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© 2017, Marisa Lajolo, Regina Zilberman 2017, PUCPRess Este livro, na totalidade ou em parte, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização expressa por escrito da Editora. Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) Reitor Waldemiro Gremski Vice-reitor Vidal Martins Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação Paula Cristina Trevilatto Conselho Editorial Auristela Duarte de Lima Moser Cilene da Silva Gomes Ribeiro Eduardo Biacchi Gomes Evelyn de Almeida Orlando Jaime Ramos Léo Peruzzo Júnior Rodrigo Moraes da Silveira Ruy Inácio Neiva de Carvalho Vilmar Rodrigues Moreira Zanei Ramos Barcellos PUCPRess – Editora Universitária Champagnat Coordenação editorial Michele Marcos de Oliveira Editor Marcelo Manduca Editora de arte Solange Freitas de Melo Eschipio Administrativo Larissa Conceição Revisão Camila Fernandes de Salvo Amanda Rodrigues Soares Capa, projeto gráfico e diagramação Solange Freitas de Melo Eschipio L191L 2017 Produção de ebook S2 Books Editora Universitária Champagnat Pontifícia Universidade Católica do Paraná Rua Imaculada Conceição, 1155 - Prédio da Administração 6º andar - Câmpus Curitiba - CEP 80215-901 - Curitiba / PR Tel. (41) 3271-1701 editora.champagnat@pucpr.br editorachampagnat.pucpr.br Dados da Catalogação na Publicação Pontifícia Universidade Católica do Paraná Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR – Biblioteca Central Lajolo, Marisa Literatura infantil brasileira: uma nova / outra história. Marisa Lajolo, Regina Zilberman. Curitiba : PUCPRess, 2017. 152 p. : il. ; 23 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-68324-42-4 eISBN 978-85-68324-66-0 1. Literatura infanto-juvenil – História e crítica. 2. Literatura infanto-juvenil brasileira. I. Lajolo, Marisa. II. Zilberman, Regina. III. Título. CDD 20. ed. − 809.89282 http://www.s2books.com.br/ mailto:editora.champagnat%40pucpr.br?subject= http://editorachampagnat.pucpr.br/ SUMÁRIO Capa Folha de rosto Créditos Prefácio Citação Abrindo o livro Literatura infantil e juvenil para além do livro 1. Pode haver “livro depois do livro”? 2. “Que coisa é o livro?” 3. E a literatura? 4. Novas fronteiras 5. Autores de leitores on-line 5.1 Sérgio Capparelli e Ana Cláudia Gruszynski 5.2 Leo Cunha file:///tmp/calibre_4.99.4_tmp_t91ul9dl/k_xqdfyq_pdf_out/OEBPS/Text/Capa.xhtml 5.3 Angela Lago 6. Entre as antigas fronteiras 7. “Tudo ao mesmo tempo agora” O peso dos números e das instituições 1. O mercado editorial 2. A profissionalização dos agentes da cadeia do livro 3. A interferência da escola e o papel do estado Novos territórios de criação para crianças e jovens 1. Livros de histórias sobre histórias 2. Um novo indianismo 3. Presença do não verbal Pode haver livro e leitura para além da escola? 1. Uma ficção para lá de fantástica 2. Herança e transformação da liberação feminina Fechando o livro Referências PREFÁCIO Este livro sutil e sábio de Marisa Lajolo e Regina Zilberman, a propósito da história da literatura brasileira para crianças e jovens dos trinta últimos anos, permite re�etir sobre três apostas mais fundamentais de nosso tempo. A primeira diz respeito à relação entre nossas de�nições tradicionais do “livro” entendido como um discurso que tem suas próprias características e as possibilidades técnicas oferecidas pelo mundo digital. Descrevem as duas modalidades desta relação. A primeira modalidade quer manter, na nova técnica de publicação dos textos, os critérios que a partir do século XVIII de�niram o que é um “livro”: a originalidade da escritura, a identidade sempre reconhecível da obra e a propriedade literária de seu autor. As edições digitais de obras que já têm uma larga história impressa exempli�cam o esforço de libertar-se de formas e conceitos, através de textos móveis, abertos, maleáveis, que podem ser palimpsestos e polifonia. A segunda modalidade deriva da inventividade dos criadores de literatura infantil e juvenil. Neste caso, são as possibilidades digitais que propõem gêneros, objetos, criações irredutíveis à forma impressa. São no cenário digital “alternativas de criação”. Não se limitam à introdução na cultura do livro dos gêneros da rede (e-mails, blogs, links), senão que produzem criações que são, segundo as expressões das autoras, “hibridismo de linguagens” ou “amálgamas de linguagens”. O site substituiu o livro, a liberdade do leitor, que pode escolher entre opções narrativas, ao absolutismo do texto, e, muitas vezes, a gratuidade do acesso ao comércio editorial. A aposta não é sem importância, pois pode levar tanto à introdução na textualidade eletrônica de alguns dispositivos capazes de perpetuar os critérios clássicos de identi�cação de obras, na sua identidade e propriedade, quanto ao abandono dessas categorias para inventar uma nova maneira de compor novas produções estéticas que exploram uma “plurimidialidade” mais rica que a simples relação entre texto e imagens e que localizam o leitor numa posição que permite escolhas ou mesmo participação. A segunda aposta discutida neste livro refere-se à relação entre o mundo digital e o mercado editorial, já que a edição na sua forma comercial clássica se apresenta como a forma dominante da circulação das novas criações digitais. Enfatizam Marisa Lajolo e Regina Zilberman dois elementos: por um lado, “situação de precariedade de práticas leitoras” no Brasil, por outro, a importância das políticas públicas de aquisições dos livros para as escolas. Concordam, assim, com os dados levantados pela pesquisa Retratos da leitura no Brasil e as políticas públicas e publicados neste ano de 2016 por José Castilho Marques Neto, que mostram os efeitos positivos das políticas nacionais da leitura e a escrita. Entre 2011 e 2015, a população dos leitores aumentou no Brasil de 6%, passando de 50% a 56%. Não parece muito, mas na escala do Brasil signi�ca que 16 milhões de pessoas iniciaram-se em prática de leitura. Os instrumentos deste crescimento foram a renovação das bibliotecas públicas, as feiras do livro, as manifestações literárias, os apoios na edição. O desa�o do presente é manter ou acrescentar estas intervenções que associam a leitura e a cidadania. No momento em que existe a forte tentação de desmantelar as políticas e instituições públicas, e não só no Brasil, a primeira responsabilidade dos governos e da sociedade é a defesa do direito ao saber e à poesia dos mais vulneráveis dos cidadãos. A terceira aposta contemplada pelo livro de Marisa Lajolo e Regina Zilberman vincula-se à relação ou ausência de relação entre as leituras propostas ou impostas pela escola e as novas produções da literatura infantil e juvenil. Depois da análise dos tópicos originais dessas criações, constatam as autoras: “ainda que não ostensivamente voltadas para o circuito escolar, obras que tematizam outras criações literárias, tratam das culturas indígenas ou investem solidamente na dimensão visual do objeto livro, também circulam entre carteiras e alunos.” A mesma conclusão se impõe para o gênero da “fantasy �ction” inaugurado por Harry Potter. Daí as questões �nais do livro. Deve a literatura infantil e juvenil tornar- se “aliada explícita da pedagogia” ou �car fora da escola para manter seu “caráter libertário”? Devemos atribuir à inventividade dessa literatura, que se vale de “procedimentos metalinguísticos e intertextuais”, um papel decisivo no incremento, não somente dos tempos de leitura dos jovens, senão também na difusão de competências de leitura capazes de favorecer o desfrute das invenções literárias? E se é o caso, como articular aprendizagem escolar e leituras livres tanto digitais como tradicionais? Marisa Lajolo e Regina Zilberman obrigam seus leitores a dar resposta às questões que assim formulam. É o grande mérito do seu elegante livro. Roger Chartier Surgirá a História Nova do Brasil em suas verdadeiras dimensões. Na medida em que ela surgir é que o país se transformará naquilo que todos desejamos – em que o povo brasileiro bem merece. Joel Rufino dosSantos [1] abrindo o livro Que não parece razão Nem seria cousa idônea Por abrandar a paixão, Que cantasse em Babilônia As cantigas de Sião. Luís de Camões [2] Literatura infantil brasileira: uma nova / outra história constitui uma apresentação da literatura brasileira para crianças e jovens em circulação no Brasil nos últimos trinta anos. Não obstante constituir obra independente, autônoma e autorreferenciada, ela dialoga com outros livros nossos, especialmente com Literatura infantil brasileira: história e histórias (1984) e Um Brasil para crianças (1986). Nas últimas décadas do século passado, a literatura infantil ganhou status acadêmico, oferecendo-se enquanto campo de investigação original e estimulante para os estudos literários. Na esteira de trabalhos pioneiros como Problemas de literatura infantil (1950), [3] de Cecília Meireles (1901-1964), e de Literatura infantil brasileira: ensaio de preliminares para a sua história e suas fontes (1968), [4] de Leonardo Arroyo (1918-1986), a década de 1980 abre-se com a publicação de A literatura infantil: história, teoria e análise (1981), [5] de Nelly Novaes Coelho, que, no ano seguinte, publica seu Dicionário crítico de literatura infantil e juvenil brasileira. [6] Os trabalhos de Nelly Novaes Coelho marcam, com a concretude do livro impresso e com a chancela da Universidade de São Paulo, a maturidade da área, que também passou a integrar currículos de cursos de Letras. De lá para cá e particularmente no século XXI, articulados com a expressiva produção do setor, multiplicam-se livros, ensaios, dissertações de mestrado e teses de doutorado, cursos e eventos voltados para a literatura infantil e juvenil. É neste contexto que surge, desenvolve-se e amadurece este Literatura infantil brasileira: uma nova / outra história. Tratar livros para crianças e jovens enquanto literatura implica conferir- lhes o mesmo statusda literatura não infantil e, consequentemente, considerá- los aptos a receber o idêntico tipo de re�exão voltado àquela. Implica, assim, considerar seu estudo habilitado a desenvolver-se através de metodologias e epistemologias formuladas a partir de e desenvolvidas a propósito da literatura não infantil e vice-versa. Com tais pressupostos, nossos livros anteriores Literatura infantil brasileira: história e histórias e Um Brasil para crianças, seguindo a lição de estudos clássicos da literatura brasileira, formatam em épocas o panorama da literatura infantil brasileira que delineiam, estabelecendo traços textuais e temáticos característicos de cada período, elencando seus autores representativos e discutindo suas criações. A portabilidade desejável para Literatura infantil brasileira: história e histórias, que pretendia, como efetivamente conquistou, largo trânsito na graduação universitária, aconselhou a migração para outro título – Um Brasil para crianças – a extensa antologia de textos representativos de cada época. De um título para o outro, um movimento de condensação e ilustração. Examinados em perspectiva, do livro de 1984 para o de 1986, desfere-se um trajeto de afunilamento, representado pela busca e discussão de elementos cada vez mais básicos e estruturantes de textos voltados para crianças e jovens. Como contrapartida deste afunilamento da visada que norteou as obras de 1982 e 1986, dez anos depois, A formação da leitura no Brasil (1996) desferiu trajetória oposta. Em um zoom signi�cativo, discute práticas sociais através das quais se forma e se desenvolve (ou não se forma, nem se desenvolve...) o público brasileiro, do qual faz parte o leitorado de livros infantis e juvenis. Transposto o ano 2000, o novo século – com a sedução dos números redondos – aguçava a curiosidade e propunha desa�os: que sistematização poderia trazer, dialogando com os livros anteriores – Literatura infantil brasileira: história e histórias e Um Brasil para crianças –, a re�exão para mais perto dos dias atuais? A�nal, o que dizer no século XXI, quando a discussão de eventuais danos e vantagens representados pelos quadrinhos se substitui pela discussão de eventuais vantagens e desvantagens representadas pelo e- book e pelos games (capítulo I)? Se os livros anteriores propunham uma determinada forma de olhar e discutir a produção de literatura infantil brasileira em circulação até a década de setenta do século XX, que debates e olhares suscitava a extensa produção posterior a 1980 (capítulo II)? O primeiro aprendizado que a questão patrocinou foi que o espantoso volume da produção de livros infantis e juvenis (capítulo II) proscrevia de forma radical a retomada do modelo cronológico dos livros anteriores. Ao longo das várias decisões que precisaram ser tomadas durante a longa ruminação e elaboração deste livro, também se con�rmou a velha lição de que quantidade afeta qualidade, entendida essa última, aqui, não no sentido de avaliação positiva, mas no sentido de natureza, de modo de ser dos seres do mundo, inclusive delivros. O gigantismo da produção da área permitiria ainda a discriminação autor por autor ou a delimitação de épocas? Salvo em algumas passagens, a tradicional apresentação autor a autor ou obra a obra pareceu desaconselhável. A grande produção contemporânea de livros que hoje circulam entre crianças e jovens – quer por sugestão escolar, quer por leitura espontânea, quer por compra governamental, quer por aquisição individual – parece proscrever qualquer categorização ortodoxa de títulos. O panorama cultural das últimas décadas sofreu alterações profundas. Inclusive – e talvez sobretudo – na área de livros infantis e juvenis. A literatura para crianças e jovens, mais do que a literatura não infantil, mostra-se sensível a esse panorama, marcado pela intensa movimentação política de segmentos sociais pouco expressivos até as décadas �nais do século XX. Recortada por legislação que, de forma crescente a partir da aprovação e promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996/1997), pauta a leitura escolar, transforma-se a cadeia que vai da produção ao consumo de livro destinados à infância e juventude. Concebendo a literatura enquanto um sistemapor meio do qualobras, autores e públicos interagem a partir de condições sociais que diferentes momentos históricos proporcionam, [7] o novo contexto cultural do país afeta a literatura infantil e juvenil (apenas ela?) desde seu modo de produção até sua forma de circulação, multiplicando as (outras) linguagens com as quais precisa dialogar. À medida que esta percepção se foi impondo, pareceu-nos pouco produtiva qualquer ordenação cronológica de épocas, tendências, autores ou obras. Foram então abandonadas propostas de abordagem individual de autores e de obras, exceto quando obras e autores davam concretude à discussão de uma ou outra tendência. Assim, este Literatura infantil brasileira: uma nova / outra história, ao longo dos capítulos que o constituem, propõe um conjunto de re�exões sobre o gênero literatura infantil e juvenil,focalizando-o da perspectiva que nos pareceu enriquecer o conhecimento, discussão e fruição da literatura infantil e juvenil brasileira dos últimos trinta anos. Se a decisão foi ou não acertada, �ca para os leitores decidirem. Pois a prerrogativa maior dos leitores é discordarem dos autores que leem, o que – claro! – constitui também uma forma de diálogo. Literatura infantil e juvenil para além do livro Nós estamos em um momento de muita nostalgia da possibilidade da perda de um objeto que nós amamos, o livro. Isso provoca, em qualquer um de nós, um apaixonamento pelos últimos livros que estamos construindo. Se é que de fato – eu tenho as minhas dúvidas – o livro de papel vai desaparecer completamente. Eles podem substituir o papel por algum outro material que não seja tão caro à natureza. Mas o livro digital, quer dizer, a possibilidade do livro digital, da compra imediata, da diminuição de custo, da ausência da necessidade de lugar para guardá-los, tudo isso faz com que o livro digital seja um caminho sem volta mesmo.Angela Lago [8] 1. Pode haver “livro depois do livro”? [9] Todas as principais formas de representação dos primeiros 5 mil anos da história humana já foram traduzidas para o formato digital. Não há nada criado pelo homem que não possa ser representado nesse ambiente multiforme: das pinturas no interior das cavernas de Lascaux às fotografias de Júpiter feitas em tempo real; dos pergaminhos do Mar Morto ao primeiro exemplar de Shakespeare; das maquetes de templos gregos pelas quais se pode passar aos primeiros filmes de Edison. E o reino digital assimila, o tempo todo, mais capacidades de representação, à medida que pesquisadores tentam construir dentro dele uma realidade virtual tão densa e tão rica quando a própria realidade. Janet H. Murray [10] Em 2007, a Editora Globo, a partir de então detentora dos direitos autorais de Monteiro Lobato (1882-1948), lançou versão eletrônica de A menina do narizinho arrebitado. [11] O e-book contém 56 telas, permitindo aos leitores acessar as primeiras aventuras da neta de Dona Benta no reino das Águas Claras por meio de texto verbal e visual, e de sons e �guras em movimento. Com ilustrações de Rogério Borges (Figura 1), o enredo retoma o capítulo inicial do livro que, originalmente de 1920, foi reescrito para a edição de 1931 de Reinações de Narizinho, obra que reúne várias das histórias publicadas isoladamente ao longo da década anterior. É muito sugestivo que uma das primeiras obras brasileiras – se não a primeira – efetivamente interativa, digital, multi e hipermidiática relance o livro de estreia do escritor mais importante – e para muitos o fundador – da literatura infantil nacional. Como sublinha Vladimir Sacchetta na apresentação, esta versão em suporte digital patrocina “um mergulho na fantasia”. Ambientada em cenários predominantemente aquáticos, a história se desenrola em telas que alternam a imagem de páginas convencionais e as que representam água (Figura 2). Ao toque de dedos (e, às vezes, prescindindo deste gesto do leitor), algumas telas são cruzadas por �guras que se movem (peixes, folhas, uma carruagem, apresentação de vestidos a Narizinho) sendo acompanhadas de músicas (cenas de bailes) e de sons relativos aos episódios narrados (o espirro de Narizinho, gotas que caem, zumbido de abelhas e de motores). Globo Livros/ © Monteiro Lobato, 2007 Figura 1 Globo Livros/ © Monteiro Lobato, 2007 Figura 2 Na cena �nal da história – o despertar de Narizinho –, um belo recurso de dissolução de telas: a cena subaquática desmancha-se e, em seu lugar, emerge a tela inicial de Narizinho sentada à beira do ribeirão no fundo do qual se passa(ra)m as aventuras. O texto, conforme a editora, “teve como base a edição de 1920”, incluindo, pois, passagens descartadas em versões posteriores, como, por exemplo, a irreverente cena em que um Fr. Louva a Deus dá a extrema unção a uma barata moribunda. [12] A omissão desta passagem em edições posteriores à primeira deveu-se provavelmente à carta, a seguir reproduzida, que o escritor recebeu do amigo, então Diretor da Instrução Pública do Ceará e professor da Escola Normal de Fortaleza, Lourenço Filho (1897-1970), alertando-o para o desagrado de autoridades educacionais com a irreverência religiosa e os consequentes riscos de um possível encalhe do livro: Lobato, V. não tem razão. A esta hora já terá recebido o jornal com a nota o�cial da aprovação e adoção dos seus livros, bem como do Dr. Doria. E veja como V. é ingrato: o único embaraço na minha ação, aqui, foi exatamente o resultado da aprovação de Narizinho arrebitado. O clero me moveu tremenda guerra, sob o pretexto de que a adoção do livro visava ridicularizar a sagrada religião católica. Foi preciso, para manter a aprovação, que eu inventasse haver uma 2ª edição, sem os inconvenientes da primeira. Lembra-se V. de que lhe falei sobre aquele tópico do frei com os sacramentos etc. Esse tópico, aí mesmo, ofendeu a muitos professores. V. só terá vantagens em suprimi-lo, quando reeditar o livro. (...) Abraços. Saudade aos camaradas. Lourenço Filho. [13] Sensível a questões tanto literárias quanto �nanceiras, o escritor seguiu o conselho e, a partir de então, omitiu a cena nas outras edições do livro. Foi esse, talvez, seu primeiro – e posteriormente constante – gesto de reescrita de sua própria obra ao longo de suas inúmeras reedições. [14] A questão da reescrita, tão rica e importante na trajetória da obra lobatiana, parece excelente entrada para propor uma re�exão sobre a literatura infantil brasileira mais contemporânea. O recente aparecimento de e-books e de e-readers, e as consequências disto para o livro de papel, para a leitura e a literatura, são temas que têm (pre)ocupado quase todos os que se movem pela cidade das letras. É instigante a escolha da primeira obra do escritor pioneiro na modernização da literatura infantil brasileira enquanto título comercialmente inaugural na utilização plena e recorrente de recursos digitais no âmbito de livros e de leituras. Sugere as nuances da dialética entre continuidade e ruptura que, como grande interrogação, pontua debates recentes sobre alterações que a cultura digital imprimirá – ou já está imprimindo – à cultura do impresso. E, quando se diz cultura do impresso,talvez já se esteja, metonimicamente, dizendo cultura ocidental. Sintomático do encaminhamento polêmico da questão livro impresso versus digital é a obra É um livro, [15] do escritor e ilustrador norte-americano Lane Smith, publicada originalmente em 2010, traduzida no Brasil no mesmo ano e premiada, na categoria Tradução/Adaptação, pela Fundação Nacional de Literatura Infantil e Juvenil (FNLIJ). À sua maneira, ela traz para primeiro plano o desconforto que o aparecimento de e-readers acarreta às vezes para alguns nativos e cidadãos plenos do mundo do impresso. De forte cunho metalinguístico, a história é um diálogo seco, apresentado em balões como os que pontuam histórias em quadrinhos, entre duas �guras de feições animais: um macaco e um burro. Uma delas, o macaco, é grande; a outra, o burro, é pequena. Esta, ao ver que a primeira segura um livro, manifesta, através de perguntas, sua completa falta de familiaridade com tal objeto. O macaco (um adulto?), representante de indivíduo habituado ao mundo do impresso e talvez �gura insatisfeita com o mundo digital, responde, de modo impaciente e nem sempre bem humorado, às perguntas da �gura menor (uma criança?). A obra inscreve-se no discurso contemporâneo de valorização do livro impresso, e o faz de forma categórica e incisiva, que parece desquali�car outros suportes de leitura. Tal estratégia, no entanto, talvez produza efeito oposto ao pretendido. Ao desquali�car o interlocutor menor, destinatário presuntivo da obra e por hipótese familiarizado com o mundo digital, é bem possível que É um livro hostilize boa parte do segmento de mercado ao qual se dirige. A versão original norte-americana dessa obra inclui postagem no YouTube, [16] dinâmica e divertida. A duplicidade de linguagens, a impressa e a digital, parece sinalizar evidente contradição, pois a superioridade do impresso parece ser comprovada por uma demonstração via formato digital, em tese superior àquele, mas não na prática. Se o atual surgimento e difusão de e-books e e-readers é o contexto ao qual se articula a obra de Lane Smith, não deixa de ser singular a argumentação monolítica pela qual nela se faz a defesa do antigo suporte da escrita. Bastante distinta é a forma de antecipar a questão nos versos de alguns poetas brasileiros, que se ocuparam do livro quando a cultura digital ainda não fazia parte do horizonte. De que livro falavam eles? 2. “Que coisa é o livro?” Nada é novo sobre a terra nem permanece hodierno Logo fica obsoleto o que agora é moderno Se hoje vai sendo ontem só o futuro é eterno. Manoel Monteiro [17] Talvez se possa a�rmar que a literatura nasceu quando começou a era do livro. Antes dele, havia a poesia, o gesto, a imagem, o som, que se produziam e eram transmitidos por meioda voz, do corpo, do olhar e da audição. A visão foi desviada para as letras, quando se disseminou o emprego da escrita. A criação do códice, abrigando e reunindo em volumes de feitio retangular um conjunto de manuscritos registrados em pergaminho, reduziu as tarefas da voz e obscureceu as funções do corpo. No agora longínquo século I d. C. aparecia o livro no formato que conhecemos até hoje. Sua ampla difusão, no entanto, só se viabilizou a partir da invenção da prensa mecânica, ocorrida em meados do século XV. Com Johannes Gutenberg (c. 1398-1468), estabilizaram-se várias práticas que percorriam caminhos paralelos: a leitura silenciosa, [18] a cópia artesanal de manuscritos, a organização dos estudos laicos, em então recentemente fundadas universidades europeias. Do códice romano ao livro moderno, poucas mudanças se registraram. Pelo menos até poucos anos. Talvez tenham sido poetas os mais sensíveis na percepção de sinais de mudanças no horizonte do mundo letrado. E, pressentindo os sinais, tematizaram a instabilidade do suporte da escrita e da leitura. Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), nos versos dedicados “A José Olympio”, [19] já em 1955 pergunta-se: Que coisa é o livro? Que contém na sua frágil arquitetura transparente? São palavras, apenas, ou é a nua exposição de uma alma con�dente? De que lenho brotou? Que nobre instinto da prensa fez surgir esta obra de arte. Que vive junto a nós, sente o que sinto e vai clareando o mundo em toda a parte? [20] Para o poeta, o livro “brotou” de um “lenho”, metonímia que o relaciona ao mundo vegetal, fornecedor de uma das matérias-primas responsáveis pela produção do papel, con�gurando-o enquanto um organismo vivo para além de sua aparente objetualidade. Mais adiante, o poema menciona o processo industrial da fabricação do livro, em paralelo com sua dimensão emocional e intelectual: a “prensa fez surgir essa obra de arte / que vive junto a nós, sente o que eu sinto / e vai clareando o mundo em toda a parte”. Enquanto suporte privilegiado da escrita, o papel é também tema de versos de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), em “O poema”, de O engenheiro, de 1945: O papel nem sempre é branco como a primeira manhã. É muitas vezes o pardo e pobre papel de embrulho; É de outras vezes de carta aérea, leve de nuvem. Mas é no papel, no branco asséptico, que o verso rebenta. Como um ser vivo pode brotar de um chão mineral? [21] A menção a distintas espécies de papel – de embrulho e de carta – abre espaço para a celebração de sua vocação maior: constituir suporte da poesia. Com isso, o poeta substitui a assertividade das quatro primeiras estrofes pela interrogação com a qual entrelaça a metáfora da poesia enquanto elemento orgânico ao mundo inorgânico do chão mineral, assinatura maior do poeta de A educação pela pedra. Em “Para a Feira do Livro” (Educação pela pedra, 1966), João Cabral retoma a relação entre o livro, a folha, sua origem vegetal e o registro da escrita, cujo enlace é celebrado por meio da sonoridade dos versos em que sons fricativos se sucedem: Folheada, a folha de um livro retoma o lânguido vegetal de folha folha, e um livro se folheia ou se desfolha como sob o vento a árvore que o doa; folheada, a folha de um livro repete fricativas e labiais de ventos antigos, e nada �nge vento em folha de árvore melhor do que o vento em folha de livro. [22] Com tudo isso, no entanto, permanece a pergunta do primeiro verso do poema de Drummond, que em 1955 indagava a si e a seus leitores: “Que coisa é o livro?” De lá para cá, no mais de meio século de distância dos versos com que o poeta mineiro celebrava o editor José Olympio, os atributos até então identi�cados como característicos do livro parecem já não bastar para de�ni- lo. Não é mais possível falar do livro com segurança, já que novas tecnologias impuseram outros formatos e materiais, novos modos de produção e de circulação, distintas maneiras de leitura, restaurando em muitos casos as relações entre comunicação, corpo, voz, olhar e gesto. Uma questão se apresenta: que consequências a pluralidade de suportes pode trazer para a literatura? 3. E a literatura? Esta folha branca me proscreve o sonho, me incita ao verso nítido e preciso. João Cabral de Melo Neto [23] Como se disse antes, a era do livro fomentou a literatura. A expressão literatura [originária do latim (littera = letra)], encampou o que, até então, era denominado poesia, favorecendo a prática da leitura silenciosa em detrimento do som e da voz. Assim como a poesia que, conforme ensina a Poética, de Aristóteles (384- 322 a. C.), desde o século IV a. C. subdividiu-se em gêneros diferentes, também a noção de literatura passou a recobrir grande variedade de gêneros. A – digamos – natureza literáriade certos textos é postulada / reconhecida / avaliada por um grupo especí�co – críticos e acadêmicos – a quem se avocou a missão de estabelecer, alterar e legislar a respeito da identidade e do valor dos escritos que almeja(va)m o status de arte. A emergência da modernidade, processo que se estende do século XVI ao XVIII, deu origem a novos gêneros, ampliando o número de formas narrativas (o conto, a novela, o romance constituindo os tipos básicos), e de�nindo-os por distintos critérios: ora por seus consumidores (literatura infantil e juvenil, literatura de massa), ora por seus temas (literatura policial, literatura fantástica), ora pelas formas de relatar (memórias, autobiogra�a), ora por sua aplicação (literatura escolar, didática, paradidática), e outras vezes por seu emprego (dicionários, enciclopédias, receitas culinárias).Mas, não obstante a permanência da chamada literatura oral, um fator uni�cava os gêneros mais tradicionais: o formato livro, que garantia certa uniformidade ao universo do impresso, embora se tratasse de uma unidade precária, precariedade bem visível na materialidade do objeto (dimensões, capas, matérias-primas etc.). No âmbito da literatura infantil e juvenil, amplia-se e expressa-se de distintas maneiras essa parceria antiga entre a escrita, o impresso e o livro, ao mesmo tempo em que nela também se manifesta hibridismo de linguagens. Com efeito, desde suas manifestações iniciais, ainda no século XVIII, obras destinadas a crianças eram acompanhadas de ilustrações, ultrapassando assim o âmbito do escrito, de que a literatura é a principal �adora. Essa parceria foi enunciada, há mais de um século, pelos versos de uma autora paulista, que, desde o título de seu poema, registra, em presuntivo diálogo com seus leitores, a pluralidade de linguagens que, cada vez mais, se fazem presentes em livros para crianças e jovens: LIVRO BONITO - P’ra mim, livro bonito É aquele que tem �guras, P’ra você não é, Carlito? - P’ra mim é o que tem doçuras, E nossas almas retrata E da terra as formosuras! Mas a mim também é grata Uma gravura risonha, Com vermelho, azul e prata... Perto d’água uma cegonha, E nos verdores da mata, Um passarinho que sonha... [24] Com a emergência e expansão das histórias em quadrinhos, ao �nal do século XIX, e, depois, com sua plena difusão no Brasil a partir da segunda metade do século XX, a imagem passou a ser tão ou mais relevante que o texto, impondo sua presença nos gêneros com os quais compartilhava o público. E como o maior número de seus consumidores situava-se na faixa etária de�nida como infantil e juvenil (e, mais contemporaneamente, jovens adultos), a literatura dirigida a esse segmento de mercado incorporou a linguagem visual, cedendo espaço crescente à matéria �gurativa. A nova parceria de linguagens – a verbal, escrita e a visual – não se fez, nem se faz, sem custos. Implicou aumento das despesas de produção, exigindo a remuneração de vários criadores e técnicos, assalariados e empresários. E também implicou a eventual necessidade de uma nova concepção de autoria, bem como de sua legitimação e valoração no campo intelectual e estético. Historicamente, parece ter sido a ilustração o primeiro elementoa desa�ar o privilégio da escrita, rompendo a soberania da linguagem verbal, ao incluir em cenários de leitura elementos de natureza grá�ca e pictórica. Com efeito, desde muito cedo, na Europa e também no Brasil, o gênero infantil circulou em livros que acoplavam visuale verbal. Vem desta aliança a denominação álbum, que nomeava a produção de Père Castor, coleção fundada por Paul Faucher (1898-1967) na França da década de 1930, [25] e os “livros de �guras”, mencionados por Manuel Bandeira (1886-1968), ao relembrar suas memórias de leitura: Procuro me lembrar de outras impressões poéticas da primeira infância e eis que me acodem os primeiros livros de imagens: João Felpudo, Simplício olha para o ar, Viagem à roda do mundo numa casquinha de noz. Sobretudo este último teve in�uência muito forte em mim; por ele adquiri a noção de haver uma realidade mais bela, diferente da realidade quotidiana, e a página do macaco tirando cocos para os meninos despertou o meu primeiro desejo de evasão. No fundo, já era Pasárgada que se prenunciava. [26] Sintoma do reconhecimento progressivo e contemporâneo da importância desta parceria verbo-visual são as transformações ocorridas nas categorias de distribuição de prêmios literários a livros para crianças e jovens. O principal deles, a medalha Hans Christian Andersen, desde 1956 concedida a cada dois anos pelo International Board on Books for Young People (IBBY), destinava-se, originalmente, apenas a escritores. A partir de 1966, o prêmio passou a ser atribuído também a ilustradores. Processo similar ocorreu no Brasil: a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) criou, em 1974, o prêmio “O Melhor para Criança”, outorgado a um escritor; a partir de 1981, incluiu, entre os prêmios que distribui anualmente, a categoria “Imagem”, destinada a ilustradores. Da sua parte, o prêmio Jabuti, conferido pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), inclui atualmente os quesitos capa, projeto grá�co e ilustração, distinguindo dos demais, neste último ponto, livros voltados para crianças e jovens. Mesmo sem mencionar livros mais contemporâneos, dirigidos a crianças muito pequenas, que exploram texturas e cheiros, constata-se que a plurimidialidade se faz presente há muito tempo na literatura para crianças e jovens, não constituindo, pois, uma novidade de nosso tempo, ainda que contemporaneamente ela se manifeste em grau mais intenso. Livros para crianças podem, inclusive, prescindir do texto escrito, como evidenciam Ida e volta (1976), de Juarez Machado, ou Cena de rua (1994), de Angela Lago. Podem igualmente abrir mão do papel, apresentando-se como livros de pano ou de plástico, ou ainda como livro brinquedo, conceito limítrofe, pois talvez já não pertença à esfera do literário, mas à do lúdico. Ao lado da plurimidialidade, o livro de literatura infantil e juvenil, mais do que outros gêneros, constitui, muitas vezes, resultado de produção coletiva, somando no mínimo um escritor, um ilustrador e um editor, o que traz para seu âmbito a intersubjetividade, pois a qualidade do produto �nal decorre da integração, adequada e e�ciente, entre os vários sujeitos que participam de sua realização. Neste contexto de livros compostos por amálgamas de linguagens, até onde chegam as novas fronteiras que delimitam livros e literatura de seus outros? 4. Novas fronteiras Andam no dia cibernético As tar ta ru gas eletrônicas. Eu robô? Ledo Ivo [27] Eu quero entrar na rede pra contactar Os lares do Nepal, os bares do Gabão Que o chefe da polícia carioca avisa pelo celular Que lá na praça Onze tem um videopôquer para se jogar Gilberto Gil [28] O dado novo, na cena contemporânea é a literatura infantil (mas talvez não apenas ela...) prescindir do livro. Experiências pioneiras de uma literatura sem livro foram, por exemplo, os discos gravados por Braguinha (1907-2006), compositor e carnavalesco que, entre 1965 e 1980, musicou vários contos de fadas tradicionais. Os pequenos discos de vinil colorido, no entanto, não sobreviveram isolados, e seu sucessor, o CD, passou a acompanhar os livros para crianças, via de regra encartado neles. Tratava-se de complemento do livro, não de seu substituto. Foram a expansão e a popularização da internet que �zeram diferença, possibilitando ruptura radical entre literatura e livro. Constituída por um conglomerado de redes de comunicação, a internet opera de modo interligado no que se denomina ciberespaço, ambiente de existência virtual disponibilizado pela tecnologia. Por meio de aplicativos baixados em equipamento eletrônico, torna-se possível o intercâmbio de mensagens representadas por texto escrito, grá�cos, vídeos, imagens, animações, sons e música. Sites e blogs, em número in�nito, ao lado das redes sociais – Facebook, Linkedin, Twitter, Instagram, entre as (hoje, 2015) mais populares – colocam em relevo não apenas novos formatos de comunicação, mas a possibilidade de interação entre sujeitos, grupos, comunidades e projetos. Incluem-se, entre as interações viabilizadas, intercâmbios inovadores entre autores e leitores... O processo de comunicação digital, operando com múltiplas plataformas, impõe novas sensibilidades e formas de percepção, facilitando a associação entre texto e imagem. Inclui também a possibilidade de articulação entre texto, movimento, som e a terceira dimensão. Neste cenário digital, emergem, assim, alternativas de criação, sendo que, no âmbito da produção literária, uma notável contribuição, até agora experimentada com sucesso, é representada pelo hipertexto, que materializa de forma radical os procedimentos de construção do intertexto. Intertexto, noção presente nos estudos literários a partir de 1966, quando Julia Kristeva difundiu a expressão intertextualidade, [29] é a possibilidade de as manifestações da escrita se apropriarem de textos anteriores, em processo permanente de citação e reelaboração. Bastante presente no mundo da literatura impressa, o intertexto, para fazer sentido, supõe a memória, por parte dos leitores, da matéria verbal que cita. Já o hipertexto – de formato digital – prescinde da memória, já que, por meio de links, remete de imediato de um produto escrito a outro. [30] Linkstambém podem ampliar e completar o texto em que ocorrem. O hipertexto favorece ainda leitura não sequencial e não linear. Mais do que o texto impresso em papel, o hipertexto permite ao leitor- internauta percorrer caminhos próprios de leitura, na medida em que cabe a ele, através dos links que escolhe, eleger os atalhos e interagir. Como interatividade e simultaneidade pertencem de antemão à natureza da comunicação digital, compete ao hipertexto acentuá-las e aprofundá-las, levando seu usuário a mergulhar no universo virtual do ciberespaço. Quando ao hipertextoassociam-se imagem, animação e som, entramos no universo da hipermídia. Com tais possibilidades, o hipertexto abre campos até então inexplorados de criação, favorecendo o aparecimento de novos gêneros literários, como, por exemplo, a fan�ction que consiste na apropriação (in)devida de obras alheias, redigindo novos relatos a partir dos originais. Concebida como reescrita / continuação / retomada de obras alheias, a fan�ction não é propriamente invenção dos tempos da internet. Talvez se possa alinhar, entre seus precursores remotos, Alonso Fernández de Avellaneda (pseudônimo não identi�cado), o autor do falso Dom Quixote, publicado em 1614, que dava continuidade às aventuras do �dalgo espanhol narradas por Miguel de Cervantes (1547-1616) em publicação de 1605. Foi, no entanto, com a explosão da cultura de massa que o gênero tomou corpo, sendo que sua propagação deveu-se efetivamente às possibilidades oferecidas pela internet. Graças à interatividade, histórias protagonizadas por personagens de grande popularidade, oriundas da literatura, de histórias em quadrinhos ou de seriados da televisão, podem envolver-se em novas aventuras, propostas e disponibilizadas no ciberespaço por fãs dos originais. [31] No universo do ciberespaço, a produção e a circulaçãode textos – os hipertextos – são extremamente facilitadas. Espaços como blogs, sites e redes sociais acolhem hipertextos ao lado de textos à moda antiga, como notícias, receitas de cozinha, autoajuda, narrativas e con�ssões, e ainda gêneros canônicos, como poemas e crônicas. No ciberespaço, o livro pode aparecer sob um formato especí�co – o do e-book –, mas não �ca restrito a esse, já que incorpora obras tradicionais digitalizadas por meio de softwares adequados. Provavelmente, o ciberespaço veio para �car. E o que ele representa de novo é às vezes assustador. A dimensão distópica da tecnologia foi tema de inúmeras obras. Projeções relativas ao futuro da sociedade humana imaginadas antes da emergência e expansão do universo digital incluem os efeitos deste na humanidade. Distopias como Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley (1894-1963), 1984 (1949), de George Orwell (1903-1950), e Farenheit 451 (1953), de Ray Bradbury (1920-2012), obras vizinhas do �nal da Segunda Guerra (1939-1945), quando se evidenciou que a vitória pendeu para as nações que melhor lidaram com o mundo da informação, antecipam a importância de máquinas na vida cotidiana. A expansão da cultura cibernética e das ferramentas eletrônicas determinou, por sua vez, discussões sobre modos e riscos de controle social por mecanismos como computadores. Filmes como 2001 – Uma odisseia no espaço, de 1968, do cineasta Stanley Kubrick (1928-1999), sugerem a hipótese de as máquinas tornarem-se autossu�cientes, passando a gerenciar a vida dos seres humanos. Por sua vez, o totalitarismo exercido pela tecnologia mostra-se vinculado ao enfraquecimento e mesmo desaparecimento da cultura considerada elevada: em Farenheit 451, o grupo social, dominado por um estado centralizador e despótico, abre mão da fantasia, de que a literatura é expressão, e do livro, seu suporte convencional. A posse de obras impressas é crime, punível com a destruição delas, por uma brigada de bombeiros, que queima livros, objetos tidos por subversivos. [32] O título Farenheit 451 alude à temperatura necessária para a queima do papel. A data de sua publicação, próxima dos poemas brasileiros antes comentados, antecipa a questão tão contemporânea: a criação e difusão de textos em meio digital encerrará a era do livro? Acabará igualmente com a literatura, uma vez que, como se observou, sua existência coincide com a era do livro? Têm, assim, longa e respeitável genealogia os debates que opõem livro impresso e livro digital. [33] Também se discute amiúde a permanência da literatura, destacando-se sobretudo a observação de que a natureza do texto literário não sofreu alterações – sejam ganhos ou perdas – ao migrar (ou deixar de migrar) para o formato digital. Tal ponto pode ser controverso no âmbito da literatura não infantil, [34] porém, no caso dos livros para crianças e adolescentes, esses se bene�ciam da familiaridade maior de gerações mais jovens com o mundo da cibercultura, o que faz com que talvez o gênero infantil possa oferecer algumas lições à sua irmã mais velha, a literatura que não se dirige especi�camente a crianças e jovens. Será? E se for? Quais e como são algumas das primeiras obras brasileiras a desa�ar as fronteiras do livro e da literatura? 5. Autores de leitores on-line Os leitores pensam com razão que são apenas filhos de Deus, pessoas, indivíduos, meus irmãos (nas prédicas), almas (nas estatísticas), membros (nas sociedades), praças (no exército), e nada mais. Pois são ainda uma certa coisa, – uma coisa nova, metafórica, original. Machado de Assis [35] 5.1 Sérgio Capparelli e Ana Cláudia Gruszynski Exemplos de produção brasileira recente sugerem e�ciente ocupação das novas fronteiras, provindo um deles do endereço www.ciberpoesia.com.br, de autoria de Sérgio Capparelli e Ana Cláudia Gruszynski. [36] Sérgio Capparelli e Ana Cláudia Gruszynski http://www.ciberpoesia.com.br/ Figura 3 A tela de abertura (Figura 3), como a página de rosto de um livro, identi�ca o conteúdo (ciber & poemas,no canto superior esquerdo) e a autoria (Sérgio Capparelli e Ana Cláudia Gruszynski, no canto superior direito). Na sequência, informa os procedimentos (“cliques nos ícones”) necessários à interação do leitor, aqui tratado como internautaexperiente. Ao longo da navegação, o leitor-internauta não apenas lêpoemas, mas é convidado a compor seus próprios versos. O primeiro ícone tem a forma de um computador de mesa, e o segundo – que leva às poesias visuais – representa um olho, sublinhando as características imagéticas dos textos exibidos. Sérgio Capparelli e Ana Cláudia Gruszynski Figura 4 A �gura 4 reproduz um dos poemas visuais: os versos de Sérgio Capparelli inscrevem-se sobre pintura de Vincent Van Gogh (1853-1890), copiada em variações de cinza. Os versos distribuem-se por linhas assimétricas e descontínuas, simulando visualmente os caminhos que os sapatos, tema do quadro, podem ter percorrido. Por sua vez, naquilo que corresponderia a uma segunda estrofe, há um diálogo do sujeito poético com o autor da pintura, sugerindo agora uma interação entre o escritor e o pintor, de que participa o leitor, na medida em que ele pode conferir movimento às �guras disponibilizadas na tela. Um terceiro ícone, na tela de abertura (Figura 3), propõe outro percurso de navegação: ao lado da imagem de lombadas de livros, o usuário é convidado a visitar “outros sites e ideias de ciberpoesia”, o que favorece a familiaridade de seus internautas com produções literárias pioneiras na utilização de recursos digitais para a criação artística. Ao convidar a conhecer “a poesia como um jogo dentro e fora da sala de aula”, o siteextrapola o âmbito estritamente escolar. Como ocorre a grande parte das home pages, as possibilidades de navegação neste site são inúmeras. De uma parte, elas acompanham a proposta criativa dos autores dos ciberpoemas, de outra, colocam seu trabalho em perspectiva, ao se integrar a produtos resultantes de outros projetos on-line. O www.ciberpoesia.com.br (disponível em setembro de 2014) assume a dimensão própria de ambientes digitais multimídia, ao lidar simultaneamente com texto, imagem, animação e som, [37] além de proceder a apropriações intertextuais e �gurativas, como a pintura de Van Gogh. Enquanto proposta, o produto digital de 2000, que é hiper / intermidiático, mostra-se mais arrojado do que a obra impressa a que remete, lançada naquele mesmo ano. Por outro lado, o produto impresso pode ser comercializado e remunerado, retorno �nanceiro que não ocorre (ainda) à maioria dos sites brasileiros dedicados à literatura, cujo acesso é livre e gratuito, embora sua realização incida em custos com os quais precisam arcar seus proponentes. Não tendo rentabilidade, não inspira investimentos altos, o que talvez reduza as possibilidades de sua produção. Vale a pena debruçar-se sobre algumas questões: a disponibilização gratuita de sites remete a livros e autores enquanto marketing do produto impresso? O problema se resolveria com o lançamento de e-books, produto tão comercializável quanto o livro de papel? Pesquisas recentes, porém, têm revelado que ainda é incipiente o acesso às obras literárias via internet [38] e rarefeita a difusão, e consequente aquisição, de versões digitais de livros de autores brasileiros. [39] A resposta a essas questões certamente levará em conta ganhos e perdas: ganhos são literalmente os lucros a auferir pelos empresários e a remuneração a ser alcançada por autores, ilustradores, programadores, editores, revisores, en�m, os pro�ssionais envolvidos no processo de produção de sites e e-book. As perdas relacionam-se à redução das oportunidades de improvisação colocadas ao alcance do leitor-internauta. De todo modo, alargam-se as possibilidades de criação, circulação e acesso aos bens literários, sendo essas provavelmente as maiores vantagens, ao alcance de todos os usuários. http://www.ciberpoesia.com.br/ 5.2 Leo Cunha Também exemplar em relação ao emprego de recursos digitais na produção de literatura infantilé a home page de Leo Cunha. O autor disponibiliza em http://www.leocunha.jex.com.br/poemas+animados [40] quatro poemas, datados de 20 de agosto de 2011, que se apresentam em permanente movimento. Jesus Clips dispensa a linguagem verbal, utilizada apenas no título do poema, acessível na página do poeta. O texto vale-se da imagem de clipes, pequenos objetos de arame ou plástico, utilizados, usualmente, para prender folhas de papel. Na tela, vários clipes unidos formam a cruz em que Jesus Cristo foi sacri�cado. O substantivo comum clips substitui o nome próprio Cristo, facultando o trocadilho, que também remete a signi�cados mais contemporâneos do vocábulo, no universo da comunicação e da informação: os clips de notícias e os videoclipes. [41] Por outro lado, uma interpretação metalinguística pode ser igualmente acrescentada: no mundo em que o papel vem sendo substituído pela tela, o clipe não deixa de, da sua parte, também ser sacri�cado, como o Cristo na cruz. Gol de letra é outra produção de Leo Cunha extremamente inventiva. Nela predominam as cores verde e amarelo, alusão explícita ao apego nacional ao futebol. A composição vale-se da visualidade dos grafemas, ao transformar o “G”, que aparece deitado na imagem proposta, em uma baliza, com suas traves, por onde passa a bola, chutada pelo craque. [42] Em outro poema, Água, Leo Cunha vai um pouco mais longe. O título remete ao conteúdo do poema, que se constitui de uma sequência de palavras relacionadas a água: torneira, cascata, cachoeira e catarata, dispostas em diagonal na tela. As palavras mimetizam quedas d’água, avançando da mais simples à mais volumosa, efeito construído pelo diferente tamanho das fontes grá�cas, que aumentam à medida que os vocábulos remetem a volumes de água cada vez maiores, de “torneira” a “catarata”. Preserva-se ainda o recurso a rimas (torneira/cachoeira; cascata/catarata), tradicional em poemas impressos, embora sua realização maior ocorra na http://www.leocunha.jex.com.br/poemas+animados oralidade [43]. No mesmo sentido de sonorização, trabalha a repetição alternada de oclusivas, sibilantes e vibrantes. A �gura 5 mostra o momento �nal do processo: Leo Cunha Figura 5 Um último poema do sitede Leo Cunha compõe-se aparentemente de uma única frase: “A poesia se faz num piscar/pescar de olhos”. A alternância entre as palavras “piscar/pescar” fragmenta o período em duas orações que se substituem uma à outra pelo revezamento das vogais, que se dá por intermédio de movimento que simula a ação de piscar que o poema menciona. [44] Na alternância dos verbos que compõem o verso de onze sílabas, a rima entre as palavras que comutam pode ainda sugerir ações que remetem respectivamente ao poeta e ao leitor-internauta. Qualquer das duas interpretações sugere tanto o trabalho de seleção que preside à produção literária (“pescar”), quanto a volatilidade da tela e o caráter visual do poema em meio eletrônico (“piscar”). 5.3 Angela Lago O site www.angela-lago.com.br/Chapeuzinho.html hospeda proposta bastante criativa inspirada na clássica personagem de Chapeuzinho Vermelho, conhecida pelo público infantil desde a publicação das Histórias do tempo passado com moralidades, ou Contos da mamãe gansa (1697), de Charles Perrault (1628-1703). Em razão da extrema popularidade da personagem e de sua trajetória, a narrativa digital pode prescindir da reprodução do texto, invocando já na tela de abertura elementos principais do enredo. A história inaugura-se com a protagonista cantarolando La vie en rose (1946), de Edith Piaf (1915-1963) e Louis Gugliemi (1916-1991). A escolha da canção pode produzir interessantes efeitos de sentido. Trata-se, em primeiro lugar, de uma canção de temática adulta e de letra em francês, o que talvez limite o público capaz de lera inter/hipertextualidade da proposta. Estabelece-se ainda a associação entre a cor vermelha da indumentária da personagem e o título da melodia. Mas o fato de a letra da canção manifestar evidente conteúdo erótico [45] rati�ca interpretações dadas ao conto de Perrault, entendido como um ritual de iniciação à vida amorosa. [46] É, pois, de modo �gurativo que, nas telas do sitede Angela Lago, se desdobra a trama. Esta se desenvolve desde o momento em que a menina deixa sua casa, para visitar a avó, e a mãe a adverte dos perigos que poderá encontrar no caminho, até o �nal, quando o lobo é punido. A transcrição visual poderia não se mostrar original, se a narrativa se restringisse à repetição do enredo de antemão conhecido através de diferentes mídias como livros, cinema, teatro, televisão, quadrinhos e mesmo outros sites. Contudo, no trabalho de Angela Lago, o enredo sofre alterações profundas. A narrativa digital não confere ao caçador papel de herói. Pelo contrário: embora multiplicado em várias �guras masculinas absolutamente iguais e portando todas uma espingarda ao ombro, nenhuma delas ajuda http://www.angela-lago.com.br/Chapeuzinho.html Chapeuzinho. Temerosos face ao lobo, seguem direção contrária à da protagonista, como se vê na �gura 6. Angela Lago Figura 6 Tal reversão de expectativas acrescenta um per�l feminista à intriga, reiterando o protagonismo da menina. A essa mudança radical de foco, somam-se procedimentos que multiplicam o andamento da trama. Recursos digitais permitem que, a cada trecho da narrativa, o usuário faça opções que conduzem a ação a distintos desdobramentos. Na �gura 7, Chapeuzinho está diante de uma encruzilhada: a seta reta, de cor verde, aponta uma direção positiva, pois, se escolhida, a garota se depara com o lobo, a quem põe a correr, atacando-o com a cesta de comidas; a seta em ziguezague, cuja sinuosidade a assemelha uma serpente (podendo evocar, É para alguns leitores, a �gura da serpente que tentou Eva no Jardim do Éden), conduz a personagem ao trajeto do perigo, distraindo-a e permitindo ao lobo chegar antes dela à casa da avó. Angela Lago Figura 7 Esse procedimento repete-se ao longo da narrativa, facultando a eleição de percursos próprios, a partir de múltiplos roteiros, que reproduzem, no plano �gurativo, as virtualidades do hipertexto no âmbito verbal. Outro elemento bastante inventivo presente no enredo proposto por Angela Lago é o livro impresso, a que recorrem as personagens quando não sabem como se conduzir ou a que levarão suas escolhas. A �gura 8 ilustra a passagem. Angela Lago Figura 8 A presença do livro, no corpo de uma obra da qual a linguagem verbal está excluída, é signi�cativa: parece sugerir e encenar o diálogo de dois modos contemporâneos de existência da literatura. Atesta, além disso, a anterioridade da expressão verbal sobre a digital, explicitando um percurso histórico de que esta versão on-line de Chapeuzinho Vermelho é herdeira e tributária. Trata-se de uma inserção metalinguística – inter/hipertextual e dialógica – que enriquece o produto �nal e aponta para a importância do permanente trânsito entre os suportes de que a literatura se vale. [47] O desenvolvimento e difusão da informática parece ter encontrado na literatura infantil e juvenil – particularmente na fatia infantil do gênero – campo extremamente favorável à expansão da inventividade de seus criadores. Como a iniciação dos internautas à navegação hipertextual dá-se desde cedo, porque absorveram o “transletramento”, [48] supõe-se que a informática continuará, nos próximos anos, oferecendo à literatura sugestões originais para a produção artística, com resultados a serem observados inclusive no âmbito da cultura mais tradicional do livro. E como se faz presente, no universo do papel e tinta, a cultura de telas, teclados e links? 6. Entre as antigas fronteiras Tropeçavas nos astros desastrada Quase não tínhamos livros em casa E a cidade não tinha livraria Mas os livros que em nossa vida entraram São como a radiação de um corpo negro Apontando pra a expansão do Universo Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso (E, sem dúvida, sobretudo o verso) É o que pode lançar mundos no mundo. Tropeçavasnos astros desastrada Sem saber que a ventura e a desventura Dessa estrada que vai do nada ao nada São livros e o luar contra a cultura. Caetano Veloso [49] Como se vem observando, a introdução das novas tecnologias eletrônicas afeta a produção e a circulação da literatura. Não é, entretanto, apenas nesses novos suportes que a cultura digital se faz presente. Ela também invade o universo do livro, ao propor temas, ideias e procedimentos artísticos singulares. Um exemplo pode ser encontrado em Poesia visual, livro a que remete o endereço www.ciberpoesia.com.br, já mencionado. A obra impressa constitui-se de poemas em que se mesclam elementos textuais e �gurativos, como o reproduzido na �gura 9, que tanto aparece no site, como também faz parte do volume assinado por Sérgio Capparelli e Ana Cláudia Gruszynski. Observe-se que, se o salto é constituído por um desenho, a gáspea é formada por versos dirigidos à menina Carolina, em um cenário poético em que uma adolescente, cruzando uma praça �orida, atrai o olhar do sujeito http://www.ciberpoesia.com.br/ lírico, que confessa a ela seu sentimento amoroso. Os versos, embora mantendo o recurso à linguagem verbal, dispõem o escrito de maneira a conferir a ele também uma dimensão visual, de desenho. O mesmo poema mostra-se espelhado na página impressa (Figura 10), de modo que se apresenta um par de sapatos, mas as palavras, agora invertidas e expostas em fonte menor, tornam-se menos visíveis e, pela mesma razão, mais intimistas. [50] Sérgio Capparelli e Ana Cláudia Gruszynski Figura 9 Sérgio Capparelli e Ana Cláudia Gruszynski Figura 10 Na página 11 do livro, outro poema, mesclando texto, imagem e cor, evidencia como recursos distintos podem compor uma obra literária e intensi�car seus signi�cados (Figura 11). Sérgio Capparelli e Ana Cláudia Gruszynski Figura 11 Em livro, contudo, essas obras perdem o movimento e a interatividade, efeitos que a linguagem digital propicia. Impressos, os poemas contam com a materialidade do papel, o que acarreta a presença física mais concreta e imobilizada, não ultrapassando, porém, a bidimensionalidade e linearidade. Também resulta da interação entre produção literária e criação digital o livro de Sérgio Capparelli 33 ciberpoemas e uma fábula virtual que, embora circule em volume impresso, evoca, desde seu título, o mundo digital. No livro, elementos do mundo digital tornam-se matéria literária, oferecendo-se sob a forma de metáforas, temas e ideias. Ações como clicar, conectar, digitar ou imprimir aparecem nos versos de Quando, que também se vale do vocabulário da programação eletrônica e da formatação de textos para expressar o tema amoroso: Quando você me clica, quando você me conecta, me liga, quando entra nos meus programas, nas minhas janelas, quando você me acende, me printa, me encompassa, me sublinha, me funde e me tria: Meus caracteres esvoaçam, meus parágrafos se acendem, meus capítulos se reagrupam, meus títulos se põem maiúsculos, e meu coração troveja! [51] É também o mundo eletrônico que comparece ao poema Compatível: O CD-Rom formata o �m do dia entoando a Ave Maria de Schubert. [52] Por sua vez, um dos poemas inova a representação da �gura familiar da avóque, desde as coleções dirigidas às crianças, lançadas pela Livraria Quaresma, até a Biblioteca Infantil, da editora Melhoramentos, passando pela Poesias infantis (1904), de Olavo Bilac (1865-1918), protagoniza poemas e narrativas para leitores mirins: Se alguém seguir a luz, bem sei, vai logo descobrir vovó (tarde na noite, cedo na cidade) com os pássaros dos dedos pousando nas teclas, a tricotar um xale luminoso de 200MB de memória RAM. [53] Unidades de informação armazenáveis ou transmitidas na computação e de quanti�cação da memória virtual aparecem na condição de metáfora da energia existencial em Bits: Vem, amor, mata essa minha fome de chips, de vips, de bits e de bytes. Mata essa minha fome de ais. [54] São as instâncias de comunicação, como a mais popular delas, o e-mail ou correio eletrônico, que frequentam com assiduidade os textos literários que extraem sugestões do universo cibernético. Em Mensagem, Sérgio Capparelli não apenas menciona o recurso, como se vale dele para o trocadilho provocado pela semelhança fônica entre ‘e-mail’ e ‘meio’: Envio mensagens pelo e-mail e me respondes inteira: interativa super ativa superativa [55] Mensagens perdidas, por sua vez, re�ete sobre os limites da comunicação: Tenho pena dessas mensagens que se perdem pelo caminho e nunca chegam ao destino. Por causa de um engano por causa de um comando malsucedido. [56] Também Leo Cunha, cuja obra, como vimos, transita com desenvoltura no ciberespaço, aproveita, em Perdido no ciberespaço (2007), sugestões conceituais do mundo digital para expressar sentimento de perda e separação, tema clássico da poesia que, no caso de suas estrofes, e por meio da invocação de São Longuinho, articula-se com a menção a práticas e crenças populares: Veja o meu drama, amigo, ou amiga, estou perdido na Internet, fui �sgado pela rede, não encontro a saída. Maldita hora em que inventei de navegar por esses lados. Qualquer coisa deu errado, de uma hora pra outra tudo �cou escuro, tudo �cou estranho, já não sei meu paradeiro! Abre-te, página! Abre-te, Sésamo! Valha-me, São Longuinho! Eu já dei meus três pulinhos, mas não consigo me achar! [57] Da mesma forma que o e-mail, também blogsinspiram a formatação de obras literárias que aparecem no suporte livro. Novamente, nesse caso, a literatura se apropria de um procedimento da cultura virtual, incorporando-a no universo do impresso, como faz Luís Dill, em Todos contra D@nte, de 2008. O assunto da narrativa é o bullying praticado contra o Dante do título, aluno de uma escola de elite que não é aceito pelos colegas, por pertencer a uma classe média emergente e residir em zona suburbana da cidade, provavelmente Porto Alegre, a se julgar pelas indicações do texto e as expressões linguísticas empregadas pelas personagens. O assédio, brutal, acaba resultando na morte do garoto, e o enredo se concentra nos eventos posteriores à ação dos quatro adolescentes agressores que buscam escapar à punição, escondendo-se por trás do anonimato e da falta de testemunhas. A exposição da trama faz-se por meio de três tipos de discurso que ocupam as páginas ímpares do livro. Os diálogos, transcritos em 21 passagens, reproduzem as trocas de informações, por telefone (geralmente celular) ou pessoalmente, entre os agressores (a menina Manu e os garotos Cauã, Davi e James) e colegas de turma. Os diálogos são introduzidos por uma curta oração do narrador, que identi�ca os falantes; seguem-se conversas nas quais os agressores planejam como se proteger mutuamente. O segundo tipo de discurso reproduz as manifestações ofensivas e corrosivas dos membros da Comunidade Eu sacaneio o Dante (criada à época em que o Orkut era a rede social em evidência), composta por vários alunos, que rechaçam jovens provenientes de segmentos sociais mais humildes por meio do aviltamento de sua �gura física, família e caráter. O terceiro discurso, em primeira pessoa, é emitido pelo protagonista, que cria um blog em que dialoga imaginariamente com seu xará, o poeta �orentino Dante Alighieri (1265-1321), autor de A divina comédia, obra clássica do Renascimento italiano, escrita no século XIV e impressa no século XV. O blog tem teor eminentemente confessional, permitindo ao garoto falar dos problemas na escola, a paixão por Geovana, que considera a sua Beatriz, e da situação familiar. Esta caracteriza-se pela ausência do pai, o trabalho da mãe, que almeja ver o �lho bem sucedido nos estudos, e pelo apoio emocional e material manifestado por Ulisses, o irmão mais maduro e experiente. A esses três discursos soma-se uma quarta voz, exibida nas páginas pares, e anunciada por um vínculo, um link disponibilizado em algum dos outros três discursos. Ele permite o retrospectodos acontecimentos, quer este retrospecto se faça pela voz de um narrador onisciente, por uma citação (como as dos versos de Alighieri relembrados pelo Dante brasileiro), ou uma explicação, que esclarece os eventos mencionados nas páginas ímpares. Como se vê, a estrutura da obra aproveita sugestões do mundo da comunicação virtual. Comunidades, blogs, links são elementos do mundo digital, facultando a navegação entre páginas distintas. O ousado projeto grá�co da obra transforma-os em procedimentos narrativos e seus consequentes efeitos de sentido. A esses elementos o autor acrescenta recursos da linguagem literária, como o intertexto, ao introduzir o poema épico de Dante Alighieri. Concebendo o poeta de A divina comédia enquanto um dos fundadores da modernidade, o livro de Luis Dill une as pontas: valendo-se de recursos da linguagem digital, evoca a imagem do Inferno, ao modo como a Teologia cristã o concebe, inferno esse que o protagonista do livro, o menino Dante, vive diuturnamente. A oposição entre o conteúdo das páginas ímpares e das pares permite superar, ainda que não inteiramente, a bidimensionalidade de um livro impresso, uma vez que tenta esboçar a profundidade de campo que a linguagem digital propicia. Além disso, ao obrigar o leitor a voltar o olhar da página ímpar para a página par que a antecede, e não para a que a sucede, a técnica narrativa de Dill produz relevante modi�cação nos modos de percepção do texto impresso, cuja apreensão dá-se, no sistema da escrita ocidental, da esquerda para a direita. A página 27 reproduz o que conversam – e na ortogra�a em que escrevem, ainda que sem os sublinhados em azul que na tela indicam links – os participantes da Comunidade Eu Sacaneio o Dante. O leitor do livro é pilotado para retroceder à página anterior (p. 26). As duas próximas �guras reproduzem ambas as páginas: DILL, Luís. Todos contra Dante. Seguinte, 1ª edição, 2008 Figura 12 DILL, Luís. Todos contra Dante. Seguinte, 1ª edição, 2008 Figura 13 E que perspectivas abre essa superposição de fronteiras? 7. “Tudo ao mesmo tempo agora” Uma coisa de cada vez Tudo ao mesmo tempo agora Arnaldo Antunes [58] As novas ferramentas e linguagens da cultura digital abrem perspectivas inusitadas para o mundo do livro e da leitura. Inclusive para a literatura, o que evoca o polêmico disco dos Titãs de 1991, que repete ininterruptamente a contradição dos versos “uma coisa de cada vez / tudo ao mesmo tempo agora”. Ao longo deste capítulo, apontaram-se algumas das parcerias celebradas entre a cultura do impresso e a cultura digital, no que respeita às linguagens de que se podem valer a poesia e a prosa que se pretendem voltadas para leitura literária. Não é, no entanto, apenas na esfera da criação que os meios eletrônicos fazem parte do cenário literário contemporâneo. Eles parecem imprimir alterações profundas e amplas também nos modos de divulgação de obras e de autores. Os meios digitais podem ser uma porta que se abre sobretudo no caso de autores ainda não su�cientemente conhecidos ou de gêneros literários (como a poesia), cuja publicação em livro encontra resistência por parte de editoras de grande porte. Escritores notáveis, por sua vez, começam a manter blogs ativos como forma de se comunicar mais diretamente com seu destinatário (de que é exemplo o endereço http://paulocoelhoblog.com/), e inovam de forma instigante a relação com os leitores, quer adiantando o lançamento de obras, quer testando a reação do público diante de eventuais mudanças de rumo em suas criações artísticas. Nesta nova era que se inaugura para a literatura e para o livro, o mundo digital ocupa um lugar muito expressivo, metamorfoseando-se em formas distintas de apresentação, seja amalgamando-se ao impresso, seja substituindo- o. Vivemos, efetivamente, um cenário de transição e de superposição, em um horizonte de muitas questões e poucas certezas, materializado, de uma parte, em sites, e-readers e e-books, que reproduzem formas de livros; e, de outra, em livros formatados com a sintaxe de sites. Com tais traços, a literatura infantil parece desfrutar de invejável pioneirismo. Do relançamento de Lobato ao livro de Dill, os resultados que a literatura infantil brasileira vem atingindo hoje, por um lado, lhe são próprios, mas, por outro, podem bem servir de exemplo para suas coirmãs do campo criativo com a palavra e a imagem, a literatura tout court. O volume da produção de literatura infantil e não infantil reforça ou enfraquece esta hipótese? O peso dos números e das instituições O texto quando escreve Escreve Ou foi escrito Reescrito? O texto será reescrito Pelo tipógrafo / o leitor / o crítico; Pela roda do tempo? Sofre o operador: O tipógrafo trunca o texto. Melhor mandar à oficina O texto já truncado. Murilo Mendes [59] Debruçar-se sobre a produção e a circulação de literatura infantil e juvenil brasileira das últimas décadas do século XX e das primeiras do século XXI não se limita à discussão sobre o impacto de novas linguagens e novas mídiasna cultura literária do livro impresso. O universo tradicional do livro impresso, particularmente o que se destina a crianças e jovens, agregou, de forma lenta, porém irreversível, outros novos e importantes traços. Alguns destes, talvez, decorrentes de uma marca das últimas décadas: forte tendência à institucionalização e, a ela relacionada, a marcante presença do Estado através de políticas de incentivo à produção, circulação e consumo de obras literárias. Além de medidas governamentais em âmbito federal, estadual e municipal, inúmeras instituições de ensino superior, organizações não governamentais e similares aparelhos da sociedade civil são agentes bastante ativos no cenário da literatura infantil e juvenil brasileira de nossa época. Qual é o Brasil em que tais processos, resultados, efeitos e perspectivas ocorrem? 1. O mercado editorial Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho. Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos consentiram de boa vontade em contribuir para o desenvolvimento das letras nacionais. Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do “Cruzeiro”. Eu traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e poria o meu nome na capa. Paulo Honório [60] As décadas �nais do século XX e as primeiras do século XXI constituem um tempo particularmente eufórico para o Brasil. Na esteira de movimentos populares, ação armada, articulações políticas, em 1985 uma eleição para presidente, ainda que indireta, põe �m a uma ditadura militar de mais de vinte anos, iniciada com a deposição, em 1964, do presidente João Goulart (1919-1976). A posse de um presidente civil, José Sarney, dá-se em 1985. Uma nova constituição é votada em 1988 e, com ela, o país prepara-se, mais uma vez, para prosseguir sua lenta, inconclusa porém sempre teimosamente retomada, caminhada em direção a uma sociedade mais justa, a uma modernidade mais humana. A redemocratização, o�cializada em 1985, vem acompanhada de alterações de ordem econômica. A in�ação, constante e crescente nos anos 1980, é controlada a partir de 1994 com o Plano Real, que rebatiza e estabiliza a moeda nacional. O Estado brasileiro, por sua vez, passa a guiar-se pela cartilha neoliberal. A globalização impõe igualmente suas regras, e o Brasil entra na rota dos mercados capazes de atrair investimentos estrangeiros. Amplia-se o parque industrial do país, ao mesmo tempo em que se desenvolve a agroindústria. Os efeitos sociais desta política fazem-se sentir na primeira década do século XXI, aumentando a oferta de empregos e estendendo-a a segmentos sociais até então marginalizados do mercado de trabalho. Nesse cenário, tem lugar nova explosão urbana, e a oferta de escolarização alcança faixas maisamplas da infância e da juventude. Uma população politicamente mais amadurecida reivindica maiores investimentos em educação, saúde e segurança, bem como melhor aparelhamento urbano no âmbito do saneamento, transporte público, meio ambiente e cultura. O comércio de bens de consumo prospera, e fortalece-se uma nova classe média que, depois de um longo período de arrocho, pode bene�ciar-se das facilidades de �nanciamento para aquisição de bens menos ou mais duráveis, como eletrodomésticos e casa própria. Um tal cenário se manifesta em todas as áreas sociais e afeta profundamente a cultura em seus processos e produtos. Afeta de maneira especí�ca distintas modalidades artísticas, mas mexe com todas. Da pintura à dança, da música ao teatro e ao cinema multiplicam-se projetos públicos de apoio à produção estética, e proliferam espaços e eventos que favorecem a circulação de criações artísticas e seu consumo. No que respeita à literatura, cresce consideravelmente o número de livros impressos, em especial das obras – didáticas e literárias – destinadas a crianças e jovens. Livros para crianças e jovens exibem espetacular desenvolvimento quantitativo e qualitativo, propondo, desdobrando e consolidando novas formas de produção e difusão. Os quadros a seguir, organizados a partir de levantamentos da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e do Sindicato Nacional de Editores de Livros (SNEL), registram o aumento do número de obras dirigidas ao público infantil e juvenil. Embora tais dados sejam, desde 1992, [61] levantados anualmente, nem sempre se mantêm constantes as categorias em torno das quais eles se agrupam. Acresce a este embaraço a pouca autocon�ança das autoras quando transpõem as fronteiras do mundo das letras para o dos números. No entanto, a decisão de arriscar algumas discussões fundadas em cifras foi tomada em função da já mencionada indissociabilidade – a partir de um certo ponto – entre quantidade e qualidade. O primeiro quadro dá conta da população brasileira nas últimas décadas. O segundo, da produção de livros no Brasil em diferentes anos do século XXI. A oscilação dos números encontrados em diferentes fontes, se não invalida as re�exões aqui propostas (e acreditamos que não as invalida), relativiza a objetividade que os desfamiliarizados com algarismo costumam atribuir a eles. QUADRO I - POPULAÇÃO BRASILEIRA Ano POPULAÇÃO 1980 118.5 (milhões) [62] 1990 143.3 (milhões) [63] 1991 146.825.475 [64] 2000 165.5 (milhões) [65] 2010 186.5 (milhões) [66] 2014 202.7 ( milhões) 2015 204.4 ( milhões) QUADRO II [67] - PRODUÇÃO DO SETOR EDITORIAL BRASILEIRO (Primeira edição e reedições) PRODUÇÃO Ano Títulos Exemplares 2002 39.800 338.700.000 2003 35.590 299.400.000 2010 54.754 492.579.094 2011 58.192 499.796.286 2012 57.473 485.261.331 2013 62.235 467.835.900 2014 60.829 501.371.513 2015 52.427 446.848.571 Fonte: SNEL – Sindicato Nacional de Editores de Livros [68] QUADRO III - VENDAS ANO TÍTULOS EXEMPLARES 1990 22.479 239.392.000 1995 40.503 330.834.320 2000 45.111 329.519.650 2005 41.528 306.463.687 2010 54.754 492.579.094 Fonte: SNEL – Sindicato Nacional de Editores de Livros [69] O próximo quadro discrimina o número de títulos editados nas áreas de didáticos, paradidáticos, infantis e obras destinadas ao público adulto. Importa assinalar a falta de nitidez entre as fronteiras que pretendem estabelecer a distinção entre uma e outra categoria. QUADRO IV - TÍTULOS EDITADOS 1990 1995 2000 2005 2010 INFANTIL - 5.791 3.776 2.768 - JUVENIL - 3.026 4.065 1.730 - INF + JUV 4.890 8.817 7.841 4.498 3.539 ADULTA 3.356 2.089 2.628 5.399 - DIDÁTICOS 2.163 13.104 9.640 15.965 - 2011 2012 2014 2015 INFANTIL - 7.047 7.802 6.783 JUVENIL - 3.964 6.783 3.952 INF + JUV 3.508 11.011 14.585 10.735 ADULTA - 5.863 6.563 4.841 DIDÁTICOS - 10.276 8.801 9712 Tabela construída com base nos dados constantes de relatórios O comportamento do setor editorial brasileiro, de anos diversos (FIPE, CBL, SNEL) O quadro V registra os exemplares editados em cada categoria. QUADRO V - EXEMPLARES EDITADOS 1990 1995 2000 2005 2010 INFANTIL 31.941.520 39.916.745 26.125.767 14.205.773 26.500.755 JUVENIL - 13.169.185 7.964.627 8.172.365 43.790.281 INF + JUV 31.941.520 53.085.930 34.090.394 22.378.138 70.291.036 ADULTA 28.896.440 - 8.568.078 24.906.597 39.652.617 DIDÁTICOS 104.308.640 193.736.323 196.223.729 171.531.776 230.208.962 2012 2013 2014 2015 INFANTIL 32.030.337 39.269.715 37.259.612 12.499.466 JUVENIL 15.383.065 20.315.473 20.085.348 11.277.437 INF + JUV 47.413.402 59.585.188 57.344.960 23.776.903 ADULTA 37.870.478 43.342.414 48.491.769 31.649.010 DIDÁTICOS 214.250.244 195.575.296 211.518.868 219.390.259 Tabela construída com base nos dados constantes de relatórios O comportamento do setor editorial brasileiro, de anos diversos (FIPE, CBL, SNEL) Como já apontado, nem sempre é muito nítida a identidade das categorias em torno as quais se desenham as pesquisas a partir das quais os quadros até aqui propostos foram montados. Contudo, elas evidenciam que a produção de literatura infantil e juvenil quase sempre supera a da literatura destinada ao público adulto. Tais dados mostram que o processo de encorpamento da literatura infantil e juvenil, iniciado a partir dos anos 1970, foi levado adiante e fortalecido, fazendo com que livros para crianças e jovens passassem a representar fatia cada vez maior do mercado. Observa-se, no mesmo sentido, que é o livro didático – parente próximo do livro de literatura infantil e juvenil, por circularem ambos, em grande parte dos casos, entre o mesmo público – que lidera, com ampla vantagem, esse mercado. Que consequências acarreta essa con�guração do mundo dos livros? 2. A profissionalização dos agentes da cadeia do livro Andam todos curiosos por ler as tais Memórias da Emília, que não saem nunca. Como vão elas? Emília, toda ganjenta com o elogio – respondeu – rebolando-se: - Vão indo bem, muito obrigada. Mas devagar. Meu secretário (o Visconde) briga muito comigo e faz greves. Eu ordeno: “Escreva isto”. Ele, que é um “sabugo ensinado”, escandaliza-se. “Oh, isso não! É impróprio”. E vem o “fecha” e o livro vai atrasando… Monteiro Lobato [70] O mundo editorial brasileiro do século XXI, expresso inicialmente pelos dados numéricos até agora apresentados, é moderno e globalizado. Sua modernidade supõe distintas instâncias: editoras, distribuidoras, livrarias convencionais e on-lineonde atuam e interagem pro�ssionais com funções diferenciadas, entre os quais se contam escritores, capistas, ilustradores, editores de texto, revisores etc. Tudo, é claro, em função do leitor, consumidor da mercadoria por eles fabricada. Esse conjunto de pro�ssionais compõe a chamada cadeia do livro. A denominação é originária da economia, e seu emprego tende a retirar a produção do livro – inclusive o literário – da esfera de um único indivíduo. A percepção da importância da cadeia do livroenfraquece a concepção de literatura, durante um bom tempo subscrita e chancelada pelos estudos literários, centralizada exclusivamente na �gura do autor, nos recursos textuais por ele agenciados e nos sentidos por ele (presumidamente) pretendidos. Sabe-se hoje que o autor não está sozinho em cena, pois presencia-se o que parece ser um irreversível movimento de pro�ssionalização por parte dos participantes da cadeia do livro. O novo cenário afeta desde os artistas (escritores e ilustradores) até os envolvidos com a circulação do produto �nal, como agentes literários, divulgadores e gestores culturais responsáveis por políticas de difusão da leitura (professores, bibliotecários, contadores de histórias, críticos literários), cujo papel de mediadores é destacado na maioria dos discursos e projetos voltados para livros e formação de leitores. Se essas personagens responsabilizam-se pela mediação entre obras e públicos, na relação autor/obrafazem-se presentes pro�ssionais nem sempre evidentes em outras instâncias do sistema literário.
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