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Controle social penal e estado democrático de direito Prof. Fabrício Veiga Costa Descrição Relação entre as missões e a seletividade normativa do direito penal com a legitimidade do poder punitivo do Estado. Características e análise comparativa do processo penal inquisitivo e acusatório. Garantias constitucionais e processuais penais do acusado no Estado democrático de direito. Leis penais simbólicas e os desafios quanto a sua efetividade normativa. Propósito Analisar criticamente como o controle social penal no Estado democrático de direito permite tratar adequadamente as garantias constitucionais do acusado, os desafios da efetividade normativa das leis penais simbólicas, bem como o papel e a missão do direito diante do poder punitivo do Estado. Preparação Tenha em mãos o Código Penal brasileiro vigente (Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), o Código de Processo Penal (Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941) e a Constituição brasileira de 1988, legislações disponíveis no Portal de Legislação do Planalto. Objetivos Módulo 1 A seletividade do direito penal Relacionar as missões e a seletividade do direito penal com o poder punitivo do Estado. Módulo 2 Os sistemas processuais penais Comparar os sistemas processuais penais. Módulo 3 As leis penais simbólicas Descrever as leis penais simbólicas. Introdução Neste material, você estudará os fundamentos teóricos e conceituais que permitem o entendimento da missão, do papel, da proposta e dos parâmetros críticos e constitucionais do direito penal. Discutiremos se essa área da ciência do direito pode ser considerada um instrumento de seletividade e controle social, fortalecendo o poder do Estado em detrimento da segregação e marginalidade dos indivíduos. Você também analisará criticamente a criminalização da homossexualidade como ferramenta hábil a demonstrar o intervencionismo estatal na criação de tipos penais, que objetivam fortalecer as estruturas sociais de discriminação sexual, preconceito e marginalização de homens e mulheres homossexuais. Vamos verificar que o estudo comparativo dos sistemas processuais penais, inquisitivo e acusatório demonstra que o direito penal e o processo penal não podem ser vistos como ferramentas de etiquetação de condutas que visam fortalecer a segregação, a desigualdade, a marginalização e a exclusão de pessoas. Por isso, veremos os princípios constitucionais da presunção de inocência, do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal, da individualização da pena e da inadmissibilidade de provas ilícitas no entendimento crítico do processo penal democrático, caracterizado pela ampla dialogicidade das questões controversas, exaltando o dever do poder estatal desconstituir o estado de inocência assegurado constitucionalmente como critério da dignidade humana. Ao final, vamos estudar as leis penais simbólicas, destacando os desafios da sua efetividade normativa, além de evidenciar a falência nas propostas legislativas que apresentam objetivos quase sempre inalcançáveis, como é o caso da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006). 1 - A seletividade do direito penal Ao final deste módulo, você será capaz de relacionar as missões e a seletividade do direito penal com o poder punitivo do Estado. Direito penal e o princípio da legalidade O direito penal é um ramo do direito público que pretende sistematizar normas jurídicas que possuem o objetivo de tipificar condutas consideradas penalmente relevantes, bem como suas sanções correspondentes — penas e medidas de segurança. O Código Penal brasileiro trouxe expressamente, em seu art. 1º, a literalidade de que não há crime sem lei anterior que o defina, assim como não há pena sem prévia cominação legal; esse mesmo conteúdo normativo-legal também está estampado no inciso XXXIX, do art.º 5 da Constituição brasileira de 1988. Assim, o princípio da legalidade é o fundamento regente para a definição de quais condutas serão consideradas crimes pelo Estado. Ou seja, tipificar uma conduta se equipara à lógica da etiquetação estatal de pessoas criminosas e comportamentos eleitos pelo Estado como crime, sendo para isso necessário que o legislador defina previamente quais são essas questões estatais consideradas penalmente relevantes. Na realidade, a lei que institui o crime e sua respectiva pena deverá ser anterior ao fato que se pretende punir, condição fundamental para proteger a dignidade dos cidadãos. Estes não poderão ser surpreendidos com proposições normativas que antes não eram condutas ou ilícito penais, mas repentinamente se tornaram crimes. Essa previsão legal do que se entende e define como crime é, além de uma garantia que prima pela segurança jurídica, uma forma de assegurar a todas as pessoas condições de se planejarem, no sentido de agirem nos moldes das disposições expressamente previstas no plano legislativo. O direito de o Estado punir penalmente uma pessoa, por determinada conduta por ela praticada, exige obrigatoriamente a observância do princípio da legalidade. O Estado tem o dever de vincular todas as atividades de seus agentes aos ditames legais e o direito penal “impõe a observância da estrita legalidade para a definição dos crimes e aplicação das penas” (GALVÃO, 2011, p. 110); uma vez que “a vinculação da atividade repressiva do Estado aos limites previamente estabelecidos por lei constitui verdadeiro instrumento de contenção da tirania e do despotismo” (GALVÃO, 2011, p. 110). A tipicidade penal é um princípio que estabelece o dever de o legislador descrever, minuciosamente e de forma prévia, quais são as condutas humanas consideradas ilícitas e relevantes sob a perspectiva penal. Se o Estado possui o interesse em punir e criminalizar determinada atitude, primeiro deverá descrevê-la de forma clara, pontual, objetiva e sistematizada, uma vez que isso é o que preveem os princípios da legalidade e taxatividade. A legalidade é, assim, uma das mais importantes conquistas do direito penal moderno. Esse postulado trouxe, ainda, o debate e a importância de sistematização jurídico-legal da anterioridade penal como requisito para a punição de atitudes consideradas penalmente relevantes, a destacar: A adequação de uma determinada conduta ao tipo penal exige do aplicador do direito uma interpretação literal e restritiva: não poderá o magistrado ou o órgão acusador interpretar de forma analógica, ampla, valorativa ou metajurídica determinado comportamento objetivando incriminar e punir penalmente seu agente. Toda pessoa tem constitucionalmente assegurado o estado de inocência, cabendo ao Estado desconstituir essa presunção de inocência apenas quando a conduta humana se enquadrar, literalmente, ao conteúdo descrito na lei como crime. Havendo qualquer possibilidade de o Estado agir fora dos limites estabelecidos pela lei, tal ação será reprimida pelo direito penal; uma vez que o princípio da legalidade (reserva legal), juntamente com a anterioridade penal, tipicidade penal, segurança jurídica e dignidade humana, trouxeram maior segurança e estabilidade jurídica aos cidadãos. O Estado tem o dever de vincular todas as atividades de seus agentes aos ditames legais e o direito penal: [...] impõe a observância da estrita legalidade para a definição dos crimes e aplicação das penas [uma vez que] a vinculação da atividade repressiva do Estado aos limites previamente estabelecidos por lei constitui verdadeiro instrumento de contenção da tirania e do despotismo. (GALVÃO, 2011, p. 110) Mas qual é a finalidade e a missão do direito penal no Estado moderno de direito? Vejamos na sequência! Vejamos na sequência! Estado moderno É possível considerar a modernidade o período histórico que se inicia no século XVII, após o absolutismo monárquico, e que se estende até a primeira metade do século XX. Finalidade e missão do direito penal Originariamente, esse ramo da ciência do direito deixou claro seu propósito de fortalecer o exercício legítimo dopoder estatal, além de ser instrumento de controle social. Pois, no momento em que o Estado etiqueta e estabelece previamente quais são as condutas humanas reprimidas penalmente e consideradas crimes, deixa claro o seu interesse e legitimidade jurídica quanto à punição dos sujeitos que violarem de forma dolosa ou culposa tais determinações legais. Por isso, o Estado foi colocado “à frente de um fenômeno originado pelo desrespeito de alguns cidadãos aos direitos e garantias individuais de outros, na medida em que bens jurídicos tutelados por escolhas da sociedade, através de seus legítimos representantes, eram ofendidos e necessitavam de proteção” (ANDREUCCI, 2008, p. 3). Nesse cenário sociojurídico, o Estado passou a utilizar o direito penal como instrumento institucionalizado de controle social, deixando claro o poder estatal de punir mediante previsões legais estabelecidas no ordenamento jurídico brasileiro. A principal máxima utilizada pelo Estado para justificar sua atuação punitiva é que: [...] os bens protegidos pelo Direito Penal não interessam ao indivíduo, exclusivamente, mas à coletividade como um todo [pois] a relação existente entre o autor de um crime e a vítima é de natureza secundária, uma vez que esta não tem o direito de punir. (BITENCOURT, 2002, p. 4) A lógica jurídica estabelecida é que o poder punitivo do Estado tem as seguintes vertentes: Retribuir ao agente a conduta ilícita por ele praticada, objetivando sua ressocialização e mudança de postura diante do contexto individual e coletivo. Reforçar a legitimidade em proteger a coletividade mediante a demonstração simbólica de segurança social. A partir dessas premissas, fica bastante clara a missão inicial do direito penal na modernidade: Punir agentes que praticam condutas tipicamente consideradas crimes pela norma legal, além do interesse de prevenir e desestimular a sociedade civil em geral quanto à prática dessas atitudes. A retribuição justa ao agente — autor de um crime — está entre essas missões do direito penal trazidas pela modernidade, pois sua tarefa seria a “proteção dos elementares valores ético-sociais da ação e só por extensão a proteção de bens jurídicos” (TOLEDO, 1994, p. 7). Na realidade, a principal missão do direito penal com o advento da modernidade foi fortalecer o poder do Estado, legitimando legalmente a aplicação de penas a sujeitos que transgridam a norma penal, como mecanismo simbólico de proteção da sociedade civil. Protesto pela morte da vereadora Marielle Franco, que atuava fortemente nas causas de direitos humanos e fim do racismo. A missão do direito penal, nessa perspectiva teórica, é o controle social. Acredita-se que a norma jurídica em si mesma, especialmente se vier acompanhada de penas severas, é capaz por si só de desestimular o agente à prática de ilícitos. Na perspectiva trazida pela modernidade, no momento em que o Estado pune alguém que comete um ilícito penal, estaria desestimulando outros sujeitos a praticarem a mesma conduta, como se fosse uma lógica matemática e quantitativa. A revisitação das respectivas premissas teóricas na sociedade democrática é de fundamental importância para o entendimento crítico sobre a própria missão democrata-constitucional do direito penal. A norma jurídico-legal, na sua específica literalidade, não tem o condão de desestimular de forma automática e vegetativa os seus destinatários de deixarem de praticar determinada conduta reprimida penalmente. Comentário Se essa lógica fosse verdadeiramente real, seria apenas criar um amplo arcabouço normativo, com penas severas e densas, o que seria suficiente para garantir à sociedade civil sua ampla e integral proteção. Vejamos agora a missão efetiva do direito penal no Estado democrático de direito. Plenário do Senado. A democraticidade da atuação do Estado exige inicialmente que os destinatários dos provimentos estatais tenham a oportunidade de participar discursivamente de sua construção. Se determinada norma jurídica é pensada para reprimir condutas, consideradas penalmente relevantes, é importante que seus receptores participem dialogicamente de sua construção e aplicabilidade, para que consigam enxergar e dimensionar a importância desse conteúdo normativo, tanto na esfera coletiva quanto na individual. No momento em que o Estado constrói e elabora unilateralmente uma lei penal, sem se preocupar em construir um debate, faz com que os destinatários não se sintam partes integrantes e pertencentes à norma. Quando isso acontece, a consequência automática é um déficit de efetividade normativa, ou seja, se o receptor da norma não participou do debate construído no processo legislativo que culminou com sua aprovação, qual é o sentido de visualizar a importância no que tange à aderência ao conteúdo dessa norma? Se é incapaz de compreender a sua importância jurídico-social, qual é o sentido de apoiar o seu conteúdo? Marcha pela democracia em São Paulo. Um exemplo que ilustra bem o fato de que a norma jurídico-penal em si seja incapaz de modificar estruturalmente a realidade social é a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006). Se qualquer destinatário de uma norma penal não consegue compreender a dimensão do seu conteúdo simbólico, fica consequentemente comprometido o seu efetivo propósito, que é reprimir e desestimular o agente de praticar a conduta penalmente reprovada pelo Estado. Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) Aprovada originariamente para coibir atos de violência doméstica, essa norma objetiva punir o agente (homem) que pratica violência doméstica contra a mulher (violência psicológica, moral, física e sexual). Maria da Penha, líder de movimentos de defesa dos direitos das mulheres. Antes de o Estado aprovar uma norma penal repressora e punitiva, é importante diagnosticar as razões e motivos que levam as pessoas a praticarem determinadas condutas reprovadas penalmente, o que é objeto da criminologia. Quando se realiza um estudo preliminar das causas que levam à delinquência, consegue-se diagnosticar outras estratégias interventivas, que vão além da lei penal, no sentido de prevenir a prática de condutas delituosas e lesivas aos interesses individuais e sociais. Criminologia A criminologia é uma ciência cuja “principal atividade centra-se no estudo das causas do delito, ou seja, em explicá-lo – a perspectiva etiológica” (SANTOS, 2020, p. 71). “Através de várias teorias se busca tentar entender por que as pessoas acabam cometendo os crimes e qual o motivo que na sociedade esses delitos ocorrem” (SANTOS, 2020, p. 71). A criminologia crítica cumpre seu papel “retendo como material de interesse para o Direito Penal apenas o que efetivamente mereça punição reclamada pelo consenso social, e denunciando todos os expedientes destinados a incriminar condutas que, apenas por serem contrárias aos interesses dos poderosos do momento, política ou economicamente, venham a ser transformadas em crime” (MIRABETE, 1998, p. 30). “A criminologia moderna também se ocupa atualmente com as causas do fenômeno delitivo, suas formas de prevenção, controle, sendo considerada uma ciência causal-explicativa em que enxerga o delito como um fenômeno social e também individual” (SANTOS, 2020, p. 74). É preciso deixar de enxergar o delinquente como um inimigo do Estado e da sociedade civil, procurando-se entender a dimensão em que ele se encontra inserido para, assim, compreender sistematicamente as razões que o levam à prática delituosa. Nesse sentido, destaca-se o princípio da intervenção mínima ou da última ratio, que implica a intervenção do direito penal restrita “ao mínimo necessário à manutenção da harmonia social”(GALVÃO, 2011, p. 116). A força punitiva de intervenção do Estado na esfera penal deve ser bem orientada, pelo seguinte motivo: A incriminação só se justifica diante de ataque a bem jurídico considerado relevante, e a apenação, além de ser proporcional ao dano social produzido, deve ser a mínima necessária à realização dos finsde proteção almejados. (GALVÃO, 2011, p. 117) A intervenção mínima do Estado quanto à tipificação penal deixa claro que o direito penal deve ser utilizado como instrumento subsidiário — não principal — de controle social. A criminalização somente se justifica democraticamente quando as instituições — sociedade, Estado, família — comprovadamente demonstram sua insuficiente atuação no sentido de prevenir comportamentos delituosos, não restando outra alternativa ao Estado a não ser a incriminação dessas condutas. A missão do direito penal democrata-constitucional é proteger amplamente a dignidade humana, seja na esfera individual ou na coletiva, o que justifica a imprescindibilidade de intervenção estatal mínima, no que atine à criminalização e punição de pessoas. Antes de ser instrumento de controle social e fortalecimento do poder punitivo do Estado, a missão constitucionalizada e democratizante do direito penal é permitir que cada cidadão seja amplamente protegido em sua dignidade, quando se encontra diante das arbitrariedades possivelmente praticadas pelo Estado. Isso não foi sustentado pelos estudiosos da modernidade que, contrariamente a essas premissas aqui expostas, defenderam a aplicabilidade do principio do direito penal máximo. Os defensores deste preceito insistem na ideia de eleger o criminoso como um inimigo do Estado, em vez de procurar entender as razões que levam ao aumento constante e significativo dos números da criminalidade no Brasil. Mas quais seriam as razões para o constante crescimento da criminalidade no Brasil? É o que entenderemos a seguir. Fatores para o crescimento de atos criminosos na sociedade brasileira São inúmeras as razões que explicam, na prática, o crescimento de atos criminosos no Brasil. O déficit de eticidade e alteridade (valorização do outro), o crescente abismo social, além de aspectos morais, sociais e religiosos, são alguns fatores que podem elucidar inicialmente a questão. O comportamento tipicamente individual e patrimonialista de muitos sujeitos, além da incapacidade de conseguir se colocar no lugar do outro (ausência de alteridade), influencia de forma direta na prática de alguns ilícitos penais, como os crimes contra o patrimônio (tais como furto, roubo e estelionato) e contra administração pública (peculato, concussão, corrupção ativa e passiva, prevaricação). A desigualdade social e o grande número de pessoas vivendo ou sobrevivendo abaixo da linha da pobreza, desempregadas e sem acesso a direitos fundamentais básicos, também contribuem significativamente para a prática de ilícitos penais, como é o caso do crime de tráfico de drogas. Razões morais explicam, por exemplo, a prática de crimes contra a dignidade sexual (estupro de vulnerável), homicídios (feminicídio, ou seja, reflexo do machismo estrutural), ressaltando-se que a dominação masculina se reflete de forma direta em muitos crimes contra mulheres, assim como há o interesse do Estado em criminalizar a sexualidade, ao penalizar atos praticados contra a integridade sexual da vítima. Reflexão Mas será que essa atuação punitiva do Estado, no sentido de penalizar essas e diversas outras condutas, assegura a modificação de estruturas sociais que explicam muitos desses comportamentos? Atuação punitiva do Estado O direito penal é uma ciência normativa que institui como crime condutas consideradas, em princípio, anormais no campo social. Em contrapartida, a criminologia considera o crime (conduta típica, antijurídica e culpável) um problema social, um fenômeno comunitário, que possui quatro componentes: Incidência massiva na população Não se pode tipificar como crime um fato isolado. Incidência aflitiva do fato praticado O crime deve causar dor à vítima e à comunidade. Persistência espaço-temporal do fato delituoso É preciso que o delito ocorra reiteradamente por um período significativo de tempo no mesmo território. Consenso inequívoco acerca de sua etiologia e técnicas de intervenção eficazes A criminalização de condutas depende de uma análise minuciosa desses elementos e sua repercussão na sociedade. A criação de um tipo penal deve ser reflexo de uma decisão amadurecida do Estado, após análise cuidadosa dos critérios aqui expostos. O crime não pode ser visto como um instrumento normativo-legal por meio do qual o Estado institucionaliza uma guerra contra quem é por ele declarado como inimigo (criminoso ou delinquente). Comentário Definitivamente, essa não pode ser a missão do direito penal: criminalizar condutas com o propósito de objetificar sujeitos, fortalecendo a marginalidade e a exclusão reproduzida naturalmente pela sociedade civil. Na perspectiva da Constituição de 1988, o direito penal tem a missão de reprimir condutas comprovadamente danosas à coletividade, quando não restar outra alternativa a não ser punir o agente mediante a intervenção da norma jurídica. Ou seja, seguindo-se a lógica da intervenção mínima, apenas quando as demais estruturas sociais demonstrarem insuficiência em sua atuação, é que se deve criar um tipo penal. A missão democrata-constitucional do direito penal é punir o agente (autor do ilícito penal) de forma a assegurar-lhe, tanto durante o processo judicial quanto ao longo do cumprimento da pena, a proteção ampla e efetiva de sua dignidade. Não se pode admitir a atuação repressiva do Estado na sociedade democrática, ignorando-se os direitos fundamentais constitucionalmente assegurados a todos os sujeitos, especialmente àqueles que praticam ilícitos penais. Sob a perspectiva crítica, qual a utilidade prática e a importância teórica do direito penal para o Estado? Por meio da criação de figuras típicas (crimes), o Estado fortaleceu seu poder na modernidade, explicitando sua autoridade de punir pessoas que praticavam condutas por ele consideradas ilícitos penais. Além disso, o direito penal era visto como um instrumento estatal para marginalizar pessoas, tornar formalmente invisíveis aqueles sujeitos que já o são socialmente. É o caso do jovem negro e periférico, peça fundamental para o tráfico de drogas, que se desenvolve naturalmente sob os olhos do Estado, sem que este implemente políticas públicas de repressão efetiva ao negócio de substâncias entorpecentes ilícitas. Em vez disso, o que o Estado faz? Criminaliza a conduta do jovem negro periférico, objetificando-o e reforçando a ação das estruturas sociais que naturalizam sua jovem negro periférico, objetificando-o e reforçando a ação das estruturas sociais que naturalizam sua exclusão e marginalidade. Protesto contra operação policial. Agindo dessa forma, o Estado simbolicamente oferece à sociedade civil — composta pelos ditos sujeitos de “bem” — uma situação de aparente conforto e segurança jurídica, sem atacar o problema central que permeia a respectiva temática: o combate ao tráfico de drogas mediante o planejamento e a execução de políticas públicas. Estas deveriam objetivar a geração de empregos, a punição dos chefes do tráfico de drogas e o oferecimento de condições dignas para o jovem negro periférico — emprego, educação, moradia. No momento em que o Estado opta pela punição do jovem negro periférico, em razão de seu envolvimento com o tráfico de drogas, deixa claro que a missão do direito penal é meramente punitiva, segregacionista e marginalizadora, contrariando os ditames constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Em contrapartida, no Estado democrático de direito, a missão do direito penal deve ir muito além do seu caráter condenatório, de controle social e exercício autocrático do poder punitivo estatal. A missão democrática da norma penal deve ser excepcionalmente punir o sujeito (intervenção mínima), ressaltando-se que a tipificação de condutas como ilícitos penais deve ser a última ratio, apenas quando comprovada a insuficiência das demais estruturas sociais (sociedade, família, Estado) em garantir a dignidade, a inclusão e a igualdade, especialmente das pessoas em absoluta condição de vulnerabilidadesocial. A missão do direito penal brasileiro não pode ser o encarceramento em massa, mediante a criminalização da pobreza, com a punição massificada e institucionalizada daqueles sujeitos categorizados legalmente como os inimigos do Estado. Mas quem seriam os inimigos do Estado? Vamos conhecê-los. Missão do direito penal Proteção da dignidade humana no tratamento igual das pessoas, mediante a intervenção mínima do Estado na criminalização e na penalização de condutas. Os inimigos do Estado Antes de identificar os efetivos inimigos do Estado, no campo penal, é importante compreender o instituto do lawfare. O modelo do lawfare contraria as premissas democráticas do processo penal e direito penal constitucionalizado, que se fundem na presunção da inocência, além de assegurarem amplamente aos sujeitos o direito de se defenderem, mediante a implementação e a efetividade dos princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal. Políticos, traficantes de drogas, pedófilos, policiais, além dos sujeitos negros e pardos de periferia, são considerados os inimigos legais do Estado brasileiro. Quando essas pessoas são denunciadas pelo Ministério Público, passam a conviver com o calvário da presunção da culpabilidade, devendo provar perante o Estado a sua condição constitucional de inocência — que deveria ser presumida. Nesse contexto, temos decisões judiciais autocráticas, fundadas na discricionariedade judicial, num modelo hermenêutico com forte carga axiológica. Isso torna inviável a participação desses sujeitos na construção discursiva e racional do provimento final de mérito, uma vez que, quando são processados, assumem a obrigação de desconstituir a presunção de culpabilidade suportada em razão de serem vistos como inimigos expressos do Estado. Quando o Estado legitima aprioristicamente a construção legal de um inimigo, utilizando-se da norma penal para segregar tal sujeito, assume um papel inquisidor e autocrático. O direito penal democrático tem a missão de criminalizar condutas, não pessoas escolhidas previamente pelo legislador. O direito penal, quando opta pela criminalização de sujeitos específicos (pedófilos, jovens negros periféricos, políticos, policiais), assume uma missão inquisitiva e de certo modo belicosa, que não se compatibiliza com as diretrizes normativas trazidas pelo texto da Constituição brasileira de 1988. Lawfare O lawfare pode ser definido como “guerra a partir das leis”, haja vista que lei é vista como mais um desses instrumentos e ferramentas ideologicamente construídos para atacar aqueles sujeitos considerados inimigos do Estado ou das instituições que conduzem as diretrizes do sistema jurídico vigente. O lawfare é uma proposição teórica que possui relação direta com o modelo de processo penal e direito penal inquisitivo. O Estado se utiliza da lei como instrumento de guerra, construindo aprioristicamente os sujeitos que são considerados inimigos do Estado. Trata-se de proposições que dialogam diretamente com o “direito penal do inimigo”, ressaltando-se que seu surgimento se deu inicialmente na China, robustecendo-se as proposições teóricas apresentadas nos Estados Unidos da América, especialmente após o atentado de 11 de setembro de 2001. A partir desse acontecimento histórico, o próprio EUA institucionalizou o lawfare em seu país, deixando claro em sua legislação que terroristas e estrangeiros suspeitos de atentar contra a segurança nacional são considerados os sujeitos legalmente inimigos do Estado. Importante esclarecer que o Brasil adotou expressamente em sua legislação o instituto do lawfare, por meio da Portaria 666, de 25 de junho de 2020, elegendo terroristas, pedófilos, traficantes de drogas e outros sujeitos como inimigos do Estado, presumindo que esses sujeitos são perigosos à segurança nacional. O conteúdo dessa portaria institucionalizou no Brasil a possibilidade dessas pessoas serem extraditadas ou expulsas sem o direito de defesa, sistematizando de forma clara o modelo de processo penal e direito penal inquisitivo. Outro ponto importante a ser abordado é o papel higienista assumido como missão do direito penal moderno. A norma penal é vista como instrumento de limpeza e higienização social, sendo utilizada como ferramenta para eliminar, objetificar, marginalizar, segregar e robustecer a exclusão daqueles “ditos” inimigos do Estado, que já são natural e socialmente excluídos pelas estruturas de poder vigentes. Quando se faz essa afirmação, pretende-se demonstrar que, sob a ótica do senso comum, os problemas sociais existem como um dado da realidade, como algo natural. É frequente a reverberação do discurso de que a vida em sociedade é naturalmente conflituosa por si só, visando justificar a intervenção normativo-penal, cujo objetivo é regular a própria vida em sociedade. A visando justificar a intervenção normativo-penal, cujo objetivo é regular a própria vida em sociedade. A complexidade de fatores que envolvem tal análise é tamanha que nos leva a afirmar que o problema da criminalidade social não pode ser reduzido a soluções mágicas propostas pelo direito penal. Exemplo A política criminal de combate às drogas, por exemplo, objetiva criminalizar condutas de agentes que comercializam e consomem substâncias categorizadas juridicamente como ilícitas, ignorando-se as razões que explicam a existência de tal fenômeno social. Quando as estruturas sociais (sociedade, Estado, família, mercado financeiro e de consumo) naturalizam o consumo de tabaco e bebidas alcoólicas, responsável pela movimentação direta da economia, estimula-se consequentemente, de forma indireta, o consumo de outras substâncias químicas, como cocaína, maconha e drogas sintéticas. Visando manter seu poder inato, o Estado criminaliza muitas dessas condutas, categorizando como ilícito o consumo de apenas algumas substâncias químicas. A partir dessas premissas, aquele que consome ou comercializa as ditas substâncias entorpecentes ilícitas será punido criminalmente. O que se verifica nesse contexto é que o objetivo do Estado, ao criminalizar o uso e o consumo de drogas ilícitas, não é especificamente reprimir o comércio ilegal dessas substâncias, mas sim eleger um inimigo (traficante ou usuário) como forma de demonstrar seu poder de controle social. O problema da criminalização do consumo e do uso de substâncias proibidas é, além do fortalecimento do poder estatal, a objetificação dos sujeitos eleitos como pessoas delituosas, justificando a existência e a atuação do Estado punitivista. A criminalização do consumo e da comercialização de drogas no Brasil representa uma estratégia de poder muito articulada e pensada pelo Estado. Não se pretende, por meio da norma jurídica, reprimir efetivamente o consumo de substâncias químicas pela sociedade civil. Objetiva-se, na verdade, o fortalecimento jurídico dos mecanismos de controle social mediante a solidificação do poder autocrático-inquisitivo do Estado. No momento em que o Estado cria legalmente um inimigo, utiliza-se da norma penal para punir pessoas específicas e institucionaliza um sistema de seletividade normativo-punitivista, como estratégia simbólica para responder às demandas de uma sociedade que muitas vezes busca a vingança, não a aplicabilidade de penas nos moldes democrata-constitucional e garantista. Pode o direito penal ser visto como uma estrutura de dominação e geração de violência praticada e legitimada pressupostamente pelo próprio Estado? Tem ficado claro que o direito penal, quando utilizado como mecanismo punitivista de seleção de condutas e pessoas determinadas, é considerado uma estratégia que visa fortalecer a atuação do poder autocrático do Estado. Em vez de ser visto como forma de controle social, dominação e segregação de pessoas, o direito penal garantista deve primar pela proteção ampla, efetiva, sistemática e inclusiva das pessoas, de forma indistinta. Quando o direito penal assume o papel exclusivamentepunitivista, gera violência simbólica contra as pessoas, especialmente com relação aos sujeitos categorizados como inimigos ou indignos pelo Estado que, por isso, deverão ser penalizados. O verdadeiro papel do direito penal A partir dos conceitos discutidos neste módulo, vamos agora refletir com o professor doutor Fabrício Veiga Costa o verdadeiro papel do direito penal e suas respectivas premissas. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Assinale a alternativa que apresenta uma afirmativa correta a partir da relação entre os princípios da legalidade e da tipicidade penal e os propósitos e objetivos do direito penal no Brasil. Parabéns! A alternativa B está correta. No ordenamento jurídico brasileiro vigente, somente é punível a conduta do agente praticada posteriormente à aprovação de uma lei que tipifique penalmente determinado comportamento, em homenagem ao princípio da anterioridade penal. O princípio da legalidade prevê expressamente que toda conduta penalmente reprimida deve estar previamente tipificada em lei, de forma específica, não se admitindo interpretação extensiva por parte do magistrado, quando da aplicação da norma penal incriminadora. A O direito penal brasileiro autoriza excepcionalmente a punição de condutas praticadas anteriormente à tipificação penal prevista em lei. B A legalidade é fundamento do princípio da tipicidade penal, por isso uma conduta somente poderá ser punida pelo direito se estiver prevista em lei. C A tipicidade penal é um princípio que autoriza a descrição legal de condutas penalmente reprováveis, ressaltando-se que tais condutas poderão ser descritas de forma genérica ou específica. D A norma penal que tipifica determinada conduta poderá ser interpretada de forma restritiva ou ampliativa pelo magistrado, quando do julgamento do mérito da pretensão deduzida em juízo. E Em observância ao princípio da legalidade, a lei penal, na modalidade estrita, permite a analogia em in malam partem. Questão 2 Considerando o instituto do lawfare e a política criminal brasileira de combate e repressão do uso e da comercialização de drogas no Brasil, assinale a alternativa correta. Parabéns! A alternativa B está correta. O lawfare é uma proposição teórica utilizada pelo Estado com o objetivo de penalizar os sujeitos por ele considerados inimigos. O traficante e os usuários de substâncias entorpecentes ilícitas são considerados inimigos do Estado e, por esse motivo, suas condutas são criminalizadas pelo direito penal brasileiro. A A criminalização do uso e da comercialização de drogas ilícitas no Brasil tem o objetivo específico de proteger a sociedade civil. B A atual política criminal brasileira de combate do uso e da comercialização de drogas objetiva especificamente punir penalmente o usuário e o traficante, considerados inimigos do Estado. C O instituto do lawfare tem como propósito criminalizar o uso e o comércio de drogas no Brasil para garantir a proteção jurídica da sociedade. D O lawfare é um instituto jurídico compatível com o Estado democrático de direito, pois tem como eixo central a proteção jurídica da dignidade da pessoa do usuário e do traficante. E As principais características do lawfare são a não escolha de jurisdição e a observância ao princípio da igualdade, sendo vedada a criação de tribunais de exceção, bem como o tratamento desigual entre réus, independentemente do tipo penal imputado. 2 - Os sistemas processuais penais Ao final deste módulo, você será capaz de comparar os sistemas processuais penais. Sistema inquisitivo O Código de Processo Penal, em sua redação primitiva, adotou o sistema de processo inquisitivo, fundado na presunção de culpabilidade do acusado. Uma das principais características do sistema inquisitivo do processo penal é a desigualdade jurídica em relação ao tratamento conferido ao acusado. O sujeito acusado de praticar uma determinada infração penal, na perspectiva inquisitiva, carrega em si a presunção de culpa — não o estado de inocência ou presunção de não culpabilidade, tal como proposto pelo texto da Constituição brasileira de 1988. Perspectiva inquisitiva Na realidade, o processo inquisitivo pode ser considerado uma antítese do sistema acusatório, já que não há o contraditório e “as regras da igualdade e da liberdade processuais” (TOURINHO FILHO, 1998, p. 92). No modelo inquisitivo de processo penal, fica claramente comprometida a imparcialidade do magistrado, pois “é ele quem inicia, de ofício, o processo, quem recolhe as provas e quem, afinal, profere a decisão, podendo, no curso do processo, submeter o acusado a torturas, a fim de obter a rainha das provas: a confissão” (TOURINHO FILHO, 1998, p. 92). No sistema tipicamente inquisitivo, tanto na fase de investigação quanto na fase de julgamento e instrução probatória, o acusado é colocado em posição de absoluta subserviência à autoridade judicial, sendo-lhe cerceado o direito de defesa em virtude da absoluta concepção teórica que preconiza a presunção de culpabilidade. Embora o Brasil não adote mais o modelo tipicamente inquisitivo de processo penal, sabe-se que ainda temos vestígios desse modelo no inquérito policial. O Brasil adota, na realidade, o sistema misto de processo penal, visto que ainda possui raízes desse modelo, pois “há uma fase inquisitiva, na qual se procede a uma investigação preliminar e uma instrução preparatória, e uma fase final, em que se procede ao julgamento com todas as garantias do processo acusatório” (CAPEZ, 199, p. 39). O inquérito policial ainda é considerado um resquício do sistema inquisitivo. Nele o Estado produz provas unilaterais, que serão utilizadas na fase processual, ressaltando-se que, no atual ordenamento jurídico brasileiro, o contraditório é dispensável. Adota-se o entendimento por meio do qual os defensores do sistema misto sustentam: o contraditório é dispensável no inquérito policial, porque tal possibilidade se torna real na fase processual. A principal crítica realizada a esse modelo de processo penal diz respeito às provas irrepetíveis produzidas no âmbito do inquérito policial, sem assegurar ao acusado o direito de defesa, veja: Inquérito policial Fase investigativa que antecede a denúncia ou queixa crime. O exame de corpo de delito é uma prova técnica e irrepetível produzida no inquérito policial; na fase processual, mesmo que seja oportunizado o direito do acusado de se manifestar sobre o conteúdo da respectiva prova, sabe-se que o contraditório seria meramente formal, haja vista a impossibilidade de repetir a produção da prova, outrora gerada autocraticamente e de forma unilateral na fase investigativa. Tal possibilidade deixa evidente o cerceamento de defesa e a desigualdade processual em que o acusado se vê obrigado a suportar, submetendo-se ao cerceamento de defesa estruturalmente naturalizado em nosso sistema jurídico. Se a fase investigativa fosse vista e compreendida como processo garantista e democrático, seria possível assegurar o direito de defesa quanto à produção de provas utilizadas, como parâmetro, para o julgamento do mérito da pretensão deduzida, especialmente no que tange às provas irrepetíveis. Sistema acusatório e o garantismo penal Exame de corpo de delito A Constituição brasileira de 1988 ressignificou a forma de estudar e entender o processo penal. Inaugurou- se o sistema acusatório fundado no garantismo penal, visto que o direito de defesa e de produção de provas deve ser ampla e efetivamente assegurado a todo acusado. Privilegia-se, dentro dessa lógica, o estado de inocência constitucionalmente assegurado a todo cidadão, cabendo ao Estado desconstruir a presunção de não culpabilidade como condição para o jus puniendi. Significa dizer que, havendo indícios de inocência do acusado, deverá o Estado priorizar a absolvição. O sistema acusatório possui duas características importantes: Separação das funções de acusação e julgamento Éatribuição do Ministério Público o oferecimento da denúncia, enquanto é de competência do Poder Judiciário o recebimento ou não dela. Imparcialidade do julgador O julgador deverá ser isento e fundamentar racionalmente suas decisões a partir das provas produzidas nos autos do processo. Deverá garantir igualdade de condições ao acusado e ao órgão acusador no que diz respeito à produção de provas e ao debate processual dos pontos controversos da demanda. O sistema acusatório inaugurou estudos sobre o processo penal no Estado democrático de direito. A teoria do direito democrático é uma proposição jusfilosófica, que passa pela superação do entendimento clássico de que a ciência do direito é mero instrumento de controle social e exercício do poder. Considera-se que essas novas proposições teóricas são hábeis a legitimar o entendimento de que o processo constitucional democrático deve ser visto como lugar de inclusão e implementação dos direitos fundamentais previstos no plano constitucional e infraconstitucional. Democratizar o entendimento do direito, a partir das proposições teóricas trazidas pela visão do processo enquanto lugar de ampla discursividade racional dos pontos controversos da demanda, constitui um meio de resistência da autocracia jurisdicional, decorrente do poder inato e oracular dos julgadores de decidirem, conforme suas percepções valorativas e sensitivas do caso concreto. O processo constitucional democrático rompe com a dogmática concepção de que a jurisdição é um recinto de reprodução vegetativo- sensitiva das percepções valorativas do julgador diante do caso concreto. Estado democrático de direito “O Estado democrático de direito trouxe para o direito processual substanciais alterações paradigmáticas, especialmente no sentido de compreender o processo, a jurisdição e a ação sob o enfoque constitucional” (COSTA, 2012, p. 192). Nesse sentido, “o processo democrático tem, assim, no âmbito jurisdicional, a tarefa primordial de resgatar e oportunizar a discussão de todos os interessados” (PAOLINELLI, 2014, p. 25), haja vista que através dele se garante “a construção de um espaço procedimentalizado em contraditório, a fim de afastar o protagonismo e a busca solitária pela aplicação do direito como justiça” (PAOLINELLI, 2014, p. 25). Pensar o processo e a jurisdição sob o viés da democraticidade constitucional é reconhecer que o julgador não poderá substituir a racionalidade crítica pelos seus desejos de decidir conforme suas concepções subjetivas e senso inato de justiça. A construção do direito democrático pressupõe a ruptura com os estigmas da autocracia jurisdicional, trazidos por proposições dogmáticas que priorizam o protagonismo judicial, em detrimento do debate racional das questões trazidas para o processo. Sempre que o julgador se utiliza do processo como um espaço para reprodução de suas percepções sensitivas, fica comprometida a legitimidade democrática do provimento. No âmbito da processualidade democrática, deve prevalecer o debate racional, em detrimento da midiatização de juízes e da espetacularização da vingança mascarada processualmente. Quando se afasta a participação dos interessados no debate racional dos pontos controversos, enaltecendo-se a autoridade do julgador, mantém-se a dogmática concepção de que o processo ainda continua sendo um recinto de autocracia, perpetuação do poder, exclusão e marginalização de pessoas e violação de direitos fundamentais. Construir reflexões jurídicas na perspectiva democrática pressupõe, inicialmente, observar as seguintes premissas: Ciência do direito A ciência do direito é uma proposição que deve ser vista como um recinto de implementação dos direitos fundamentais, expressamente previstos no plano constitucional. Participação A participação do titular dos bens jurídicos da vida é fundamental na construção dos provimentos estatais. Estado O Estado deixa de ser soberano e absoluto, passando a legitimar o diálogo com todos os titulares dos direitos fundamentais. Igualdade A igualdade material entre os sujeitos de direito é fundamental para a superação do modelo histórico-social, preconizado pelo liberalismo, que prioriza a proteção dos direitos individuais. Diálogo Toda deliberação coletiva ou individual será legitimada com a possibilidade de os interessados construírem discursivamente o mérito do provimento estatal, retirando-se dos agentes o protagonismo e a unilateralidade típicos dos estados totalitários e antidemocráticos. O fenômeno da democratização e constitucionalização do processo penal busca proteger amplamente o acusado perante o direito do Estado de puni-lo e, diante desse contexto, a presunção de inocência tem um papel determinante como princípio informador de todo o processo penal democrático. O princípio da presunção de inocência deve ser visto como fundamento regente e informador de todo o modelo de processo penal democrático e garantista. O acusado goza constitucionalmente dessa condição, cabendo ao Estado o dever de desconstituir essa presunção de inocência, mediante provas suficientemente lícitas e legítimas para tornar viável sua punição. A presunção de inocência certamente representa uma das mais importantes conquistas do processo penal garantista e humanizado da sociedade contemporânea, tendo em conta que o acusado deixa de ser visto como sujeito presumidamente culpado, passando a ser enxergado pelo direito brasileiro vigente como alguém que goza do pressuposto da condição em questão. Presunção de inocência O art. 8.2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, estabelece que: “toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa” (BELTRAN, 2018, p. 151). No mesmo sentido “o artigo 6.2 do Convênio Europeu para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais de 1950, regula que qualquer pessoa acusada de uma infração presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada” (BELTRAN, 2018, p. 151). A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Organização das Nações Unidas (ONU), em seu art. 11, estabelece expressamente que todo ser humano acusado de ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei. No mesmo sentido o texto da Constituição brasileira de 1988 estabelece no seu art. 5º, inciso LVII, que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. O entendimento do princípio da presunção de inocência objetiva sistematizar um modelo de processo penal que rompa com os parâmetros inquisitivos de presunção de culpa do acusado. Conferindo-lhe o estado de inocência, cabe ao Estado o dever de demonstrar com clareza e objetividade a culpabilidade do agente para, assim, legitimar seu poder punitivo. Por isso, o órgão acusador deve ser distinto do órgão julgador, cabendo ao magistrado, responsável pela análise do mérito da pretensão penal deduzida em juízo, fundamentar racionalmente suas decisões no sentido de demonstrar a desconstituição desse estado de inocência do acusado, requisito esse considerado fundamental para legitimar o poder punitivo do Judiciário. Princípios do processo penal constitucionalizado Para sistematizar o estudo do processo acusatório garantista, vamos abordar os princípios regentes do processo penal constitucionalizado. A partir deles, vamos identificar parâmetros racionais utilizados como referenciais interpretativos do modo de entender, compreender e analisar o direito a ser aplicado diante de um determinado caso concreto. A seguir, estudaremos os princípios do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal, da individualização da pena e da inadmissibilidade de provas ilícitas. Esses princípios são essenciais para o entendimento do modelo de processo acusatório que privilegia amplamente a proteçãoda dignidade humana do acusado. Princípios regentes Os “princípios são proposições normativas de caráter genérico, utilizados como referenciais de interpretação, aplicabilidade e efetividade do direito, além de viabilizar a integração, compreensão e unidade do ordenamento jurídico-constitucional vigente” (COSTA, 2019, p. 59). Contraditório O contraditório é um princípio constitucional explicitamente previsto no art. 5º, inciso LV, da CF. Estabelece que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a eles inerentes. Trata-se de princípio que objetiva assegurar igualdade entre as partes quanto à dialogicidade dos pontos controversos que integram a demanda judicial. Em outras palavras, por meio desse princípio, as partes terão oportunidade de debater as questões controversas da demanda e, assim, poder influenciar no julgamento do mérito da pretensão deduzida. Não basta apenas a oportunização do contraditório, é essencial que ele se efetive, ressaltando-se que esse processo ocorrerá no momento em que o magistrado analisar, na sua decisão de mérito, todas as questões controversas suscitadas pelas partes. É dever constitucional de cada magistrado analisar racionalmente cada questão controvertida alegada pela parte no âmbito processual, devendo justificar juridicamente, em sua decisão de mérito, se acolherá ou não o que foi alegado e provado nos autos. Atenção! No âmbito do processo penal democrático e garantista, o acusado terá direito a uma decisão racional, que não seja reflexo de concepções valorativas e metajurídicas do julgador, ou seja, o magistrado não pode utilizar suas crenças e percepções subjetivas como critério para fundamentar as decisões judiciais. O art. 93, inciso IX, da CF, trouxe o princípio da obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais, destacando-se que a ausência de justificação racional tem como consequência a nulidade da decisão. destacando-se que a ausência de justificação racional tem como consequência a nulidade da decisão. O contraditório é um princípio que, quando implementado, assegura a legitimidade democrática do provimento final, pois “faz parte das garantias abrangidas pelo devido processo legal e consiste no principal elemento estruturador do procedimento democrático, uma vez que garante que o provimento jurisdicional seja resultado da participação dos interessados” (FREITAS, 2014, p. 22). Alguns dos desdobramentos da intepretação extensiva do princípio do contraditório no Estado democrático de direito são: 1. O direito à ampla dialeticidade dos pontos controversos da demanda. 2. O direito de resistir às decisões arbitrárias de um julgador que ignora as alegações das partes. 3. O direito conferido às partes de participarem da construção dialética do provimento final. 4. O direito de revisão judicial de decisões contrárias aos direitos fundamentais. 5. O direito de se calar em juízo, permanecendo em silêncio. 6. O direito de nomeação de assistente técnico em caso de produção de prova técnica (prova pericial). 7. O direito de tornar controversos os fatos alegados pela parte contrária. 8. O direito de se opor à homologação de acordo judicial que comprovadamente causa lesão a direitos e bens juridicamente tutelados. 9. O direito de fala e debate assegurado nas audiências judiciais. 10. O direito de informação de qualquer alegação suscitada no âmbito do processo judicial. Ampla defesa Assim como o contraditório, a ampla defesa é um princípio constitucional explícito e previsto no art. 5º, inciso LV, da CF. Tais princípios caminham em uma via de mão dupla, mas não podem ser confundidos. O princípio de ampla defesa legitima todos os sujeitos do processo a reconhecerem como devem agir, atuar e conduzir o procedimento legal de esclarecimento objetivo dos pontos controversos da demanda, mediante a exauriência probatória. A ampla defesa garante a possibilidade à exauriência probatória, ou seja, o magistrado deverá zelar pela igualdade processual, para que o acusado tenha as mesmas oportunidades de debate e de produção de provas conferidas ao órgão acusador (Ministério Público). Já o contraditório assegura ao acusado a ampla exauriência argumentativa. Ler e compreender o referido princípio, a partir dessas colocações teóricas inicialmente expostas, é uma forma de tornar o processo penal democrático um espaço dialógico. Nele, todos os sujeitos envolvidos na lide colaboram para tornar possível e viável o julgamento do mérito, da forma mais próxima como os fatos alegados ocorreram na realidade. Eventual sentença condenatória proferida em processo judicial, no qual o acusado não teve a mesma oportunidade de debate e produção de prova, será considerada nula de pleno direito, haja vista a existência de error error in procedendo. Desse princípio, depreende-se a premissa de que a ordem na prática de atos no processo penal exige que a defesa se manifeste sempre em último lugar. Em outras palavras: Error in procedendo Considera-se error in procedendo um ou mais vícios processuais que colocam o acusado em posição de desigualdade processual perante o Ministério Público, configurando-se evidente cerceamento de defesa. [...] qualquer que seja a situação que dê ensejo a que, no processo penal, o Ministério Público se manifeste depois da defesa [...], obriga, sempre, seja aberta vista dos autos à defensoria do acusado, para que possa exercer seu direito de defesa na amplitude que a lei consagra. (CAPEZ, 1999, p. 20) Existe uma exceção na lei processual, no caso o art. 468 do CPP: quando da realização de sorteio dos jurados para o conselho de sentença, primeiro fala a defesa e depois a acusação (MP), não existindo, no caso, qualquer irregularidade na manifestação da defesa antes da acusação. O artigo em comento conceitua as chamadas recusas peremptórias e que a defesa se manifeste sempre em último lugar. “Art. 468. À medida que as cédulas forem sendo retiradas da urna, o juiz presidente as lerá, e a defesa e, depois dela, o Ministério Público poderão recusar os jurados sorteados, até 3 (três) cada parte, sem motivar a recusa.” (Decreto Lei nº 3.689/1941). Um outro viés, utilizado como parâmetro para o entendimento constitucionalizado da ampla defesa no âmbito do processo penal, diz respeito ao direito que o acusado tem quanto à defesa técnica, que torne controversos os fatos a ele imputados. Haverá cerceamento de defesa e ofensa ao respectivo princípio quando o procurador, nomeado pelo acusado, deixa de enfrentar todas as questões fáticas que poderão desconstituir seu estado de inocência, omitindo-se quanto à produção daquelas provas, consideradas essenciais ao esclarecimento e à desconstituição dos fatos alegados pelo órgão acusador (Ministério Público). Na realidade, a ampla defesa deve ser vista como a garantia isonomicamente assegurada a cada acusado de ter condições reais e efetivas de rebater e desconstituir toda imputação ou alegação a ele dirigida que possa acarretar a sua punição. A natureza principiológica conferida à ampla defesa se justifica em razão do interesse do legislador brasileiro procedimentalizar o processo, como um espaço dialógico de iguais oportunidades de provas e alegações pertinentes com os fatos inicialmente levados a juízo. A exauriência argumentativo-probatória constitui um dos pilares do processo penal democrático e garantista, representando claramente uma forma legítima de resistir à discricionariedade e ao protagonismo judicial a partir da efetividade do princípio da ampla defesa. Devido processo legal Trata-se de princípio constitucional explícito previsto no art. 5º, inciso LVI, da CF, que estabelece que ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Esse é um princípio que dialoga com todo o sistema processual vigente, tanto no plano constitucional quanto no infraconstitucional, uma vez que a ideia trazida peloprincípio em questão se funda na obrigatoriedade de procedimentalizar a resolução de conflitos. Assim, garante-se aos sujeitos do processo a exauriência argumentativa e a amplitude quanto à produção das provas necessárias ao esclarecimento dos fatos controversos. Especificamente no âmbito do processo penal, sabemos que observar o devido processo legal é seguir uma ritualística que oportuniza igualdade argumentativa às partes, legitimando o direito de participar dialogicamente na construção do provimento final. São elas: Observar todas as etapas processuais previstas em lei. Exigir do julgador a fundamentação racional da decisão judicial. Garantir que todas as provas produzidas e argumentos trazidos aos autos sejam apreciados pelo magistrado como meio de viabilizar a racionalidade discursiva do provimento final. Oportunizar aos sujeitos do processo o direito de sanar vícios processuais, priorizando-se o julgamento do mérito da pretensão deduzida. Legitimar a criação de técnicas processuais e procedimentais voltadas a maior efetividade processual são alguns dos desdobramentos interpretativos do devido processo legal. Observar o devido processo legal é uma forma de proteger constitucionalmente o estado de inocência do acusado, impedindo que o Estado-juiz o puna sem que lhe sejam assegurados todos os meios de defesa e produção de provas. A privação da liberdade ou dos bens do acusado somente se tornará viável mediante a desconstituição do seu estado e inocência, após ter assegurado o amplo direito de argumentação e produção de provas, nos moldes igualitários ao que fora assegurado ao órgão acusador. No momento em que alguém é condenado, sem antes ter a legítima oportunidade de resistir constitucionalmente aos argumentos apresentados em seu desfavor, temos o cerceamento de defesa como reflexo direto da violação do princípio do devido processo legal. O princípio do estado ou situação jurídica de inocência “impõe ao Poder Público a observância de duas regras específicas em relação ao acusado: uma de tratamento, segundo o qual o réu, em nenhum momento do iter persecutório, pode sofrer restrições pessoais fundadas exclusivamente na possibilidade de condenação; e outra de fundo probatório, a estabelecer que todos os ônus da prova relativa à existência do fato e à sua autoria devem recair exclusivamente sobre a acusação” (OLIVEIRA, 2006, p. 32). Garantir o devido processo legal ao acusado é assegurar-lhe o direito ao silêncio (direito de ficar calado), até porque é dever do Estado-acusador comprovar de forma efetiva a materialidade do crime e a autoria do acusado. Havendo qualquer dúvida sobre a ocorrência do crime (materialidade) ou sobre sua autoria, deve- se absolver o acusado, aplicando, no julgamento do mérito da pretensão penal, o princípio da presunção de inocência ou não-culpabilidade, requisitos esses essenciais para a efetividade do modelo constitucional de processo penal democrático e garantista. Individualização da pena O direito de o Estado aplicar determinada pena ao acusado exige que o órgão acusador (Ministério Público) desconstitua enfaticamente seu estado constitucional de inocência. Nenhuma pena poderá ultrapassar a pessoa do condenado (art. 5º, inciso LV, da CF), ressaltando-se que ela não poderá ser estendida aos seus sucessores e nem contra eles executada. O princípio da individualização da pena (previsto no inciso XLVI, do art. 5º da CF) objetiva estabelecer que a pena aplicada ao condenado deverá ser proporcional e equivalente a sua culpabilidade, bem como ao que foi alegado e provado nos autos do processo pelo órgão acusador. O fato praticado e provado pelo órgão acusador é que será o fundamento balizador para a quantificação, a extensão e a dimensão da pena a ser aplicada ao condenado. Saiba mais Não será a raça, a condição social do acusado ou qualquer outro fato pessoal ou social que deverá ser utilizado como referencial para a quantificação da pena a ele aplicada. O magistrado não poderá se utilizar de critérios subjetivos, pessoais, morais, midiáticos e religiosos para justificar eventual pena aplicada ao acusado. Se isso fosse possível, teríamos expressa ofensa ao princípio da segurança jurídica, além da violação do princípio da obrigatoriedade de fundamentação de decisões judiciais, já que o art. 93, inciso IX do texto da Constituição brasileira de 1988 prevê que todos os julgamentos proferidos pelo Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade. Sempre que o magistrado se utilizar de critérios metajurídicos ou axiológicos (valorativos) para justificar a aplicabilidade de uma pena a determinado condenado, sua decisão judicial será considerada constitucionalmente nula de pleno direito, por constituir evidente ofensa ao devido processo legal, à presunção de não culpabilidade (inocência), ao contraditório e à ampla defesa. Inadmissibilidade de provas ilícitas O art. 5º, inciso LVI, da CF estabelece expressamente que são inadmissíveis provas ilícitas e aquelas obtidas por meios ilegais no processo. No âmbito do processo penal, a vedação das provas ilícitas atua no controle e na regularidade procedimental (e processual) da atividade estatal persecutória, objetivando inibir toda e qualquer atividade probatória e ilegal por parte do órgão acusatório. Vigora, no direito processual penal brasileiro, a premissa de que as provas devem ser produzidas e obtidas por meios lícitos. É importante esclarecer a distinção existente entre provas ilícitas e meio ilícito de obtenção da prova. Considera-se ilícita a prova quando a ilicitude se encontra presente na sua produção, como é o caso, por exemplo, da falsificação ou adulteração de documentos ou depoimento de testemunhas obtido mediante coação — a prova já nasce ilícita, uma vez que a ilicitude integra o elemento estrutural de sua constituição. A prova pode ser originariamente lícita, entretanto, se o meio de sua obtenção decorrer de uma conduta ilícita, haverá a configuração da ilicitude da respectiva prova. Exemplo O e-mail, que é uma prova considerada genuinamente lícita, se for obtida mediante violação de senha de seu titular, tornar-se-á ilícita, não se admitindo sua utilização no âmbito processual penal. Antes de ser um princípio que zela pela regularidade processual e procedimental, a inadmissibilidade de provas ilícitas, no processo penal, estabelece regramentos pontuais para o órgão acusador. Este não poderá praticar qualquer conduta ilícita objetivando a desconstituição do estado de inocência do acusado, limitando-se a agir nos ditames preconizados pelo devido processo legal. Os três sistemas penais Entenda mais detalhadamente os sistemas penais — inquisitivo, acusatório e misto — e as suas respectivas particulariedades. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Levando em conta a comparação entre o sistema inquisitivo e o sistema acusatório no entendimento do processo penal brasileiro, assinale a alternativa correta. Parabéns! A alternativa B está correta. No ordenamento jurídico brasileiro vigente, não se adota plenamente o sistema acusatório, pois na fase de inquérito policial é dispensável a observância do principio do contraditório e da ampla defesa. Assim, eventuais provas irrepetíveis produzidas no inquérito policial ocasionarão, nesse contexto propositivo, o cerceamento de defesa do acusado. Questão 2 A No sistema inquisitivo, vigora a presunção de culpabilidade do acusado, embora o órgão acusador seja distinto do órgão julgador. B O ordenamento jurídico brasileiro adota o sistema misto de processo penal, haja vista a inexistência do contraditório quanto às provas irrepetíveis, produzidas no inquérito policial. C O direito processual penal brasileiro adota o sistema acusatório, expressamente previsto no texto da Constituição brasileira de 1988, tendo em conta a indispensabilidade do contraditório no âmbito do inquérito policial.D No sistema acusatório brasileiro, o órgão acusador atua conjuntamente com o órgão julgador, assegurando-se amplamente o direito de defesa e de produção de provas ao acusado. E No sistema acusatório, a gestão da prova é exercida pelo juiz, protagonista da instrução processual. Questão 2 Marque a opção correta considerando os princípios constitucionais que asseguram a democraticidade do processo penal garantista brasileiro. Parabéns! A alternativa C está correta. O contraditório e a ampla defesa, embora sejam princípios que caminham numa via de mão dupla, não podem ser confundidos sob o ponto de vista teórico. Enquanto o contraditório assegura o direito ao debate dos pontos controversos da demanda, a ampla defesa garante a igualdade jurídica no que tange ao direito de produção de provas, para que o acusado desconstitua as alegações do órgão acusador. No A O contraditório é um princípio que garante a todo acusado o direito constitucional de debater os pontos controversos da demanda e produzir todas as provas legitimamente admitidas em direito, como forma de ratificar o estado de inocência constitucionalmente garantido. B A ampla defesa garante a ampla exauriência probatória e a dialeticidade dos pontos controversos da demanda, instrumento esse essencial para resistir às alegações apresentadas pelo órgão acusador. C O devido processo legal é princípio constitucional explícito que estabelece que a privação de bens e da liberdade do acusado se condiciona à observância do direito que ele tem de produzir todas as provas e apresentar todas as alegações possíveis, para ratificar seu estado e inocência. D O inquérito policial é uma fase investigativa em que é obrigatória a observância dos princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, requisitos essenciais para a concretização do modelo constitucional e democrático de processo penal garantista. E Aos litigantes em procedimento administrativo e aos acusados em geral, não são assegurados o contraditório e a ampla defesa. ao direito de produção de provas, para que o acusado desconstitua as alegações do órgão acusador. No mesmo sentido, o devido processo legal propõe a observância de todo procedimento legal de defesa e produção de provas pelo acusado antes que ele seja privado de seus bens ou de sua liberdade. É importante, ainda, esclarecer que o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal são dispensáveis no âmbito do inquérito policial. 3 - As leis penais simbólicas Ao final deste módulo, você será capaz de descrever as leis penais simbólicas. Leis penais simbólicas Leis simbólicas são proposições normativas que objetivam sistematizar, regulamentar, instituir e regular padrões de conduta, relações e situações jurídicas cotidianas, mas que, em razão de seu conteúdo, padrões de conduta, relações e situações jurídicas cotidianas, mas que, em razão de seu conteúdo, esbarram no desafio de sua efetividade. Considera-se efetiva uma norma jurídica quando alcança, no campo prático, os objetivos por ela propostos. O Código de Trânsito Brasileiro, por exemplo, ao instituir a obrigatoriedade quanto ao uso do cinto de segurança, pode ser considerado uma norma jurídica efetiva, visto que os objetivos estabelecidos pelo legislador — o uso obrigatório do acessório — se concretizaram em termos práticos, considerando-se que essa é a realidade vivenciada pela maioria de brasileiros. Quando o destinatário da norma jurídica introjeta e adere ao seu conteúdo normativo, pode-se considerá-la como uma proposta legislativa, cujas premissas instituídas se consolidaram em termos práticos. Compreender a efetividade normativa como um dos objetivos práticos do direito brasileiro vigente é reconhecer que os efeitos buscados pela norma jurídica se realizaram no campo e na perspectiva das relações humanas, ultrapassando as questões meramente formais para, assim, reconhecer que o que foi idealizado pelo legislador foi concretamente alcançado. Em contrapartida, verifica-se no ordenamento jurídico brasileiro vigente uma quantidade significativa de normas jurídicas cujos objetivos planejados pelo legislador estão longe de serem alcançados. É nesse cenário que surge o debate referente ao conceito de leis simbólicas: são normas jurídicas cujo conteúdo propositivo, idealizado pelo legislador, não alcança os resultados e os efeitos práticos esperados. Há inúmeros exemplos de leis brasileiras que esbarram no déficit ou na limitação de efetividade normativa, visto que os objetivos desenhados pelo legislador estão longe de serem concretizados. Um exemplo inicial para ilustrar tal afirmação é a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), cujo objetivo do legislador foi combater e reduzir os números de casos de violência doméstica praticados contra a mulher. Após vários anos de vigência da respectiva norma jurídica, verificou-se um aumento significativo dos casos de violência doméstica praticada contra a mulher. O que explica esse fenômeno social? É importante esclarecer que o combate à violência doméstica contra a mulher não será efetivado apenas com a aprovação de uma lei que criminaliza tais condutas. Diz-se isso porque, antes de reprimir penalmente tais condutas, é relevante saber por que motivos ocorrem. O machismo estrutural, reflexo do processo histórico-patriarcal brasileiro, é uma das explicações cientificas da naturalização da dominação masculina, responsável por simbolicamente despertar nos homens o sentimento de estarem hierarquicamente em posição de superioridade em relação à mulher. Exemplo Quando sua esposa, companheira ou namorada tenta subverter essa lógica patriarcal, buscando a igualdade de gênero, muitos homens reagem no sentido de praticar os mais diversos tipos de violência. As estruturas sociais de poder reforçam tais práticas, no momento em que legitimam a dominação masculina institucionalizada historicamente na tradição brasileira. Não será a letra fria da norma jurídica o instrumento hábil a desconstituir essas estruturas que naturalizam a dominação masculina, ressaltando-se a importância dos destinatários dessa norma participarem de sua construção e sistematização jurídica. No momento em que o homem entende a importância da norma penal incriminadora, introjetando seu conceito de normatividade, torna-se mais efetiva sua aplicabilidade. A Lei Maria da Penha, então, é exemplo de claro fracasso da própria ciência do direito, que mais uma vez esbarra no desafio referente à efetividade normativa: concretização e aplicabilidade prática dos objetivos propostos e planejados pelo legislador. Um importante debate é levantado quando se discute a efetividade normativa da legislação penal brasileira vigente. Por isso, podemos perguntar: O direito penal consegue atingir concretamente os fins propostos e estabelecidos pelo legislador? Qual seria a finalidade buscada hoje pelo legislador no momento em que aprova uma norma penal incriminadora? A criação de tipos penais, conforme anteriormente exposto, objetiva fortalecer o poder punitivo exercido pelo Estado, além da busca incessante de instrumentos de controle social. O objetivo estabelecido pelo legislador, por meio da institucionalização da sanção penal, é reprimir e prevenir condutas ilícitas praticadas por agentes, quando agem no sentido de atentar contra bens jurídicos considerados penalmente relevantes. Busca-se, ainda, por meio da norma penal, desestimular que seu destinatário a descumpra para, então, alcançar o fim previamente estabelecido. O objetivo do legislador no momento em que aprovou, por exemplo, a Lei Maria da Penha foi, além de punir o agressor, desestimulá-lo quanto à prática de atos de violência doméstica contra a mulher. Sempre que uma norma penal atinge simultaneamente suas funções punitivas e preventivas, pode-se dizer que ela é efetiva. Em contrapartida, se uma norma penal, quando aplicada, atinge apenas sua função punitiva, pode-se dizer que deixou de ser efetiva,uma vez que não é suficientemente hábil a desestimular seus destinatários quanto ao fim preventivo definido por ela mesma. Assim, a legislação penal simbólica é aquela que deixa de alcançar a prevenção do ilícito penal nela contido visando apenas a punição do agente com a capacidade de retroalimentar o falso sentimento de estabilidade social, sem, contudo, resolver com efetividade as razões que geraram o conflito penal levado ao Poder Judiciário. Dito de outra forma, a função simbólica não tem como objetivo resolver efetivamente os conflitos de interesse sociais por meio dos recursos punitivos do Estado. Na perspectiva simbólica, o objetivo da pena e do direito penal é tão somente produzir, na opinião pública, uma impressão de tranquilidade, provocada pela diligência de um legislador que alegadamente tem consciência dos problemas que a criminalidade gera (ANJOS, 2006). O que se verifica no Brasil, diante da crise de segurança pública que se arrasta no tempo, é a adoção por parte do legislador de medidas legislativas simbólicas que não resolvem efetivamente o problema. Assim, a norma penal é simbólica porque traz para a sociedade uma aparente sensação de proteção e de segurança, sem conseguir solucionar, com efetividade, a raiz que desencadeou concretamente o ilícito penal. E com a norma penal simbólica não é possível reduzir o número de casos envolvendo o ilícito penal, ora tipificado. Exemplos de legislações simbólicas No Brasil, temos diversos exemplos de legislações penais simbólicas, como as seguintes: Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 Trata-se da lei de crimes hediondos, aprovada no ano de 1990, com o objetivo de punir com rigor os autores. Refere-se a crime de ampla gravidade e, por isso, possui uma penalização mais rigorosa por parte do Estado. É inafiançável, insusceptível de graça, anistia ou indulto. Verifica-se que o legislador estabeleceu penas mais rigorosas, objetivando prevenir novos delitos e desestimulando seus potenciais agentes. Após duas décadas de vigência da respectiva lei, verifica-se que o número de crimes hediondos no Brasil tem aumentado de forma significativa, tornando evidente o déficit de efetividade normativa pretendida pelo legislador. Sistematizados pelo Atlas da Violência, os dados deixam clara a ineficiente atuação do legislador em tornar concretos os objetivos propostos nessa lei. Trata-se de um primeiro exemplo clássico que evidencia que a norma jurídica não é suficiente para modificar estruturas sociais. O fenômeno social da criminalidade deve ser explicado de forma multissetorial. É fantasiosa a defesa da concepção de que a norma jurídico-penal, por si só, seria instrumento hábil a resolver o problema que envolve a prática de condutas criminosas. Por isso, essa norma penal que deixa de alcançar os fins propostos pelo legislador — modificação de estruturas sociais — é denominada simbólica. Trata-se de lei que dispõe sobre a aplicabilidade de sanções aos agentes públicos em casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional. O objetivo específico do legislador foi sistematizar a aplicabilidade de sanções penais com o propósito de desestimular a prática de atos de improbidade administrativa. A efetividade e concretude da norma jurídica em questão ocorrerá quando seu conteúdo propositivo for suficiente para reduzir de forma significativa a prática de atos ilícitos contrariamente ao interesse público (corrupção). Mas não é isso que se verifica em termos práticos no Brasil, especialmente pelos inúmeros e constantes escândalos de corrupção envolvendo agentes públicos. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992 Desafios das leis simbólicas e a mídia É possível considerar, no direito penal simbólico, uma espécie de onda propagandística dirigida particularmente às massas populares. Isso seria feito por aqueles que têm a intenção de desviar a atenção dos graves problemas sociais e econômicos. O artifício utilizado é o encobrimento dos fenômenos ou problemas que desgastam o tecido social e que, entre outros fatores, contribuem decisivamente para desencadear o aumento da criminalidade. Esta acaba não sendo tão desenfreada e incontrolável quanto é alardeada pela onda propagandística (SANTORO FILHO, 2002, p. 87). A norma penal em si não é capaz de modificar tais estruturas, embora o Estado assim reproduza a voz que simbolicamente representa um alento à sociedade civil, conferindo-lhe um conforto irreal de que, por meio da aplicabilidade de proposições normativo-penais, teremos uma segurança pública mais efetiva. O simbolismo, assim, não busca resolver problemas. Antes, porém, está mais comprometido em tranquilizar a população. Nesse sentido, o adjetivo simbólico se aplica porque “o legislador, ao submeter determinados comportamentos à normatização penal, não pretende, propriamente, preveni-los ou mesmo reprimi-los, mas tão-só infundir e difundir, na comunidade, uma só impressão — e uma falsa impressão — de segurança jurídica”. Isso implica dizer que se busca produzir na opinião pública, se valendo de uma repressão puramente retórica, apenas uma “impressão tranquilizadora de um legislador atento decidido” (QUEIROZ, 1999, p. 9). A mídia assume um significativo papel em relação à retroalimentação do sistema penal simbólico, pois é responsável por introjetar, de forma direta no seio da sociedade civil, o sentimento de que, por meio da aprovação de uma nova norma penal incriminadora, a coletividade estaria mais segura e protegida diante da criminalidade vigente. Essas premissas difundidas pela mídia, além de irreais e fantasiosas, representam simbolicamente uma estratégia utilizada pelo Estado para reforçar o controle social, uma das principais finalidades assumidas pelo direito penal autocrático. A visão distorcida da realidade produzida pela mídia alimenta um sentimento ou uma sensação de insegurança generalizada entre o público. Ao mesmo tempo, a mídia explora discursos que defendem punição mais rigorosa e exemplar, como a prisão perpétua e a pena de morte, com todos esses meios justificando o fim retributivo. Nesse discurso que escolhe o inimigo e o estigmatiza, a repressão penal é o principal instrumento (GOMES; ALMEIDA, 2013, p. 4). A eficácia que se reconhece na lei penal não é outra que não a de trazer tranquilidade à opinião pública, ou seja, se produz um efeito que acaba conduzindo a um direito penal de risco simbólico. No entanto, ao levar as pessoas a acreditarem que esses riscos não existem, a ansiedade é diminuída ou, de forma mais clara, se recorre à mentira, dando lugar a um direito penal promocional, que acaba se convertendo em um mero difusor de ideologia (BATISTA, 2007, p. 631). A sociedade civil recebe com naturalidade e uma certa expectativa a ideológica concepção estabelecida pelo direito penal, que prega a estabilidade social, a segurança pública e a proteção coletiva, mesmo que tais promessas contrariem os dados estatísticos que ilustram um aumento exponencial dos casos de violência e criminalidade. No mesmo sentido, o Estado insiste nesse discurso midiático, com o poder de fortalecer as estratégias de controle social e fomento de um exercício de poder pressuposto, já que mesmo contrariando dados estatísticos, o importante é alimentar o sentimento social de segurança coletiva. Leis penais simbólicas e os desafios da efetividade normativa Compreenda a atuação do direito penal quando instituído pelo Estado e como suas normas impactam a sociedade. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Assinale a alternativa que descreve corretamente a efetividade normativa das leis penais. Parabéns! A alternativa C está correta. A validade jurídica de uma norma está diretamente condicionada à observância rigorosa dos requisitos legais exigidos no processo legislativo. Efetividade normativa não se confunde com validade da norma jurídica.
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