamente o grupo de crianças que mostram a dificuldade de aprendizagem em leitura, e é provável que afete as crianças que têm dificuldades mais gerais, além dela. Apesar das conceituações mencionadas acima quanto à dislexia, é importante esclarecer que Ajuri guerra et al. (1984) comentam que, ao serem consultadas as obras que descrevem a dislexia como tentativas de definir modos de intervenção reeducativa, chama a atenção a importância das divergências que separam os especialistas. A facilidade na leitura não depende só de percepção visual, mas também de uma diferenciação das letras, em que algumas conservam um valor pela posição de certos elementos no espaço, de uma ordenação nas palavras, de uma seriação nas frases. Mas, além de todo esse processo, a leitura também engloba o processo de análise e de síntese que dá um sentido a essa nova forma de expressão linguística, só ocorrendo quando são possíveis a integração 59 59 e a diferenciação. Se existe, inicialmente, na leitura, um mecanismo de análise e de síntese, depois da linguagem escrita ele se torna autônomo, mesmo permanecendo como parte da linguagem oral, mas com formas discursivas particulares (Ajuri guerra, 1980, et al. 1984). Ajuri guerra et al. (1984) diz que esses tipos de perturbação em questão também são descritos com diversas denominações: “dislexia específica”, “dislexia de evolução” e, inclusive, com a antiga terminologia “cegueira verbal congênita”. No entanto, o termo é aplicado indiscriminadamente a qualquer criança que apresente dificuldades de aprendizagem, mesmo que se encontre submergido ao conjunto de outras dificuldades. Parece que há a existência de um grave problema para se chegar à conclusão do diagnóstico diferencial. Resumindo, pode-se dizer que estamos, atualmente, em um impasse: a noção de dislexia se dissolve em uma multiplicidade de sintomas, de mecanismos psicológicos, de origens etiológicas, de enfoques reeducativos, aos quais a análise científica já não reconhece realidade objetiva analisável. As próprias alexias não são ainda bem conhecidas e apresentam, assim mesmo, formas muito variadas. Supondo que fossem mais bem conhecidas, tampouco essas alexias permitiriam, por si próprias, contudo, a compreensão de distúrbios menos profundos. Dislexias e alexias requerem para cada uma de suas formas análises especiais; só elas permitirão saber em que medida essas formas são comparáveis (Stambak, Vial, Diatkine, Plaisance e Beauvais, 1984). A ESCRITA O saber ler e escrever tornou-se uma capacidade indispensável para que o indivíduo se adapte e se integre ao meio social. O homem sempre teve necessidade de se comunicar graficamente desde tempos mais remotos 60 60 (Oliveira, 1992). O prazer de aprender inclui o de sentir-se membro de uma classe da escola que, em torno do professor, funciona como um grupo social com vida e história singulares, centradas na aventura da apropriação criativa do sistema de leitura e escrita (Grossi, 1985). A alfabetização envolve dois tipos de aquisição no domínio cognitivo: (1) a compreensão do sistema alfabético de representação (dependente de fatores cognitivos mais complexos) e (2) a aprendizagem das convenções da escrita (dependente de habilidades de percepção e memória) (Carraher e Rego, 1984). Escoriza Nieto (1998) aponta que o interesse em explicar os processos cognitivos relativos à atividade da escrita e ao processo de composição é recente (final da década dos anos 70 e começo dos anos 80). Buscou-se, nesse trabalho, analisar o estudo da escrita a partir dos processos de sua composição, das dificuldades existentes nela, e de sua relação com a ansiedade. Processos de composição da escrita Um dos modelos mais conhecidos sobre o processo de composição da escrita é o elaborado por Hayes e Flower (1980 apud Escoriza Nieto, 1998), cujoobjetivo está centralizado na identificação e na descrição dos processos que configuram o processo geral da escrita e nele são descritos três processos principais: planificação, textualização e revisão. No processo de planificação, elaborar um plano de escrita implica a representação mental de uma série de ações cognitivas, que tendem a servir de orientação e controle do processo de composição da escrita. Exige, portanto, que a criança, ao escrever, construa uma representação mental da tarefa que pretende realizar antes de começar a executá-la. Tal processo consta de três subprocessos: generalização dos conteúdos, organização deles e estabelecimento dos objetivos. 61 61 Durante o subprocesso de generalização da informação; a pessoa, ao escrever, recupera, através da memória a longo prazo, a informação que considera relevante para determinada tarefa. O subprocesso de organização é orientado pela seleção da informação considerada como de maior utilidade e, assim, pode ser organizada de acordo com o que será escrito. O subprocesso referente ao estabelecimento de objetivos é concretizado com a formulação das intenções que orientam o processo da escrita adaptado às características do que se pretende comunicar. O processo de textualização compreende tanto as ações puramente psicomotrizes, referentes ao ato de escrever letras e palavras, como a produção de proposições no desenvolvimento da produção temática, considerada como elemento básico de tal processo. A função do processo de textualização consiste em transformar as ideias geradas e organizadas no processo de planificação em um discurso escrito, linguisticamente aceito. A principal função do processo de revisão é a melhora da qualidade da composição escrita mediante uma reavaliação ou análise crítica do discurso escrito. Outros modelos propostos, como o de Bereiter e Scardamalia (1987 apud Escoriza Nieto, 1998), fundamentam-se na distinção tradicional entre o desenvolvimento cognitivo como processo natural e apoiado na influência do meio externo. Tais autores têm como referência a proposta formulada por Chomsky que se relaciona ao estudo das capacidades que são adquiridas de forma natural ou que são menos dependentes da influência do meio e são claramente distintas de outras que requerem determinados processos de ensino aprendizagem. Existe uma distinção entre as capacidades que são adquiridas, quase inevitavelmente, através das experiências da vida cotidiana (capacidades naturais) e aquelas que requerem algum esforço ou intencionalidade para que 62 62 as limitações, que se reproduzem de forma natural, possam ser transgredidas (capacidades problemáticas). Nesse caso, a composição escrita é abordada como uma capacidade adquirida tanto de forma natural, como de forma problemática. Tomando como base essas suposições, Bereiter e Scardamalia (1987, apud Escoriza Nieto, 1998) propõem a existência de dois modelos diferentes. O primeiro modelo, nomeado “dizer o conhecimento”, trata de explicar a escrita como uma tarefa completamente natural, caracterizada por fazer um uso efetivo das estruturas cognitivas já existentes, minimizando o volume de problemas novos que devem ser resolvidos. Sua realização é muito dependente do desenvolvimento natural da competência linguística e das habilidades aprendidas através das frequentes experiências sociais. Em essência, é um modelo de produção de discurso, em que é produzida uma certa identidade entre o que se escreve e o que se pensa. O segundo modelo, ou seja, “transformar o conhecimento”, trata de explicar a escrita como uma tarefa de complexibilidade crescente, e cuja execução requer, sucessivamente, processos cognitivos de ordem superior. A escrita implica superar a capacidade linguística natural, a fim de possibilitar o reprocessamento do conhecimento. A principal característica desse modelo é considerar o processo de escrita como um processo contínuo de formulação e resolução de problemas, permitindo com isso a contínua interação entre desenvolvimento do conhecimento e desenvolvimento do processo de composição escrita. A escrita é configurada, assim, como uma atividade de representação do significado. É evidente que certas características da escrita se modificam em função da idade – pode-se, sem dúvida, falar de uma gênese, de um “desenvolvimento” da escrita. A escrita evolui com a idade, acelera-se, torna-se firme, abranda-se, regulariza-se, perde progressivamente, suas faltas de habilidades iniciais. Tal desenvolvimento da escrita reflete, sem dúvida, a aprendizagem, e até mesmo, o desenvolvimento no âmbito das relações afetivas e sociais (Ajuri guerra et al., 1988). 63 63 Linguagem oral e linguagem escrita se formam em estrita relação com o desenvolvimento intelectual. O importante é fazer compreender à criança que a escrita permite transmitir informações, que é um código convencional cuja posse permite decifrar as mensagens das demais pessoas e transmitir qualquer mensagem própria. A aprendizagem desse código é discriminativa (discriminação dos fonemas e dos grafemas) e substitutiva, ou seja, substituição de uns pelos outros (Stambak, Vial, Diatkine, Plaisance e Beauvais, 1984). Os autores também abordam que a aprendizagem da língua escrita resulta de uma elaboração progressiva que integra, em cada etapa, as aquisições da etapa precedente. Está baseada em numerosas organizações funcionais; portanto, susceptíveis de serem perturbadas por numerosos fatores em qualquer momento de seu desenvolvimento. As flutuações da vida familiar da criança, a evolução do grupo de sua classe, as modificações de suas relações com o professor são outros tantos fatores que podem influir na boa marcha da aprendizagem, constituindo-se também a causa de bloqueios que, em grande parte, podem acarretar dificuldades permanentes. Para Ajuri guerra et al. (1984), o campo da realização da escrita se situa em um plano muito diferente, não sendo um campo de livre escolha, estando sujeito às regras de direção, de seriação, de distribuição em um espaço limitado. A linguagem escrita nos é imposta por uma aprendizagem. A escrita é uma linguagem transmutada em percepção visual que evoca, no início, simples signos, e, posteriormente, palavras, que evocam coisas ou ações (Ajuri guerra, 1980). Dificuldades na escrita 64 64 Quando Escoriza Nieto (1998) aborda as dificuldades no processo da escrita, menciona que, entre os diversos modelos explicativos das dificuldades de aprendizagem e das definições elaboradas, as causas de tais dificuldades podem ser entendidas como resultantes na criança (critério intrínseco). Reduzir a interpretação das dificuldades de aprendizagem a causas intrínsecas supõe orientar os processos de diagnóstico à análise das características da criança, em detrimento da análise de outras causas que podem ter uma maior potencialidade explicativa. Esse tipo de análise não engloba os fatores causais como de influência educativa e a sua interação entre outros. Dessa forma, na concepção do autor, o que deve ser apreciado como importante pode estar reunido em dois aspectos. Primeiramente, Escoriza Nieto (1998) considera a análise vygotskiana da incapacidade. Em tal análise, diz que Vygotski atribuiu uma primazia total da influência dos fatores socioculturais, tanto sob o ponto de vista da etiologia, quanto da intervenção. Para Vygotski, uma criança com uma incapacidade não é uma pessoa cujo desenvolvimento está obstaculizado por algum tipo de déficit. O desenvolvimento de tal criança seria qualitativamente diferente e não mais lento ou inferior, em termos qualitativos, do que uma criança sem tal incapacidade. E, ainda, as capacidades cognitivas seriam diversase heterogêneas, tanto no caso das crianças com ou sem incapacidades, pois elas teriam um desenvolvimento relativo ao contexto sociocultural. Assim, “não existiriam incapacidades, mas sim, uma extensa diversidade de incapacidades” (Escoriza Nieto, 1998, p.153). Em segundo lugar, o autor aprecia as propostas formuladas, desde a concepção construtivista da aprendizagem escolar e do ensino até a fundamentação mais adequada das dificuldades de aprendizagem que implicam dois fatores descritos a seguir. A análise da etiologia das dificuldades de aprendizagem deveria focalizar a interação funcional e simultânea das características e a natureza dos três componentes básicos dos processos de ensino-aprendizagem: a pessoa que aprende, o professor que guia o processo de aprendizagem do aluno e os 65 65 conteúdos que constituem o objeto de ensino aprendizagem (situar as causas em um triângulo interativo constituído por aluno-professor conteúdos), ou considerar os processos de interação aluno-professor-conteúdo como a unidade de análise mais pertinente e relevante, referindo-se à explicação, diagnóstico e intervenção das dificuldades de aprendizagem. E, ainda, os processos de diagnóstico deveriam centrar, principalmente, a análise dos mecanismos de influência educativa que operam nos processos de ensino aprendizagem: processo de negociação de significados e o processo que transpassa o controle da atividade. Entende-se que o que define o processo de ensino-aprendizagem é o seu progresso na direção marcada pelos objetivos educacionais o que supõe o estabelecimento e a manutenção de um processo cuja finalidade seja a de superar com êxito e eficácia os obstáculos que podem ser gerados nos processos de negociação de sistemas de significados e o de transpassar o controle da atividade. Assim, ocorre, como consequência, que a fonte das dificuldades de aprendizagem pode ser interpretada como indicadora de tais obstáculos que não foram superados, sendo necessária a introdução de modificações nos sistemas mediacionais (como no instrumental, por exemplo). Poderá, dessa forma, ser aplicada uma proposta educativa mais adaptada às características e necessidades educativas do aluno para que ele possa alcançar níveis mais elaborados de compreensão. De acordo com Escoriza Nieto (1998), para que as dificuldades de aprendizagem possam ser analisadas, devem ser entendidos, não como atribuíveis às características específicas (biológicas e cognitivas), e sim como conhecimentos cuja internalização pode exigir, em determinadas crianças, ajudas educativas diferenciadas, diversificadas e diagnosticadas nos processos de influência educativa. A gravidade das dificuldades na escrita é relativa à dificuldade no desenvolvimento das habilidades da escrita (disgrafia) e, pode ir desde erros na 66 66 soletração até erros na sintaxe, estruturação ou pontuação das frases, ou na organização de parágrafos (Gregg, 1992 apud Nicasio García, 1998). Encontram-se sujeitos com boa capacidade de expressão oral, mas com sérias dificuldades para escrever as palavras (disgrafia); alunos que se expressam oralmente com dificuldade e escrevem, também, as palavras de modo deficitário, e sujeitos que escrevem bem as palavras; mas se expressam mal (Sánchez Miguel e Martínez Martín, 1998). Outro aspecto a ser considerado é o de que, normalmente, a criança apresenta mais dificuldade em realizar a tarefa referente ao ditado do que à cópia. No ditado, ela necessita ter, de antemão, uma representação gráfica do conteúdo, uma representação auditivo-verbal, pois, além de envolver a memorização das palavras, é também um treino de acuidade auditiva, pois a criança precisa se concentrar para diferenciar os sons emitidos pelo professor e sua atenção tem que ser seletiva para conseguir reproduzir graficamente a linguagem oral (Oliveira, 1992). 67 67 REFERÊNCIAS AJURIAGUERRA, J. de. Manual de psiquiatria infantil. Masson do Brasil Ltda, 1980. Conclusões. 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