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Hector Malot - Sem Familia-1

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CAPÍTULO 00. 
 Sem Família
 Hector Malot
 Título original
 SANS FAMILLE
 HECTOR-HENRI MALOT
nasceu em La Boullle (França) em 20 de Maio
de 1830, fez os seus Primeiros estudos em Ruão,
indo cursar Direito em Paris onde se empregou
nO cartório dum notário, quando completou
O Curso. Em breve abandonou a carreira política
Para se dedicar Inteiramente à literatura. o seu
Primeiro romance, Les Amants, publicado em
1859, obteve um ruidoso êxito. SEguiram-se-lhe
Les EPOux (1865) e Les Enfants (l866), que,
com aquele, vieram formar a trilogia a que deu
o nome de Víctimes d'amour. A sua carreira de
romancista foi larga e brilhante. Publicou entre
Outros os seguintes romances: Romain Kalb
(1869), Madame obernin (1870), La Belle Madame Dionis (1873),
tendo conquistado a juventude com o romance Sans famille
(1878), a que se seguiu En famille (1893). Foi crítico
literário do Jornal Opinion Nationale e gozou em vida de uma
grande popularidade. Em 1896
publicou o seu último livro, Roman de
romans, este de autobiografia, e retirou-se
da vida literária. Escreveu, porém, para publicação
depois da sua morte, o romance petit
MOusse, destinado à sua neta. Faleceu em
POnllaYssous-BOIB a 17 de Julho de 1907.
 LISBOA
 Índice
 I. Na aldeia........................11
 II. Um pai adoptivo..................19
 III. A companhia do Signor Vitalis....28
 IV. Deixando a casa..................39
 V. A Caminho.........................48
 VI. A minha estreia..................54
 VII. Aprendo a ler..................65
 VIII. Por montes e vales.......................72 
 IX. Encontro o gigante das botas de sete léguas75 
 X. Perante a justiça.................81
 XI. Em barco.........................92
 XII. O meu primeiro amigo...........110
 XIII. Enjeitado.....................121
 XIV. Neve e lobos...................129
 XV. O Senhor Joli-coeur.............146
 XVI. Chegada a Paris................158
 XVII. As pedreiras de Gentilly......164
 XVIII. Lise.........................170
 XIX. Jardineiro.....................182
 XX. Dispersão da família............189
 Segunda parte
 I. Para a frente....................207
 II. Uma cidade enfarruscada.........226
 III. Aprendiz.......................233
 IV. A inundação.....................238
 V. Na ladeira.......................250
 VI. Libertação......................259
 VII. Uma lição de música............271
 VIII. A vaca do Príncipe............281
 IX. A mãe Barberin..................299
 X. A antiga e a nova família........313
 XI. Barberin........................319
 XII. Investigações..................331
 XIII. A Família Driscoll............343
 XIV. Honrarás pai e mãe-............355
 XV. «Capi» prevertido...............364
 XVI. As belas roupinhas enganam.....370
 XVII. O tio de Artur................376
 XVIII. Vésperas de Natal............381 
 XIx. Os receios de Mattia...........386
 XX. Bob.............................403
 XXI. O cisne........................412
 XXII. As belas roupinhas falaram
 verdade..............422
 XXIII. Em família...................432
CAPÍTULO 01.
 NA ALDEIA.
 Sou enjeitado. Mas até aos oito anos Imaginei ter mãe como
as outras crianças, pois,- quando eu chorava, uma
mulher me estreitava nos seus braços, embalando-me
com tanta ternura que as minhas lágrimas deixavam de correr. 
 Nunca me deitava na cama sem que essa criatura me viesse
beijar, e, quando o vento de Dezembro arrojava a neve contra
os vidros embaciados, aquecia-me os pés ao calor das suas
mãos, enquanto trauteava uma canção, de cuja música e letra me
recordo ainda.
 Nas ocasiões em que eu apascentava a nossa vaca
ao longo dos caminhos arrelvados ou nas charnecas,
e que era surpreendido pela chuva, corria ela ao meu
encontro e forçava-me a abrigar sob a saia de lã,
que arregaçava, e com que me cobria a cabeça e os
ombros.
 ,Por tudo Isto e muito mais coisas ainda, pela maneira
como me falava, pelas suas carícias e pela
forma como olhava para mim, pela doçura, dos
ralhos, eu imaginava que era minha mãe.
 Eis como cheguei a saber a verdade:
 A minha aldeia, ou, para melhor dizer, a aldeia
onde fui criado-porque eu não tinha terra natal,
como não tinha pai nem mãe - a aldeia enfim onde
passei a infância, chama-se Chavanon; é uma das
mais pobres do centro da França.
 O solo não é profundo, e, para produzir boas
colheitas, seriam precisos adubos ou substâncias que
faltam na terra. Por isso há (ou pelo menos havia
na época de que falo) um diminuto número de campos cultivados,
ao passo que se vêem por toda a parte extensas charnecas onde
só crescem urzes e giestas.
 Para encontrarmos belas árvores é preciso descermos até
às margens dos ribeiros onde, em nesgas de prado, se
desenvolvem grandes castanheiros e carvalhos vigorosos. 
 É numa dessas depressões de terreno, à beira dum
regato que vai misturar as suas águas rápidas num
dos afluentes do Loire, que se ergue a casa onde
passei parte da infância.
 Até aos oito anos nunca vi nenhum homem
naquela habitação; contudo minha mãe não era
viúva; mas o marido, que exercia a profissão de pedreiro, como
muitos outros operários da região, trabalhava em Paris e não
voltara à terra depois de eu estar em idade de ver e
compreender o que me
rodeava. Apenas de tempos a tempos ele mandava notícias por
qualquer companheiro que regressava à aldeia. 
 - Sr.a, Barberin, o seu homem continua de saúde;
encarregou-me de lhe dizer que tudo vai bem, e pediu-me que
lhe entregasse o dinheiro; aqui está, quer contá-lo?
 E nada mais. A mãe Barberin contentava-se com
isto: o marido estava de saúde, o trabalho rendia,
ele ia ganhando a vida.
 Pelo facto de Barberin se haver demorado tantos
anos em Paris, não se depreenda daí que se desse mal
com a mulher. A ausência nada tinha a ver com a
questão de desacordo. Conservava-se longe da companheira
porque o trabalho assim o exigia. 
 Num dia de Novembro, ao cair da tarde, um desconhecido
parou em frente da cancela do nosso quintal. Eu estava no
limiar da porta da casa,. ocupado em partir achas de lenha.
olhando-me por cima da
paliçada, o homem perguntou-me se era ali que morava a sr.a
Barberin. 
 Mandei-o entrar.
 Impeliu a cancela e, a passos lentos, aproximou-se.
 Nunca eu vira criatura tão enlameada: cobriam-no dos pés
à cabeça manchas de terra, umas ainda húmidas, outras já
secas, e percebia-se por tudo
aquilo que andara durante muito tempo por caminhos
Intransitáveis. Ao som das nossas vozes a mãe Barberin
acorreu
e deu de cara com o desconhecido na altura em que
este chegava à porta.
 - Trago notícias de Paris -disse ele.
 Eram as singelas palavras que mais de uma vez
tínhamos ouvido, mas o tom com que foram pronunciadas em nada
se parecia com aquele que noutras ocasiões acompanhava as
frases: «O seu homem está de saúde; tudo continua bem».
 - Ah! Meu Deus! - exclamou a mãe Barberin
juntando as mãos. - Aconteceu uma desgraça a Jerónimo.
 -Pois é verdade. Não se aflija, porque ele não
morreu. Mas talvez fique estropiado. Por enquanto
está no hospital. Fui seu companheiro de enfermaria, e, porque
eu voltava para a terra, pediu-me que lhe contasse o sucedido
quando passasse por cá. Não
posso demorar-me, porque tenho ainda de palmilhar
três léguas e já é quase noite.
 
 A mãe Barberin, que desejava saber pormenores,
pediu ao recém-vindo que ficasse para a ceia. Partiria no dia
seguinte de manhã. ohomem sentou-se a um canto da
lareira e, enquanto comia, ia contando como o desastre
acontecera: Barberin ficara meio esmagado num desmoronamento
de andaimes; e, pelo facto de terem provado que ele estava
indevidamente no local onde fora ferido, o empreiteiro
recusava pagar-lhe qualquer
indemnização.
 - O pobre Barberin tem pouca sorte - acrescentou ele. -
Há para aí malandros que encontrariam logo naquele caso uma
fonte de dinheiro; mas o seu marido não arranjará nada.
 E, secando as calças que se tornavam rígidas sob
a camada de lama endurecida, ia repetindo: «pouca
sorte», com uma compaixão tão sincera que dava a
entender que de bom grado se deixaria aleijar só com
a esperança de arranjar assim bons rendimentos.
 - Todavia - disse ele, concluindo a narrativa -
aconselhei-o a processar o empreiteiro.
 - Um processo! Isso é muito dispendioso!
 - Pois sim, mas quando se ganha...
 A mãe Barberin quereria ir a Paris, mas era coisa
terrível essa viagem tão longa e tão cara.
 Na manhã seguinte fomos à aldeia consultar o
pároco. Este foi de opinião que ela não devia partir
sem saber se seria útil ao marido. Escreveu ao capelão do
hospital onde Barberin estava, e dias depois recebeu uma
resposta em que o outro dizia que a
mãe Barberin não fosse, mas que enviasse certa soma
ao marido porque ele queria pôr uma demanda ao empreiteiro. 
 Passaram-se dias e semanas, e de tempos a tempos chegavam
cartas pedindo novas remessas de dinheiro; a última, mais
exigente que as anteriores,
dizia que, se as economias estivessem esgotadas, seria
necessário vender a vaca para arranjar a Importância precisa. 
 
 Aqueles que viveram na aldeia COM OS Camponeses sabem
quanta miséria e angústia encerram estas três palavras:
«Vender a vaca».
 Para o naturalista, a vaca é um animal ruminante; para o
turista, é um complemento de paisagem, quando ergue acima das
ervas o focinho húmido de orvalho; para a criança citadina, é
a origem do
queijo e do café com leite; mas para o camponês
é tudo quanto há de melhor. Por muito pobre que
seja e embora tenha família numerosa, possui a certeza de não
morrer de fome enquanto houver uma vaca no seu estábulo. Com
uma corda ou mesmo com
um simples esparto em volta dos chifres, é levada
por uma criança ao longo dos caminhos cobertos de
ervas, onde a pastagem não pertence a ninguém. E à
noite a família Inteira tem manteiga na sopa e
leite para tomar: o pai e a mãe, os filhos, tanto OS
grandes como os pequenos, todos enfim se sustentam
da vaca.
 Vivíamos tão bem da nossa, a mãe Barberin e eu,
que até então eu quase nunca comera carne. Mas
não só nos alimentava como era também uma camarada, uma amiga
- Porque a vaca não é um animal estúpido; pelo contrário, é
cheio de inteligência. ela é fértil em
qualidades morais que se desenvolvem ainda mais se
a habituarmos ao nosso trato.
 Em suma, estimávamo-la e ela estimava-nos.
 Contudo foi preciso separarmo-nos, pois somente
pela «venda da vaca» podíamos satisfazer Barberin.
 Veio um negociante, e, depois de haver examinado
bem a Ruça, depois de a tactear durante muito
tempo, meneando a cabeça com ar descontente, e de
dizer e repetir mais de cem vezes que não lhe convinha, que
era um animal miserável que lhe não daria ganho na revenda,
que não produzia leite, acabou por declarar que ficava com a
vaca, mas só por caridade, para obsequiar a Sr.a Barberin, que
era boa criatura.
 
 A pobre Ruça, como se compreendesse o que se
passava, não quis sair do estábulo e principiou a
mugir.
 - Vai por detrás e põe-na cá para fora - disse-me o
negociante de gado, entregando-me o chicote que trazia
consigo.
 - Assim, não - objectou a mãe Barberin.
 Segurando a vaca pela correia, falou-lhe docemente:
 - Vamos, minha bichinha, vamos.
 E a Ruça não resistiu mais; uma vez na estrada,
o homem amarrou-a às traseiras do carro e ela lá
foi, bem ou mal, seguindo o cavalo.
 Entrámos em casa. Mas ouvíamos ainda os seus
mugidos.
 Nunca mais houve leite nem manteiga. De manhã,
um bocado de pão; à tarde, batatas com um pouco
de sal.
 Tempos depois da venda da Ruça, chegou a terça-feira de
Entrudo; no ano precedente a mãe Barberin fizera-me nesse
mesmo dia um banquete de coscorões
e sonhos; eu comera-os e apreciara-os tanto, que ela
ficara toda contente. Mas então tínhamos a Ruça
que produzia o leite e a manteiga para adicionarmos
à farinha.
 Já não havia Ruça, nem leite, nem manteiga, nem
terça-feira de Carnaval: era isto que eu dizia, muito
tristemente, com os meus botões.
 Contudo, a mãe Barberin fez-me uma surpresa; se
bem que não fosse hábito seu recorrer às vizinhas,
pediu a uma delas uma chávena de leite, a outra um
pouco de manteiga, e, quando ao meio-dia entrei em
casa, encontrei-a a deitar farinha num grande tacho
de barro.
 - Olha! Farinha! - disse eu, aproximando-me.
 - O que se faz com a farinha? - interrogou a
mãe Barberin, olhando para mim.
 - Pão.
 - E que mais?
 
 - Caldo.
 - E além disso?
 - Ora... Não sei.
 - Sabes, sim; mas como és bom rapazinho não te
atreves a dizê-lo. E sabes que hoje é o dia em que se
fazem os coscorões e os sonhos. Como não há agora
em casa nem manteiga nem leite, não me queres
falar nisso. Não é verdade?
 - Oh! mãezinha!
 - Como eu já adivinhava tudo isso, arranjei as
coisas de maneira que a terça-feira de Entrudo não
fizesse má figura. Vê o que está no armário.
 Abri-o vivamente e vi a xícara de leite, manteiga, ovos e
três maçãs.
 - Dá-me os ovos - disse-Me ela - e, enquanto os quebro,
descasca as maçãs.
 Cortei a fruta em fatias, e, entretanto, ela deitou
os ovos na farinha e pôs-se a bater tudo, misturando
de tempos a tempos uma colher de leite.
 Depois da massa pronta, a mãe Barberin colocou
o tacho sobre as cinzas quentes, e nada mais fizemos
senão esperar pela tarde, pois era à ceia que devíamos comer
os sonhos e os coscorões. Para falar verdade, devo
confessar. que o dia me
pareceu comprido e mais duma vez fui levantar a
roupa que abafava o tacho.
 - Tanto queres fazer que a massa não levedará - dizia-me
a mãe Barberin.
 Mas afinal levedou bem, e aqui e ali
viam-se bolhas que vinham rebentar à superfície. Daquela
mistura em fermentação exalava-se o cheiro agradável 
de ovos e leite.
 - Parte umas cavacas - ordenava ela. - Precisamos de lume
bem ateado e sem fumo.
 Enfim a candeia foi acesa.
 - Deita lenha no lume! - disse-me a mãe Barberin.
 Não foi necessário que ela me repetisse as palavras que
eu tão impacientemente esperava. Bem depressa 
 
uma grande chama se elevou na lareira espalhando na cozinha a
sua luz vacilante.
 Então a mãe Barberin desprendeu da parede a
frigideira e pô-la ao fogo.
 - Dá-me a manteiga.
 Tirou um pedacinho na ponta da faca e deitou-a
na frigideira, onde se derreteu crepitando.
 No entanto, por muito atento que eu estivesse
àquele som tão simpático, pareceu-me ouvir passos
no quintal.
 Quem poderia ser àquela hora? Talvez uma vizinha para nos
pedir lume. Não me preocupei com isso, porque a mãe
Barberin, que mergulhara a colher no tacho, acabara de deitar
na frigideira um pedaço da massa, e não era
altura própria de haver distracções.
 Alguém bateu com um pau na porta, que, a seguir,
se abriu bruscamente.
 - Quem é? - perguntou a mãe Barberin, sem se voltar.
 Um homem entrara, e a claridade das chamas,
incidindo nele, mostrou-me que estava vestido com
uma camisa branca e que tinha na mão um grosso cajado.
 - Temos banquete? Não se incomodem - disse
ele, rudemente.
 - Ah! Meu Deus! - exclamou a mãe Barberin,
descansando a caçarola no chão. - Pois és tu, Jerónimo?
 E, segurando-me pelo braço, empurrou-me para o
desconhecido, que se detivera no limiar da porta.
 - É o teu pai.
CAPÍTULO 02.
 
 UM PAI ADOPTIVO.
 APROXIMEI-ME para o beijar por minha vez, mas,
coma ponta do cajado, ele deteve-me.
 - Quem é aquele? Disseste-me...
 - Sim... mas não era verdade, porque...
 - Ah! não era verdade, não era verdade!
 Deu alguns passos para mim com o bordão erguido, e,
instintivamente, recuei. Que fizera eu? Em que era
culpado? Porquê aquele acolhimento quando Ia beijá-lo
 Não tive tempo de considerar estas perguntas que
se apresentaram ao meu espírito perturbado.
 - Vejo que festejam a terça-feira de Carnaval - disse
ele. - Calha bem, porque tenho uma fome levada da breca. Que
há para a ceia?
 - tou a fazer coscorões.
 - Isso sei eu; mas não vais dar coscorões a um
homem que calcorreou dez léguas.
 - Não há mais nada: não te esperávamos.
 - O quê?! Nada para a ceia?
 Olhou em redor:
 - Temos manteiga - disse ele.
 Levantou os olhos para o sítio do tecto onde antigamente
se dependurava o toucinho; mas havia muito tempo que o gancho
estava sem nada; da
trave só pendiam enfiadas de alhos e cebolas.
 - E aqui estão cebolas - acrescentou, deitando
abaixo algumas com a ponta do bordão. - Quatro ou
cinco cebolas, um bocado de manteiga e teremos uma
bela sopa. Tira daí os teus coscorões e faz um estrugido.
 Tirar os coscorões da caçarola A mãe Barberin
não replicou. Pelo contrário, apressou-se a cumprir
as ordens do marido, enquanto este se sentava no
banco, ao canto da lareira.
 Não me atrevia a sair do lugar para onde o cajado
me forçara a ir; apoiado contra a mesa, eu contemplava o
homem. Teria talvez uns cinquenta anos, a cara era dura e
desagradável; em consequência da ferida, via-se
obrigado a conservar a cabeça inclinada sobre o
ombro direito e essa disformidade contribuía para o
seu aspecto pouco tranquilizador.
 A mãe Barberin substituíra o tacho que estava ao lume.
 - É com essa migalha de manteiga que vais fazer
a sopa? - perguntou ele.
 E, agarrando no prato onde se encontrava a manteiga,
deitou-a toda na caçarola. Acabara-se a manteiga, já não
havia coscorões.
 Em qualquer outra ocasião, ter-me-ia afligido por
semelhante catástrofe, mas já não pensava em
coscorões nem em sonhos, e a única coisa que me
preocupava era que aquele homem, que parecia tão
mau, fosse meu pai.
 «Meu pai, meu pai!» repetia eu, maquinalmente.
 Quisera beijá-lo e ele repelira-me com a ponta do
cajado. Porquê? A mãe Barberin nunca me afastava
quando eu a ia beijar; pelo contrário, estreitava-me
nos braços e apertava-me de encontro a si.
 
 - Em vez de ficares aí especado - disse-me ele. - 
vai buscar os pratos.
 Apressei-me a obedecer. A sopa estava pronta.
A mãe Barberin serviu-a.
 Sentia-me tão inquieto, tão perturbado, que não
podia comer, e contemplava-o também, mas furtivamente,
baixando os olhos quando encontrava os seus.
 - Não costuma comer mais do que isto? - perguntou de
súbito o homem, apontando-me com a colher.
 - Ah! sim, come bem.
 - Tanto pior; se ao menos não engolisse nada...
 Como é natural, eu não tinha desejo de falar, e a
mãe Barberin parecia tão disposta como eu para conversas:
andava cá e lá em volta da mesa, atenta, a 
servir o marido.
 - Então não tens fome? - perguntou-me.
 - Não.
 - Pois bem! Vai-te deitar, e trata de dormir já,
senão zango-me.
 A mãe Barberin lançou-me uma olhadela em que
me aconselhava a obedecer sem replicar. Mas esta
recomendação era inútil, pois eu não pensava em revoltar-me.
 Como na maioria das casas dos camponeses, a
cozinha servia também de quarto de dormir. Junto
da lareira estava tudo o que era preciso para comer:
a mesa, a arca do pão, o aparador; na outra extremidade, o
necessário para dormir; num ângulo, a cama da mãe Barberin; no
canto oposto, a minha,
que se achava numa espécie de armário rodeado
duma cortina de linho vermelho.
 Despi-me rapidamente e deitei-me. Mas dormir,
isso era outra coisa.
 Não se dorme para obedecer a uma ordem: dorme-se porque
se tem sono e porque se está tranquilo. Ora, eu não tinha
sono e não estava tranquilo.
Sentia-me terrivelmente atormentado e ainda por
cima muito infeliz.
 
 O quê?! Pois aquele homem era meu pai! Então
porque me tratava tão rudemente?
 Com a cara voltada para a parede, esforçava-me
por expulsar estas ideias e adormecer conforme me
fora ordenado; mas era impossível; o sono não vinha;
nunca eu me sentira tão desperto.,
 Ao fim de certo tempo, ouvi que se aproximavam
da minha cama. Pelos passos lentos, que se arrastavam,
pesados, reconheci logo que não era a mãe Barberin.
 Um hálito quente chegou até mim.
 - Dormes? - perguntou uma voz sufocada.
 Abstive-me de responder, pois as terríveis palavras:
«senão zango-me» soavam ainda aos meus ouvidos.
 - Ele dorme - disse a mãe Barberin. - Logo que
se deita, adormece; é o seu costume; podes falar sem
receio de que o petiz te oiça.
 Sem dúvida, eu deveria dizer que não dormia,
porém não me atrevia a isso; haviam-me mandado
dormir; eu não dormia, portanto estava a ser desobediente.
 - Em que ficou o teu processo? - perguntou a
mãe Barberin.
 - Perdido! Os juizes decidiram que eu me colocara
indevidamente debaixo dos andaimes e que o empreiteiro nada me
tinha a pagar.
 Dizendo isto, o homem deu um murro sobre a
mesa e pós-se a vociferar, proferindo palavras Insensatas.
 - Perdi o processo, - continuou ele daí a pouco, - perdi
o dinheiro, fiquei aleijado e na miséria. Como se não fosse
bastante, ao entrar em casa encontro
uma criança! Explicar-me-ás porque não fizeste o
que te disse?
 - Não se abandona assim uma criança que criámos com o
nosso leite e de quem gostamos. 
 - Não era teu filho.
 
 - E quando eu quis fazer o que tu pedias, precisamente
nessa altura, ele adoeceu.
 - Adoeceu?
 - gim, caiu de cama. E não era a ocasião própria
para o levar para o asilo, podia morrer, pois não é
verdade?
 -E quando ficou curado?
 - É que não se curou logo. A seguir àquela doença
veio outra: o pobre pequeno tossia que metia dó.
 - Mas depois?
 - O tempo foi passando. Se eu esperara até aí,
nada importava esperar mais.
 - Que idade tem o garoto agora?
 - Oito anos.
 - Pois bem! Irá aos oito anos para onde devia
ter ido antes, embora lhe custe mais!
 - Ah! Jerónimo, não farás isso.
 - Não farei isso! Quem mo impedirá? Imaginas
que poderemos tê-lo sempre connosco?
 Houve um momento de silêncio que aproveitei
para respirar; a comoção apertava-me a garganta a
ponto de me sufocar.
 Um instante depois, a mãe Barberin replicou:
 - Ah! Como Paris te modificou. Não falarias
assim antes de sair daqui.
 - Talvez. Mas o certo é que, se Paris me fez mudar,
também me estropiou. Como ganhar a vida agora, a tua e a
minha? Já não temos dinheiro. Vendemos a vaca. E quando não há
que comer, temos de alimentar uma criança que não é nossa?
 - É meu filho.
 - É tanto teu como meu. Não é filho de camponeses.
Examinei-o durante a ceia: é franzino, magro, de braços e
pernas delgados.
 -É o pequeno mais bonito da região.
 - Não digo o contrário. Mas não é forte. Quem
consegue ser trabalhador com uns braços daqueles?
Não passa de um menino da cidade, e disso não precisamos aqui. 
 
 - Digo-te que é bom rapazinho, esperto como um
rato e de bom coração. Trabalhará para nós.
 - Entretanto, trabalhamos para ele, e eu já não
posso fazer nada.
 -Se os pais o reclamam, que dirás?
 - Os pais! Tem ele, por acaso, pais? Se os tivesse,
tê-lo-iam procurado, e encontrado com certeza, de há
oito anos para cá. Ah! fiz uma bela tolice em imaginar que o
pequeno tinha pais que o reclamariam e nos pagariam o incómodo
de o haver criado. Não
passei dum estúpido, dum ingénuo. Lá porque estava
embrulhado em belas roupas arrendadas, isto não
significava que os pais o procurassem. E talvez morressem. 
- E se estão vivos? Se um dia vêm buscá-lo?
Tenho cá na minha ideia que virão.
 - Ora, mandamo-losao asilo. E basta de conversa.
Amanhã levo-o ao administrador. Agora vou cumprimentar o
Francisco. Dentro duma hora estarei de volta.
 A porta abriu-se e tornou a fechar-se.
 Ele fora-se embora.
 Então, soerguendo-me rapidamente, chamei a
mãe Barberin.
 - Oh! mamã!
 Acorreu para junto da minha cama.
 - Vai deixar-me ir para o asilo?
 - Não, meu filho, não.
 Beijou-me ternamente e estreitou-me nos braços.
 Aquela carícia deu-me coragem e as lágrimas deixaram de
correr. 
 - Então não dormias? - perguntou-me ela docemente.
 - Não tenho culpa.
 - Não estou a ralhar; nesse caso, ouviste o que
disse Jerónimo?
 - Ouvi: não é minha mamã, mas ao menos ele
não é meu pai.
 Pronunciei estas últimas palavras em tom diferente das
primeiras, porque, se estava desolado por ela não ser
realmente minha mãe, sentia-me feliz,
quase orgulhoso, em saber que não era filho dele.
 A mãe Barberin não pareceu prestar atenção a isso.
 - Deveria, talvez, ter-te dito a verdade; mas
considerava-te tanto meu filho, que não tinha coragem de te
declarar que não era a tua verdadeira mãe.
A tua mãe, pobre pequeno, ninguém a conhece, compreendes?
Estará viva, ou morta? Não o sabemos. Uma manhã, em Paris,
quando Jerónimo ia para o trabalho e passou numa rua a que
chamam a avenida Breteuil - rua larga e cheia de árvores -
ouviu o choro duma criança. Parecia partir do vão duma
porta de jardim. Estávamos no mês de Fevereiro;
amanhecia. Jerónimo aproximou-se e viu uma criancinha deitada
na soleira da porta. Olhou em volta para chamar alguém e
distinguiu um homem que saía detrás duma árvore, fugindo. Sem
dúvida esse homem escondera-se para ver se encontravam o
pequenito que ele próprio ali colocara. Jerónimo sentiu-se
atrapalhado. E enquanto pensava no que havia de fazer,
chegaram outros operários e decidiram levar
ao comissariado a criança, que não parava de gritar.
Naturalmente tinha frio. Então despiram-na em
frente do fogão aceso.
 «Era um lindo menino de cinco a seis meses, rosado,
forte, gordo; as faixas e as roupas que o envolviam faziam
crer que seria filho de gente rica. Talvez uma criança
roubada, que depois abandonassem». Foi isto que o comissário
explicou. Que destino lhe Iam dar? O comissário escreveu tudo
o que Jerónimo sabia, e também a descrição da criança
juntamente com a das roupinhas que não estavam
marcadas, e a seguir declarou que ia enviá-la ao
asilo dos enjeitados, se ninguém, entre os que ali
haviam comparecido, quisesse tomar conta dela. Os
pais certamente a iam procurar, recompensariam
generosamente aqueles que a tivessem tomado a seu
cargo. Jerónimo avançou então e disse que ficava
com o petiz; entregaram-lho. Eu tinha justamente
um filho da mesma Idade; não havia complicação
para mim em amamentar dois. Foi assim que me tornei tua mãe. 
 - Oh! mamã!
 - Ao fim de três meses, perdi o meu filho, e ainda
te fiquei com mais amizade. Cheguei a esquecer que
não eras realmente nosso filho. Infelizmente Jerónimo não o
esqueceu, e, vendo ao fim de três anos que ninguém te
procurava, ou, pelo menos, que ninguém te encontrava, quis
pôr-te no asilo. Ouviste há pouco por que razão lhe não
obedeci.
 - Oh! não quero ir para o asilo! - exclamei,
agarrando-me a ela. - Mãe Barberin, peço-lhe que
não me mande para o asilo!
 - Não, meu filho, não irás. Arranjarei as coisas.
Trabalharemos e trabalharás também.
 - Farei tudo o que quiser, mas não quero ir para
o asilo.
 - Não irás; mas com uma condição, é que vais
dormir Já. Quando ele entrar não deve encontrar-te
acordado.
 Depois de me ter beijado, ela voltou-me a cara
para a parede.
 Eu bem queria dormir; mas ficara muito abalado
para que pudesse encontrar facilmente a calma e o
sono.
 Assim, a mãe Barberin, tão boa, tão meiga para
mim, não era a minha verdadeira mãe! Que seria:
então uma mãe autêntica? Melhor, mais meiga
ainda? oh! não achava possível!
 Porém, o que eu compreendia, o que sentia, era
que um pai teria sido menos severo do que Barberin,
e não me olharia com aqueles olhos duros e de cajado erguido. 
 Queria ele mandar-me para o asilo; a mãe Barberin poderia
Impedi-lo? 
 Havia na aldeia dois rapazes a quem chamavam
os «pequenos do asilo»; usavam uma rodela de
chumbo ao pescoço, com um número; andavam mal
vestidos e sujos; troçavam deles; as outras crianças
perseguiam-nos muitas vezes como quem persegue
um cão vadio, para se divertir.
 Ah! Eu não queria ser como aqueles pequenos;
não queria ter um número ao pescoço, não queria
que corressem atrás de mim, gritando: «Vai para o
asilo! Vai para o asilo!».
 Esta Ideia dava-me calafrios e fazia-me bater os
dentes, E não dormia.
 Barberin Ia voltar.
 Felizmente, não regressou tão depressa como
dissera, e o sono chegou antes dele.
CAPÍTULO 03.
 A COMPANHIA DO SIgnOR VITALI
 DURANTE a manhã, Barberin nada me disse, e eu
principiava a acreditar que fora abandonado o
projecto de me mandarem para o asilo.
 Mas, quando soou meio-dia, Barberin ordenou-me
que pusesse o barrete e o seguisse.
 Assustado, volvi os olhos para a mãe Barberin a
fim de lhe implorar socorro; disfarçadamente fez-me sinal de
que devia obedecer; ao mesmo tempo um gesto da sua mão
tranquilizou-me; não havia
nada a temer. Então, sem replicar, pus-me a caminho atrás de
Barberin. 
 Da nossa casa à aldeia a distância é longa; é preciso
andar mais de uma hora. Passou-se essa hora sem que ele me
dirigisse uma única palavra.
 Aonde me levaria?
 Esta pergunta inquietava-me, apesar do gesto
animador da mãe Barberin; e, para escapar a um
perigo que eu pressentia sem o conhecer, pensava
em fugir.
 Com este fim, tratei de retardar o passo; quando
estivesse bastante afastado, atirar-me-ia para um
fosso, e o homem não poderia apanhar-me.
 De começo, Barberin limitou-se a dizer-me que
andasse mais depressa; mas, depois, adivinhou, sem
dúvida, as minhas intenções e agarrou-me pelo pulso,
 Foi assim que entrámos na aldeia.
 Quando atravessámos a rua, em frente dum café,
um sujeito que estava à porta chamou Barberin e
convidou-o a entrar.
 Este, agarrando-me pela orelha, fez-me Ir à sua
frente, e, uma vez dentro do estabelecimento, fechou
a porta.
 Senti-me aliviado; o café não me parecia um
lugar perigoso; e, além disso, sempre era uma casa
onde há muito tempo eu tinha desejos de penetrar.
 O café, o café da estalagem Notre-Dame! Que
poderia ser aquilo?
 Quantas vezes fizera a mim mesmo esta pergunta!
 Vira gente sair dali, de cara avermelhada e pernas
trémulas; ao passar em frente da porta ouvira, em muitas
ocasiões, gritos e canções que faziam
estremecer os vidros.
 Que faziam lá dentro? Que acontecia por detrás
Daquelas co rtinas vermelhas?
 Ia sabê-lo.
 Enquanto Barberin se instalava a uma mesa do
café com o dono, que o convidara a entrar, fui sentar-me perto
do fogão e olhei em redor. No canto oposto àquele que
ocupava, achava-se
um velho alto de barba branca, vestido de forma tão
estranha como eu nunca vira.
 Sobre os cabelos, que tombavam em compridas
madeixas até aos ombros, tinha um chapéu de feltro
cinzento, de copa alta e guarnecido de penas verdes
e vermelhas. Envolvia-lhe o busto uma pele de carneiro, cuja
lã estava para o lado de dentro. Esse abafo não tinha 
mangas, e, por dois buracos saiam-lhe os braços cobertos de
veludo, outrora azul. Polainas de lã subiam-lhe até aos
joelhos, e eram apertadas com fitas vermelhas que se
entrecruzavam em volta das pernas.
 Estava reclinado na cadeira, com o queixo apoiado
na mão direita; o cotovelo descansava sobre o joelho
dobrado.
 Junto dele três cães aqueciam-se, imóveis; um
 cão de água, branco, outro negro e uma cadelinha
 cor de cinza, de ar inteligente e meigo; o cão branco
 tinha na cabeça um velho boné de polícia preso sob
 o focinho por uma tira de coiro.
 Enquanto eu examinava o velho com espanto e
curiosidade, Barberin e o dono do café conversavama meia voz e ouvi que falavam de mim.
 Barberin contava que viera à aldeia para me
levar ao administrador, a fim de que este pedisse
aos asilos que pagassem uma pensão para ele continuar a ter-me
em casa. 
 Fora Isto então que a mãe Barberin conseguira
obter do marido; compreendi logo que, se Barberin
achasse vantagem em conservar-me junto de si, eu já
nada tinha a recear.
 O velho, disfarçadamente, escutava também o que
os outros diziam; de súbito, apontando-me com a
mão direita e dirigindo-se a Barberin, perguntou com
acento estrangeiro:
 - É aquele petiz que o atrapalha?
 - Ele próprio.
 - E Imagina que a administração dos asilos do
seu departamento lhe vai pagar as mensalidades da
alimentação?
 - Ora essa! Visto que ele não tem pais e está a
meu cargo, parece-me ser justo que alguém pague as
despesas.
 - Pois bem! Creio que jamais obterá a pensão
que deseja.
 - Então, irá para o asilo; não há nenhuma lei
que me obrigue a ficar com ele na minha casa se eu
não quiser.
 - Talvez houvesse um meio de se livrar já do
rapaz - disse o velho, depois dum momento de reflexão - e até
de ganhar algum dinheiro.
 - Se o senhor me der esse meio, pago-lhe de boa
vontade uma garrafa.
 - Encomende a garrafa, e o negócio está feito.
 - Palavra?
 O velho, deixando a cadeira, veio sentar-se em
frente de Barberin. Coisa esquisita, no momento em
que se levantou, a pele de carneiro ergueu-se com
um movimento incompreensível: era de crer que ele
tivesse um cão sob o braço esquerdo.
 - O que você deseja - disse o velhote. - é que
esta criança não se alimente mais tempo à sua custa,
não é verdade? Ou então, que lhe paguem, não é assim?
 - Exactamente; porque...
 - Oh! o motivo não me Interessa, não preciso
conhecé-lo; basta-me saber que não quer o garoto;
se é isto, dê-mo, tomo conta dele.
 - Dá-lo!
 - Ora essa! não quer desembaraçar-se do petiz?
 - Dar-lhe uma criança como aquela, um pequeno
tão perfeito, pois é uma perfeita criança, repare.
 - Já reparei.
 - Remi! Vem cá.
 Aproximei-me da mesa, trémulo.
 - Vamos, não tenhas medo, menino - disse o velho.
 - Olhem para ele - continuou Barberin.
 - Não digo que seJ a uma criança feia. Se fosse
feia eu não a queria, os monstros não são a minha
Especialidade.
 - Ah! se fosse um monstro de duas cabeças, ou
ao menos um anão... Não pensaria em mandá-lo
para o asilo. Sabe muito bem que um monstro tem valor e que se
pode tirar proveito dele, explorando a própria monstruosidade.
Mas este não é anão nem monstro; tem uma figura como toda a
gente e portanto não serve para nada.
 - Serve para trabalhar.
 - É muito débil para isso.
 - Ele, débil! Ora adeus! Repare, veja as pernas:
já viu algumas mais direitas?
 E Barberin arregaçou-me as calças.
 - Excessivamente delgadas - replicou o velho.
 - E os braços? - continuou Barberin.
 - São como as pernas; poderá resistir a uma vida
normal, mas não resistirá à fadiga e à miséria.
 - Ele, não resistir?! Mas apalpe-o, ande, apalpe-o.
 O velho passou-me a mão descarnada nas pernas,
tacteando-as, sacudindo a cabeça e fazendo uma
careta.
 Eu assistira já a uma cena semelhante quando o
negociante de gado fora comprar a nossa vaca. Examinara-a
também e apalpara-a. Meneara também a cabeça e fizera uma
careta de desdém: no entanto,
comprara-a e levara-a consigo.
 O velho iria comprar-me e levar-me? Ah! mãe
Barberin, mãe Barberin!
 Desgraçadamente ela não estava ali para me
proteger.
 - É uma criança como há muitas - disse o velho-, - eis a
verdade; mas uma criança das cidades: por isso há a certeza de
que nunca servirá para os trabalhos do campo. Ponha-o em
frente da charrua, a conduzir os bois, verá quanto tempo ele
durará.
 - Mas repare bem no garoto!
 Eu estava na extremidade da mesa entre Barberin e o
velho, que me empurravam ora para um, ora para outro.
 - Enfim - disse o estrangeiro -, fico com ele tal
qual é. Porém, bem entendido, não o compro, alugo-o.
Dou-lhe vinte francos por ano.
 - Vinte francos!
 - É um bom preço, e pago adiantado; recebe
quatro belas moedas de cem soldos e livra-se do
pequeno.
 - Mas, se fico com ele, o asilo pagar-me-á mais
de dez francos por mês.
 - Sete ou oito, eu conheço os preços, e ainda por
cima terá de o alimentar.
 - Ele trabalhará.
 - Se o achasse capaz de trabalhar, não quereria
desembaraçar-se do rapaz.
 - Em qualquer caso, sempre teria os dez francos.
 - E se o asilo, em vez de o deixar consigo, o entregar a
outro, você não terá absolutamente nada; enquanto que comigo
não arrisca coisa nenhuma: o seu único incómodo é estender a
mão.
 Vasculhou na algibeira e sacou uma bolsa de coiro,
da qual tirou quatro moedas de prata que pôs sobre
a mesa, fazendo-as tinir.
 - Mas imagine - exclamou Barberin, - que os
pais do pequeno aparecem de um dia para outro!
 - Que importa?
 - Seria proveitoso para aqueles que o tivessem
criado; se eu não contasse com isso, nunca me encarregaria
dele.
 Estas palavras de Barberin: «se eu não contasse
com os pais, nunca me encarregaria dele», fizeram-me
detestá-lo mais.
 - E é Justamente porque já não conta com isso
- disse o velho - que o quer pôr na rua. E a quem
se dirigirão esses pais, se chegarem a aparecer? A si,
não é verdade, e não a mim, que não conhecem?
 - Pode acontecer que o senhor os encontre.
 - Nesse caso, convenhamos que, se um dia aparecerem os
pais, dividiremos o lucro, e lhe dou mais trinta francos.
 - Ponha quarenta.
 - Não, pelos serviços que me prestará, Isso não é
possível.
 - E que espécie de serviços quer o senhor que ele
lhe faça?
 O Interpelado olhou para Barberin com ar finório,
e, esvaziando o-copo aos golinhos, disse:
 - Será meu companheiro; sinto-me velho, e, às
vezes, depois de um dia de fadiga, quando o tempo
está mau, assaltam-me ideias tristes; o petiz distrair-me-á. 
 - Lá para esse fim, as pernas serão bastante
sólidas.
 - Talvez não muito, pois terá de dançar, saltar
e caminhar; em suma, fará parte da companhia do
signor Vitalis.
 - E onde está essa companhia?
 - O signor Vitalis sou eu, como já deve ter calculado; os
actores, vou-lhos apresentar, visto desejar conhecê-los.
 Dizendo isto, abriu a pele de carneiro e agarrou
num animal estranho que tinha sob o braço esquerdo,
de encontro a si.
 Aquele bicho é que fazia levantar frequentemente
a pele de carneiro; mas não era um eãozinho como
eu pensara.
 Ignorava o nome daquele animal esquisito que eu
via pela primeira vez e para quem olhava com estupefacção.
 Estava vestido com uma blusa vermelha debruada
de galão dourado, mas os braços e as pernas mostravam-se nus,
pois pareciam realmente braços e pernas o que ele tinha, e não
patas; mas a pele era negra em vez de branca e rosada. Possuía
uma cabeça também preta, do tamanho do meu punho fechado, face
curta e larga, nariz arrebitado de narinas afastadas
e lábios amarelos; mas o que mais me impressionou
foram os olhos, muito próximos um do outro, duma
grande mobilidade, brilhantes como espelhos.
 - Ah! Que feio macaco! - exclamou Barberin.
 Estas palavras dissiparam-me o espanto, pois, se
eu nunca vira macacos, ouvira já falar deles; não
era pois uma criancinha preta que tinha na minha
presença, mas um macaco.
 - Eis o primeiro actor da minha companhia - disse Vitalis
- o sr. Joli-Coeur. Joli-Coeur, meu amigo, cumprimenta a
sociedade.
 Joli-Coeur levou a mão fechada aos lábios e atirou-nos um
beijo.
 - Agora - continuou Vitalis, designando o cão
branco - aqui está outro: o signor Capi vai ter a
honra de apresentar os seus amigos aos estimáveis
presentes.
 A esta ordem, o cão, que até aí não fizera o mais
pequeno movimento, levantou-se vivamente e, erguendo-se nas
patas traseiras, cruzou as da frente sobre o peito e
cumprimentou o dono, de tal maneira
que o boné de polícia roçou o solo.
 Uma vez cumprido este dever de cortesia,voltou-se para
os companheiros, e, com uma pata, enquanto a outra se
conservava sobre o peito, fez sinal para
que se aproximassem.
 Os outros dois cães, que tinham os olhos fitos
naquele, levantaram-se logo, e, com as patas dianteiras
unidas, como se fossem pessoas de mão dada, avançaram
gravemente uns seis passos, depois recuaram e saudaram os
circunstantes.
 - Aquele a que chamo Capi - continuou Vitalis
- ou Capitano em italiano, é o chefe dos cães; é ele
que, como mais inteligente, transmite as minhas
ordens. Este jovem elegante de pêlo negro é o signor
Zerbino, o que significa garboso, nome que ele merece em
absoluto. Quanto a esta criaturinha de ar modesto, é a signora
Dolce, uma encantadora inglesa
que não desmerece o seu doce nome. É com estas
personagens, a diversos títulos notáveis, que tenho
a fortuna de percorrer o mundo, ganhando a vida
mais ou menos bem ao sabor da sorte. Capi!
 O cão branco cruzou as patas.
 - Capi, venha cá, meu amigo, e seja bastante
amável, para dizer que horas são a este rapazinho,
que o observa com olhos tão redondos como bolas.
 Capi descruzou as patas, aproximou-se do dono,
afastou a pele de carneiro, vasculhou a algibeira do
colete, tirou dali um grande relógio de prata, olhou
para o mostrador e ladrou duas vezes distintamente.
e, a seguir aos dois latidos muito acentuados, fortes e
nítidos, soltou outros três mais fracos.
 - Muito bem - disse Vitalis. - agradeço-lhe, signor
Capi. E, agora, peço-lhe que convide a signora Dolce
a nos dar o prazer de dançar um bocadinho na corda.
 Capi procurou outra vez na algibeira do casaco do
dono e sacou dali uma corda. Fez sinal a Zerbino e
este colocou-se rapidamente na sua frente. Então
Capi atirou-lhe uma ponta da corda e os dois puseram-se
gravemente a fazê-la girar. 
 Quando o movimento se tornou regular, Dolce
precipitou-se no círculo e saltou ligeiramente, conservando os
belos olhos meigos fitos nos do dono. 
 - Como vêem - disse este. - os meus alunos são
inteligentes; porém, a inteligência só é apreciada em
todo o seu valor pela comparação. Aí está porque
introduzo o garoto na companhia; fará o papel de
estúpido, e a inteligência dos outros actores será mais
apreciada.
 - Oh! Para fazer de estúpido... - interrompeu
Barberin.
 - É preciso não o ser na realidade - continuou
Vitalis. - E já vamos ver se ele é ou não inteligente.
Se é, compreenderá que acompanhando o signor Vitalis terá a
dita de viajar, de percorrer a França e outros países, de
levar uma vida livre. Se não é inteligente, chorará, gritará,
e, como o signor não gosta de crianças más, não o levará
consigo. Então a criança má irá para o asilo, onde é preciso
trabalhar e comer pouco.
 Eu tinha inteligência suficiente para compreender estas
palavras, mas da compreensão à execução havia uma terrível
distância a transpor.
 Evidentemente que os alunos do signor Vitalis
eram muito engraçados, e devia ser muito divertido
viajar com eles; mas para isso seria necessário deixar
a mãe Barberin.
 É verdade que, se eu recusasse, talvez não ficasse
com ela, talvez me mandassem para o asilo.
 Como ficasse perturbado, de lágrimas nos olhos,
Vitalis bateu-me docemente na cara com a ponta dos dedos.
 - Vamos - disse ele-, o garoto compreende, visto
que não grita; a razão entrará nesta cabecinha, e
amanhã... Agora - continuou - voltemos ao negócio.
 - Não, quarenta.
 Entabulou-se uma discussão. Vitalis, porém,
interrompeu-a:
 - O pequeno deve estar maçado aqui. Que vá
passear e brincar para o quintal da estalagem.
 Ao mesmo tempo fez um sinal a Barberin.
 - Sim - disse este-, vai para o quintal, e não
voltes sem que eu te chame, senão zango-me.
 Só me restava ir, sem replicar.
 Fui então para fora, mas sem desejos de brincar.
Sentei-me numa pedra e pus-me a reflectir.
 Era a minha sorte que se decidia nesse instante.
Qual o meu destino? o frio e a angústia faziam-me
tiritar.
 A discussão entre Vitalis e Barberin durou muito
tempo, pois decorreu mais de uma hora sem que
nenhum deles aparecesse.
 Por fim Barberin surgiu, sózinho. Viria buscar-me
para me entregar a Vitalis?
 - Vamos - disse-me ele. - Voltemos para casa.
 A casa! Então eu não abandonaria a mãe Barberin?
 Quereria interrogá-lo, mas não me atrevia, pois
ele parecia estar de muito mau-humor.
 O percurso fez-se silenciosamente.
 Mas, uns dez minutos antes de chegarmos, Barberin, que
caminhava à frente, parou.
 - Olha - disse-me agarrando-me rudemente
pela orelha-, - se contas uma única palavra do que
ouviste hoje, pagá-lo-ás caro; tem cautela.
 
CAPÍTULO 04.
 DEIXANDO A CASA.
 - ENTÃO? - perguntou a mãe Barberin quando entrámos.- Que
disse o administrador?
 - Não o vimos.
 - O quê?! Não o viste?
 - Não, encontrei uns amigos no café Notre-Dame,
e quando saímos era já muito tarde; voltaremos
amanhã.
 Assim, Barberin havia renunciado ao seu negócio
com o homem dos cães...
 Todavia, apesar das ameaças, falaria das minhas
incertezas à mãe Barberin, se me tivesse podido encontrar
sozinho com ela; mas em toda a noite Barberin não saiu, e eu
deitei-me sem que se me apresentasse a ocasião esperada. 
Adormeci dizendo de mim para mim que ficariam
as confidências para o dia seguinte.
 Mas, de manhã, quando me levantei, não vi a mãe
Barberin.
 Como eu a procurasse em redor da casa, Barberin
perguntou o que é que queria.
 
 - A mamã?
 - Foi à aldeia e só regressará depois do meio dia.
 Sem saber porquê, aquela ausência inquietou-me.
Ela não me dissera na véspera que ia sair. Por que
razão não esperara para nos acompanhar, visto que
devíamos ir à aldeia de tarde?
 O coração oprimiu-se-me com um vago receio.
 Barberin contemplava-me com ar pouco tranquilizador;
querendo escapar a esse olhar, fugi para o quintal.
 O quintal, que não era grande, tinha para nós um
valor considerável, pois, à excepção do trigo, fornecia-nos
quase todo o alimento: batatas, favas, couves, nabos,
cenouras. Não havia um bocado de terreno
perdido. Mas a mãe Barberin reservara-me um cantinho no qual
eu reunira uma infinidade de plantas, arrancadas, de manhã, na
orla dos bosques, ou ao
longo das sebes, enquanto a vaca pastava, e metidas
depois à terra, no meu jardim.
 Estava ajoelhado no chão, quando ouvi uma voz
rude chamar por mim.
 Era Barberin.
 Apressei-me a entrar em casa.
 Qual não foi a minha surpresa ao ver, em frente
da chaminé, Vitalis e os cães!
 Instantâneamente compreendi o que queria Barberin de mim:
Vitalis vinha buscar-me, e, para que a mãe Barberin não
pudesse defender-me, Barberin
mandara-a de manhã à aldeia.
 Sentindo que não tinha a esperar socorro nem
piedade de Barberin, corri para Vitalis:
 - Oh! meu senhor - exclamei eu-, por amor de
Deus não me leve consigo!
 Desatei em soluços.
 - Vamos, meu rapaz - disse-me ele com brandura. - não
serás infeliz comigo. Não bato em crianças, e além disso,
terás a companhia dos meus actorzinhos que são muito
divertidos. De que podes ter saudades?
 - Oh! meu senhor - exclamei eu, - por amor de Deus
não ne leve consigo! Sou filho Da mãe Barberin!
 , Em qualquer caso, não ficarás aqui - objectou
Barberin, agarrando-me brutalmente pela orelha. - Ou o asilo
ou aquele senhor; escolhe!
 - Não! A mãe Barberin!
 - Ah! Já me aborreces - exclamou Barberin, encolerizado.
- Se é preciso pôr-te daqui para fora à pancada, é o que vou
fazer.
 - O pequeno tem pena de deixar a sua mãe Barberin - disse
Vitalis. - Não lhe deve bater por Isso; tem sentimentos, é bom
sinal.
 - Se o senhor o lastima, ele vai berrar mais alto.
agora, vamos aos negócios.
 E Vitalis poisou na mesa oito moedas de cinco
francos que Barberin, num Instante, fez desaparecer
na algibeira.
 - Onde está a trouxa? - perguntou Vitalis.
 - Ei-la - respondeu Barberin mostrando-lhe un
lenço de algodão azul, sarapintado,amarrado pelas
quatro pontas.
 Vitalis desfez os nós e olhou para o conteúdo do
lenço; encontravam-se ali duas das minhas camisas,
e umas calças de linho.
 - Não era isto que tínhamos combinado - observou Vitalis.
- Devia dar"me as roupas dele, e eu só vejo trapos.
 -O pequeno não tem outras.
 - Se eu o interrogasse, estou certo de que diria
que isso é falso. Mas não quero discutir este assunto.
Não tenho tempo. É preciso pormo-nos a caminho.
Vamos, meu rapaz. Como se chama ele?
 - Remi.
 - Vamos,,,Remi, segura na tua trouxa, e passa
para a frente. Capi marcha!
 Estendi as mãos para o velho, depois para Barberin, porém
os dois voltaram a cabeça, e senti que Vitalis me agarrava
pelo pulso.
 Foi necessário partir.
 Ah! pareceu-me, quando transpus o limiar da
porta, que deixava naquela casa um bocado de mim
próprio.
 Olhei em redor; os meus olhos, obscurecidos pelas
lágrimas, não viram ninguém a quem pedir socorro;
ninguém na estrada, ninguém ali perto.
 Principiei a chamar.
 -Mamã, mãe Barberin!
 Nem um único som respondeu à minha voz, e ela
extinguiu-se num soluço.
 Tive de seguir Vitalis, que não me largara o pulso. 
 - Boa viagem! - gritou Barberin.
 E entrou em casa.
 Ai de mim! tudo acabara.
 - Vamos, Remi, caminhemos, meu filho - disse
Vitalis.
 Então comecei a andar ao lado dele. Felizmente
não apressou o passo, e creio até que o regulou pelo
meu.
 O caminho que seguíamos elevava-se em ziguezagues; a cada
volta, distinguia a casa da mãe Barberin, que ia diminuindo,
diminuindo. Bastantes vezes fizera eu este percurso e sabia
que, no último
desvio, veria ainda a casa.
 Por sorte a subida era extensa; contudo, tanto
andámos que chegámos ao alto.
 Vitalis não me largara o pulso.
 - Não quer descansar um bocadinho? - sugeri eu.
 - De boa vontade, meu rapaz.
 Pela primeira vez, descerrou a mão.
 Mas, ao mesmo tempo, vi o seu olhar dirigir-se
para Capi, e fazer um sinal que este compreendeu.
 Imediatamente, como um cão de pastor, Capi
abandonou a chefia dos companheiros e veio colocar-se atrás de
mim. Esta manobra acabou de me dar a perceber o que
o sinal já me havia indicado: Capi era o meu guarda;
se eu fizesse um movimento para fugir, ele deveria
saltar-me às pernas.
 Fui sentar-me no parapeito arrelvado e Capi seguiu-me de
perto. Uma vez ali instalado, procurei, com os olhos
enevoados de lágrimas, a casa da mãe Barberin. Abaixo de
nós, ficava a encosta que acabáramos
de subir, dividida por prados e bosques, e, no fundo,
erguia-se, isolada, a casa, onde eu fora criado.
 Apesar da distância e da altura a que nos achávamos, as
coisas conservavam as formas nítidas e distintas, apenas
diminuídas. Tudo estava no lugar do costume: o meu
carrinho
de mão, a minha charrua feita dum ramo torneado,
a gaiola onde eu criava coelhos, quando possuíamos
coelhos, e o meu jardim, o meu querido jardim!
 Quem veria florir as minhas pobres flores? Quem
comeria os meus topinambos? Sem dúvida Barberin,
o cruel Barberin.
 Mais um passo na estrada e tudo desapareceria
para sempre.
 De súbito, no caminho que da aldeia vai ter a
casa, distingui ao longe uma touca branca. Desapareceu por
trás dum renque de árvores, depois tornou a aparecer.
 Era tal a distância que eu só via a alvura da
touca, semelhante a uma borboleta primaveril de
cores desmaiadas, adejando entre os ramos.
 Mas há momentos em que o coração vê melhor e
mais longe do que olhos perscrutadores: reconheci a
mãe Barberin. Era ela, tinha a certeza; sentia que
era ela.
 - Então? - Perguntou Vitalis. - Vamos pôr-nos
a caminho?
 Não respondi, continuava a olhar.
 Era a mãe Barberin, a sua touca, o seu saiote
azul; era ela.
 Caminhava a passos largos, como se tivesse pressa
de entrar em casa.
 Ao chegar à cancela, empurrou-a e entrou no
quintal, que atravessou rapidamente.
 No mesmo instante, pus-me de pé sobre o parapeito, sem
pensar em Capi, que saltou para junto de mim.
 A mãe Barberin não se demorou muito tempo em
 casa. Saiu e principiou a correr dum lado para
outro, no quintal, de braços abertos.
 Procurava-me.
 Curvei-me para a frente e gritei com todas as
forças.
 - Mamã! Mamã!
 Mas a voz não podia descer, nem dominar o murmúrio do
regato: perdeu-se no ar.
 - Que tens? - perguntou Vitalis. - Endoideceste?
 Sem responder, continuei com os olhos fixos na 
mãe Barberin; ela, porém,. sem saber-me tão perto de 
si, não pensava em erguer a cabeça.
 Atravessara o quintal, voltara para o caminho e 
 olhava para todos os lados.
 Gritei mais alto, mas, como na primeira vez, 
inutilmente.
 Então, Vitalis, suspeitando a verdade, subiu
também para cima do parapeito.
 Não lhe foi preciso muito tempo para que visse a touca
branca.
 - Pobre pequeno - disse a meia voz.
 - Oh! por favor - exclamei eu, animado por
 aquelas palavras de compaixão - deixe-me voltar
 para trás.
 Mas Vitalis agarrou-me pelo pulso e fez-me
descer para a estrada. 
 - Visto que Já descansaste - disse ele - marcha
agora, meu rapaz! 
 Quis desprender-me; o velho segurava-me fortemente. 
 - Capi! - gritou ele. - Zerbino!
 Os dois cães cercaram-me: Capi atrás, Zerbino à frente.
 Ao fim de alguns passos, virei a cabeça.
Havíamos já ultrapassado o cume do monte, e
já não vi o vale nem a nossa casa; apenas ao longe
colinas azuladas pareciam subir até ao céu. Os meus
olhos perderam-se no infinito.
CAPÍTULO 05. 
 A CAMINHO.
 VITALIS, por uma rara excepção nos mercadores de
crianças, não era mau homem.
 Bem depressa tive a prova disso.
 Fora no alto do monte que separa o Loire do
estuário do Dordogne que ele me retomara a mão, e,
quase a seguir, havíamos começado a descer a vertente exposta
ao sul. Depois de termos andado cerca de um quarto de
hora, Vitalis largou-me o braço.
 - Agora - disse ele-caminha devagar ao meu
lado. Mas não te esqueças que, se quisesses fugir, Capi
e Zerbino apanhavam-te; têm os dentes aguçados.
 Fugir! Eu sentia que era impossível, e, por consequência,
inútil tentá-lo. Suspirei.
 - Estás triste - continuou Vitalis. - Compreendo
e não te quero mal por isso. Podes chorar livremente,
se tens esse desejo. Mas lembra-te que não é para tua
infelicidade que te levo comigo. Qual seria o teu destino?
Muito provavelmente, irias para o asilo. As 
 pessoas que te criaram não são teus pais. A tua
mamã, conforme dizes, foi boa para ti e tu sentes-te
desgostoso por deixá-la, tudo isso é natural; mas
reflecte que ela não poderia ficar contigo contra
a vontade do marido. Aliás esse homem talvez não seja
tão cruel como imaginas. Não tem de que viver, está
aleijado; já não pode trabalhar, e não vai deixar-se
morrer de fome para te alimentar. Compreendes, meu
rapaz, que a vida é a maior parte das vezes uma batalha onde
não realizamos o que queremos.
 Sem dúvida, o que ele dissera eram palavras de
sabedoria, ou pelo menos de experiência. Contudo,
havia um facto que, neste momento, gritava mais
alto do que todos: a separação.
 Não veria mais aquela que me criara, me acarinhara,
aquela que- eu amava tanto. E esta ideia apertava-me a
garganta, sufocava-me.
 - Vê - disse-me Vitalis, apontando-me para a
charneca - como seria inútil tentares fugir. Capi e
Zerbino apanhar-te-iam logo.
 Fugir! Já não pensava nisso. E para onde? Para
casa de quem?
 E talvez aquele velho alto, de barba branca, não
fosse tão terrível como eu imaginara de começo; se
era meu patrão, possivelmente não seria um patrão
cruel.
 Caminhámos durante muito tempo no meio de
tristes ermos e não vendo em redor senão algumas
colinas distantes, de cumes estéreis.
 Era a primeira vez que marchava assim, continuamente, sem
descansar. O patrãoavançava com passo regular, levando
Joli-Coeur no ombro ou sobre o saco, e a seu lado os
cães trotavam sem se afastarem.
 De tempos a tempos Vitalis dizia-lhes uma palavra amiga,
em francês, ou numa linguagem que eu não conhecia.
 Nem ele nem os outros pareciam fatigados. Porém
não acontecia o mesmo comigo. Sentia-me esgotado.
 Arrastando os pés, a custo, seguia o meu patrão.
No entanto não me atrevia a pedir que parasse.
 - São os tamancos que te fatigam - disse-me ele.
 -Em Ussel comprar-te-ei sapatos.
 Estas palavras deram-me coragem.
 De facto, eu sempre desejara ardentemente uns
sapatos. O filho do administrador e o do estalajadeiro
possuíam sapatos, de maneira que, ao domingo, ao
chegarem à missa, deslizavam nas lajes sonoras,
enquanto nós outros, camponeses, com os nossos tamancos,
fazíamos um barulho ensurdecedor.
 - Ussel é ainda muito longe?
 - Aí está um grito de alma -observou Vitalis,
rindo. - Tens então muita vontade de ter uns sapatos, pequeno?
Pois bem! Eu tos prometo, com pregos na sola. E prometo-te
também umas calças de veludo,
um casaco e um chapéu. Espero que isto te seque as
lágrimas e te dê força nas pernas para fazermos as
seis léguas que nos faltam.
 Sapatos com pregos por baixo! Fiquei deslumbrado. Eram já
uma coisa prodigiosa para mim, aqueles sapatos; mas, quando
ouvi falar de pregos,
esqueci todo o desgosto.
 Sapatos, sapatos ferrados! calças de veludo! casaco!
chapéu! Ah! se a mãe Barberin me visse, como ficaria
contente e orgulhosa da minha pessoa!
 Apesar dos sapatos e das calças de veludo que
estavam a seis léguas de distância, parecia-me que
não poderia andar até tão longe.
 O céu, azul à nossa partida, enchia-se a pouco e
pouco de nuvens cinzentas, e bem depressa caiu uma
chuva fina que não mais parou.
 - Constipas-te facilmente? - perguntou o meu
patrão.
 - Não sei, que me lembre nunca estive constipado.
 - Bem, bem; decididamente há boas coisas em ti.
Mas não quero expor-te inutilmente; hoje não Iremos
mais longe. Ali adiante há uma aldeia, pernoitaremos lá.
 Não havia estalagem nessa aldeia, e ninguém quis
receber a espécie de mendigo que levava consigo um
pequeno e três cães, tão enlameados uns como outros.
 - Aqui não é albergue - diziam-nos.
 E fechavam-nos a porta na cara. Íamos duma
casa para outra sem que nenhuma se abrisse.
 Seria preciso, então, palmilhar sem repouso as
quatro léguas que nos separavam de Ussel? A noite
descia, a chuva gelava-nos e eu sentia as pernas tão
rígidas como estacas.
 Ah! a casa da mãe Barberin!
 Por fim, um camponês, mais caritativo do que os
vizinhos, consentiu em receber-nos num palheiro.
Mas, antes de nos deixar entrar, impôs-nos a condição de não
termos luz.
 - Dê-me os seus fósforos - disse ele a Vitalis-
entregar-lhos-ei amanhã quando se for embora.
 Ao menos tínhamos um tecto para nos abrigarmos e a chuva
já não nos caía sobre o corpo. Vitalis era um homem
previdente, que não se
punha a caminho sem provisões. Na mochila que
trazia aos ombros encontrava-se um grande naco de
pão, que partiu em quatro bocados.
 Vi então pela primeira vez como mantinha a obediência e a
disciplina na companhia que havia constituído. Enquanto
errávamos de porta em porta, procurando onde dormir, Zerbino
entrara numa casa e saíra quase logo trazendo uma bela torta
entre os
dentes. Vitalis apenas dissera:
 - Esta noite terás o castigo, Zerbino.
 Eu já não pensava naquele roubo, quando vi, no
momento em que o nosso dono cortava o pão, Zerbino com ar
humilde. Estávamos sentados em molhos de fetos, Vitalis e
eu, ao lado um do outro e Joli-Coeur entre os dois; os
três cães alinhavam-se à nossa frente, Capi e Dolce
com os olhos fitos nos do dono, Zerbino de focinho
Inclinado para o chão e de orelhas caídas.
 - Que o ladrão saia das fileiras - ordenou Vitalis - e
que vá para um canto; deitar-se-á sem cear.
 No mesmo instante Zerbino abandonou o seu lugar, e,
caminhando de rastos, foi esconder-se no sitio que o dedo do
dono lhe apontava; meteu-se debaixo dum monte de feiteira, e
não o vimos mais; ouví-o respirar lastimosamente com pequenos
latidos abafados.
 Cumprida a justiça, Vitalis entregou-me o pão que
me competia, e, enquanto comia o dele, ia repartindo
em bocadinhos, entre Joli-Coeur, Capi e Dolce, os
pedaços que lhes eram destinados.
 Ali, como a sopa quente que a mãe Barberin nos
fazia todas as noites me teria parecido boa, mesmo
sem manteiga!
 Como o canto da lareira me seria agradável; como
eu me teria enfiado por entre os lençóis e puxado os
cobertores até ao nariz!
 Alquebrado pela fadiga, com os pés esfolados pelos
tamancos, tremia de frio dentro do fato molhado.
 Era noite fechada, mas não pensava em dormir.
 - Estás a bater os dentes - disse Vitalis. - Tens frio? 
 - Um bocadinho.
 Percebi que abria o saco.
 - o meu guarda-roupa deixa um tanto a desejar
- disse ele - mas aqui tens uma camisa seca e um
colete nos quais te poderás embrulhar depois de despires o
fato molhado; em seguida mete-te debaixo da feiteira, e não
tardarás a aquecer e a dormir. 
 Contudo, não aqueci tão depressa como Vitalis
imaginara; voltei e tornei a voltar-me na cama de
fetos durante muito tempo, demasiadamente dorido
e infeliz para que pudesse adormecer.
 Os dias iriam ser agora todos assim? Caminhar
sem descanso, debaixo de chuva, dormir- num palheiro, tiritar
de frio, não ter para cear mais do que um pedaço de pão
 
seco, ninguém para me acarinhar, ninguém a quem amar, sem a
mãe Barberin?
 Quando reflectia nisto tristemente, com o coração
oprimido e os olhos rasos de lágrimas, senti um hálito morno
bafejar-me a cara. Estendi a mão para a frente e
encontrei o pèlo lanudo de Capi.
 Aproximara-se docemente de mim, avançando
com precaução sobre a feiteira, e farejara-me; fungava baixo;
o seu sopro batia-me na cara e nos 
cabelos.
 Que queria ele?
 Deitou-se a meu lado, muito perto de mim, e,
delicadamente, pôs-se a lamber-me a mão. Esqueci a fadiga
e os desgostos; a garganta contraída descerrou-se. Respirei;
não estava sozinho: tinha um amigo.
 
CAPÍTULO 06. 
 A MINHA ESTREIA.
 No dia seguinte, pusemo-nos cedo a caminho. Já
Não havia chuva mas céu azul, e pouca lama, graças ao vento
seco que soprara durante a noite. Os pássaros chilreavam
alegremente nas moitas da estrada e os cães pulavam à nossa
volta. De tempos a tempos, Capi erguia-se nas patas traseiras
e lançava-me dois ou três latidos de que eu percebia muito bem
a significação.
 - Coragem! coragem! - diziam eles.
 Era um cão inteligente que compreendia tudo e
se fazia sempre compreender. Jamais foi preciso a
palavra entre mim e Capi; desde o primeiro dia que
nos entendemos.
 Nunca tendo saído da minha aldeia, sentia-me
cheio de curiosidade de ver uma cidade.
 Devo confessar que Ussel não me deslumbrou. As
velhas casas de torrinhas, que certamente fazem as
delícias dos arqueólogos, deixaram-me absolutamente
indiferente.
 Uma Ideia enchia-me o cérebro e enevoava-me os
olhos, ou, pelo menos, não me deixava ver mais do
que uma coisa: uma loja de sapateiro.
 os meus sapatos, os sapatos prometidos por VItalis!
Chegara a hora de os calçar. Onde estava a bem-aventurada
sapataria que mos
ia fornecer?
 Era só Isto que eu procurava: o resto, torreões,
ogivas, colunas, não tinha interesse para mim.
 Por isso a única lembrança que me ficou de Ussel
foi a de uma loja sombria e denegrida pelo fumo,
situada ao pé do mercado. Tinha na montra espingardas velhas,
um casaco agaloado com dragonas de prata, muitas lâmpadas, e,
em cestos, ferros velhos,
principalmente cadeados e chaves enferrujadas.
 Foi preciso descer três degraus para entrar, e
então, encontrámo-nos numa quadra vasta, onde seguramente a
luz do sol nunca penetrara desde que o telhado fora posto
sobre a casa.
 Como é que uma coisa tão bela como sapatosse
podia vender num recinto tão pavoroso!
 Porém Vitalis sabia o que fazia ao vir àquela loja,
e bem depressa,tive a felicidade de calçar sapatos
ferrados que pesavam dez vezes mais do que os meus
tamancos.
 A generosidade do meu patrão não ficou por ali;
depois dos sapatos, comprou-me um casaquinho de
veludo azul, umas calças de lã e um chapéu de feltro; enfim,
tudo o que me prometera. Veludo para mim, que nunca usara
senão linho;
sapatos; um chapéu, quando eu até ali apenas tivera
os cabelos a cobrirem-me a cabeça! Decididamente,
era o melhor homem do mundo, o mais generoso
e rico.
 É verdade que o veludo estava amarrotado, é verdade que a
lã estava coçada; é também verdade que seria muito difícil
saber qual a cor primitiva do feltro, de tal maneira apanhara
chuva e poeira; mas, deslumbrado por tamanhos esplendores,, 
tornava-me insensível às imperfeições que se escondiam sob a
sua magnificência.
 Tinha pressa de vestir aqueles belos fatos, porém,
antes de mos dar, Vitalis fez-lhes uma transformação que me
lançou em doloroso espanto. Ao entrar na estalagem, tirou
do saco uma tesoura
e cortou as pernas das minhas calças pela altura
dos joelhos.
 Como eu o olhasse, pasmado, disse-me:
 - Isto só tem o fim de ficares diferente de toda
a gente. Estamos em França, visto-te de italiano;
se formos à Itália, o que é possível, vestir-te-ei de
francês.
 Esta explicação não me desfez o espanto, e ele
continuou:
 - Que somos nós? Artistas, não é assim? Comediantes que
só pelo seu aspecto devem provocar a curiosidade. Imaginas
que, se fôssemos para a praça
pública vestidos como burgueses ou aldeões, forçaríamos as
pessoas a olhar-nos e a parar à nossa volta? 
 Eis como, sendo eu francês de manhã, me tornei
italiano antes da noite.
 Porque as calças ficavam pelo joelho, Vitalis amarrou-me
as meias com cordões vermelhos cruzados ao longo das pernas;
enleou também fitas no chapéu,
e enfeitou-o com um ramo de flores de lã.
 Não sei o que poderiam os outros pensar de mim,
mas para ser sincero devo declarar que me achei
soberbo; e, com certeza, o estava, pois o meu amigo
Capi, depois de me haver contemplado muito tempo,
estendeu-me a pata com ar satisfeito.
 A aprovação que Capi deu à minha mudança
foi-me bastante agradável pelo facto de Joli-Cwur,
enquanto eu vestira o fato novo, se ter Instalado à
minha frente a imitar os meus gestos, exagerando-os.
E uma vez terminados os arranjos, pusera ele as
mãos nas ancas e, de cabeça deitada para trás, desatara a rir
com gritinhos de mofa.
 
 - Agora que tens o traje novo - disse-me Vitalis,
depois de eu colocar o chapéu na cabeça - vamos
meter-nos ao trabalho, a fim de dar amanhã, dia de
feira, um grande espectáculo, em que te estrearás.
 Perguntei o que queria dizer estrear e Vitalis
explicou-me que era aparecer pela primeira vez ao
público, numa representação,
 - Amanhã daremos uma, - disse ele, - e farás
parte dela. É preciso ensaiar o papel que te destino.
 .Os meus olhos espantados exprimiram incompreensão.
 - Papel, é o que terás de fazer na comédia. Se te
trouxe comigo, não foi precisamente para te proporcionar o
prazer da viagem. Não sou bastante rico para isso. Foi para
trabalhares. E o teu trabalho consistirá em representar a
comédia com os cães e Joli-coeur.
 - Mas eu não sei representar! - exclamei assustado.
 - É por isso mesmo que tenho de ensinar-te.
Como deves calcular, não é naturalmente que Capi
anda tão bem nas patas traseiras, como não é por
prazer que Dolce dança na corda. Capi aprendeu a
conservar-se de pé nas patas traseiras, e Dolce a dançar na
corda: tiveram de trabalhar muito tempo para adquirir essas
habilidades. Pois bem! tu também deves trabalhar para aprender
os diferentes papéis que representarás com eles. Ponhamos mãos
à obra.
 Eu tinha nessa época ideias absolutamente primitivas
quanto ao trabalho. Imaginava que isso consistia em cavar a
terra, ou rachar uma árvore,
ou cortar a pedra, e não concebia outra coisa.
 - A peça que vamos representar - continuou Vitalis - tem
por título: o criado do sr. Joli-Coeur, ou O mais estúpido dos
dois não é aquele que pensamos.
Eis o assunto: O senhor Joli-Cwur possuiu até hoje
um criado que o satisfazia em absoluto: o criado é
Capi. Mas Capi já está velho, e, por outro lado, o
senhor Joli-Coeur deseja novo servo. Capi encarrega-se de o
procurar. Contudo não será um cão que ele terá por sucessor,
será um rapazinho, um camponês chamado Remi.
 - Assim como eu?
 - Não como tu, mas tu mesmo. Chegas da aldeia
para entrar ao serviço de Joli-Coeur.
 - Os macacos não têm criados.
 - Nas comédias, têm-nos. Chegas então, e o senhor
Joli-Coeur acha-te com ar de imbecil.
 - Não é divertido, isso.
 - Que te Importa, visto ser a fingir? Imagina que
entras realmente em casa dum senhor como criado
e te dizem, por exemplo, que ponhas a mesa. Eis
justamente aqui uma que deve servir para a representação.
Aproxima-te e dispõe os talheres. Sobre esta mesa, havia
pratos, um copo, uma faca, um garfo e guardanapos.
 ,Como se arranjaria tudo aquilo?
 Fazendo esta pergunta a mim mesmo, fiquei de
braços pendentes, Inclinado para a frente, com a
boca aberta, sem saber por onde começar; Vitalis
bateu as palmas, rindo às gargalhadas.
 - Bravo! - exclamou. - A tua expressão fisionómica é
esplêndida. o rapaz, que tinha antes de ti, tomava um aspecto
astuto e o seu ar dizia claramente: «Verão como eu vou
interpretar bem o papel de palerma»; tu, não dizes nada, ficas
calado com
uma expressão de ingenuidade admirável.
 - Não sei o que devo fazer.
 - E é por isso mesmo que estás excelente. Amanhã, dentro
de alguns dias, saberás às mil maravilhas o teu papel. Será
então necessário recordares-te do embaraço que experimentas
agora em fingires o que não sentes nessa altura. Quem és tu na
minha comédia? Um moço camponês que nada viu e nada sabe;
chega a casa dum macaco e acha-se mais Ignorante
e desajeitado do que o outro. Mais tolo do que Joli-coeur, 
eis o teu papel; para o representar na perfeição, nada mais
terás a fazer do que ficar como estás neste momento. Mas como
isso é Impossível, deverás lembrar-te do que foste e
tornares-te pelo teu esforço naquilo que já não serás
naturalmente.
 O criado do sr. Joli-Coeur não era uma comédia
extensa, e a sua representação durava apenas vinte
minutos. Mas o ensaio prolongou-se por mais de
três horas; Vitalis fez-nos recomeçar duas, quatro,
dez vezes a mesma coisa, tanto aos cães como a mim.
 Fiquei bastante surpreendido com a paciência e
doçura do nosso mestre. Não seria assim que tratariam os
animais da minha aldeia, onde as pragas e as pancadas eram os
únicos processos de educação
que empregavam para com eles.
 Vitalis, durante o longo ensaio, não se zangou
uma só vez; nem uma só vez praguejou.
 - Vamos, recomecemos - dizia ele severamente,
quando algum de nós andava mal. - Capi, você está
distraído; Joli-Coeur, será castigado.
 E não passava disto; no entanto, era bastante.
 - Então?! - perguntou-me ele quando o ensaio
terminou - Achas que te habituarás a ser actor?
 - Não sei.
 - Isto aborrece-te?
 - Não, diverte-me.
 - Nesse caso tudo decorrerá bem; és Inteligente,
e, o que é ainda mais precioso, atento; com atenção
e docilidade conseguimos tudo.
 Afoitei-me a dizer-lhe que o que me causara mais
admiração no ensaio fora a inalterável paciência de
que ele dera prova, tanto com Joli-Coeur e os cães,
como comigo.
 Sorriu meigamente.
 - Vê-se bem - respondeu Vitalis. - que só conviveste até
hoje com aldeões cruéis para os animais, e que imaginam
devê-los conduzir de cajado sempre erguido. Ora Isto é um
triste erro: pouca coisa se obtém pela brutalidade, mas quase 
tudo conseguimos pela doçura. Não foi impacientando-me com os
meus animais que fiz deles o que são. Se lhes tivesse
batido, ficariam receosos, e o receio paralisa a Inteligência. 
 Os meus camaradas,os cães e o macaco, possuíam
sobre mim a grande vantagem de estarem habituados
a aparecer em público, de forma que viram chegar
sem receio o dia seguinte. Para eles, tratava-se de
fazer o que já haviam feito cem vezes, mil vezes talvez.
 Mas eu não tinha a sua tranquila confiança. Que
diria Vitalis, se representasse mal o meu papel? Que
diriam os espectadores?
 Por isso a minha comoção era extrema quando no
dia seguinte deixámos a estalagem a fim de irmos
para a praça, onde se devia realizar a nossa representação.
 Vitalis abria a marcha, de cabeça erguida, peito
arqueado, e marcava o passo com os braços e os pés,
tocando uma valsa num pífaro de metal.
 Atrás dele ia Capi, levando às costas Joli-Coeur,
que se enfatuava na sua farda de general inglês,
casaco e calças vermelhas agaloadas de ouro, com
chapéu bicórnio guarnecido duma grande pluma.
 A seguir, a respeitosa distância, avançavam na
mesma fila Zerbino e Dolce.
 Finalmente ia eu na cauda do cortejo que, graças ao
espaço indicado pelo nosso mestre, ocupava certo espaço na
rua.
 Mas, mais ainda do que a pompa do nosso desfile,
o que provocava a atenção eram os sons agudos do
pífaro que iam até ao fundo das casas despertar a
curiosidade dos habitantes de Ussel. Corriam às portas para
nos ver passar, as cortinas de todas as janelas erguiam-se com
rapidez. Seguiam-nos algumas crianças, aldeãos
embasbacados juntavam-se a elas, e, quando chegámos à praça,
trazíamos atrás e em volta de nós um verdadeiro
acompanhamento.
 A sala de espectáculo edificou-se num instante;
consistia numa corda amarrada a quatro árvores, de
maneira a formar um rectângulo, onde nos colocámos.
 A primeira parte da representação foi preenchida
por várias peloticas executadas pelos cães; não sei
dizer quais foram essas habilidades, ocupado como
estava a recordar-me do meu papel e perturbado
pela inquietação.
 Do que me lembro, é que Vitalis abandonara o
pífaro e substituíra-o por um violino com que acompanhava os
exercícios dos cães, ora com músicas de dança, ora com
melodias suaves e doces.
 A multidão apinhava-se contra as cordas, e,
quando eu olhava em redor, maquinalmente, via uma
infinidade de pupilas que, fixadas em nós, pareciam
lançar faíscas.
 Finda a primeira peça, Capi segurou, entre os
dentes, uma bandeja e, caminhando nas patas traseiras,
aproximou-se do «respeitável público». Quando as moedas não
caíam no prato, detinha-se e, poisando-o no interior do
círculo fora do alcance das mãos colocava as patas dianteiras
no espectador recalcitrante, ladrava duas ou três vezes, e
batia pancadinhas sobre a algibeira que pretendia abrir. 
 Então na assistência havia exclamações, gracejos
e zombarias:
 - Olha a esperteza do cão, como conhece os que
têm a bolsa recheada!
 - Vá, mete a mão na algibeira!
 - Dá!
 E a moeda era finalmente arrancada das profundezas onde
se escondia. Entretanto, Vitalis, sem dizer palavra, mas
sem
perder de vista a bandeja, Ia tocando árias alegres
no violino.
 Bem depressa Capi voltou para junto do dono,
trazendo orgulhosamente o prato cheio.
 Chegara a altura de eu e Joli-Coeur entrarmos
em cena.
 - Minhas senhoras e meus senhores - anunciou
Vitalis gesticulando com o arco numa das mãos e o
violino noutra -, vamos continuar o espectáculo com
uma engraçada comédia intitulada: O Criado do
Sr. Joli-Coeur, ou O mais estúpido dos dois não é
aquele que imaginamos. Só lhes digo uma coisa: arregalem os
olhos, apurem os ouvidos e preparem as mãos para aplaudir.
 O que ele chamava «uma engraçada comédia» era
na realidade uma pantomima, isto é, uma peça representada com
gestos e não com palavras. E assim devia ser, pela forte razão
de que dois dos principais
actores, Joli-Coeur e Capi, não podiam falar, e de
que o terceiro (que era eu próprio) seria absolutamente
incapaz de dizer fosse o que fosse. Todavia, a fim de
tornar a mímica dos comediantes mais facilmente compreensível,
Vitalis acompanhava-a de algumas palavras que preparavam as
situações da peça e as explicavam.
 Foi assim que, tocando em surdina uma marcha
militar, anunciou a entrada do sr. Joli-Coeur, general inglês
que ganhara patentes e riqueza nas guerras das Indias. Até
então, o sr. Joli-Coeur só tivera Capi
como criado, mas desejava ser servido daí em diante
por um homem, visto que os meios lhe permitiam
esse luxo: os bichos haviam sido já bastante tempo
escravos dos homens; era altura de as coisas mudarem.
 Enquanto esperava a chegada do criado, o general
Joli-Coeur passeava de cá para lá, fumando um cigarro. Era
digno de ver-se como ele lançava o fumo para a cara do
público!
 O general impacientava-se, e principiava a volver
olhos iracundos, como alguém que vai zangar-se, mordia os
lábios e batia com o pé no chão.
 À terceira patada eu devia entrar em cena, levado
por Capi.
 Se tivesse esquecido o meu papel, o cão far-mo-ia
lembrar. No momento preciso, estendeu-me a pata e
introduziu-me junto do general.
 Este, ao ver-me, levantou os braços ao céu com ar
desanimado. Pois quê? Era aquilo o criado que lhe
apresentavam? E veio mirar-me de perto, girando à
minha volta e encolhendo os ombros.
 Tinha tanta graça que toda a gente desatou a rir:
percebiam que ele me considerava um perfeito imbecil; era
também esta a opinião dos espectadores. A comédia estava,
já se sabe, organizada de forma
a mostrar aquela Imbecilidade sob todos os aspectos;
em cada cena eu era obrigado a cometer uma nova
tolice, enquanto que Joli-Coeur, pelo contrário, devia
arranjar ocasião para patentear a sua inteligência
e habilidade.
 depois de me examinar longamente, o general, desdenhoso,
mandou-me servir o almoço.
 - O general imagina que, se o rapaz comer, parecerá menos
idiota - comentava Vitalis. - Vamos 
lá ver.
 E eu sentei-me em frente duma mesinha sobre a
qual estava um talher e um guardanapo pousado no
meu prato.
 Que fazer do guardanapo?
 Capi indicava-me que me devia servir dele.
 Depois de pensar um bocado, desdobrei-o e
assoei-me.
 Ao -ver isto o general torceu-se a rir e Capi caiu
de costas, confundido com a minha estupidez.
 Percebendo que me enganara, pus-me a contemplar o
guardanapo, perguntando a mim mesmo como 
empregá-lo.
 Por fim, tive uma ideia; enrolei o guardanapo e
fiz dele uma gravata.
 Novas gargalhadas do general, nova queda de Capi.
 E assim sucessivamente até o momento em que o
general, exasperado, me arrancou da cadeira, se sentou
no meu lugar e comeu o almoço que me era destinado.
 Ah! Aquele sim! Sabia servir-se dum guardanapo,
o general. Com que elegância o meteu na lapela do
uniforme e o depôs sobre os joelhos! Com que graça
partiu o pão e esvaziou o copo!
 Mas onde as suas belas maneiras produziram um
efeito irresistível, foi quando, terminado o almoço,
pediu um palito e o passou rapidamente entre os dentes.
 Os aplausos explodiram de todos os lados e a
representação acabou num triunfo. 
 Como o macaco era inteligente! Como o criado
parecia estúpido!
CAPÍTULO 07.
 APRENDO A LER
 ERAm de facto comediantes de talento os da companhia do
Signor Vitalis - falo dos cães e do macaco-, - mas de talento
pouco variado.
 Depois de três ou quatro representações, conheciam-lhes
todo o repertório; nada mais lhes restava senão repetirem-se. 
 Daí resultava a necessidade de não se demorarem
muito tempo numa mesma região.
 Três dias depois de chegarmos a Ussel, foi preciso
pormo-nos a caminho.
 "Para onde íamos?"
 Eu já tinha bastante confiança com o meu mestre para me
permitir esta pergunta.
 - Conheces o país? - disse ele, virando"se para mim.
 - Não.
 - Então por que perguntas para onde vamos?
 - Para saber.
 - Se eu te disser - continuou ele - que vamos
para Aurillac a fim de nos dirigirmos em seguida
para Bordéus e de Bordéus para os Pirinéus, o que
ficas sabendo com isto?
 - Mas o senhor conhece então o país?

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