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CAPÍTULO 00. Sem Família Hector Malot Título original SANS FAMILLE HECTOR-HENRI MALOT nasceu em La Boullle (França) em 20 de Maio de 1830, fez os seus Primeiros estudos em Ruão, indo cursar Direito em Paris onde se empregou nO cartório dum notário, quando completou O Curso. Em breve abandonou a carreira política Para se dedicar Inteiramente à literatura. o seu Primeiro romance, Les Amants, publicado em 1859, obteve um ruidoso êxito. SEguiram-se-lhe Les EPOux (1865) e Les Enfants (l866), que, com aquele, vieram formar a trilogia a que deu o nome de Víctimes d'amour. A sua carreira de romancista foi larga e brilhante. Publicou entre Outros os seguintes romances: Romain Kalb (1869), Madame obernin (1870), La Belle Madame Dionis (1873), tendo conquistado a juventude com o romance Sans famille (1878), a que se seguiu En famille (1893). Foi crítico literário do Jornal Opinion Nationale e gozou em vida de uma grande popularidade. Em 1896 publicou o seu último livro, Roman de romans, este de autobiografia, e retirou-se da vida literária. Escreveu, porém, para publicação depois da sua morte, o romance petit MOusse, destinado à sua neta. Faleceu em POnllaYssous-BOIB a 17 de Julho de 1907. LISBOA Índice I. Na aldeia........................11 II. Um pai adoptivo..................19 III. A companhia do Signor Vitalis....28 IV. Deixando a casa..................39 V. A Caminho.........................48 VI. A minha estreia..................54 VII. Aprendo a ler..................65 VIII. Por montes e vales.......................72 IX. Encontro o gigante das botas de sete léguas75 X. Perante a justiça.................81 XI. Em barco.........................92 XII. O meu primeiro amigo...........110 XIII. Enjeitado.....................121 XIV. Neve e lobos...................129 XV. O Senhor Joli-coeur.............146 XVI. Chegada a Paris................158 XVII. As pedreiras de Gentilly......164 XVIII. Lise.........................170 XIX. Jardineiro.....................182 XX. Dispersão da família............189 Segunda parte I. Para a frente....................207 II. Uma cidade enfarruscada.........226 III. Aprendiz.......................233 IV. A inundação.....................238 V. Na ladeira.......................250 VI. Libertação......................259 VII. Uma lição de música............271 VIII. A vaca do Príncipe............281 IX. A mãe Barberin..................299 X. A antiga e a nova família........313 XI. Barberin........................319 XII. Investigações..................331 XIII. A Família Driscoll............343 XIV. Honrarás pai e mãe-............355 XV. «Capi» prevertido...............364 XVI. As belas roupinhas enganam.....370 XVII. O tio de Artur................376 XVIII. Vésperas de Natal............381 XIx. Os receios de Mattia...........386 XX. Bob.............................403 XXI. O cisne........................412 XXII. As belas roupinhas falaram verdade..............422 XXIII. Em família...................432 CAPÍTULO 01. NA ALDEIA. Sou enjeitado. Mas até aos oito anos Imaginei ter mãe como as outras crianças, pois,- quando eu chorava, uma mulher me estreitava nos seus braços, embalando-me com tanta ternura que as minhas lágrimas deixavam de correr. Nunca me deitava na cama sem que essa criatura me viesse beijar, e, quando o vento de Dezembro arrojava a neve contra os vidros embaciados, aquecia-me os pés ao calor das suas mãos, enquanto trauteava uma canção, de cuja música e letra me recordo ainda. Nas ocasiões em que eu apascentava a nossa vaca ao longo dos caminhos arrelvados ou nas charnecas, e que era surpreendido pela chuva, corria ela ao meu encontro e forçava-me a abrigar sob a saia de lã, que arregaçava, e com que me cobria a cabeça e os ombros. ,Por tudo Isto e muito mais coisas ainda, pela maneira como me falava, pelas suas carícias e pela forma como olhava para mim, pela doçura, dos ralhos, eu imaginava que era minha mãe. Eis como cheguei a saber a verdade: A minha aldeia, ou, para melhor dizer, a aldeia onde fui criado-porque eu não tinha terra natal, como não tinha pai nem mãe - a aldeia enfim onde passei a infância, chama-se Chavanon; é uma das mais pobres do centro da França. O solo não é profundo, e, para produzir boas colheitas, seriam precisos adubos ou substâncias que faltam na terra. Por isso há (ou pelo menos havia na época de que falo) um diminuto número de campos cultivados, ao passo que se vêem por toda a parte extensas charnecas onde só crescem urzes e giestas. Para encontrarmos belas árvores é preciso descermos até às margens dos ribeiros onde, em nesgas de prado, se desenvolvem grandes castanheiros e carvalhos vigorosos. É numa dessas depressões de terreno, à beira dum regato que vai misturar as suas águas rápidas num dos afluentes do Loire, que se ergue a casa onde passei parte da infância. Até aos oito anos nunca vi nenhum homem naquela habitação; contudo minha mãe não era viúva; mas o marido, que exercia a profissão de pedreiro, como muitos outros operários da região, trabalhava em Paris e não voltara à terra depois de eu estar em idade de ver e compreender o que me rodeava. Apenas de tempos a tempos ele mandava notícias por qualquer companheiro que regressava à aldeia. - Sr.a, Barberin, o seu homem continua de saúde; encarregou-me de lhe dizer que tudo vai bem, e pediu-me que lhe entregasse o dinheiro; aqui está, quer contá-lo? E nada mais. A mãe Barberin contentava-se com isto: o marido estava de saúde, o trabalho rendia, ele ia ganhando a vida. Pelo facto de Barberin se haver demorado tantos anos em Paris, não se depreenda daí que se desse mal com a mulher. A ausência nada tinha a ver com a questão de desacordo. Conservava-se longe da companheira porque o trabalho assim o exigia. Num dia de Novembro, ao cair da tarde, um desconhecido parou em frente da cancela do nosso quintal. Eu estava no limiar da porta da casa,. ocupado em partir achas de lenha. olhando-me por cima da paliçada, o homem perguntou-me se era ali que morava a sr.a Barberin. Mandei-o entrar. Impeliu a cancela e, a passos lentos, aproximou-se. Nunca eu vira criatura tão enlameada: cobriam-no dos pés à cabeça manchas de terra, umas ainda húmidas, outras já secas, e percebia-se por tudo aquilo que andara durante muito tempo por caminhos Intransitáveis. Ao som das nossas vozes a mãe Barberin acorreu e deu de cara com o desconhecido na altura em que este chegava à porta. - Trago notícias de Paris -disse ele. Eram as singelas palavras que mais de uma vez tínhamos ouvido, mas o tom com que foram pronunciadas em nada se parecia com aquele que noutras ocasiões acompanhava as frases: «O seu homem está de saúde; tudo continua bem». - Ah! Meu Deus! - exclamou a mãe Barberin juntando as mãos. - Aconteceu uma desgraça a Jerónimo. -Pois é verdade. Não se aflija, porque ele não morreu. Mas talvez fique estropiado. Por enquanto está no hospital. Fui seu companheiro de enfermaria, e, porque eu voltava para a terra, pediu-me que lhe contasse o sucedido quando passasse por cá. Não posso demorar-me, porque tenho ainda de palmilhar três léguas e já é quase noite. A mãe Barberin, que desejava saber pormenores, pediu ao recém-vindo que ficasse para a ceia. Partiria no dia seguinte de manhã. ohomem sentou-se a um canto da lareira e, enquanto comia, ia contando como o desastre acontecera: Barberin ficara meio esmagado num desmoronamento de andaimes; e, pelo facto de terem provado que ele estava indevidamente no local onde fora ferido, o empreiteiro recusava pagar-lhe qualquer indemnização. - O pobre Barberin tem pouca sorte - acrescentou ele. - Há para aí malandros que encontrariam logo naquele caso uma fonte de dinheiro; mas o seu marido não arranjará nada. E, secando as calças que se tornavam rígidas sob a camada de lama endurecida, ia repetindo: «pouca sorte», com uma compaixão tão sincera que dava a entender que de bom grado se deixaria aleijar só com a esperança de arranjar assim bons rendimentos. - Todavia - disse ele, concluindo a narrativa - aconselhei-o a processar o empreiteiro. - Um processo! Isso é muito dispendioso! - Pois sim, mas quando se ganha... A mãe Barberin quereria ir a Paris, mas era coisa terrível essa viagem tão longa e tão cara. Na manhã seguinte fomos à aldeia consultar o pároco. Este foi de opinião que ela não devia partir sem saber se seria útil ao marido. Escreveu ao capelão do hospital onde Barberin estava, e dias depois recebeu uma resposta em que o outro dizia que a mãe Barberin não fosse, mas que enviasse certa soma ao marido porque ele queria pôr uma demanda ao empreiteiro. Passaram-se dias e semanas, e de tempos a tempos chegavam cartas pedindo novas remessas de dinheiro; a última, mais exigente que as anteriores, dizia que, se as economias estivessem esgotadas, seria necessário vender a vaca para arranjar a Importância precisa. Aqueles que viveram na aldeia COM OS Camponeses sabem quanta miséria e angústia encerram estas três palavras: «Vender a vaca». Para o naturalista, a vaca é um animal ruminante; para o turista, é um complemento de paisagem, quando ergue acima das ervas o focinho húmido de orvalho; para a criança citadina, é a origem do queijo e do café com leite; mas para o camponês é tudo quanto há de melhor. Por muito pobre que seja e embora tenha família numerosa, possui a certeza de não morrer de fome enquanto houver uma vaca no seu estábulo. Com uma corda ou mesmo com um simples esparto em volta dos chifres, é levada por uma criança ao longo dos caminhos cobertos de ervas, onde a pastagem não pertence a ninguém. E à noite a família Inteira tem manteiga na sopa e leite para tomar: o pai e a mãe, os filhos, tanto OS grandes como os pequenos, todos enfim se sustentam da vaca. Vivíamos tão bem da nossa, a mãe Barberin e eu, que até então eu quase nunca comera carne. Mas não só nos alimentava como era também uma camarada, uma amiga - Porque a vaca não é um animal estúpido; pelo contrário, é cheio de inteligência. ela é fértil em qualidades morais que se desenvolvem ainda mais se a habituarmos ao nosso trato. Em suma, estimávamo-la e ela estimava-nos. Contudo foi preciso separarmo-nos, pois somente pela «venda da vaca» podíamos satisfazer Barberin. Veio um negociante, e, depois de haver examinado bem a Ruça, depois de a tactear durante muito tempo, meneando a cabeça com ar descontente, e de dizer e repetir mais de cem vezes que não lhe convinha, que era um animal miserável que lhe não daria ganho na revenda, que não produzia leite, acabou por declarar que ficava com a vaca, mas só por caridade, para obsequiar a Sr.a Barberin, que era boa criatura. A pobre Ruça, como se compreendesse o que se passava, não quis sair do estábulo e principiou a mugir. - Vai por detrás e põe-na cá para fora - disse-me o negociante de gado, entregando-me o chicote que trazia consigo. - Assim, não - objectou a mãe Barberin. Segurando a vaca pela correia, falou-lhe docemente: - Vamos, minha bichinha, vamos. E a Ruça não resistiu mais; uma vez na estrada, o homem amarrou-a às traseiras do carro e ela lá foi, bem ou mal, seguindo o cavalo. Entrámos em casa. Mas ouvíamos ainda os seus mugidos. Nunca mais houve leite nem manteiga. De manhã, um bocado de pão; à tarde, batatas com um pouco de sal. Tempos depois da venda da Ruça, chegou a terça-feira de Entrudo; no ano precedente a mãe Barberin fizera-me nesse mesmo dia um banquete de coscorões e sonhos; eu comera-os e apreciara-os tanto, que ela ficara toda contente. Mas então tínhamos a Ruça que produzia o leite e a manteiga para adicionarmos à farinha. Já não havia Ruça, nem leite, nem manteiga, nem terça-feira de Carnaval: era isto que eu dizia, muito tristemente, com os meus botões. Contudo, a mãe Barberin fez-me uma surpresa; se bem que não fosse hábito seu recorrer às vizinhas, pediu a uma delas uma chávena de leite, a outra um pouco de manteiga, e, quando ao meio-dia entrei em casa, encontrei-a a deitar farinha num grande tacho de barro. - Olha! Farinha! - disse eu, aproximando-me. - O que se faz com a farinha? - interrogou a mãe Barberin, olhando para mim. - Pão. - E que mais? - Caldo. - E além disso? - Ora... Não sei. - Sabes, sim; mas como és bom rapazinho não te atreves a dizê-lo. E sabes que hoje é o dia em que se fazem os coscorões e os sonhos. Como não há agora em casa nem manteiga nem leite, não me queres falar nisso. Não é verdade? - Oh! mãezinha! - Como eu já adivinhava tudo isso, arranjei as coisas de maneira que a terça-feira de Entrudo não fizesse má figura. Vê o que está no armário. Abri-o vivamente e vi a xícara de leite, manteiga, ovos e três maçãs. - Dá-me os ovos - disse-Me ela - e, enquanto os quebro, descasca as maçãs. Cortei a fruta em fatias, e, entretanto, ela deitou os ovos na farinha e pôs-se a bater tudo, misturando de tempos a tempos uma colher de leite. Depois da massa pronta, a mãe Barberin colocou o tacho sobre as cinzas quentes, e nada mais fizemos senão esperar pela tarde, pois era à ceia que devíamos comer os sonhos e os coscorões. Para falar verdade, devo confessar. que o dia me pareceu comprido e mais duma vez fui levantar a roupa que abafava o tacho. - Tanto queres fazer que a massa não levedará - dizia-me a mãe Barberin. Mas afinal levedou bem, e aqui e ali viam-se bolhas que vinham rebentar à superfície. Daquela mistura em fermentação exalava-se o cheiro agradável de ovos e leite. - Parte umas cavacas - ordenava ela. - Precisamos de lume bem ateado e sem fumo. Enfim a candeia foi acesa. - Deita lenha no lume! - disse-me a mãe Barberin. Não foi necessário que ela me repetisse as palavras que eu tão impacientemente esperava. Bem depressa uma grande chama se elevou na lareira espalhando na cozinha a sua luz vacilante. Então a mãe Barberin desprendeu da parede a frigideira e pô-la ao fogo. - Dá-me a manteiga. Tirou um pedacinho na ponta da faca e deitou-a na frigideira, onde se derreteu crepitando. No entanto, por muito atento que eu estivesse àquele som tão simpático, pareceu-me ouvir passos no quintal. Quem poderia ser àquela hora? Talvez uma vizinha para nos pedir lume. Não me preocupei com isso, porque a mãe Barberin, que mergulhara a colher no tacho, acabara de deitar na frigideira um pedaço da massa, e não era altura própria de haver distracções. Alguém bateu com um pau na porta, que, a seguir, se abriu bruscamente. - Quem é? - perguntou a mãe Barberin, sem se voltar. Um homem entrara, e a claridade das chamas, incidindo nele, mostrou-me que estava vestido com uma camisa branca e que tinha na mão um grosso cajado. - Temos banquete? Não se incomodem - disse ele, rudemente. - Ah! Meu Deus! - exclamou a mãe Barberin, descansando a caçarola no chão. - Pois és tu, Jerónimo? E, segurando-me pelo braço, empurrou-me para o desconhecido, que se detivera no limiar da porta. - É o teu pai. CAPÍTULO 02. UM PAI ADOPTIVO. APROXIMEI-ME para o beijar por minha vez, mas, coma ponta do cajado, ele deteve-me. - Quem é aquele? Disseste-me... - Sim... mas não era verdade, porque... - Ah! não era verdade, não era verdade! Deu alguns passos para mim com o bordão erguido, e, instintivamente, recuei. Que fizera eu? Em que era culpado? Porquê aquele acolhimento quando Ia beijá-lo Não tive tempo de considerar estas perguntas que se apresentaram ao meu espírito perturbado. - Vejo que festejam a terça-feira de Carnaval - disse ele. - Calha bem, porque tenho uma fome levada da breca. Que há para a ceia? - tou a fazer coscorões. - Isso sei eu; mas não vais dar coscorões a um homem que calcorreou dez léguas. - Não há mais nada: não te esperávamos. - O quê?! Nada para a ceia? Olhou em redor: - Temos manteiga - disse ele. Levantou os olhos para o sítio do tecto onde antigamente se dependurava o toucinho; mas havia muito tempo que o gancho estava sem nada; da trave só pendiam enfiadas de alhos e cebolas. - E aqui estão cebolas - acrescentou, deitando abaixo algumas com a ponta do bordão. - Quatro ou cinco cebolas, um bocado de manteiga e teremos uma bela sopa. Tira daí os teus coscorões e faz um estrugido. Tirar os coscorões da caçarola A mãe Barberin não replicou. Pelo contrário, apressou-se a cumprir as ordens do marido, enquanto este se sentava no banco, ao canto da lareira. Não me atrevia a sair do lugar para onde o cajado me forçara a ir; apoiado contra a mesa, eu contemplava o homem. Teria talvez uns cinquenta anos, a cara era dura e desagradável; em consequência da ferida, via-se obrigado a conservar a cabeça inclinada sobre o ombro direito e essa disformidade contribuía para o seu aspecto pouco tranquilizador. A mãe Barberin substituíra o tacho que estava ao lume. - É com essa migalha de manteiga que vais fazer a sopa? - perguntou ele. E, agarrando no prato onde se encontrava a manteiga, deitou-a toda na caçarola. Acabara-se a manteiga, já não havia coscorões. Em qualquer outra ocasião, ter-me-ia afligido por semelhante catástrofe, mas já não pensava em coscorões nem em sonhos, e a única coisa que me preocupava era que aquele homem, que parecia tão mau, fosse meu pai. «Meu pai, meu pai!» repetia eu, maquinalmente. Quisera beijá-lo e ele repelira-me com a ponta do cajado. Porquê? A mãe Barberin nunca me afastava quando eu a ia beijar; pelo contrário, estreitava-me nos braços e apertava-me de encontro a si. - Em vez de ficares aí especado - disse-me ele. - vai buscar os pratos. Apressei-me a obedecer. A sopa estava pronta. A mãe Barberin serviu-a. Sentia-me tão inquieto, tão perturbado, que não podia comer, e contemplava-o também, mas furtivamente, baixando os olhos quando encontrava os seus. - Não costuma comer mais do que isto? - perguntou de súbito o homem, apontando-me com a colher. - Ah! sim, come bem. - Tanto pior; se ao menos não engolisse nada... Como é natural, eu não tinha desejo de falar, e a mãe Barberin parecia tão disposta como eu para conversas: andava cá e lá em volta da mesa, atenta, a servir o marido. - Então não tens fome? - perguntou-me. - Não. - Pois bem! Vai-te deitar, e trata de dormir já, senão zango-me. A mãe Barberin lançou-me uma olhadela em que me aconselhava a obedecer sem replicar. Mas esta recomendação era inútil, pois eu não pensava em revoltar-me. Como na maioria das casas dos camponeses, a cozinha servia também de quarto de dormir. Junto da lareira estava tudo o que era preciso para comer: a mesa, a arca do pão, o aparador; na outra extremidade, o necessário para dormir; num ângulo, a cama da mãe Barberin; no canto oposto, a minha, que se achava numa espécie de armário rodeado duma cortina de linho vermelho. Despi-me rapidamente e deitei-me. Mas dormir, isso era outra coisa. Não se dorme para obedecer a uma ordem: dorme-se porque se tem sono e porque se está tranquilo. Ora, eu não tinha sono e não estava tranquilo. Sentia-me terrivelmente atormentado e ainda por cima muito infeliz. O quê?! Pois aquele homem era meu pai! Então porque me tratava tão rudemente? Com a cara voltada para a parede, esforçava-me por expulsar estas ideias e adormecer conforme me fora ordenado; mas era impossível; o sono não vinha; nunca eu me sentira tão desperto., Ao fim de certo tempo, ouvi que se aproximavam da minha cama. Pelos passos lentos, que se arrastavam, pesados, reconheci logo que não era a mãe Barberin. Um hálito quente chegou até mim. - Dormes? - perguntou uma voz sufocada. Abstive-me de responder, pois as terríveis palavras: «senão zango-me» soavam ainda aos meus ouvidos. - Ele dorme - disse a mãe Barberin. - Logo que se deita, adormece; é o seu costume; podes falar sem receio de que o petiz te oiça. Sem dúvida, eu deveria dizer que não dormia, porém não me atrevia a isso; haviam-me mandado dormir; eu não dormia, portanto estava a ser desobediente. - Em que ficou o teu processo? - perguntou a mãe Barberin. - Perdido! Os juizes decidiram que eu me colocara indevidamente debaixo dos andaimes e que o empreiteiro nada me tinha a pagar. Dizendo isto, o homem deu um murro sobre a mesa e pós-se a vociferar, proferindo palavras Insensatas. - Perdi o processo, - continuou ele daí a pouco, - perdi o dinheiro, fiquei aleijado e na miséria. Como se não fosse bastante, ao entrar em casa encontro uma criança! Explicar-me-ás porque não fizeste o que te disse? - Não se abandona assim uma criança que criámos com o nosso leite e de quem gostamos. - Não era teu filho. - E quando eu quis fazer o que tu pedias, precisamente nessa altura, ele adoeceu. - Adoeceu? - gim, caiu de cama. E não era a ocasião própria para o levar para o asilo, podia morrer, pois não é verdade? -E quando ficou curado? - É que não se curou logo. A seguir àquela doença veio outra: o pobre pequeno tossia que metia dó. - Mas depois? - O tempo foi passando. Se eu esperara até aí, nada importava esperar mais. - Que idade tem o garoto agora? - Oito anos. - Pois bem! Irá aos oito anos para onde devia ter ido antes, embora lhe custe mais! - Ah! Jerónimo, não farás isso. - Não farei isso! Quem mo impedirá? Imaginas que poderemos tê-lo sempre connosco? Houve um momento de silêncio que aproveitei para respirar; a comoção apertava-me a garganta a ponto de me sufocar. Um instante depois, a mãe Barberin replicou: - Ah! Como Paris te modificou. Não falarias assim antes de sair daqui. - Talvez. Mas o certo é que, se Paris me fez mudar, também me estropiou. Como ganhar a vida agora, a tua e a minha? Já não temos dinheiro. Vendemos a vaca. E quando não há que comer, temos de alimentar uma criança que não é nossa? - É meu filho. - É tanto teu como meu. Não é filho de camponeses. Examinei-o durante a ceia: é franzino, magro, de braços e pernas delgados. -É o pequeno mais bonito da região. - Não digo o contrário. Mas não é forte. Quem consegue ser trabalhador com uns braços daqueles? Não passa de um menino da cidade, e disso não precisamos aqui. - Digo-te que é bom rapazinho, esperto como um rato e de bom coração. Trabalhará para nós. - Entretanto, trabalhamos para ele, e eu já não posso fazer nada. -Se os pais o reclamam, que dirás? - Os pais! Tem ele, por acaso, pais? Se os tivesse, tê-lo-iam procurado, e encontrado com certeza, de há oito anos para cá. Ah! fiz uma bela tolice em imaginar que o pequeno tinha pais que o reclamariam e nos pagariam o incómodo de o haver criado. Não passei dum estúpido, dum ingénuo. Lá porque estava embrulhado em belas roupas arrendadas, isto não significava que os pais o procurassem. E talvez morressem. - E se estão vivos? Se um dia vêm buscá-lo? Tenho cá na minha ideia que virão. - Ora, mandamo-losao asilo. E basta de conversa. Amanhã levo-o ao administrador. Agora vou cumprimentar o Francisco. Dentro duma hora estarei de volta. A porta abriu-se e tornou a fechar-se. Ele fora-se embora. Então, soerguendo-me rapidamente, chamei a mãe Barberin. - Oh! mamã! Acorreu para junto da minha cama. - Vai deixar-me ir para o asilo? - Não, meu filho, não. Beijou-me ternamente e estreitou-me nos braços. Aquela carícia deu-me coragem e as lágrimas deixaram de correr. - Então não dormias? - perguntou-me ela docemente. - Não tenho culpa. - Não estou a ralhar; nesse caso, ouviste o que disse Jerónimo? - Ouvi: não é minha mamã, mas ao menos ele não é meu pai. Pronunciei estas últimas palavras em tom diferente das primeiras, porque, se estava desolado por ela não ser realmente minha mãe, sentia-me feliz, quase orgulhoso, em saber que não era filho dele. A mãe Barberin não pareceu prestar atenção a isso. - Deveria, talvez, ter-te dito a verdade; mas considerava-te tanto meu filho, que não tinha coragem de te declarar que não era a tua verdadeira mãe. A tua mãe, pobre pequeno, ninguém a conhece, compreendes? Estará viva, ou morta? Não o sabemos. Uma manhã, em Paris, quando Jerónimo ia para o trabalho e passou numa rua a que chamam a avenida Breteuil - rua larga e cheia de árvores - ouviu o choro duma criança. Parecia partir do vão duma porta de jardim. Estávamos no mês de Fevereiro; amanhecia. Jerónimo aproximou-se e viu uma criancinha deitada na soleira da porta. Olhou em volta para chamar alguém e distinguiu um homem que saía detrás duma árvore, fugindo. Sem dúvida esse homem escondera-se para ver se encontravam o pequenito que ele próprio ali colocara. Jerónimo sentiu-se atrapalhado. E enquanto pensava no que havia de fazer, chegaram outros operários e decidiram levar ao comissariado a criança, que não parava de gritar. Naturalmente tinha frio. Então despiram-na em frente do fogão aceso. «Era um lindo menino de cinco a seis meses, rosado, forte, gordo; as faixas e as roupas que o envolviam faziam crer que seria filho de gente rica. Talvez uma criança roubada, que depois abandonassem». Foi isto que o comissário explicou. Que destino lhe Iam dar? O comissário escreveu tudo o que Jerónimo sabia, e também a descrição da criança juntamente com a das roupinhas que não estavam marcadas, e a seguir declarou que ia enviá-la ao asilo dos enjeitados, se ninguém, entre os que ali haviam comparecido, quisesse tomar conta dela. Os pais certamente a iam procurar, recompensariam generosamente aqueles que a tivessem tomado a seu cargo. Jerónimo avançou então e disse que ficava com o petiz; entregaram-lho. Eu tinha justamente um filho da mesma Idade; não havia complicação para mim em amamentar dois. Foi assim que me tornei tua mãe. - Oh! mamã! - Ao fim de três meses, perdi o meu filho, e ainda te fiquei com mais amizade. Cheguei a esquecer que não eras realmente nosso filho. Infelizmente Jerónimo não o esqueceu, e, vendo ao fim de três anos que ninguém te procurava, ou, pelo menos, que ninguém te encontrava, quis pôr-te no asilo. Ouviste há pouco por que razão lhe não obedeci. - Oh! não quero ir para o asilo! - exclamei, agarrando-me a ela. - Mãe Barberin, peço-lhe que não me mande para o asilo! - Não, meu filho, não irás. Arranjarei as coisas. Trabalharemos e trabalharás também. - Farei tudo o que quiser, mas não quero ir para o asilo. - Não irás; mas com uma condição, é que vais dormir Já. Quando ele entrar não deve encontrar-te acordado. Depois de me ter beijado, ela voltou-me a cara para a parede. Eu bem queria dormir; mas ficara muito abalado para que pudesse encontrar facilmente a calma e o sono. Assim, a mãe Barberin, tão boa, tão meiga para mim, não era a minha verdadeira mãe! Que seria: então uma mãe autêntica? Melhor, mais meiga ainda? oh! não achava possível! Porém, o que eu compreendia, o que sentia, era que um pai teria sido menos severo do que Barberin, e não me olharia com aqueles olhos duros e de cajado erguido. Queria ele mandar-me para o asilo; a mãe Barberin poderia Impedi-lo? Havia na aldeia dois rapazes a quem chamavam os «pequenos do asilo»; usavam uma rodela de chumbo ao pescoço, com um número; andavam mal vestidos e sujos; troçavam deles; as outras crianças perseguiam-nos muitas vezes como quem persegue um cão vadio, para se divertir. Ah! Eu não queria ser como aqueles pequenos; não queria ter um número ao pescoço, não queria que corressem atrás de mim, gritando: «Vai para o asilo! Vai para o asilo!». Esta Ideia dava-me calafrios e fazia-me bater os dentes, E não dormia. Barberin Ia voltar. Felizmente, não regressou tão depressa como dissera, e o sono chegou antes dele. CAPÍTULO 03. A COMPANHIA DO SIgnOR VITALI DURANTE a manhã, Barberin nada me disse, e eu principiava a acreditar que fora abandonado o projecto de me mandarem para o asilo. Mas, quando soou meio-dia, Barberin ordenou-me que pusesse o barrete e o seguisse. Assustado, volvi os olhos para a mãe Barberin a fim de lhe implorar socorro; disfarçadamente fez-me sinal de que devia obedecer; ao mesmo tempo um gesto da sua mão tranquilizou-me; não havia nada a temer. Então, sem replicar, pus-me a caminho atrás de Barberin. Da nossa casa à aldeia a distância é longa; é preciso andar mais de uma hora. Passou-se essa hora sem que ele me dirigisse uma única palavra. Aonde me levaria? Esta pergunta inquietava-me, apesar do gesto animador da mãe Barberin; e, para escapar a um perigo que eu pressentia sem o conhecer, pensava em fugir. Com este fim, tratei de retardar o passo; quando estivesse bastante afastado, atirar-me-ia para um fosso, e o homem não poderia apanhar-me. De começo, Barberin limitou-se a dizer-me que andasse mais depressa; mas, depois, adivinhou, sem dúvida, as minhas intenções e agarrou-me pelo pulso, Foi assim que entrámos na aldeia. Quando atravessámos a rua, em frente dum café, um sujeito que estava à porta chamou Barberin e convidou-o a entrar. Este, agarrando-me pela orelha, fez-me Ir à sua frente, e, uma vez dentro do estabelecimento, fechou a porta. Senti-me aliviado; o café não me parecia um lugar perigoso; e, além disso, sempre era uma casa onde há muito tempo eu tinha desejos de penetrar. O café, o café da estalagem Notre-Dame! Que poderia ser aquilo? Quantas vezes fizera a mim mesmo esta pergunta! Vira gente sair dali, de cara avermelhada e pernas trémulas; ao passar em frente da porta ouvira, em muitas ocasiões, gritos e canções que faziam estremecer os vidros. Que faziam lá dentro? Que acontecia por detrás Daquelas co rtinas vermelhas? Ia sabê-lo. Enquanto Barberin se instalava a uma mesa do café com o dono, que o convidara a entrar, fui sentar-me perto do fogão e olhei em redor. No canto oposto àquele que ocupava, achava-se um velho alto de barba branca, vestido de forma tão estranha como eu nunca vira. Sobre os cabelos, que tombavam em compridas madeixas até aos ombros, tinha um chapéu de feltro cinzento, de copa alta e guarnecido de penas verdes e vermelhas. Envolvia-lhe o busto uma pele de carneiro, cuja lã estava para o lado de dentro. Esse abafo não tinha mangas, e, por dois buracos saiam-lhe os braços cobertos de veludo, outrora azul. Polainas de lã subiam-lhe até aos joelhos, e eram apertadas com fitas vermelhas que se entrecruzavam em volta das pernas. Estava reclinado na cadeira, com o queixo apoiado na mão direita; o cotovelo descansava sobre o joelho dobrado. Junto dele três cães aqueciam-se, imóveis; um cão de água, branco, outro negro e uma cadelinha cor de cinza, de ar inteligente e meigo; o cão branco tinha na cabeça um velho boné de polícia preso sob o focinho por uma tira de coiro. Enquanto eu examinava o velho com espanto e curiosidade, Barberin e o dono do café conversavama meia voz e ouvi que falavam de mim. Barberin contava que viera à aldeia para me levar ao administrador, a fim de que este pedisse aos asilos que pagassem uma pensão para ele continuar a ter-me em casa. Fora Isto então que a mãe Barberin conseguira obter do marido; compreendi logo que, se Barberin achasse vantagem em conservar-me junto de si, eu já nada tinha a recear. O velho, disfarçadamente, escutava também o que os outros diziam; de súbito, apontando-me com a mão direita e dirigindo-se a Barberin, perguntou com acento estrangeiro: - É aquele petiz que o atrapalha? - Ele próprio. - E Imagina que a administração dos asilos do seu departamento lhe vai pagar as mensalidades da alimentação? - Ora essa! Visto que ele não tem pais e está a meu cargo, parece-me ser justo que alguém pague as despesas. - Pois bem! Creio que jamais obterá a pensão que deseja. - Então, irá para o asilo; não há nenhuma lei que me obrigue a ficar com ele na minha casa se eu não quiser. - Talvez houvesse um meio de se livrar já do rapaz - disse o velho, depois dum momento de reflexão - e até de ganhar algum dinheiro. - Se o senhor me der esse meio, pago-lhe de boa vontade uma garrafa. - Encomende a garrafa, e o negócio está feito. - Palavra? O velho, deixando a cadeira, veio sentar-se em frente de Barberin. Coisa esquisita, no momento em que se levantou, a pele de carneiro ergueu-se com um movimento incompreensível: era de crer que ele tivesse um cão sob o braço esquerdo. - O que você deseja - disse o velhote. - é que esta criança não se alimente mais tempo à sua custa, não é verdade? Ou então, que lhe paguem, não é assim? - Exactamente; porque... - Oh! o motivo não me Interessa, não preciso conhecé-lo; basta-me saber que não quer o garoto; se é isto, dê-mo, tomo conta dele. - Dá-lo! - Ora essa! não quer desembaraçar-se do petiz? - Dar-lhe uma criança como aquela, um pequeno tão perfeito, pois é uma perfeita criança, repare. - Já reparei. - Remi! Vem cá. Aproximei-me da mesa, trémulo. - Vamos, não tenhas medo, menino - disse o velho. - Olhem para ele - continuou Barberin. - Não digo que seJ a uma criança feia. Se fosse feia eu não a queria, os monstros não são a minha Especialidade. - Ah! se fosse um monstro de duas cabeças, ou ao menos um anão... Não pensaria em mandá-lo para o asilo. Sabe muito bem que um monstro tem valor e que se pode tirar proveito dele, explorando a própria monstruosidade. Mas este não é anão nem monstro; tem uma figura como toda a gente e portanto não serve para nada. - Serve para trabalhar. - É muito débil para isso. - Ele, débil! Ora adeus! Repare, veja as pernas: já viu algumas mais direitas? E Barberin arregaçou-me as calças. - Excessivamente delgadas - replicou o velho. - E os braços? - continuou Barberin. - São como as pernas; poderá resistir a uma vida normal, mas não resistirá à fadiga e à miséria. - Ele, não resistir?! Mas apalpe-o, ande, apalpe-o. O velho passou-me a mão descarnada nas pernas, tacteando-as, sacudindo a cabeça e fazendo uma careta. Eu assistira já a uma cena semelhante quando o negociante de gado fora comprar a nossa vaca. Examinara-a também e apalpara-a. Meneara também a cabeça e fizera uma careta de desdém: no entanto, comprara-a e levara-a consigo. O velho iria comprar-me e levar-me? Ah! mãe Barberin, mãe Barberin! Desgraçadamente ela não estava ali para me proteger. - É uma criança como há muitas - disse o velho-, - eis a verdade; mas uma criança das cidades: por isso há a certeza de que nunca servirá para os trabalhos do campo. Ponha-o em frente da charrua, a conduzir os bois, verá quanto tempo ele durará. - Mas repare bem no garoto! Eu estava na extremidade da mesa entre Barberin e o velho, que me empurravam ora para um, ora para outro. - Enfim - disse o estrangeiro -, fico com ele tal qual é. Porém, bem entendido, não o compro, alugo-o. Dou-lhe vinte francos por ano. - Vinte francos! - É um bom preço, e pago adiantado; recebe quatro belas moedas de cem soldos e livra-se do pequeno. - Mas, se fico com ele, o asilo pagar-me-á mais de dez francos por mês. - Sete ou oito, eu conheço os preços, e ainda por cima terá de o alimentar. - Ele trabalhará. - Se o achasse capaz de trabalhar, não quereria desembaraçar-se do rapaz. - Em qualquer caso, sempre teria os dez francos. - E se o asilo, em vez de o deixar consigo, o entregar a outro, você não terá absolutamente nada; enquanto que comigo não arrisca coisa nenhuma: o seu único incómodo é estender a mão. Vasculhou na algibeira e sacou uma bolsa de coiro, da qual tirou quatro moedas de prata que pôs sobre a mesa, fazendo-as tinir. - Mas imagine - exclamou Barberin, - que os pais do pequeno aparecem de um dia para outro! - Que importa? - Seria proveitoso para aqueles que o tivessem criado; se eu não contasse com isso, nunca me encarregaria dele. Estas palavras de Barberin: «se eu não contasse com os pais, nunca me encarregaria dele», fizeram-me detestá-lo mais. - E é Justamente porque já não conta com isso - disse o velho - que o quer pôr na rua. E a quem se dirigirão esses pais, se chegarem a aparecer? A si, não é verdade, e não a mim, que não conhecem? - Pode acontecer que o senhor os encontre. - Nesse caso, convenhamos que, se um dia aparecerem os pais, dividiremos o lucro, e lhe dou mais trinta francos. - Ponha quarenta. - Não, pelos serviços que me prestará, Isso não é possível. - E que espécie de serviços quer o senhor que ele lhe faça? O Interpelado olhou para Barberin com ar finório, e, esvaziando o-copo aos golinhos, disse: - Será meu companheiro; sinto-me velho, e, às vezes, depois de um dia de fadiga, quando o tempo está mau, assaltam-me ideias tristes; o petiz distrair-me-á. - Lá para esse fim, as pernas serão bastante sólidas. - Talvez não muito, pois terá de dançar, saltar e caminhar; em suma, fará parte da companhia do signor Vitalis. - E onde está essa companhia? - O signor Vitalis sou eu, como já deve ter calculado; os actores, vou-lhos apresentar, visto desejar conhecê-los. Dizendo isto, abriu a pele de carneiro e agarrou num animal estranho que tinha sob o braço esquerdo, de encontro a si. Aquele bicho é que fazia levantar frequentemente a pele de carneiro; mas não era um eãozinho como eu pensara. Ignorava o nome daquele animal esquisito que eu via pela primeira vez e para quem olhava com estupefacção. Estava vestido com uma blusa vermelha debruada de galão dourado, mas os braços e as pernas mostravam-se nus, pois pareciam realmente braços e pernas o que ele tinha, e não patas; mas a pele era negra em vez de branca e rosada. Possuía uma cabeça também preta, do tamanho do meu punho fechado, face curta e larga, nariz arrebitado de narinas afastadas e lábios amarelos; mas o que mais me impressionou foram os olhos, muito próximos um do outro, duma grande mobilidade, brilhantes como espelhos. - Ah! Que feio macaco! - exclamou Barberin. Estas palavras dissiparam-me o espanto, pois, se eu nunca vira macacos, ouvira já falar deles; não era pois uma criancinha preta que tinha na minha presença, mas um macaco. - Eis o primeiro actor da minha companhia - disse Vitalis - o sr. Joli-Coeur. Joli-Coeur, meu amigo, cumprimenta a sociedade. Joli-Coeur levou a mão fechada aos lábios e atirou-nos um beijo. - Agora - continuou Vitalis, designando o cão branco - aqui está outro: o signor Capi vai ter a honra de apresentar os seus amigos aos estimáveis presentes. A esta ordem, o cão, que até aí não fizera o mais pequeno movimento, levantou-se vivamente e, erguendo-se nas patas traseiras, cruzou as da frente sobre o peito e cumprimentou o dono, de tal maneira que o boné de polícia roçou o solo. Uma vez cumprido este dever de cortesia,voltou-se para os companheiros, e, com uma pata, enquanto a outra se conservava sobre o peito, fez sinal para que se aproximassem. Os outros dois cães, que tinham os olhos fitos naquele, levantaram-se logo, e, com as patas dianteiras unidas, como se fossem pessoas de mão dada, avançaram gravemente uns seis passos, depois recuaram e saudaram os circunstantes. - Aquele a que chamo Capi - continuou Vitalis - ou Capitano em italiano, é o chefe dos cães; é ele que, como mais inteligente, transmite as minhas ordens. Este jovem elegante de pêlo negro é o signor Zerbino, o que significa garboso, nome que ele merece em absoluto. Quanto a esta criaturinha de ar modesto, é a signora Dolce, uma encantadora inglesa que não desmerece o seu doce nome. É com estas personagens, a diversos títulos notáveis, que tenho a fortuna de percorrer o mundo, ganhando a vida mais ou menos bem ao sabor da sorte. Capi! O cão branco cruzou as patas. - Capi, venha cá, meu amigo, e seja bastante amável, para dizer que horas são a este rapazinho, que o observa com olhos tão redondos como bolas. Capi descruzou as patas, aproximou-se do dono, afastou a pele de carneiro, vasculhou a algibeira do colete, tirou dali um grande relógio de prata, olhou para o mostrador e ladrou duas vezes distintamente. e, a seguir aos dois latidos muito acentuados, fortes e nítidos, soltou outros três mais fracos. - Muito bem - disse Vitalis. - agradeço-lhe, signor Capi. E, agora, peço-lhe que convide a signora Dolce a nos dar o prazer de dançar um bocadinho na corda. Capi procurou outra vez na algibeira do casaco do dono e sacou dali uma corda. Fez sinal a Zerbino e este colocou-se rapidamente na sua frente. Então Capi atirou-lhe uma ponta da corda e os dois puseram-se gravemente a fazê-la girar. Quando o movimento se tornou regular, Dolce precipitou-se no círculo e saltou ligeiramente, conservando os belos olhos meigos fitos nos do dono. - Como vêem - disse este. - os meus alunos são inteligentes; porém, a inteligência só é apreciada em todo o seu valor pela comparação. Aí está porque introduzo o garoto na companhia; fará o papel de estúpido, e a inteligência dos outros actores será mais apreciada. - Oh! Para fazer de estúpido... - interrompeu Barberin. - É preciso não o ser na realidade - continuou Vitalis. - E já vamos ver se ele é ou não inteligente. Se é, compreenderá que acompanhando o signor Vitalis terá a dita de viajar, de percorrer a França e outros países, de levar uma vida livre. Se não é inteligente, chorará, gritará, e, como o signor não gosta de crianças más, não o levará consigo. Então a criança má irá para o asilo, onde é preciso trabalhar e comer pouco. Eu tinha inteligência suficiente para compreender estas palavras, mas da compreensão à execução havia uma terrível distância a transpor. Evidentemente que os alunos do signor Vitalis eram muito engraçados, e devia ser muito divertido viajar com eles; mas para isso seria necessário deixar a mãe Barberin. É verdade que, se eu recusasse, talvez não ficasse com ela, talvez me mandassem para o asilo. Como ficasse perturbado, de lágrimas nos olhos, Vitalis bateu-me docemente na cara com a ponta dos dedos. - Vamos - disse ele-, o garoto compreende, visto que não grita; a razão entrará nesta cabecinha, e amanhã... Agora - continuou - voltemos ao negócio. - Não, quarenta. Entabulou-se uma discussão. Vitalis, porém, interrompeu-a: - O pequeno deve estar maçado aqui. Que vá passear e brincar para o quintal da estalagem. Ao mesmo tempo fez um sinal a Barberin. - Sim - disse este-, vai para o quintal, e não voltes sem que eu te chame, senão zango-me. Só me restava ir, sem replicar. Fui então para fora, mas sem desejos de brincar. Sentei-me numa pedra e pus-me a reflectir. Era a minha sorte que se decidia nesse instante. Qual o meu destino? o frio e a angústia faziam-me tiritar. A discussão entre Vitalis e Barberin durou muito tempo, pois decorreu mais de uma hora sem que nenhum deles aparecesse. Por fim Barberin surgiu, sózinho. Viria buscar-me para me entregar a Vitalis? - Vamos - disse-me ele. - Voltemos para casa. A casa! Então eu não abandonaria a mãe Barberin? Quereria interrogá-lo, mas não me atrevia, pois ele parecia estar de muito mau-humor. O percurso fez-se silenciosamente. Mas, uns dez minutos antes de chegarmos, Barberin, que caminhava à frente, parou. - Olha - disse-me agarrando-me rudemente pela orelha-, - se contas uma única palavra do que ouviste hoje, pagá-lo-ás caro; tem cautela. CAPÍTULO 04. DEIXANDO A CASA. - ENTÃO? - perguntou a mãe Barberin quando entrámos.- Que disse o administrador? - Não o vimos. - O quê?! Não o viste? - Não, encontrei uns amigos no café Notre-Dame, e quando saímos era já muito tarde; voltaremos amanhã. Assim, Barberin havia renunciado ao seu negócio com o homem dos cães... Todavia, apesar das ameaças, falaria das minhas incertezas à mãe Barberin, se me tivesse podido encontrar sozinho com ela; mas em toda a noite Barberin não saiu, e eu deitei-me sem que se me apresentasse a ocasião esperada. Adormeci dizendo de mim para mim que ficariam as confidências para o dia seguinte. Mas, de manhã, quando me levantei, não vi a mãe Barberin. Como eu a procurasse em redor da casa, Barberin perguntou o que é que queria. - A mamã? - Foi à aldeia e só regressará depois do meio dia. Sem saber porquê, aquela ausência inquietou-me. Ela não me dissera na véspera que ia sair. Por que razão não esperara para nos acompanhar, visto que devíamos ir à aldeia de tarde? O coração oprimiu-se-me com um vago receio. Barberin contemplava-me com ar pouco tranquilizador; querendo escapar a esse olhar, fugi para o quintal. O quintal, que não era grande, tinha para nós um valor considerável, pois, à excepção do trigo, fornecia-nos quase todo o alimento: batatas, favas, couves, nabos, cenouras. Não havia um bocado de terreno perdido. Mas a mãe Barberin reservara-me um cantinho no qual eu reunira uma infinidade de plantas, arrancadas, de manhã, na orla dos bosques, ou ao longo das sebes, enquanto a vaca pastava, e metidas depois à terra, no meu jardim. Estava ajoelhado no chão, quando ouvi uma voz rude chamar por mim. Era Barberin. Apressei-me a entrar em casa. Qual não foi a minha surpresa ao ver, em frente da chaminé, Vitalis e os cães! Instantâneamente compreendi o que queria Barberin de mim: Vitalis vinha buscar-me, e, para que a mãe Barberin não pudesse defender-me, Barberin mandara-a de manhã à aldeia. Sentindo que não tinha a esperar socorro nem piedade de Barberin, corri para Vitalis: - Oh! meu senhor - exclamei eu-, por amor de Deus não me leve consigo! Desatei em soluços. - Vamos, meu rapaz - disse-me ele com brandura. - não serás infeliz comigo. Não bato em crianças, e além disso, terás a companhia dos meus actorzinhos que são muito divertidos. De que podes ter saudades? - Oh! meu senhor - exclamei eu, - por amor de Deus não ne leve consigo! Sou filho Da mãe Barberin! , Em qualquer caso, não ficarás aqui - objectou Barberin, agarrando-me brutalmente pela orelha. - Ou o asilo ou aquele senhor; escolhe! - Não! A mãe Barberin! - Ah! Já me aborreces - exclamou Barberin, encolerizado. - Se é preciso pôr-te daqui para fora à pancada, é o que vou fazer. - O pequeno tem pena de deixar a sua mãe Barberin - disse Vitalis. - Não lhe deve bater por Isso; tem sentimentos, é bom sinal. - Se o senhor o lastima, ele vai berrar mais alto. agora, vamos aos negócios. E Vitalis poisou na mesa oito moedas de cinco francos que Barberin, num Instante, fez desaparecer na algibeira. - Onde está a trouxa? - perguntou Vitalis. - Ei-la - respondeu Barberin mostrando-lhe un lenço de algodão azul, sarapintado,amarrado pelas quatro pontas. Vitalis desfez os nós e olhou para o conteúdo do lenço; encontravam-se ali duas das minhas camisas, e umas calças de linho. - Não era isto que tínhamos combinado - observou Vitalis. - Devia dar"me as roupas dele, e eu só vejo trapos. -O pequeno não tem outras. - Se eu o interrogasse, estou certo de que diria que isso é falso. Mas não quero discutir este assunto. Não tenho tempo. É preciso pormo-nos a caminho. Vamos, meu rapaz. Como se chama ele? - Remi. - Vamos,,,Remi, segura na tua trouxa, e passa para a frente. Capi marcha! Estendi as mãos para o velho, depois para Barberin, porém os dois voltaram a cabeça, e senti que Vitalis me agarrava pelo pulso. Foi necessário partir. Ah! pareceu-me, quando transpus o limiar da porta, que deixava naquela casa um bocado de mim próprio. Olhei em redor; os meus olhos, obscurecidos pelas lágrimas, não viram ninguém a quem pedir socorro; ninguém na estrada, ninguém ali perto. Principiei a chamar. -Mamã, mãe Barberin! Nem um único som respondeu à minha voz, e ela extinguiu-se num soluço. Tive de seguir Vitalis, que não me largara o pulso. - Boa viagem! - gritou Barberin. E entrou em casa. Ai de mim! tudo acabara. - Vamos, Remi, caminhemos, meu filho - disse Vitalis. Então comecei a andar ao lado dele. Felizmente não apressou o passo, e creio até que o regulou pelo meu. O caminho que seguíamos elevava-se em ziguezagues; a cada volta, distinguia a casa da mãe Barberin, que ia diminuindo, diminuindo. Bastantes vezes fizera eu este percurso e sabia que, no último desvio, veria ainda a casa. Por sorte a subida era extensa; contudo, tanto andámos que chegámos ao alto. Vitalis não me largara o pulso. - Não quer descansar um bocadinho? - sugeri eu. - De boa vontade, meu rapaz. Pela primeira vez, descerrou a mão. Mas, ao mesmo tempo, vi o seu olhar dirigir-se para Capi, e fazer um sinal que este compreendeu. Imediatamente, como um cão de pastor, Capi abandonou a chefia dos companheiros e veio colocar-se atrás de mim. Esta manobra acabou de me dar a perceber o que o sinal já me havia indicado: Capi era o meu guarda; se eu fizesse um movimento para fugir, ele deveria saltar-me às pernas. Fui sentar-me no parapeito arrelvado e Capi seguiu-me de perto. Uma vez ali instalado, procurei, com os olhos enevoados de lágrimas, a casa da mãe Barberin. Abaixo de nós, ficava a encosta que acabáramos de subir, dividida por prados e bosques, e, no fundo, erguia-se, isolada, a casa, onde eu fora criado. Apesar da distância e da altura a que nos achávamos, as coisas conservavam as formas nítidas e distintas, apenas diminuídas. Tudo estava no lugar do costume: o meu carrinho de mão, a minha charrua feita dum ramo torneado, a gaiola onde eu criava coelhos, quando possuíamos coelhos, e o meu jardim, o meu querido jardim! Quem veria florir as minhas pobres flores? Quem comeria os meus topinambos? Sem dúvida Barberin, o cruel Barberin. Mais um passo na estrada e tudo desapareceria para sempre. De súbito, no caminho que da aldeia vai ter a casa, distingui ao longe uma touca branca. Desapareceu por trás dum renque de árvores, depois tornou a aparecer. Era tal a distância que eu só via a alvura da touca, semelhante a uma borboleta primaveril de cores desmaiadas, adejando entre os ramos. Mas há momentos em que o coração vê melhor e mais longe do que olhos perscrutadores: reconheci a mãe Barberin. Era ela, tinha a certeza; sentia que era ela. - Então? - Perguntou Vitalis. - Vamos pôr-nos a caminho? Não respondi, continuava a olhar. Era a mãe Barberin, a sua touca, o seu saiote azul; era ela. Caminhava a passos largos, como se tivesse pressa de entrar em casa. Ao chegar à cancela, empurrou-a e entrou no quintal, que atravessou rapidamente. No mesmo instante, pus-me de pé sobre o parapeito, sem pensar em Capi, que saltou para junto de mim. A mãe Barberin não se demorou muito tempo em casa. Saiu e principiou a correr dum lado para outro, no quintal, de braços abertos. Procurava-me. Curvei-me para a frente e gritei com todas as forças. - Mamã! Mamã! Mas a voz não podia descer, nem dominar o murmúrio do regato: perdeu-se no ar. - Que tens? - perguntou Vitalis. - Endoideceste? Sem responder, continuei com os olhos fixos na mãe Barberin; ela, porém,. sem saber-me tão perto de si, não pensava em erguer a cabeça. Atravessara o quintal, voltara para o caminho e olhava para todos os lados. Gritei mais alto, mas, como na primeira vez, inutilmente. Então, Vitalis, suspeitando a verdade, subiu também para cima do parapeito. Não lhe foi preciso muito tempo para que visse a touca branca. - Pobre pequeno - disse a meia voz. - Oh! por favor - exclamei eu, animado por aquelas palavras de compaixão - deixe-me voltar para trás. Mas Vitalis agarrou-me pelo pulso e fez-me descer para a estrada. - Visto que Já descansaste - disse ele - marcha agora, meu rapaz! Quis desprender-me; o velho segurava-me fortemente. - Capi! - gritou ele. - Zerbino! Os dois cães cercaram-me: Capi atrás, Zerbino à frente. Ao fim de alguns passos, virei a cabeça. Havíamos já ultrapassado o cume do monte, e já não vi o vale nem a nossa casa; apenas ao longe colinas azuladas pareciam subir até ao céu. Os meus olhos perderam-se no infinito. CAPÍTULO 05. A CAMINHO. VITALIS, por uma rara excepção nos mercadores de crianças, não era mau homem. Bem depressa tive a prova disso. Fora no alto do monte que separa o Loire do estuário do Dordogne que ele me retomara a mão, e, quase a seguir, havíamos começado a descer a vertente exposta ao sul. Depois de termos andado cerca de um quarto de hora, Vitalis largou-me o braço. - Agora - disse ele-caminha devagar ao meu lado. Mas não te esqueças que, se quisesses fugir, Capi e Zerbino apanhavam-te; têm os dentes aguçados. Fugir! Eu sentia que era impossível, e, por consequência, inútil tentá-lo. Suspirei. - Estás triste - continuou Vitalis. - Compreendo e não te quero mal por isso. Podes chorar livremente, se tens esse desejo. Mas lembra-te que não é para tua infelicidade que te levo comigo. Qual seria o teu destino? Muito provavelmente, irias para o asilo. As pessoas que te criaram não são teus pais. A tua mamã, conforme dizes, foi boa para ti e tu sentes-te desgostoso por deixá-la, tudo isso é natural; mas reflecte que ela não poderia ficar contigo contra a vontade do marido. Aliás esse homem talvez não seja tão cruel como imaginas. Não tem de que viver, está aleijado; já não pode trabalhar, e não vai deixar-se morrer de fome para te alimentar. Compreendes, meu rapaz, que a vida é a maior parte das vezes uma batalha onde não realizamos o que queremos. Sem dúvida, o que ele dissera eram palavras de sabedoria, ou pelo menos de experiência. Contudo, havia um facto que, neste momento, gritava mais alto do que todos: a separação. Não veria mais aquela que me criara, me acarinhara, aquela que- eu amava tanto. E esta ideia apertava-me a garganta, sufocava-me. - Vê - disse-me Vitalis, apontando-me para a charneca - como seria inútil tentares fugir. Capi e Zerbino apanhar-te-iam logo. Fugir! Já não pensava nisso. E para onde? Para casa de quem? E talvez aquele velho alto, de barba branca, não fosse tão terrível como eu imaginara de começo; se era meu patrão, possivelmente não seria um patrão cruel. Caminhámos durante muito tempo no meio de tristes ermos e não vendo em redor senão algumas colinas distantes, de cumes estéreis. Era a primeira vez que marchava assim, continuamente, sem descansar. O patrãoavançava com passo regular, levando Joli-Coeur no ombro ou sobre o saco, e a seu lado os cães trotavam sem se afastarem. De tempos a tempos Vitalis dizia-lhes uma palavra amiga, em francês, ou numa linguagem que eu não conhecia. Nem ele nem os outros pareciam fatigados. Porém não acontecia o mesmo comigo. Sentia-me esgotado. Arrastando os pés, a custo, seguia o meu patrão. No entanto não me atrevia a pedir que parasse. - São os tamancos que te fatigam - disse-me ele. -Em Ussel comprar-te-ei sapatos. Estas palavras deram-me coragem. De facto, eu sempre desejara ardentemente uns sapatos. O filho do administrador e o do estalajadeiro possuíam sapatos, de maneira que, ao domingo, ao chegarem à missa, deslizavam nas lajes sonoras, enquanto nós outros, camponeses, com os nossos tamancos, fazíamos um barulho ensurdecedor. - Ussel é ainda muito longe? - Aí está um grito de alma -observou Vitalis, rindo. - Tens então muita vontade de ter uns sapatos, pequeno? Pois bem! Eu tos prometo, com pregos na sola. E prometo-te também umas calças de veludo, um casaco e um chapéu. Espero que isto te seque as lágrimas e te dê força nas pernas para fazermos as seis léguas que nos faltam. Sapatos com pregos por baixo! Fiquei deslumbrado. Eram já uma coisa prodigiosa para mim, aqueles sapatos; mas, quando ouvi falar de pregos, esqueci todo o desgosto. Sapatos, sapatos ferrados! calças de veludo! casaco! chapéu! Ah! se a mãe Barberin me visse, como ficaria contente e orgulhosa da minha pessoa! Apesar dos sapatos e das calças de veludo que estavam a seis léguas de distância, parecia-me que não poderia andar até tão longe. O céu, azul à nossa partida, enchia-se a pouco e pouco de nuvens cinzentas, e bem depressa caiu uma chuva fina que não mais parou. - Constipas-te facilmente? - perguntou o meu patrão. - Não sei, que me lembre nunca estive constipado. - Bem, bem; decididamente há boas coisas em ti. Mas não quero expor-te inutilmente; hoje não Iremos mais longe. Ali adiante há uma aldeia, pernoitaremos lá. Não havia estalagem nessa aldeia, e ninguém quis receber a espécie de mendigo que levava consigo um pequeno e três cães, tão enlameados uns como outros. - Aqui não é albergue - diziam-nos. E fechavam-nos a porta na cara. Íamos duma casa para outra sem que nenhuma se abrisse. Seria preciso, então, palmilhar sem repouso as quatro léguas que nos separavam de Ussel? A noite descia, a chuva gelava-nos e eu sentia as pernas tão rígidas como estacas. Ah! a casa da mãe Barberin! Por fim, um camponês, mais caritativo do que os vizinhos, consentiu em receber-nos num palheiro. Mas, antes de nos deixar entrar, impôs-nos a condição de não termos luz. - Dê-me os seus fósforos - disse ele a Vitalis- entregar-lhos-ei amanhã quando se for embora. Ao menos tínhamos um tecto para nos abrigarmos e a chuva já não nos caía sobre o corpo. Vitalis era um homem previdente, que não se punha a caminho sem provisões. Na mochila que trazia aos ombros encontrava-se um grande naco de pão, que partiu em quatro bocados. Vi então pela primeira vez como mantinha a obediência e a disciplina na companhia que havia constituído. Enquanto errávamos de porta em porta, procurando onde dormir, Zerbino entrara numa casa e saíra quase logo trazendo uma bela torta entre os dentes. Vitalis apenas dissera: - Esta noite terás o castigo, Zerbino. Eu já não pensava naquele roubo, quando vi, no momento em que o nosso dono cortava o pão, Zerbino com ar humilde. Estávamos sentados em molhos de fetos, Vitalis e eu, ao lado um do outro e Joli-Coeur entre os dois; os três cães alinhavam-se à nossa frente, Capi e Dolce com os olhos fitos nos do dono, Zerbino de focinho Inclinado para o chão e de orelhas caídas. - Que o ladrão saia das fileiras - ordenou Vitalis - e que vá para um canto; deitar-se-á sem cear. No mesmo instante Zerbino abandonou o seu lugar, e, caminhando de rastos, foi esconder-se no sitio que o dedo do dono lhe apontava; meteu-se debaixo dum monte de feiteira, e não o vimos mais; ouví-o respirar lastimosamente com pequenos latidos abafados. Cumprida a justiça, Vitalis entregou-me o pão que me competia, e, enquanto comia o dele, ia repartindo em bocadinhos, entre Joli-Coeur, Capi e Dolce, os pedaços que lhes eram destinados. Ali, como a sopa quente que a mãe Barberin nos fazia todas as noites me teria parecido boa, mesmo sem manteiga! Como o canto da lareira me seria agradável; como eu me teria enfiado por entre os lençóis e puxado os cobertores até ao nariz! Alquebrado pela fadiga, com os pés esfolados pelos tamancos, tremia de frio dentro do fato molhado. Era noite fechada, mas não pensava em dormir. - Estás a bater os dentes - disse Vitalis. - Tens frio? - Um bocadinho. Percebi que abria o saco. - o meu guarda-roupa deixa um tanto a desejar - disse ele - mas aqui tens uma camisa seca e um colete nos quais te poderás embrulhar depois de despires o fato molhado; em seguida mete-te debaixo da feiteira, e não tardarás a aquecer e a dormir. Contudo, não aqueci tão depressa como Vitalis imaginara; voltei e tornei a voltar-me na cama de fetos durante muito tempo, demasiadamente dorido e infeliz para que pudesse adormecer. Os dias iriam ser agora todos assim? Caminhar sem descanso, debaixo de chuva, dormir- num palheiro, tiritar de frio, não ter para cear mais do que um pedaço de pão seco, ninguém para me acarinhar, ninguém a quem amar, sem a mãe Barberin? Quando reflectia nisto tristemente, com o coração oprimido e os olhos rasos de lágrimas, senti um hálito morno bafejar-me a cara. Estendi a mão para a frente e encontrei o pèlo lanudo de Capi. Aproximara-se docemente de mim, avançando com precaução sobre a feiteira, e farejara-me; fungava baixo; o seu sopro batia-me na cara e nos cabelos. Que queria ele? Deitou-se a meu lado, muito perto de mim, e, delicadamente, pôs-se a lamber-me a mão. Esqueci a fadiga e os desgostos; a garganta contraída descerrou-se. Respirei; não estava sozinho: tinha um amigo. CAPÍTULO 06. A MINHA ESTREIA. No dia seguinte, pusemo-nos cedo a caminho. Já Não havia chuva mas céu azul, e pouca lama, graças ao vento seco que soprara durante a noite. Os pássaros chilreavam alegremente nas moitas da estrada e os cães pulavam à nossa volta. De tempos a tempos, Capi erguia-se nas patas traseiras e lançava-me dois ou três latidos de que eu percebia muito bem a significação. - Coragem! coragem! - diziam eles. Era um cão inteligente que compreendia tudo e se fazia sempre compreender. Jamais foi preciso a palavra entre mim e Capi; desde o primeiro dia que nos entendemos. Nunca tendo saído da minha aldeia, sentia-me cheio de curiosidade de ver uma cidade. Devo confessar que Ussel não me deslumbrou. As velhas casas de torrinhas, que certamente fazem as delícias dos arqueólogos, deixaram-me absolutamente indiferente. Uma Ideia enchia-me o cérebro e enevoava-me os olhos, ou, pelo menos, não me deixava ver mais do que uma coisa: uma loja de sapateiro. os meus sapatos, os sapatos prometidos por VItalis! Chegara a hora de os calçar. Onde estava a bem-aventurada sapataria que mos ia fornecer? Era só Isto que eu procurava: o resto, torreões, ogivas, colunas, não tinha interesse para mim. Por isso a única lembrança que me ficou de Ussel foi a de uma loja sombria e denegrida pelo fumo, situada ao pé do mercado. Tinha na montra espingardas velhas, um casaco agaloado com dragonas de prata, muitas lâmpadas, e, em cestos, ferros velhos, principalmente cadeados e chaves enferrujadas. Foi preciso descer três degraus para entrar, e então, encontrámo-nos numa quadra vasta, onde seguramente a luz do sol nunca penetrara desde que o telhado fora posto sobre a casa. Como é que uma coisa tão bela como sapatosse podia vender num recinto tão pavoroso! Porém Vitalis sabia o que fazia ao vir àquela loja, e bem depressa,tive a felicidade de calçar sapatos ferrados que pesavam dez vezes mais do que os meus tamancos. A generosidade do meu patrão não ficou por ali; depois dos sapatos, comprou-me um casaquinho de veludo azul, umas calças de lã e um chapéu de feltro; enfim, tudo o que me prometera. Veludo para mim, que nunca usara senão linho; sapatos; um chapéu, quando eu até ali apenas tivera os cabelos a cobrirem-me a cabeça! Decididamente, era o melhor homem do mundo, o mais generoso e rico. É verdade que o veludo estava amarrotado, é verdade que a lã estava coçada; é também verdade que seria muito difícil saber qual a cor primitiva do feltro, de tal maneira apanhara chuva e poeira; mas, deslumbrado por tamanhos esplendores,, tornava-me insensível às imperfeições que se escondiam sob a sua magnificência. Tinha pressa de vestir aqueles belos fatos, porém, antes de mos dar, Vitalis fez-lhes uma transformação que me lançou em doloroso espanto. Ao entrar na estalagem, tirou do saco uma tesoura e cortou as pernas das minhas calças pela altura dos joelhos. Como eu o olhasse, pasmado, disse-me: - Isto só tem o fim de ficares diferente de toda a gente. Estamos em França, visto-te de italiano; se formos à Itália, o que é possível, vestir-te-ei de francês. Esta explicação não me desfez o espanto, e ele continuou: - Que somos nós? Artistas, não é assim? Comediantes que só pelo seu aspecto devem provocar a curiosidade. Imaginas que, se fôssemos para a praça pública vestidos como burgueses ou aldeões, forçaríamos as pessoas a olhar-nos e a parar à nossa volta? Eis como, sendo eu francês de manhã, me tornei italiano antes da noite. Porque as calças ficavam pelo joelho, Vitalis amarrou-me as meias com cordões vermelhos cruzados ao longo das pernas; enleou também fitas no chapéu, e enfeitou-o com um ramo de flores de lã. Não sei o que poderiam os outros pensar de mim, mas para ser sincero devo declarar que me achei soberbo; e, com certeza, o estava, pois o meu amigo Capi, depois de me haver contemplado muito tempo, estendeu-me a pata com ar satisfeito. A aprovação que Capi deu à minha mudança foi-me bastante agradável pelo facto de Joli-Cwur, enquanto eu vestira o fato novo, se ter Instalado à minha frente a imitar os meus gestos, exagerando-os. E uma vez terminados os arranjos, pusera ele as mãos nas ancas e, de cabeça deitada para trás, desatara a rir com gritinhos de mofa. - Agora que tens o traje novo - disse-me Vitalis, depois de eu colocar o chapéu na cabeça - vamos meter-nos ao trabalho, a fim de dar amanhã, dia de feira, um grande espectáculo, em que te estrearás. Perguntei o que queria dizer estrear e Vitalis explicou-me que era aparecer pela primeira vez ao público, numa representação, - Amanhã daremos uma, - disse ele, - e farás parte dela. É preciso ensaiar o papel que te destino. .Os meus olhos espantados exprimiram incompreensão. - Papel, é o que terás de fazer na comédia. Se te trouxe comigo, não foi precisamente para te proporcionar o prazer da viagem. Não sou bastante rico para isso. Foi para trabalhares. E o teu trabalho consistirá em representar a comédia com os cães e Joli-coeur. - Mas eu não sei representar! - exclamei assustado. - É por isso mesmo que tenho de ensinar-te. Como deves calcular, não é naturalmente que Capi anda tão bem nas patas traseiras, como não é por prazer que Dolce dança na corda. Capi aprendeu a conservar-se de pé nas patas traseiras, e Dolce a dançar na corda: tiveram de trabalhar muito tempo para adquirir essas habilidades. Pois bem! tu também deves trabalhar para aprender os diferentes papéis que representarás com eles. Ponhamos mãos à obra. Eu tinha nessa época ideias absolutamente primitivas quanto ao trabalho. Imaginava que isso consistia em cavar a terra, ou rachar uma árvore, ou cortar a pedra, e não concebia outra coisa. - A peça que vamos representar - continuou Vitalis - tem por título: o criado do sr. Joli-Coeur, ou O mais estúpido dos dois não é aquele que pensamos. Eis o assunto: O senhor Joli-Cwur possuiu até hoje um criado que o satisfazia em absoluto: o criado é Capi. Mas Capi já está velho, e, por outro lado, o senhor Joli-Coeur deseja novo servo. Capi encarrega-se de o procurar. Contudo não será um cão que ele terá por sucessor, será um rapazinho, um camponês chamado Remi. - Assim como eu? - Não como tu, mas tu mesmo. Chegas da aldeia para entrar ao serviço de Joli-Coeur. - Os macacos não têm criados. - Nas comédias, têm-nos. Chegas então, e o senhor Joli-Coeur acha-te com ar de imbecil. - Não é divertido, isso. - Que te Importa, visto ser a fingir? Imagina que entras realmente em casa dum senhor como criado e te dizem, por exemplo, que ponhas a mesa. Eis justamente aqui uma que deve servir para a representação. Aproxima-te e dispõe os talheres. Sobre esta mesa, havia pratos, um copo, uma faca, um garfo e guardanapos. ,Como se arranjaria tudo aquilo? Fazendo esta pergunta a mim mesmo, fiquei de braços pendentes, Inclinado para a frente, com a boca aberta, sem saber por onde começar; Vitalis bateu as palmas, rindo às gargalhadas. - Bravo! - exclamou. - A tua expressão fisionómica é esplêndida. o rapaz, que tinha antes de ti, tomava um aspecto astuto e o seu ar dizia claramente: «Verão como eu vou interpretar bem o papel de palerma»; tu, não dizes nada, ficas calado com uma expressão de ingenuidade admirável. - Não sei o que devo fazer. - E é por isso mesmo que estás excelente. Amanhã, dentro de alguns dias, saberás às mil maravilhas o teu papel. Será então necessário recordares-te do embaraço que experimentas agora em fingires o que não sentes nessa altura. Quem és tu na minha comédia? Um moço camponês que nada viu e nada sabe; chega a casa dum macaco e acha-se mais Ignorante e desajeitado do que o outro. Mais tolo do que Joli-coeur, eis o teu papel; para o representar na perfeição, nada mais terás a fazer do que ficar como estás neste momento. Mas como isso é Impossível, deverás lembrar-te do que foste e tornares-te pelo teu esforço naquilo que já não serás naturalmente. O criado do sr. Joli-Coeur não era uma comédia extensa, e a sua representação durava apenas vinte minutos. Mas o ensaio prolongou-se por mais de três horas; Vitalis fez-nos recomeçar duas, quatro, dez vezes a mesma coisa, tanto aos cães como a mim. Fiquei bastante surpreendido com a paciência e doçura do nosso mestre. Não seria assim que tratariam os animais da minha aldeia, onde as pragas e as pancadas eram os únicos processos de educação que empregavam para com eles. Vitalis, durante o longo ensaio, não se zangou uma só vez; nem uma só vez praguejou. - Vamos, recomecemos - dizia ele severamente, quando algum de nós andava mal. - Capi, você está distraído; Joli-Coeur, será castigado. E não passava disto; no entanto, era bastante. - Então?! - perguntou-me ele quando o ensaio terminou - Achas que te habituarás a ser actor? - Não sei. - Isto aborrece-te? - Não, diverte-me. - Nesse caso tudo decorrerá bem; és Inteligente, e, o que é ainda mais precioso, atento; com atenção e docilidade conseguimos tudo. Afoitei-me a dizer-lhe que o que me causara mais admiração no ensaio fora a inalterável paciência de que ele dera prova, tanto com Joli-Coeur e os cães, como comigo. Sorriu meigamente. - Vê-se bem - respondeu Vitalis. - que só conviveste até hoje com aldeões cruéis para os animais, e que imaginam devê-los conduzir de cajado sempre erguido. Ora Isto é um triste erro: pouca coisa se obtém pela brutalidade, mas quase tudo conseguimos pela doçura. Não foi impacientando-me com os meus animais que fiz deles o que são. Se lhes tivesse batido, ficariam receosos, e o receio paralisa a Inteligência. Os meus camaradas,os cães e o macaco, possuíam sobre mim a grande vantagem de estarem habituados a aparecer em público, de forma que viram chegar sem receio o dia seguinte. Para eles, tratava-se de fazer o que já haviam feito cem vezes, mil vezes talvez. Mas eu não tinha a sua tranquila confiança. Que diria Vitalis, se representasse mal o meu papel? Que diriam os espectadores? Por isso a minha comoção era extrema quando no dia seguinte deixámos a estalagem a fim de irmos para a praça, onde se devia realizar a nossa representação. Vitalis abria a marcha, de cabeça erguida, peito arqueado, e marcava o passo com os braços e os pés, tocando uma valsa num pífaro de metal. Atrás dele ia Capi, levando às costas Joli-Coeur, que se enfatuava na sua farda de general inglês, casaco e calças vermelhas agaloadas de ouro, com chapéu bicórnio guarnecido duma grande pluma. A seguir, a respeitosa distância, avançavam na mesma fila Zerbino e Dolce. Finalmente ia eu na cauda do cortejo que, graças ao espaço indicado pelo nosso mestre, ocupava certo espaço na rua. Mas, mais ainda do que a pompa do nosso desfile, o que provocava a atenção eram os sons agudos do pífaro que iam até ao fundo das casas despertar a curiosidade dos habitantes de Ussel. Corriam às portas para nos ver passar, as cortinas de todas as janelas erguiam-se com rapidez. Seguiam-nos algumas crianças, aldeãos embasbacados juntavam-se a elas, e, quando chegámos à praça, trazíamos atrás e em volta de nós um verdadeiro acompanhamento. A sala de espectáculo edificou-se num instante; consistia numa corda amarrada a quatro árvores, de maneira a formar um rectângulo, onde nos colocámos. A primeira parte da representação foi preenchida por várias peloticas executadas pelos cães; não sei dizer quais foram essas habilidades, ocupado como estava a recordar-me do meu papel e perturbado pela inquietação. Do que me lembro, é que Vitalis abandonara o pífaro e substituíra-o por um violino com que acompanhava os exercícios dos cães, ora com músicas de dança, ora com melodias suaves e doces. A multidão apinhava-se contra as cordas, e, quando eu olhava em redor, maquinalmente, via uma infinidade de pupilas que, fixadas em nós, pareciam lançar faíscas. Finda a primeira peça, Capi segurou, entre os dentes, uma bandeja e, caminhando nas patas traseiras, aproximou-se do «respeitável público». Quando as moedas não caíam no prato, detinha-se e, poisando-o no interior do círculo fora do alcance das mãos colocava as patas dianteiras no espectador recalcitrante, ladrava duas ou três vezes, e batia pancadinhas sobre a algibeira que pretendia abrir. Então na assistência havia exclamações, gracejos e zombarias: - Olha a esperteza do cão, como conhece os que têm a bolsa recheada! - Vá, mete a mão na algibeira! - Dá! E a moeda era finalmente arrancada das profundezas onde se escondia. Entretanto, Vitalis, sem dizer palavra, mas sem perder de vista a bandeja, Ia tocando árias alegres no violino. Bem depressa Capi voltou para junto do dono, trazendo orgulhosamente o prato cheio. Chegara a altura de eu e Joli-Coeur entrarmos em cena. - Minhas senhoras e meus senhores - anunciou Vitalis gesticulando com o arco numa das mãos e o violino noutra -, vamos continuar o espectáculo com uma engraçada comédia intitulada: O Criado do Sr. Joli-Coeur, ou O mais estúpido dos dois não é aquele que imaginamos. Só lhes digo uma coisa: arregalem os olhos, apurem os ouvidos e preparem as mãos para aplaudir. O que ele chamava «uma engraçada comédia» era na realidade uma pantomima, isto é, uma peça representada com gestos e não com palavras. E assim devia ser, pela forte razão de que dois dos principais actores, Joli-Coeur e Capi, não podiam falar, e de que o terceiro (que era eu próprio) seria absolutamente incapaz de dizer fosse o que fosse. Todavia, a fim de tornar a mímica dos comediantes mais facilmente compreensível, Vitalis acompanhava-a de algumas palavras que preparavam as situações da peça e as explicavam. Foi assim que, tocando em surdina uma marcha militar, anunciou a entrada do sr. Joli-Coeur, general inglês que ganhara patentes e riqueza nas guerras das Indias. Até então, o sr. Joli-Coeur só tivera Capi como criado, mas desejava ser servido daí em diante por um homem, visto que os meios lhe permitiam esse luxo: os bichos haviam sido já bastante tempo escravos dos homens; era altura de as coisas mudarem. Enquanto esperava a chegada do criado, o general Joli-Coeur passeava de cá para lá, fumando um cigarro. Era digno de ver-se como ele lançava o fumo para a cara do público! O general impacientava-se, e principiava a volver olhos iracundos, como alguém que vai zangar-se, mordia os lábios e batia com o pé no chão. À terceira patada eu devia entrar em cena, levado por Capi. Se tivesse esquecido o meu papel, o cão far-mo-ia lembrar. No momento preciso, estendeu-me a pata e introduziu-me junto do general. Este, ao ver-me, levantou os braços ao céu com ar desanimado. Pois quê? Era aquilo o criado que lhe apresentavam? E veio mirar-me de perto, girando à minha volta e encolhendo os ombros. Tinha tanta graça que toda a gente desatou a rir: percebiam que ele me considerava um perfeito imbecil; era também esta a opinião dos espectadores. A comédia estava, já se sabe, organizada de forma a mostrar aquela Imbecilidade sob todos os aspectos; em cada cena eu era obrigado a cometer uma nova tolice, enquanto que Joli-Coeur, pelo contrário, devia arranjar ocasião para patentear a sua inteligência e habilidade. depois de me examinar longamente, o general, desdenhoso, mandou-me servir o almoço. - O general imagina que, se o rapaz comer, parecerá menos idiota - comentava Vitalis. - Vamos lá ver. E eu sentei-me em frente duma mesinha sobre a qual estava um talher e um guardanapo pousado no meu prato. Que fazer do guardanapo? Capi indicava-me que me devia servir dele. Depois de pensar um bocado, desdobrei-o e assoei-me. Ao -ver isto o general torceu-se a rir e Capi caiu de costas, confundido com a minha estupidez. Percebendo que me enganara, pus-me a contemplar o guardanapo, perguntando a mim mesmo como empregá-lo. Por fim, tive uma ideia; enrolei o guardanapo e fiz dele uma gravata. Novas gargalhadas do general, nova queda de Capi. E assim sucessivamente até o momento em que o general, exasperado, me arrancou da cadeira, se sentou no meu lugar e comeu o almoço que me era destinado. Ah! Aquele sim! Sabia servir-se dum guardanapo, o general. Com que elegância o meteu na lapela do uniforme e o depôs sobre os joelhos! Com que graça partiu o pão e esvaziou o copo! Mas onde as suas belas maneiras produziram um efeito irresistível, foi quando, terminado o almoço, pediu um palito e o passou rapidamente entre os dentes. Os aplausos explodiram de todos os lados e a representação acabou num triunfo. Como o macaco era inteligente! Como o criado parecia estúpido! CAPÍTULO 07. APRENDO A LER ERAm de facto comediantes de talento os da companhia do Signor Vitalis - falo dos cães e do macaco-, - mas de talento pouco variado. Depois de três ou quatro representações, conheciam-lhes todo o repertório; nada mais lhes restava senão repetirem-se. Daí resultava a necessidade de não se demorarem muito tempo numa mesma região. Três dias depois de chegarmos a Ussel, foi preciso pormo-nos a caminho. "Para onde íamos?" Eu já tinha bastante confiança com o meu mestre para me permitir esta pergunta. - Conheces o país? - disse ele, virando"se para mim. - Não. - Então por que perguntas para onde vamos? - Para saber. - Se eu te disser - continuou ele - que vamos para Aurillac a fim de nos dirigirmos em seguida para Bordéus e de Bordéus para os Pirinéus, o que ficas sabendo com isto? - Mas o senhor conhece então o país?
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