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Conhecendo uma língua As tentativas de explicação para o fenômeno da língua (ou línguas), bem como o interesse sobre ela, são muito antigos. Não são poucos os mitos e lendas que foram criados para justificar essa faculdade presente na espécie humana. A narrativa contida em Gênesis é um exemplar de uma busca sobre como explicar a origem da língua, assim como a narrati- va da Torre de Babel, também bíblica, procura justificar o porquê de haver tantas línguas diferentes. Em diversas culturas, houve essa busca por ex- plicações, que, inicialmente, era suprida pelo mito. Houve um período de milhares de anos para que a língua começasse a ser estudada sob uma perspectiva científica. Nesse período, a humanidade lançou diferentes olhares sobre a língua: o místico, o filosófico, o psicológico, o social, o an- tropológico, o físico etc., até, finalmente, se chegar à ciência incumbida de estudar a língua como um objeto em si mesma, a Linguística. É por meio dessa ciência que serão apresentados aqui os conceitos de linguagem e língua, de modo que você, estudante, seja capaz de compreender a dife- rença entre esses dois fenômenos. Linguagem versus língua A primeira questão a ser esclarecida diz respeito à condição a que toda definição teórica se submete. Cada linha de estudo da Linguística, em in- teração com outras ciências, vai dar uma definição de língua que privile- gia um de seus múltiplos aspectos. Assim, a interface entre a Linguística e a Biologia vai preferir definir a língua como parte da dotação genética da espécie humana; a interface da Linguística com a Sociologia vai dar mais ênfase aos aspectos socioculturais da língua; a interface da Linguísti- ca com a Psicologia vai definir a língua como parte da cognição humana. Além disso, dentro de cada uma dessas interfaces, desenvolvem-se várias teorias diferentes. E cada teoria vai preferir definir língua de uma manei- ra especial, que esteja mais de acordo com suas hipóteses. Portanto, não existe uma única definição de língua e linguagem que possa ser aplicada i n d i s c r i m i n a d a m e n t e . A d e f i n i ç ã o d e s ses conceitos precisa ser entendida, então, no âmbito de uma teoria particular. 13 Conhecendo uma língua De forma a se poder discutir sobre língua e linguagem, optou-se pela apre- sentação de duas propostas: a de Ferdinand de Saussure (1857-1913) e a de Noam Chomsky. A escolha se deu em virtude de esses teóricos serem conside- rados os grandes "divisores de água" nos estudos linguísticos do século XX, bem como serem também os mais conhecidos e discutidos. Tanto a teoria saussuriana quanto a teoria chomskyana não só definem língua de uma maneira particular, mas também têm visões completamente diferentes sobre o que é a linguagem. Para Saussure, linguagem é uma faculdade humana, uma capacidade que os homens têm para produzir, desenvolver, compreender a língua e outras manifestações simbólicas semelhantes a ela. Esse autor via a linguagem como um sistema muito mais amplo e abrangente do que Chomsky, para quem a linguagem, ou a faculdade da linguagem, expressão por ele empre- gada, é um módulo da mente especificamente associado à língua, e não a outras linguagens (como a pintura, a música, a dança etc.). Outro ponto marcante nesse quesito é a falta de especificidade de Saussure a respeito do que seria essa faculdade que ele chama de linguagem. Especifici- dade que não faltou a Chomsky ao delimitar a faculdade da linguagem como um módulo cognitivo independente, especificamente associado à língua. Na visão de Chomsky, a faculdade da linguagem deve ser o objeto central do estudo de uma teoria linguística. Posicionamento oposto ao de Saussure, para quem o objeto da Linguística é a língua. Saussure entende que, de todas as manifestações da faculdade da lingua- gem, a língua é a que mais bem se presta a uma definição autônoma. Por isso, ela ocupa um lugar de destaque entre as manifestações da linguagem, e, como tal, deve ser tomada como base para o entendimento de todas essas outras ma- nifestações. Daí, hoje em dia, a Semiótica, que é a ciência que estuda todas as manifestações da faculdade da linguagem, partir sempre de análises feitas sobre a língua. O autor argumentava, segundo Petter (2007, p. 14), que: A linguagem envolve uma complexidade e diversidade de problemas que suscitam a análise de outras ciências, como a Psicologia, a Antropologia etc., além da investigação linguística, não se prestando, portanto, para objeto de estudo dessa ciência. Para esse fim, Saussure separa uma parte do todo linguagem, a língua - um objeto unificado e suscetível de classificação. A complexidade e diversidade de problemas, apontados por Saussure, que suscitam a análise de outras ciências tem a ver, segundo ele, com o caráter "he- teróclito e multifacetado" da linguagem. Por meio de tal caracterização, o autor pretendia dar conta de que a seu ver a linguagem abrange vários domínios, é 14 Conhecendo uma língua ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica; pertence ao domínio individual e social. Em contraposição à língua, que considerava um objeto passível de estudo pela unidade apresentada. A língua, por sua vez, é definida pelo autor como "um conjunto de convenções necessárias, adotada pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos" (1969, p. 17, apud PETTER, 2007, p. 14). Isso implica que, para Saussure, a língua é social e, por conseguinte, convencio- nal, isto é, um acordo coletivo aceito entre os falantes da língua. Esse acordo se revela, toma a forma, segundo o autor, de um sistema. Um sistema é um conjunto organizado de elementos, que se define pelas caracte- rísticas desses elementos, e no qual cada elemento se define pelas diferenças que apresenta em relação a outro elemento, e por sua relação com todo o con- junto. Cada elemento da língua se define pela diferença que apresenta quando comparado a outro elemento. Sob essa perspectiva, na língua portuguesa "p" se define por sua oposição a "b" e a todos os outros elementos dessa língua. Saussure ainda trata da diferença entre língua e fala: esta seria o resultado da- quela, sendo que a fala é considerada individual, no sentido de que apresentará características particulares, próprias a cada falante. A língua, defende o autor, é condição para se produzir a fala, mas não há língua sem o exercício da fala. Após esse panorama sobre o pensamento saussureano quanto às noções de linguagem, língua e fala, cabe dizer que, depois de Saussure, os estudos linguís- ticos assumiram um viés eminentemente social. Posição que foi revista a partir da divulgação das ideias de Chomsky, que ressaltavam a importância da inves- tigação das relações entre mente e língua. Se na teoria saussuriana a língua é considerada um objeto fundamentalmente social, na Gramática Gerativa, teoria elaborada por Chomsky, a língua é um objeto mental. De uma forma mais radical do que outros pesquisadores que o antecederam, o autor parte da hipótese de que existe um módulo linguístico em nossa mente, constituído de princípios responsáveis pela formação e compreensão das expres- sões linguísticas, e especificamente dedicado à língua. Para ele, o foco não está na língua propriamente dita, mas nos recursos, princípios que permitem a cons- trução, aprendizagem de uma língua em particular. Por isso, para a Gramática Ge- rativa, a noção de língua está fortemente associada ao estado inicial da faculdade da linguagem e aos resultados do desenvolvimento desse estado inicial pelo con- tato com um determinado ambiente linguístico. Essa faculdade da linguagem de que o autor fala seria inata, todos os seres humanos nasceriam com ela.Por meio dela é que o ser humano pode aprender uma língua - ou mais de uma -, no está- gio de aquisição linguística, desde que seja exposto a uma dada língua. Conhecendo uma língua Essa capacidade inata apontada pelo autor leva também à diferença entre competência linguística e desempenho linguístico. A primeira diz respeito ao conhecimento do sistema linguístico que o falante tem de sua língua e que lhe permite produzir o conjunto de sentenças da mesma. É um conjunto de regras que o falante construiu em sua mente pela aplicação de sua capacidade inata para a aquisição da língua que ouviu desde a infância. O desempenho é o com- portamento linguístico resultante daquelas regras aliadas a outras variantes: convenções sociais, crenças, atitudes emocionais do falante quanto ao que diz, pressupostos sobre as atitudes do interlocutor, condições fisiológicas (de fona- ção) etc. A competência é o que o falante, inconscientemente, sabe sobre sua língua; o desempenho é o uso, ou melhor, é o resultado do uso que ele faz desse saber, conhecimento. Para Chomsky, o desempenho pressupõe a competência, mas a competência não pressupõe o desempenho. Para encerrar essa seção, é possível dizer, com base no exposto, que as lín- guas naturais, em número muito diversificado, são manifestações de algo mais geral, a linguagem, e que as línguas são um meio de interpretar, organizar e categorizar o mundo, atribuir sentido ao que está ao nosso redor, sendo que cada língua pode focar ou realçar partes diferentes de uma mesma realidade. Por exemplo, em países em que a ocorrência de neve é constante, os falantes possuem, muitas vezes, palavras específicas para certos tipos de neve, o que não é muito comum em países em que a neve não faz parte do cotidiano dos falan- tes, os quais acabam empregando apenas uma palavra ou um menor número de palavras relacionadas ao conceito de "neve". Essa capacidade de interpretar e fazer um recorte do mundo é, aliás, disponível apenas para os seres humanos, como será visto a seguir. Língua e comunicação animal O estudo da comunicação animal permite avaliar, pelo confronto, a singu- laridade da linguagem humana. Como se verá, o ser humano é a única espé- cie a deter um sistema de comunicação, uma linguagem tão complexa, única, a língua. Para ilustrar o problema da comunicação animal, será tomado como base para discussão o caso das abelhas. Segundo Petter (2007, p. 15-16), um estudo clássico sobre o sistema de co- municação das abelhas revelou que: [...] a abelha-obreira, ao encontrar uma fonte de alimento, regressa à colmeia e transmite a informação às companheiras por meio de dois tipos de dança: circular, traçando círculos 16 Conhecendo uma língua horizontais da direita para a esquerda e vice-versa, ou em forma de oito, em que a abelha contrai o abdome, segue em linha reta, depois faz uma volta completa à esquerda, de novo corre em linha reta e faz um giro para a direita, e assim sucessivamente. Se o alimento está próximo, a menos de cem metros, a abelha executa uma dança circular, se está distante, realiza uma dança em forma de oito. Embora seja bem preciso, o sistema de comunicação das abelhas não consti- tui uma linguagem no sentido em que o termo é empregado quando se trata de linguagem humana. Isso por que existem diferenças entre o sistema de comuni- cação das abelhas e a linguagem humana que coloca aquele em posição muito distante do que pode ser considerado uma língua. Primeiramente, a mensagem da abelha não provoca uma resposta, apenas uma conduta, portanto, não há diálogo. Aliás, o tipo de conduta resultante - a busca pelo alimento - é sempre a mesma. No caso da espécie humana, as respostas e condutas possíveis após a recepção de uma mensagem são inúmeras e imprevisíveis. Essa não possibi- lidade de mudança de conduta, em certa medida, tem relação com o fato de que a comunicação da abelha se refere apenas a um dado objetivo, fruto da experiência. A abelha não constrói uma mensagem a partir de outra mensagem. A linguagem humana caracteriza-se por oferecer um substituto à experiência, apto a ser transmitido infinitamente no tempo e espaço. Outra diferença drástica tem a ver com o conteúdo da mensagem. Entre as abelhas, o único conteúdo comunicado é o alimento, residindo na distância e na direção a única variação possível. Com sua língua, o homem pode versar sobre assuntos que vão da obtenção de alimento à reflexão sobre sua existência. Afinal, o conteúdo da linguagem humana é ilimitado. Finalmente, a mensagem das abelhas não se deixa analisar, decompor em elementos menores. Na verdade, esse é o fato da linguagem humana, a língua, que mais a difere da comunicação das abelhas. A propriedade de articulação da língua em níveis é o que permite ao ser humano produzir uma infinidade de mensagens novas (sentenças, textos) a partir de um número limitado de elementos sonoros distin- tivos (os fonemas, sobre os quais se falará mais à frente). O mesmo é válido para a Libras, que combina um número limitado de elementos visuais para produzir mensagens novas infinitamente. Com isso, pode-se concluir, sem medo de errar, que a comunicação das abe- lhas não é linguagem no sentido em que se fala de uma linguagem humana. Alguns de vocês podem estar considerando a comparação com as abelhas um tanto "injusta", principalmente se se lembraram dos papagaios. A essa altura, a pergunta que alguns gostariam de fazer é: Mas e o caso dos papagaios, que falam? Conhecendo uma língua A verdade é que animais como o papagaio, a catatua etc. têm a capacidade de imitar os sons que ouvem. E "a fala" nesses animais nada mais é do que uma reprodução, uma cópia. Eles não são capazes de aplicar um dado enunciado a contextos diferentes, não são capazes de inovar. Por exemplo, um papagaio pode reproduzir perfeitamente, se as ouviu, as frases "O copo caiu" e "O menino chegou". Mas ele nunca, sem ter ouvido, ao contrário de uma criança de três anos, poderia aprender a partir dessas frases e produzir "O menino caiu". Agora, resolvida a questão da comunicação/linguagem dos animais, é hora de conhe- cer as características que tornam a linguagem humana - a língua - um fenôme- no tão singular, único. A natureza da língua: suas propriedades Todas as línguas naturais compartilham características que lhes são únicas e que as identificam enquanto língua, diferenciando-as de outros sistemas de co- municação. Nesse sentido, é possível identificar, por meio dessas características, se um dado sistema de comunicação se trata de uma língua. Entre os linguistas, há consenso sobre algumas propriedades que estão presentes nas línguas. São elas: _ Flexibilidade e versatilidade: trata-se do fato de a língua poder ser usada para comunicar os mais diversos conteúdos para os mais variados fins. A linguagem humana pode ser usada para obter alimento ou simplesmente para entreter as pessoas, pode versar sobre assuntos como política, filoso- fia, emoções e até mesmo coisas imaginadas, que não foram experiencia- das pelo ser humano. _ Arbitrariedade: diz respeito à característica de que não existe uma rela- ção direta entre uma palavra (significante) e seu conceito (significado). Por isso, não é possível determinar o significado de uma palavra apenas pela forma que ela apresenta, da mesma forma como não é possível esperar uma dada forma para um significado em específico. Por exemplo, nada na forma da palavra "elefante" remete ao seu significado. Reflita que não é possível, então, para um aprendiz estrangeiro do português conseguir alcançar o significado da palavra "elefante" apenas entrando em contato com a palavra. De nada adiantará a ele especular sobre a forma da palavra para chegar ao seu significado, pensamentos como "se a palavra é grande, deve se tratar de um objetogrande", "se a palavra tem uma sonoridade desagradável, trata-se de um significado igualmente desagradável" não o ajudarão a saber qual o conceito a que determinada palavra remete. 18 Conhecendo uma língua _ Descontinuidade: pequenas diferenças na forma das palavras, por exem- plo, podem gerar grandes diferenças no significado. Observe a diferença entre "lata" e "pata". A mudança de um segmento na palavra, o "p" pelo "l", levou a um significado totalmente diverso. Isso mostra o caráter descon- tínuo da diferença formal entre forma e significado. Ou seja, não necessa- riamente uma mudança pequena na forma levará a uma mudança peque- na no significado. Na verdade, pequenas mudanças na forma (fato X foto; vaca X faca; bola X cola) podem levar a grandes variações de significado. _ Criatividade/produtividade: característica que permite ao usuário de uma língua produzir um número infinito de enunciados a partir de um nú- mero limitado de elementos por meio da combinação e recombinação dos mesmos. A língua põe à disposição de seus usuários um número determi- nado de elementos (fonemas, morfemas, estruturas sintáticas) a partir dos quais os usuários podem criar sentenças num número infinito. E isso mes- mo que o usuário nunca tenha ouvido um dado enunciado em particular antes. Isso significa que um falante do português não precisa ouvir a frase "A casa amarela é bonita" para produzi-la. Ele pode enunciá-la após ter ou- vido sentenças como "A casa é amarela" e "A casa é bonita", pois empregará a capacidade de criatividade e produtividade que a língua lhe oferece. _ Dupla articulação: as línguas se constituem da junção de elementos menores, por isso sua análise é possível em dois planos. O do conteúdo/ significado e o da expressão/forma linguística. Assim, o primeiro plano é constituído por unidades dotadas de sentido e a menor dessas unidades chama-se morfema. Por exemplo: "padeiro" (pessoa que faz pão) pode ser subdividido em [pad-] (de pão) e [-eiro] (designa a pessoa que faz algo), em que [pad-] e [-eiro], mesmo isoladamente, remetem a um sig- nificado. Nessa primeira articulação da linguagem, as unidades são com- postas de matéria fônica e sentido, ou seja: significado + significante. No segundo plano, pode-se dividir os morfemas em unidades ainda me- nores e, nessa etapa, as unidades ficam desprovidas de sentido passando a serem chamadas de fonemas. Assim, [pad-] pode ser analisado quanto aos seus fonemas /p/, /a/, /d/, que, isoladamente, não possuem significado, são apenas distintivos entre si. A dupla articulação é um fator de economia linguística, pois com poucas dezenas de fonemas formam-se diversas uni- dades de primeira articulação. _ Padrão: estabelece a maneira como os elementos da língua devem ser or- ganizados na produção dos enunciados e palavras, ditando as regras para o que pode "andar junto" e a ordem em que aparecem no enunciado ou palavra. Desse modo, a partir das palavras "casa", "o", "telhado", "quebrou" e "da" podem ser produzidos os enunciados "O telhado da casa quebrou", Conhecendo uma língua "Quebrou o telhado da casa", "Da casa, quebrou o telhado" ou "Da casa, o telhado quebrou", todas sentenças aceitas como bem organizadas, bem construídas por falantes do português. O mesmo não acontece com: "Da telhado, o casa quebrou", "Casa quebrou o telhado da", "Da quebrou o te- lhado casa". _ Dependência estrutural: as línguas contêm estruturas dependentes que permitem o entendimento da estrutura interna de uma sentença, inde- pendente do número de elementos linguísticos envolvidos. Observe: O prédio queimou. O prédio da esquina queimou. O prédio da esquina que eu vi construir queimou. O prédio da esquina que eu vi construir quando era jovem queimou. O prédio da esquina que eu vi construir quando era jovem queimou ontem. Pelo fato de que uma estrutura depende da outra é que conseguimos en- tender os enunciados acima. Como bons usuários do português, enten- demos que "da esquina" está vinculado ao prédio da mesma forma que "eu vi construir" e "quando era jovem", sendo que isso não impede que o conteúdo fundamental - "o prédio queimou" - seja compreendido. Outro ponto a ser visitado se trata das funções da linguagem, ou seja, para que empregamos a língua, assunto tratado na próxima seção. Funções da linguagem Quanto à característica da versatilidade das línguas naturais vista na seção anterior, cabe um aprofundamento no que diz respeito às funções da lingua- gem, isto é, os usos que podem ser feitos da linguagem verbal - língua. Quem muito contribuiu para o estabelecimento das funções da linguagem foi Roman Jakobson (1896-1982), que acreditava que a linguagem deve ser examinada em toda variedade de suas funções. Para apontar as diferentes funções, o autor levou em conta em que elemento (remetente, destinatário, referente, mensa- gem, contato e código) do processo comunicativo por ele proposto estaria cen- trada a comunicação: 20 Conhecendo uma língua _ Função emotiva: centrada no remetente, isto é, em quem produz o que é comunicado. A informação é repassada de forma subjetiva, do ponto de vista do falante, de acordo com suas crenças e/ou sentimentos. _ Função conativa: centrada no destinatário, quem recebe o que é comu- nicado. Nessa função, a intenção é estabelecer a ideia de interação com o destinatário da comunicação. Tem por finalidade, muitas vezes, conven- cer, persuadir, provocar algum tipo de resposta ou atitude (verbal ou não) por parte do destinatário. _ Função referencial: centrada no referente, na informação, conteúdo da comunicação estabelecida. Textos com essa função têm como finalidade a transmissão objetiva da informação. _ Função poética: centrada na mensagem, na sua apresentação, sua forma de expressão. Nela, o objetivo é criar uma forma de expressão, de uso da língua, peculiar, inovadora, que chama atenção mais pela maneira de di- zer do que propriamente pelo que é dito. _ Função fática: centrada no contato. Aqui a finalidade é manter o contato entre remetente e destinatário, sendo que essa função apresenta estra- tégias para avaliar o quanto os participantes do processo comunicativo estão realmente interessados na comunicação estabelecida. São comuns expressões como: "Você está escutando?", "Entendo o que você está ten- tando dizer", "Como vai?", "Tudo bem". _ Função metalinguística: centrada no código, no próprio sistema linguís- tico. Essa função permite que se façam reflexões sobre a língua, sobre suas características, seus usos. É, em última análise, usar a língua para falar da própria língua. É importante observar, ainda, que as mensagens, comunicações, textos não apresentam apenas uma função da linguagem, mas várias, ou mesmo todas, só que de forma hierarquizada. Isso significa que, mesmo concorrendo em um mesmo texto várias funções, existe uma dominante. Por fim, os textos-mensa- gens-comunicações empregam procedimentos linguísticos e discursivos que produzem efeitos de sentido relacionados com as diferentes funções, permitin- do identificá-las. Conhecendo uma língua Os níveis de análise linguística Os estudos linguísticos podem ser feitos em diferentes níveis, cada um ocu- pando-se de uma parte do sistema linguístico, podendo abordá-las, e geralmen- te o fazendo, de forma independente. Nesta seção, o intuito é apresentar um panorama de cada um desses níveis, o objeto de que se ocupam (a parte do sistema linguístico) e maneira como o tratam. Fonética e fonologia A fonética e fonologia são dois níveis cuja análise se entrecruza, trabalhando a partir de um "mesmo" ponto de partida, o som. A fonética é a área da Linguísti- ca que se ocupa da descrição e análise da massa amorfa (sem forma, que não se distingue,indecifrável) fônica. Seu objeto de estudo é o som, como ele é produ- zido, quais as características dos sons da fala (fones), língua, que os diferencia de outros sons (música, barulhos, grunhidos etc.). Nesse nível não há preocupação com significado, com o valor dos sons para uma língua em particular, apenas com características físicas, acústicas e articulatórias da fonação (emissão dos sons da fala). A fonologia, por outro lado, trabalha com sons, mas não apenas isso, não apenas o som em si mesmo. Antes, está preocupada em descrever o valor de determinados sons para línguas em particular. Na fonologia, então, estuda-se o caráter propriamente linguístico desses sons. Isso significa que os sons são ana- lisados em termos das relações que eles estabelecem entre si, e dos valores que eles têm dentro de um determinado sistema linguístico. Para identificar se um som tem ou não valor no sistema de uma língua, é preciso descobrir se ele é capaz de distinguir significados. Se a troca de um som por outro dentro de um mesmo contexto resultar na mudança de significado de uma palavra, trata-se de um som que tem valor linguístico, portanto, um fonema. Caso contrário, não havendo mudança de significado com a troca do som num mesmo contexto, está-se diante de um fone. Desse modo, /t/ e /d/ são fonemas porque sua alternância na palavra leva à mudança de significado, conforme evi- dencia o par [tato] versus [dado]. Já a diferença entre a pronúncia da palavra leite entre catarinenses [ 1 - em que o fonema /t/ é pronunciado com uma espécie de "chiado", representado pelo fone [ - e paranaenses [ ] não é alvo da fonologia, posto que não leva a mudança de significado, e sim objeto da fo- nética, que vai descrever como esses dois sons são produzidos. 1 Caro aluno, a partir daqui utilizaremos nas transcrições fonéticas o Alfabeto Fonético Internacional criado pela Associação Fonética Internacional, que se trata de uma padronização da representação dos sons da fala. Para maiores esclarecimentos a respeito dele ver o livro Introdução à Linguís- tica II, de José Luiz Fiorin, presente nas dicas de estudo desta aula. 22 Conhecendo uma língua Morfologia Acima dos níveis fonético e fonológico, há o morfológico, tradicionalmente identificado como a área responsável pelo estudo da palavra. Nesse nível, a aten- ção recai para como os fonemas se combinam para formar morfemas e como estes formam as palavras. Para uma melhor compreensão, é preciso que se tenha em mente que o mor- fema é a menor unidade significativa linguística, ou seja, uma função que une um significante a um significado. Não esqueça de que o fonema distingue sig- nificados, mas ele mesmo não carrega significado. Uma palavra do português como "sim", por exemplo, é um morfema. Ela não pode ser dividida em unidades menores, que tenham significante e significado. Já uma palavra como "cozinhei- ro" é composta por três morfemas: [cozinh-], [-eir-], e [-o]. Cada um desses mor- femas apresenta um significante (a forma, o próprio morfema) e um significado (o conceito, ideia veiculada pelo morfema): [cozinh-] significa um local em que se cozinha; [-eir-] significa, entre outras coisas, alguém que trabalha com um determinado objeto ou em uma dada área; e [-o] é o morfema que significa o gênero masculino. Muitas outras palavras do português são formadas de maneira semelhante: confeiteiro, pedreiro, joalheiro etc. Isso leva ao fato de que estudar os morfemas, identificá-los, saber como se unem e quais significados carregam permite en- tender como são formadas as palavras de uma língua, permite prever que tipos de produções de novas palavras (neologismos) são boas (respeitam as regras de formação de palavras) numa dada língua. Por exemplo, para os falantes do português, formações como amável, respeitável, admirável (amar + vel, e assim sucessivamente) são consideradas como boas, pertencentes a sua língua. O mesmo não se dá com formações como corrível (correr + vel), falável (falar + vel), brincável (brincar + vel). O papel da morfologia, nesse caso, é explicar por que usuários do português produzem o primeiro grupo e o aceitam como boas formas da língua e por que o segundo grupo, embora suscetível de ser produ- zido, não o é, e quando o é, recebe um olhar de estranhamento dos usuários do português, que não identificam as palavras do último grupo como pertencentes à sua língua. Sintaxe No nível de análise sintático, o objetivo é descobrir as regras internas da língua que regem a estruturação dos enunciados, isto é, como as palavras se organizam para formar sentenças. Note que não se está falando das regras da 23 Conhecendo uma língua gramática tradicional, pautadas muito mais em noções de certo e errado, feio e bonito, do que em apontar o que é próprio da organização de uma dada língua. Nesse sentido, enquanto as gramáticas normativas estabelecem o que pode e como deve ser dito, criando a norma padrão ou culta de uma língua, a sintaxe, enquanto ciência, está interessada em apontar por que organizamos uma dada sentença de uma maneira e não de outra. Na sua condição de ciência, de campo de estudo filiado à Linguística, a sintaxe pode ser estudada sob perspectivas, teorias diferentes. Dentre as várias possibilidades, destacaram-se, ao longo da tradição dos estudos linguísticos, a análise sintática formal, cujo representante mais conhecido é a Gramática Gerativa, e a análise funcional, expressão sob a qual residem diferentes teorias e cuja unicidade é difícil traçar. O gerativismo, ao eleger as regras que regem o sistema da língua como seu objeto, dá prioridade à competência do falante e relega a outros campos do estudo linguístico o desempenho, o uso. Com isso, essa abordagem pratica uma separação entre conhecimento linguístico e processamento linguístico e limita-se a estudar o primeiro, descrevendo-o como comportamentos linguísticos determi- nados por estados da mente. Por sua vez, o funcionalismo, ao preconizar a língua como resultado do uso comunicativo e por admitir que este envolve capacida- des humanas de níveis mais elevados do que a capacidade linguística propria- mente dita, permite estudar não apenas como se dá o conhecimento linguístico, mas principalmente como ele é processado. Semântica e Pragmática A formação de palavras, bem como a formação de sentenças, implica na vei- culação de significados. Estes são objeto de estudo da Semântica. O problema é que não é fácil definir o conceito de "significado". Além disso, como a questão do significado está fortemente ligada à do conhecimento, outro problema que se levanta é o da relação entre linguagem e mundo, e de que forma o conhecimen- to se torna possível. Como não há consenso entre os linguistas sobre essas ques- tões, há várias semânticas. Cada uma, consequentemente, elege a sua noção de significado, responde diferentemente à questão da relação entre linguagem e mundo e constitui, até certo ponto, uma teoria fechada, incomunicável com as outras. Muitos linguistas gostam de fazer uma separação entre Semântica e Prag- mática. De maneira geral, para eles, a Semântica trata da significação linguística independentemente do uso que se faz da língua. A Pragmática, por outro lado, teria como objeto o estudo da significação construída a partir do momento em que a língua é posta em uso, ou seja, em uma determinada situação de fala. 24 Conhecendo uma língua Outros linguistas preferem não estabelecer uma distinção tão clara entre as duas áreas de pesquisa, na medida em que acreditam que a significação das expres- sões linguísticas só se constrói por inteiro quando a língua é posta em uso. Com isso, pode se considerar finalizado o panorama proposto sobreos níveis de análise linguística. Convém observar a utilidade dos estudos linguísticos, em seus variados níveis, à atuação do tradutor e intérprete. Conhecer as línguas en- volvidas no ato tradutório, para além do conhecimento que permite que elas sejam usadas pelo tradutor, possibilita que muitas decisões de cunho linguístico possam ser tomadas com base em análises linguísticas, sem medo de estar in- fringindo a constituição das línguas envolvidas no processo. Texto complementar E se... o mundo falasse a mesma língua (ALMEIDA, 2002) Imagine se, de comum acordo, todos os habitantes da Terra falassem um só idioma. Você poderia tomar um avião no Brasil, descer no Japão e se en- tender com todo mundo. Para alguns estudiosos, esse seria o fim de muitos desentendimentos. A Bíblia, por exemplo, diz que a harmonia entre os povos acabou na Torre de Babel, quando, por um castigo divino, pessoas que antes falavam a mesma língua passaram a ter diferentes idiomas. Desde então, nin- guém mais se entendeu, diz o texto. Mas uma língua unificada teria vida breve. Em pouco tempo, cada grupo selecionaria os termos adequados ao seu ambiente e à sua cultura, diferen- ciando novamente as linguagens. Enquanto os idiomas têm entre 2 000 e 20 000 palavras, uma língua mundial precisaria de mais de 25 000 termos, para absorver, por exemplo, as 40 palavras que os esquimós dão para a cor branca. No Saara, essas palavras seriam abandonadas em breve. "O latim era uma língua unificada, mas dele saíram 10 ou 12 línguas latinas", diz o profes- sor de Filologia Românica da USP, Bruno Fregni Bassetto. É o que explica as diferenças entre o português do Brasil e o de Portugal. 25 Conhecendo uma língua Já houve tentativas, fracassadas, de criar uma língua universal. Filósofos como Voltaire, Montesquieu e Descartes foram alguns dos que tentaram. Uns achavam que o idioma único deveria ser totalmente novo. Outros, que ele de- veria ser formado de palavras já existentes, combinadas. Mas em um ponto eles concordavam: não é possível impor a todos uma língua já existente. O esperanto, criado em 1887 pelo polonês Lázaro Zamenhof e hoje adotado por três milhões de pessoas, foi o mais próximo que se chegou desse sonho. Mas mesmo seus adeptos, espalhados por mais de cem países, o consideram uma segunda língua, que se deve aprender sem perder o idioma natal. A difusão dessa língua mundial seria delicada. E, com certeza, não have- ria mistura com os idiomas locais. Onde houvesse resistência, a linguagem original simplesmente predominaria. Trata-se de uma verdade histórica: as línguas nunca se fundem - uma sempre predomina e a outra desaparece. Foi o que houve na Gália, terra de Asterix e Obelix, onde viviam os celtas, com sua própria língua. Quando os romanos conquistaram a região, impuseram o latim, que foi adotado. Com mudanças de pronúncia e enxertos de palavras, mas ainda latim. Há quem defenda a tese de que já se falou um idioma universal, quando a linguagem foi inventada pela humanidade. Mas essa é uma grande polêmi- ca. Alguns pesquisadores acham que a raça humana surgiu na África e, dali, se espalhou pelo resto dos continentes. Outros supõem que povos diferen- tes surgiram em várias regiões, cada um com sua língua. No primeiro caso, as línguas teriam uma origem comum. No segundo, não. "Tudo o que sabemos sobre a linguagem parte do que a língua é hoje. O resto é especulação", diz Carlos Alberto Faraco, professor de Linguística da Universidade Federal do Paraná. De certo, sabe-se que, no passado, houve um povo que falava uma só língua, o indo-europeu, do norte da Índia à Europa, com poucas exceções, como o País Basco e a Finlândia. Esse idioma deu origem a quase todas as línguas ocidentais e a algumas orientais. Antes disso, a controvérsia é tão grande que, no final do século XIX, os linguistas proibiram que se discutisse o tema. Frase "Então, está tudo listo, Francisco. Eu levo a birra, e você, o Sauerkraut. Só falta combinar onde vai ser o barbecue, se aí no Ceará ou aqui na Austrália." 26 Conhecendo uma língua Dicas de estudo _ Crônica: "Estudo científico das línguas?", de Sírio Possenti, em A Cor da Lín- gua, 2002, p. 33-35. Por ser uma crônica, o texto promove, numa linguagem acessível a leigos no assunto, discussões em torno do fazer do linguista, tentando esclarecer qual a sua tarefa e no que ela se diferencia em relação ao trabalho do gra- mático. _ Filme: Nell (1995), dirigido por Michael Apted. O filme narra a história de uma jovem encontrada morando sozinha, dis- tante do contato de qualquer outra pessoa que não fosse sua mãe, que falecera. Entre outras coisas, aponta o choque entre o encontro de uma pessoa "não civilizada" com o mundo "civilizado". O interesse particular quanto à questão da linguagem e língua recaí no fato de que Nell, ao ser encontrada, apresenta uma linguagem verbal muito diferente da falada pelas pessoas que a encontraram (o inglês). No decorrer da história, o médico e a psicóloga que lidam com Nell acabam por concluir que a linguagem que ela apresenta é, na verdade, uma "va- riedade" do inglês, e que todas as características que atribuíam uma na- tureza distinta do inglês falado pelos dois se devia a fatores como Nell ter convivido apenas com sua mãe e irmã - ambas já mortas no momento em que ela é descoberta -, à mãe de Nell ter um problema de fala ocasionado por paralisia facial, o que acabou se refletindo na fala das filhas, e por Nell, como é comum a muitas crianças, ter criado uma forma distinta de co- municação que apenas ela e sua irmã conheciam, o que também acabou sendo transportado para a sua fala, já que sua convivência se limitava a sua mãe e irmã. O filme nos leva à reflexão, por um meio palpável, sobre o que é uma língua, como identificá-la e como ela interfere na construção do entendimento do mundo e cultura ao nosso redor. _ Artigo: "Fonética", de Raquel Santana Santos e Paulo Chagas de Souza, do livro Introdução à Linguística II, de José Luiz Fiorin, editora Contexto, 2003. Este artigo é muito interessante para se ter uma noção introdutória a res- peito dos aspectos próprios à Fonética tanto de línguas orais como da lín- gua de sinais. Além desse artigo inicial há os demais que constituem uma fonte segura da qual o aluno pode incrementar seu conhecimento sobre as demais áreas da Linguística. 27 Conhecendo uma língua Atividades 1. Discuta, definindo e dando exemplos, a propriedade de dupla articulação da linguagem e por que ela gera economia para as línguas. 2. Se fonética e fonologia partem de um mesmo ponto, o som, qual a diferença entre esses dois níveis de análise? Afinal, seria desnecessária a existência de dois níveis para estudar o mesmo objeto. 3. Partindo do senso comum, muitas pessoas podem confundir "a fala" de um papagaio com a língua empregada pelo ser humano ou ainda achar que a comunicação entre animais é uma evidência de que eles possuem uma lin- guagem equiparável à linguagem humana. Justifique por que equiparar a linguagem animal à linguagem humana é um equívoco. 28 Conhecendo uma língua Referências ALMEIDA, Lizandra Magon de Almeida. E se... o mundo falasse a mesma língua. Superinteressante, ed. 177, jun./2002. Disponível em: <http://super.abril.com. br/cultura/se-mundo-falasse-mesma-lingua-443082.shtml>. Acesso em: 23 ago. 2010. BARROS, Diana Pessoa de. A comunicação humana. In: FIORIN, José Luiz (Org.). Introdução à Linguística I: objetos teóricos. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2007. PETTER, Margarida. Linguagem,língua, linguística. In: FIORIN, José Luiz (Org.). Introdução à Linguística I: objetos teóricos. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2007. Gabarito 1. Resposta mínima deve contemplar que a dupla articulação da língua é um fator de economia, pois permite que com um número limitado de fonemas sejam construídos um número ilimitado de morfemas, material com o qual as palavras são formadas. Deve atentar também para o fato de que a primei- ra articulação, a morfológica, está no plano do conteúdo, posto que veicula significado, já a segunda articulação, a fonológica, está no plano da forma, já que não veicula significado. 2. O estudante deve reconhecer que o objeto de análise dessas áreas parece ser o mesmo, mas não é. A fonética lida com o som apenas enquanto enti- dade física, articulatória. Ela procura saber como são produzidos os sons da língua humana, independentemente de eles serem distintivos na língua. A fonologia, por outro lado, só se ocupa dos "sons" que são distintivos dentro da língua. 3. Igualar a linguagem humana à animal é um equívoco devido ao nível de complexidade da linguagem humana. Para demonstrar tal complexidade, o estudante pode recorrer às propriedades das línguas naturais, que dão con- ta de características encontradas apenas na linguagem verbal: versatilidade, produtividade, descontinuidade, articulação em diferentes níveis etc. O que deve ficar claro para o aluno é o nível de sofisticação que a linguagem huma- na permite, enquanto a linguagem animal é muito limitada. O status de língua da Libras Neste capítulo, a tarefa a cumprir é entender por que a Libras é uma língua e a razão pela qual seu estudo sistemático é necessário. Para tanto, apresenta-se um histórico da origem das línguas de sinais e da Libras. Em seguida, as propriedades linguísticas próprias das líguas naturais são evi- denciadas na Libras, movimento que permite desfazer certos mitos em relação a essa língua. Por fim, após refletir sobre a necessidade de estudo da Libras mesmo para seus usuários, é apresentado um sistema de trans- crição cujo papel é auxiliá-lo em seus estudos sobre a natureza linguística da Libras. A Libras enquanto língua Antes de se falar especificamente da Libras, cabe um retorno à origem das línguas de sinais, seus registros históricos, para que se possa entender como, de certa forma, o ensino das línguas de sinais em escolas determinou o desenvolvimento dessas línguas. A seguir, após esse panorama sobre a origem e evolução das línguas de sinais, a Libras será tratada no que diz res- peito a sua origem específica, a sua regulamentação como língua oficial dos surdos brasileiros e à razão pela qual ostenta o título de língua natural. Por ser uma língua ágrafa, não há registro da origem da língua de sinais, mas, possivelmente, ela se desenvolveu na mesma época que a língua oral. Diz a lenda que os surdos eram adorados no Egito, como se fossem deuses, porque serviam de mediadores entre os Faraós e os deuses, já que eram tidos como seres místicos. As primeiras referências aos surdos apa- recem na época da Lei Hebraica. Na China, os surdos eram lançados ao mar; os gauleses os sacrificavam aos deuses Teutates; em Esparta, eram lançados do alto dos rochedos. Na Grécia, os surdos eram encarados como deficientes mentais e muitas vezes eram condenados à morte. Os roma- nos viam os surdos como seres imperfeitos, e assim lançavam as crianças surdas no rio. Mais tarde, Santo Agostinho defendia que os surdos podiam se comunicar por meio de gestos, contudo, acreditava que os pais esta- vam pagando por algum pecado. Até a Idade Média, a Igreja Católica acre- 31 O status de língua da Libras ditava que os surdos eram incapazes de proferir os sacramentos, diferentemente dos ouvintes, pois não possuíam alma imortal. Em seguida, passa-se para a pers- pectiva da razão, em que a deficiência passa a ser analisada sob a óptica médica e científica, quando sai da perspectiva religiosa, no início do Renascimento. Foi na Idade Moderna que Pedro Ponce de León (1520-1584), padre católico, criou a primeira escola para surdos no Mosteiro de San Salvador (Espanha), e se dedicou a ensinar os filhos surdos de pessoas nobres para que pudessem ter privilégios perante a lei. León desenvolveu um alfabeto manual, que ajudava os surdos a soletrar as palavras. Juan Pablo Bonet (1579-1629), aproveitando o trabalho ini- ciado por León, foi educador de surdos, escreveu sobre as maneiras de ensinar os surdos a ler e a falar, por meio do alfabeto manual. Sempre, contudo, esses modelos tinham base oralista - gesto e oralidade, alfabeto manual e oral. No século XVIII, Charles-Michel de l'Épée (1712-1789), um padre francês, re- conheceu a existência da língua de sinais (antiga Língua Gestual Francesa) e que seu desenvolvimento servia como base de comunicação entre os surdos que se comunicavam nas ruas de Paris, utilizando a datilologia/alfabeto manual. Fundou a primeira escola pública de surdos no mundo, o Instituto Nacional para Surdos-Mudos em Paris, que existe até hoje com o nome de "Instituto Nacional de Jovens Surdos". Sua metodologia era respeitada e acreditava-se ser o modelo correto para educação de surdos. Thomas Braidwood (1715-1816) fundou, na Europa, a escola oralista de surdos para correção da fala. Após muitas discussões por todo o mundo, chegou-se à conclusão de que era possível, sim, que o surdo falasse. Baseado nisso, Jean Marc Itard (1800-1838), primeiro médico a interessar-se pelo assunto, usou métodos não convencionais em suas pesquisas, como: cargas elétricas, sangramentos, perfuração de tímpanos e outras aberrações. Em abril de 1817 é fundada a pri- meira escola para surdos permanente dos EUA, a Escola Hartford, por Thomas Hopkins Gallaudet (1787-1851), educador, ouvinte, que acompanhado de Lau- rent Clerc (1785-1879), surdo francês, um dos melhores alunos do Instituto para Surdos de Paris, se tornou educador. Eles instituem nessa escola a Língua Gestual Americana, sendo que essa instituição também existe até hoje e é considerada o centro de pesquisas sobre surdez no mundo. O famoso Alexander Graham Bell (1847-1922), criador do telefone, traba- lhava na oralização dos surdos e veio a se casar com uma surda, Mabel, de fa- mília que tinha tradição em educação de surdos na Europa, embora sua famí- lia não aceitasse a língua gestual. No Congresso de Milão, em 1880, admite que os surdos deveriam ser oralizados durante um ano, mas se isso não trouxesse 32 O status de língua da Libras resultado, poderiam, então, ser expostos à língua gestual. Durante o século XVIII, na Europa, surgem duas tendências adversas na educação dos surdos antes do Congresso de Milão: o método francês, chamado de gestualismo, e o oralismo, ou método alemão. Em 1880, houve um momento obscuro na história da educa- ção dos surdos. Foi durante o famoso congresso de Milão, com duração de três dias, quando um grupo de ouvintes resolveu que a língua de sinais deveria ser excluída do ensino dos surdos, sendo substituída pelo oralismo. Durante o fim do século XIX e grande parte do século XX, o oralismo foi a técnica preferida na edu- cação dos surdos, sendo que a luta entre o oralismo e a língua de sinais continua até os nossos dias, o que se depreende da afirmação de Quadros (1997), em seu livro sobre a educação de surdos e aquisição da língua de sinais, segundo a qual a permissão ou não permissão para o uso de línguas espaciais-visuais interferiu no processo histórico e na vida das pessoas pertencentes a comunidades surdas. Em relação ao Brasil, não foi diferente nosséculos passados, experimentou-se as três linhas de abordagens: oralismo, comunicação total e bilinguismo. O ora- lismo, utilizado na década de 1960 e 1970, é o nome dado àquelas abordagens que enfatizam a fala (da língua utilizada no país) e a amplificação da audição e que rejeitam de maneira explícita e rígida qualquer uso da língua de sinais. Técni- cas específicas são utilizadas para desenvolver o método do oralismo, sendo elas: treinamento auditivo, desenvolvimento da fala e leitura labial; contudo, o fracasso dos alunos surdos era visível. Em seguida, veio a comunicação total, cuja proposta oralista é transformada e se consolida, não como método, mas como uma filosofia educacional. Por não explicitar claramente procedimentos de ensino, a comuni- cação total, na década de 1970, é incorporada, em diferentes lugares, em versões muito variadas, caracterizando-se, basicamente, pela aceitação de vários recursos comunicativos, com a finalidade de ensinar a língua majoritária - a língua oficial do país, no caso, a língua portuguesa - e promover a comunicação utilizando gesto, mímica e fala. Seguiu-se, então, a filosofia bilíngue, na década de 1980, que possibilitaria a relação do surdo adulto com a criança surda1, permitindo, assim, uma construção de identidade e que respeitaria a Libras - respeitar a língua do surdo não quer dizer que se deva menosprezar a língua dominante do país, mas apenas ter o domínio da Libras como primeira língua e, consequentemente, ter o português escrito/falado como segunda língua. Desse relato, já é possível compreender que a história da evolução das línguas de sinais, inclusive a Libras, foi marcada pela intervenção autoritária, muito por 1 O modelo para criança surda deve ser um adulto surdo ou uma pessoa ouvinte que domina a Libras, para que sua identidade e sua língua sejam formadas nos seus primeiros anos de vida. Infelizmente, as crianças surdas não têm nem a língua portuguesa oral/escrita e nem a Libras e, consequentemente, recebem sua primeira língua atrasada. Pela nossa experiência em escola de surdos, o modelo ideal é o bilinguismo - Libras e português escrito. O status de língua da Libras desconhecimento, daqueles que formulavam as políticas de ensino para surdos. Mesmo que a intenção subjacente de tais políticas fosse ajudar o surdo, o que se fez ao proibir o ensino e o uso das línguas de sinais foi um retrocesso no processo de crescimento dessas línguas. Imagine o quanto não se perdeu em vocabulário, estrutura, sofisticação de conceitos "apenas" porque os surdos foram impedidos de usar livremente sua língua natural. Os reflexos dessas políticas ainda podem ser vistos no desconhecimento que muitos têm sobre a Libras, e não se está pen- sando neste momento somente no ouvinte, mas também nos surdos, já que muitos deles não têm acesso, ainda hoje, a essa língua. As línguas, orais ou de sinais, evoluem por meio do uso, são as necessidades do dia a dia, das tarefas que precisam ser executadas, das mensagens que precisam ser dadas que fazem com que qualquer língua amplie seu vocabulário, cunhe conceitos novos, padronize uma variedade de língua que será considerada a culta, entre outras coisas. A Libras teve sua origem na Língua de Sinais Francesa por influência de Hernest Huet, surdo francês, que chegou ao Brasil em 1856, a convite de D. Pedro II, para fundar a primeira escola para meninos surdos, o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), que foi inaugurado no dia 26 de setembro de 1857, o qual rece- beu o nome de Imperial Instituto de Surdos-Mudos, com o propósito de desen- volver a educação dos surdos brasileiros. Hernest, o professor surdo, negociava a criação do instituto de surdos através de cartas com o imperador D. Pedro II, as quais encontram-se no Museu Imperial de Petrópolis (RJ). Aconteceu com a Libras um processo de colonização de língua, tal como se deu entre o portu- guês para os brasileiros. Nesse sentido, quando os portugueses vieram colonizar o Brasil, se depararam com uma série de línguas indígenas, e mais especifica- mente uma língua geral, usada para negociações entre as diferentes tribos. Ao longo dos anos, por uma série de fatores que não cabe explicar neste momento, o português de Portugal foi se mesclando a essa língua geral e, posteriormente, recebeu influências de outras línguas como o italiano, o francês e o árabe, resul- tando no português que hoje se fala no Brasil, o qual difere em muitos aspectos da língua que lhe deu origem. Portanto, quando Huet chegou ao Brasil os surdos já deviam possuir um sistema de comunicação, que se mesclou à língua france- sa de sinais, originando a Língua Brasileira de Sinais, a qual também difere em muitos aspectos da língua que lhe deu origem. Como visto, a Libras tem uma história de evolução ao longo dos anos, como qualquer outra língua natural. Assim como as línguas orais, as línguas de sinais nascem para suprir uma necessidade de comunicação. A diferença reside no canal de recepção e nos meios de produção, pois, devido à impossibilidade de ouvirem uma língua falada, os surdos desenvolvem a habilidade linguística de 34 O status de língua da Libras outra maneira, fazendo uso do espaço e da visão. Então, uma língua de nature- za espaço-visual não se configura como uma barreira perceptual no processo de aquisição dos surdos, já que essa é a língua natural dos surdos. Todavia, nem sempre essa condição de língua natural foi aceita em relação às línguas de sinais. Não há muito tempo, as línguas de sinais eram vistas apenas como gestos, mímica, um sistema de comunicação inferior, pobre, sem gramática, cujo único proveito era expressar conceitos concretos. Essa visão só começou a ser superada a partir da década de 1960, com a publicação, nos Estados Unidos, do primeiro trabalho conhecido sobre línguas de sinais, por William Stokoe. As discussões de Stokoe (1960, apud QUADROS; KARNOPP, 2004) para a língua americana de sinais foram tomadas como ponto de partida para o estudo de outras línguas de sinais, como a Libras. As discussões empreendi- das pelo autor começam com a descrição da modalidade da língua, desta- c a n d o q u e s u a s p ro p r i e d a d e s i n t e r n a s c o r re s p o n d e m a c r i t é r i o s c o l o c a d o s por universais linguísticos e que a distinção está em sua forma de produção e recepção: "[...] as investigações mostram que as línguas de sinais, sob o ponto de vista linguístico, são completas, complexas e possuem uma abstrata estru- turação em todos os níveis de análise" (QUADROS; KARNOPP, 2004, p. 36-37). A partir daí, o interesse pelo estudo das línguas de sinais na condição de línguas naturais cresceu significativamente, mesmo esparsos e em pequeno número, esses estudos levaram a uma reflexão do importante papel dessas línguas para as comunidades surdas. As comunidades surdas, por sua vez, viram nos estudos linguísticos das línguas de sinais um argumento científico, e n t re t a n t o s o u t ro s d e o rd e m d i ve r s a m a s d e i g u a l i m p o r t â n c i a , p a r a l h e s requerer o reconhecimento legal. O Brasil é um dos países que já oficializou a língua de sinais de seu país - a Libras - como língua própria dos surdos bra- sileiros. Segundo a legislação vigente, desde abril de 2002, a Libras constitui um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comuni- dades de pessoas surdas do Brasil, nas quais há uma forma de comunicação e expressão, de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria. A o f i c i a l i z a ç ã o d a L i b r a s fo i d e e x t r e m a i m p o r t â n c i a , e a i n d a é, p a r a a l u t a p o r políticas públicas de educação bilíngue para surdos, com a presença de pro- fessores sinalizadores e/ou intérpretes em sala de aula. O reconhecimento legal, no entanto, não significaque a Libras deva parar de ser estudada em suas características linguísticas. Afinal, conhecer bem a natureza linguística da Libras é condição necessária para o seu ensino. Portanto, na seção a seguir, a Libras será abordada em relação às propriedades linguísticas responsáveis por caracterizá-la como língua natural. O status de língua da Libras As propriedades da língua na Libras A Libras, na sua condição de língua natural, como visto na seção anterior, é tão complexa e sofisticada quanto qualquer outra língua oral, apresentando as mesmas propriedades linguísticas. Portanto, adiante são expostas as proprieda- des linguísticas compartilhadas pelas línguas naturais e a forma como se mani- festam na Libras. A primeira característica apontada nas línguas naturais, contrastando com a comunicação estabelecida por animais, é a flexibilidade e versatilidade. Ela diz respeito às várias possibilidades de uso da língua em diversos contextos. As lín- guas de sinais são empregadas em várias situações, cumprindo muito bem as funções para as quais são requisitadas, como compor poesias, criar piadas, dis- cutir política e filosofia, refletir sobre a vida, falar sobre a própria língua, falar das coisas comuns do dia a dia etc. A arbitrariedade dá conta de que as palavras, os sinais, são convenções sociais acordadas entre os usuários de uma determinada língua, daí não haver relação direta entre muitas palavras (sua forma) e o significado a que remetem. A língua de sinais, ao contrário do que muitos pensam, apresenta palavras cuja forma não tem relação direta com o significado. Alguns exemplos transcritos da Libras (na última seção há um quadro explicativo sobre a transcrição empregada): PRIMO; MULHER B̂ENÇÃO (mãe), CONHECER. A questão da forma e do significado referido por ela, aliás, traz à tona a des- continuidade: pequenas diferenças na forma das palavras, por exemplo, podem gerar grandes diferenças no significado. Na Libras, os sinais são formados por meio de cinco parâmetros: configuração de mão (CM), ponto de articulação (PA), movimento (M), orientação (O) e expressão facial-corporal (EFC). A alteração de um dos parâmetros na formação de um dado sinal resulta num sinal diferente ou, às vezes, num sinal inexistente. Isso significa que pequenas alterações na formação de um sinal levam a significados diferentes. Assim, os sinais APRENDER e SÁBADO apresentam em comum CM, M, O, sendo que o parâmetro EFC não é determinante na constituição desses dois sinais, estando a diferença apenas no PA. O sinal de aprender é articulado em frente à testa, e o sinal de sábado, em frente à boca do sinalizador. 36 O status de língua da Libras APRENDER. SÁBADO. Além de a Libras permitir ao seu usuário falar sobre o assunto de seu desejo, ela fornece inúmeras possibilidades de transferência para uma mesma informa- ção, já que a partir de um número finito de elementos combináveis e recombi- náveis por meio de regras também finitas, é possível elaborar um número de sentenças infinitas. Isso é possível, inclusive, mesmo quando o usuário nunca se deparou com uma estrutura em particular. A essa propriedade se dá o nome de produtividade/criatividade. Desse modo, estruturas como J-O-Ã-O GOSTAR M-A-R-I-A PORQUE ELA EDUCADA podem ser produzidas através do aprendi- zado adquirido de outras estruturas: EU GOSTAR ELA; EDUCADA ELA; J-O-Ã-O ESTUDAR muito PORQUE ELE INTELIGENTE. A fim de produzir os enunciados da língua, a Libras conta com a proprieda- de denominada de dupla articulação. A dupla articulação se refere ao fato de as línguas se articularem em dois planos, no primeiro as formas não possuem significado, no segundo, por meio da combinação das formas sem significado se obtêm unidades com significado. Retomando a questão da formação de sinais, se você pensar isoladamente na CM dos sinais de APRENDER e LARANJA, mão na forma de "S", CM encontrada no quadro a seguir, verá que, por si só, ela não apre- senta significado, é apenas um elemento menor que comporá, por meio de sua combinação com outros parâmetros, unidades maiores dotadas de significado. O status de língua da Libras IE S D E B ra s il S .A . IE S D E B ra s il S .A . Quadro 1 - Configurações de mão usadas na representação do alfabeto da língua portuguesa e dos números de 0 a 9 A B C D E F G H I J K L M N O P Q R S T U V W X Y Z 1 2 3 4 5 6 7 8 9 0 As combinações tratadas no parágrafo anterior não ocorrem aleatoriamen- te, elas seguem um padrão de estruturação nos diferentes níveis - fonológico, morfológico, sintático e semântico. Isso implica que ao usar a Libras o indivíduo precisa respeitar as regras de combinação por ela apresentada(s). Infringir as regras, sair do padrão da língua, resulta em sentenças agramaticais como: * ELE ELA CONHECER. O padrão linguístico está vinculado a outra propriedade reco- nhecida nas línguas naturais, a dependência estrutural. As línguas constroem os enunciados por meio de estruturas dependentes que permitem o entendimen- to da estrutura interna de uma sentença. Isso significa que certos elementos são subordinados a outros na estrutura das sentenças. Por exemplo: 38 O status de língua da Libras 1. * ELE ELA CONHECER 2. ELE CONHECER ELA 3. * EU GOSTAR SEMPRE MAÇÃ 4. SEMPRE EU GOSTAR MAÇÃ As sentenças (1) e (2) são agramaticais porque não respeitam a dependência estrutural da Libras. No primeiro caso, o objeto (ela) não pode ocupar a posição ao lado do sujeito (ele) e antes do verbo (conhecer), pois nessa posição o sinal não é reconhecido como objeto que completa o significado do verbo. No se- gundo caso, o advérbio (sempre) não pode interromper a relação entre o verbo (gostar) e o objeto (maçã). Terminada a exposição dos motivos evidenciadores da natureza linguística da Libras, certo de se tratar de uma língua não apenas de direito - porque se en- contra oficializada como língua -, mas de fato, você, estudante, pode se ocupar, mais bem fundamentado, de analisar os mitos envolvendo a Libras na sua con- dição de língua de sinais. Velhos, novos conhecidos: os mitos sobre a Libras Ainda que avanços significativos tenham sido feitos no estudo da Libras e das línguas de sinais em geral, há uma carência da disseminação desses saberes, acarretando na existência e manutenção de algumas inverdades sobre as línguas de sinais que são aceitas como procedentes por muitas pessoas. São os velhos e, ao mesmo tempo, novos mitos sobre as línguas visuais. Então, o objetivo nesta seção é avaliar alguns desses mitos, com base no exposto por Quadros e Karnopp (2004, p. 31-37), de modo a esclarecer que se tratam de falsas afirmações e mos- trar por que não condizem com a realidade das línguas de sinais. O primeiro mito apregoa que as línguas de sinais seriam incapazes de expres- sar conceitos abstratos, pois seria apenas uma mistura de gestos e mímica. Essa concepção equivocada nasce da confusão de se entender os sinais como gestos. Afinal, os gestos não permitem a abstração das palavras, que podem nomear ou falar sobre algo mesmo quando esse algo não está presente, ou mesmo que ele não exista enquanto entidade física. Mas a verdade é que os sinais são pala- vras, eles permitem falar sobre pessoas ou objetos ausentes, sobre ideias, e não apenas sobre coisas concretas. Os sinais das línguas visuais apresentama mesma possibilidade de simbolismo e abstração que as palavras das línguas orais. 39 O status de língua da Libras Esse primeiro mito, línguas visuais serem apenas gesto e mímica, leva ao segundo. Posto que gestos não são arbitrários, são icônicos - isto é, sua forma tem relação direta com aquilo a que se referem -, muitos acreditam na existên- cia de uma única língua de sinais, falada por todos os surdos. Porém, estudos linguísticos comprovaram que as línguas de sinais são diferentes entre si, cada comunidade surda de um dado país apresenta vocabulário e regras gramaticais próprias. Algumas línguas de sinais são aparentadas, têm uma origem comum, como a Libras e a ASL, que nasceram a partir da língua de sinais francesa. Mas isso também se verifica em línguas como o português e o italiano, originadas do latim. Assim, ASL e Libras, como também português e italiano, compartilham características em comum, mas em hipótese alguma seus usuários podem trocar informações como se elas fossem a mesma língua. Outro mito que menospreza a complexidade linguística das línguas de sinais é o que as considera subordinadas às línguas orais, sem uma gramática organi- zada, precisando usar seus sinais na estrutura gramatical das línguas orais. Na verdade, como visto antes, as línguas de sinais são línguas de fato, com uma complexa organização estrutural em todos os níveis de análise. Além disso, con- siderar a língua de sinais subordinada a línguas orais é um equívoco, já que a Língua Brasileira de Sinais, por exemplo, teve sua origem na língua francesa de sinais, e a língua portuguesa de sinais, por outro lado, desenvolveu-se a partir da língua britânica de sinais. Não se pode, convém observar, confundir emprés- timos linguísticos com subordinação. Fosse assim, nossa língua portuguesa es- taria subordinada ao inglês pelos termos que lhe toma emprestado e agrega, na forma inglesa mesmo, ao vocabulário nacional brasileiro. Por fim, para finalizar a análise de alguns mitos apontados por Quadros e Karnopp (2004, p. 31-37), muitas pessoas pensam, por se tratarem de línguas visuais, articuladas espacialmente, que a localização da língua de sinais no cé- rebro deve ser do lado direito, responsável pelo processamento de informação espacial, e não do lado esquerdo, próprio da linguagem. Essa ideia, contudo, é derrubada por pesquisas envolvendo surdos com lesões em um dos hemisférios. Os resultados apontam que danos no lado direito prejudicam o processamento de informações puramente espaciais. Nesse caso, se for solicitado ao surdo, em uma sala qualquer, que se encaminhe para o lado esquerdo da porta de saída da sala, ele compreenderá o que deve fazer, mas não poderá executar a tarefa por não conseguir identificar qual seria o lado esquerdo da porta. Já lesões no lado esquerdo do cérebro afetam a produção e compreensão da língua, deixan- do intactas as informações puramente espaciais. Nesse caso, se fosse solicitado ao surdo a mesma tarefa, ele não a poderia executar por não compreender no 40 O status de língua da Libras que ela consiste. Não se pode esquecer, todavia, que tanto em línguas visuais como orais essa questão de localização da língua é bem complexa, pois lesões em áreas muito semelhantes nem sempre acarretam nos mesmos danos. Não bastando isso, a literatura cognitiva aponta casos de pessoas que, afetadas por lesões no hemisfério esquerdo na infância, especializaram o lado direito do cére- bro para desenvolver também a função linguística, fato creditado à plasticidade cerebral, responsável por desenvolver mecanismos compensatórios quando há condição para tal. Para que estudar a Libras? A essa altura, estudante, você deve estar se perguntando "mas por que eu, que sou usuário da Libras, tenho que estudar essa língua?". Se você realmente se fez essa pergunta, é porque está à procura de um motivo para tal estudo, e se ainda não encontrou a resposta, pode construí-la a partir desta seção. Divagando um pouco, pode-se dizer que existem muitos motivos para alguém fazer algo. Vale lembrar, contudo, que não se está falando de algo ines- pecífico, um "algo qualquer", tampouco se está falando de um alguém genérico, um "qualquer um". A resposta que se pretende construir é para a pergunta "por que um intérprete de Libras precisa estudar Libras?". Está se falando, então, de um alguém que é, ou pretende ser, intérprete de Libras, e de algo, a Libras, que é condição necessária para o desenvolvimento dessa profissão. Portanto, a respos- ta a que se chega é que o estudo da Libras é necessário porque indispensável ao desempenho do intérprete. É um motivo que tem por trás uma finalidade, um objetivo, daí o título desta seção ser "Para que estudar Libras?" e não "Por que estudar Libras?". No entanto, neste ponto, você deve estar pensando,"Mas eu já sei essa língua, eu uso essa língua, se eu não a soubesse, aí sim deveria estudá-la." Acontece que saber uma língua com base em seu uso não é condição suficiente para ser intér- prete. Paralelamente, é possível fazer a seguinte reflexão. Uma pessoa que fala a língua do país onde vive, o português, por exemplo, não pode ser considera- da apta a ensinar essa língua se não empreendeu estudos específicos para isso. Ser usuário de uma língua dá ao indivíduo um conhecimento intuitivo sobre ela, conhecimento muito importante e útil, é verdade, mas que, sozinho, não é suficiente para exercer funções, como tradutor, intérprete, professor de língua, que exigem um conhecimento técnico, consciente e sistemático da língua a ser traduzida, interpretada ou ensinada. O status de língua da Libras Por conhecimento técnico, consciente e sistemático da língua, deve-se en- tender o conhecimento construído por meio de estudo, que envolva os aspec- tos gramaticais, morfológicos, semânticos, pragmáticos, entre outros. Mas esse conhecimento não deve ser pensado do ponto de vista de "acúmulo de infor- mações", ele deve ser útil ao dia a dia do profissional, deve permitir solucionar problemas de tradução e interpretação: Na maioria das vezes a tradução é feita por escritores, pessoas que os editores têm mais à mão, quando não primas pobres, os tios inválidos ou as cunhadas desocupadas destes mesmos escritores. Mais de uma vez, o escritor empresta apenas o nome à tradução sem deitar-lhe sequer uma olhada. Mas ainda que seja ele mesmo o autor do trabalho, nem sempre a sua qualidade de escritor constitui uma garantia. O que normalmente acontece é um ficcionista, um poeta ou um jornalista aceitarem traduzir um livro francês, inglês ou castelhano, pelo fato de estarem habituados a ler obras escritas nesses idiomas. Os mais inteligentes e conscienciosos não tardam a reconhecer a sua falta de preparo e tentam supri-la por meio de estudos, consultas a pessoas e livros; os mais limitados vão galhardamente matando centenas de páginas, seguros da impunidade. (RÓNAI, 1976, p. 9, grifo nosso) Sistemas de transcrição da língua de sinais Ao se estudar uma língua com o objetivo de conhecer suas características estruturais, é preciso lançar mão de algum recurso que permita ao pesquisa- dor registrá-la para posterior análise. Esse é o papel dos sistemas de transcrição, pois permitem ao pesquisador registrar os enunciados da língua de forma que ele os possa analisar mesmo quando não está presente no momento em que o enunciado foi produzido. A transcrição é muito útil, além disso, porque permite a outros pesquisadores estudarem uma língua que foi transcrita anteriormen- te. Por exemplo, um pesquisador em particular pode fazer uma transcrição de dados - enunciados produzidos por sinalizadores fluentes na língua - com o intuito de estudar a morfologia da Libras. Um outro estudioso pode se valerda mesma transcrição para analisar as regras gramaticais dessa língua. Isso é possí- vel graças ao caráter convencional dos sistemas de transcrição. A transcrição consiste na representação gráfica de um enunciado, por meio de um conjunto de símbolos especiais, para fins de estudo. Para os objetivos deste curso, você vai aprender a lidar com o Sistema de No- tação por Palavras, criado e desenvolvido pela pesquisadora da Língua Brasileira de Sinais Tânia Amaro Felipe, no ano de 1998. Pela clareza da transcrição, o sis- tema foi muito aceito, não só por pesquisadores brasileiros que atuavam nesse 42 O status de língua da Libras período, mas também por outros que desenvolviam trabalhos com línguas de sinais. Assim, ao longo do curso, sempre que útil às discussões, a transcrição por notação será empregada. A seguir, há um quadro com exemplos de notações e a convenção subjacente a cada um. Sistema de notação por palavras Convenção CASA Os sinais da Libras são representados por itens lexicais da Língua Portuguesa em letras maiús- culas. CORTAR-COM-FACA Os sinais que são traduzidos por mais de uma pa- lavra no português são representados pelas pa- lavras correspondentes e separadas com hífen. CAVALO^LISTRA (zebra) Os sinais compostos da Libras, quer dizer, aque- les que necessitam de mais de um sinal para re- presentar uma ideia são representados por pala- vras do português separadas por ̂ . J-O-Ã-O O alfabeto manual utilizado para expressar no- mes que não tenham sinal na Libras são repre- sentados letra por letra separadas por hífen. N-U-N-C-A Um sinal soletrado, quer dizer, aquelas datilolo- gias que, por empréstimos linguísticos do por- tuguês, receberam um movimento próprio da Libras e passam a pertencer a esta língua são representados letra a letra, separadas por hífen e de forma itálica. AMIG@ Como na Libras não há marcação para gênero, quer dizer, a notação pode estar se referindo a amigo ou amiga, usa-se o símbolo @ para esta classificação. NOME interrogativa Marcação de sinais não manuais realizados si- multâneos aos sinais manuais. Neste caso, uma pergunta: qual seu nome? SABER negação Marcação de sinais não manuais realizados si- multâneos aos sinais manuais. Neste caso, uma negação: não sei. ADMIRAR exclamativo LONGE muito Marcação de sinais não manuais realizados si- multâneos aos sinais manuais para denotar ad- vérbio de modo ou intensificador. ANDAR pessoa ANDAR veículo Verbos com concordância para pessoa, objeto e animal são representados com o sujeito subscrito. 1s DAR 2s Eu dou a você. 2s PERGUNTAR 3p Você pergunta para El@s Verbos com concordância para as pessoas gra- maticais serão representadas com o seu corres- pondente subscrito: 1s 2s 3s = 1.ª, 2.ª e 3.ª pessoas do singular. 1d 2d 3d = 1.ª, 2.ª e 3.ª pessoas do dual. 1p 2p 3p = 1.ª, 2.ª e 3.ª pessoas do plural. O status de língua da Libras Sistema de notação por palavras Convenção d ANDAR e Andar da direita para esquerda. Verbos com concordância para lugar serão re- presentados com seu correspondente subscrito: d = direita e = esquerda MENINA + Marca de plural pela repetição do sinal. * J-O-Ã-O M-A-R-I-A GOSTAR Frases que não respeitam as regras de estrutura- ção gramatical da língua são agramaticais, rece- bem o sinal de asterisco como indicativo. Essas são as principais notações que lhe serão úteis ao longo do curso. Agora que você sabe um pouco mais sobre os recursos empregados no estudo da Libras, acompanhe abaixo o relato do pesquisador sobre a experiência dele na aquisição da Língua Brasileira de Sinais como segunda língua. Boa leitura! Texto complementar Aspectos relevantes na aprendizagem de Libras como segunda língua por um adulto ouvinte (LEITE; MCCLEARY, 2009, p. 249-253) Entre os aspectos linguísticos relativos à aprendizagem da ASL destaca- dos por Jacobs (1996) estão: a modalidade da língua, a datilologia ou soletra- ção manual, os classificadores e os sinais não manuais. Além desses fatores, a experiência da presente pesquisa demonstrou a relevância de ainda outros aspectos: a morfossintaxe, o uso gramatical do espaço e a semântica lexical. Passo agora a tratar resumidamente de cada um desses pontos. Parte significativa da dificuldade na aprendizagem de línguas de sinais por ouvintes está relacionada à diferença entre línguas como o Português, que se apoiam fortemente na audição, e línguas como a Libras, que se apoiam es- tritamente na visão. Por exemplo, as línguas de sinais parecem exigir um re- finamento da visão que os ouvintes precisam desenvolver. Como os demais colegas ouvintes, a minha tendência em meus primeiros anos de aprendiza- gem da Libras era a de focalizar a atenção nas mãos do sinalizador em detri- mento do rosto, perdendo uma série de informações linguísticas importan- 44 O status de língua da Libras tes veiculadas por esse canal. Com o tempo, observei que os surdos agiam de maneira distinta, focalizando predominantemente o rosto e só desvian- do o foco visual para as mãos em algumas poucas ocasiões (e.g. em alguns casos de soletração manual). A dificuldade de acompanhar a sinalização se agravava em contextos informais, nos quais dois ou mais surdos interagiam ao mesmo tempo. Minha impressão era a de que os surdos acompanhavam esse tipo de conversa sem a necessidade de redirecionamentos da cabeça e do olhar tão frequentes e/ou intensos quanto os meus. Se esse refinamento visual de fato existe - como alguns pesquisadores têm argumentado (e.g. SWISHER et al., 1989) - seria fundamental que os cursos de Libras como se- gunda língua procurassem desenvolver essa habilidade nos alunos ouvintes, o que não ocorreu em minha experiência. A datilologia, a soletração de palavras das línguas orais por meio do alfa- beto manual, provou-se um elemento de facilidade apenas ilusória. Tendo em vista que o aprendizado das configurações de mão referentes a cada letra do alfabeto ocorre de maneira relativamente rápida e sem maiores pro- blemas, é comum os alunos - e inclusive os professores - considerarem esse um aspecto linguístico que não exige maior atenção nos cursos de Libras. Contudo, como Jacobs assinala, o uso fluente da datilologia no ritmo natural do discurso espontâneo é um dos aspectos mais difíceis de serem alcança- dos pelos ouvintes, exigindo uma prática muito maior do que se costuma pressupor. Em minha experiência de pesquisa, os cursos de Libras reserva- ram apenas uma ou, no máximo, duas aulas iniciais a atividades voltadas especificamente para a prática do alfabeto manual, demonstrando que os próprios professores não se davam conta da complexidade e dos diferentes usos dessa prática em seu uso proficiente da Libras. O plano morfossintático constituiu-se num dos aspectos de maior dificul- dade no aprendizado da Libras. Parecia bastante difundida, entre os profes- sores, a ideia de que primeiro devemos aprender sinais isolados para depois aprender a combiná-los, o que se revelava na estratégia de sempre intro- duzir uma lista de sinais antes de atividades de uso da Libras em interação. Tal visão resultou no desenvolvimento de hábitos prejudiciais por parte dos alunos ouvintes, que se viam sem alternativa a não ser a de empregar os sinais que eles conheciam na estrutura mais linear do português, que difere significativamente da estrutura mais espacial da Libras. Um outro aspecto problemático relacionado à morfossintaxe foi o ensino dos ditos "classifica- O status de língua da Libras dores"- um aspecto das línguas de sinais que, segundo Jacobs, é de difícil as- similação pelos ouvintes. Embora o termo classificador seja corrente
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