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REPRESENTACAO POLITICA O Princípio da Distinção Bernard Manin (2010) aborda a tradição de expectativa e normatividade de eleger representantes políticos “superiores” em relação ao eleitorado. Dentro de uma lógica de distribuição desigual de poder, esperava-se que as elites políticas fossem compostas por elementos das mais altas classes da sociedade, dotados de prestígio social, e que apresentassem outros atributos como elementos distintivos do restante da população. Dos representantes, esperava-se não apenas que tivessem elevado status social, mas principalmente que houvesse distância entre o seu status social e o de seus representados. A essa norma, Manin chamou de princípio da distinção . Para ilustrar seu argumento, Manin analisa os processos de seleção de candidatos na Inglaterra, França e Estados Unidos, entre os séculos XVII e XX. Em sua análise, o autor demonstra que muitas eram as vias institucionais e culturais capazes de garantir que os representantes selecionados fossem membros das camadas mais altas da população. Essa lógica se aplicava não apenas a os eleitos, mas também aos eleitores, que por um significativo espaço de tempo faziam parte de um grupo social de status mais alto, constituindo-se em uma minoria com direito ao voto. 1.1 INGLATERRA E FRANÇA: DEFINIÇÕES EXPLÍCITAS DO CARÁTER DISTINTIVO DE REPRESENTAÇÃO Na Inglaterra , em 1710, foi implementada norma que exigia que representantes parlamentares tivessem propriedade acima de determinado valor, para que pudessem concorrer ao cargo. Não sendo suficiente, existia também um clima de opinião atuando com a expectativa de que o parlamento fosse composto por membros notáveis. Havia, portanto movimentos ativos por parte das elites políticas, com clima de opinião favorável, para garantir que pessoas com prestígio social fossem eleitas. Buscava-se também assegurar que pessoas das camadas mais baixas da população seriam excluídas do processo de escolha. Para o membro do parlamento Shaftesbury, do partido Whig, deveriam ter direito ao voto somente cidadãos que pudessem garantir seu sustento de forma independente da Coroa, o que supostamente os tornaria menos suscetíveis aos chamados corruptivos advindos da política. Essa proposta denota o caráter distintivo da política na Inglaterra do século XVII e XVIII. É possível compreender que o desejo pela seleção de membros notáveis para o parlamento também cumpria a função de, supostamente, manter os políticos afastados da tentação de subtrair para si valores pertencentes ao Estado. Os dois partidos estabelecidos na Câmara dos Comuns, Whig e Tory, cada qual por suas razões, estavam de acordo com o princípio da distinção, como norma inerente à seleção de membros do parlamento. Havia na Inglaterra uma atmosfera onde imperava a crença de que parlamentares eram inerentemente superiores ao restante da população; também havia mecanismos institucionais que foram utilizados durante séculos para garantir a distinção entre representantes e representados. Por meios de restrições econômicas, que determinavam quem tinha o direito de concorrer e quem tinha o direito de votar, foi promovida a exclusão de ampla parte da população, que ficou de fora do processo de escolha de seus representantes. REPRESENTACAO POLITICA Já na França a participação popular era mais ampla, em comparação à Inglaterra, embora ainda restritiva para os parâmetros atuais. Os cidadãos que pagavam acima de determinada quantia de impostos estariam aptos a votar. Sem direitos ao voto, apareciam outros grandes segmentos sociais: mulheres, empregados domésticos, sem residência fixa, pessoas consideradas muito pobres e monges. Todos excluídos da escolha eleitoral. A eleição dos membros da Assembleia Constituinte, portanto, marcava a dissociação entre os direitos políticos e os direitos civis. As instituições, por meio de leis, definiram quem seriam os eleitores. Atuaram, principalmente, no sentido de definir quem poderia ser eleito. Após as elites políticas tentarem, sem sucesso, definir por cortes tributários e de propriedades quem seriam os elegíveis, foi proposto um formato de eleição indireta, em que os intermediários também tinham um piso relativamente alto de pagamento em impostos. A lógica por trás da eleição indireta estava na expectativa de que delegados intermediários, com status social notável, garantiriam a escolha de eleitos com o mesmo prestígio, seus pares. O recurso teve o efeito esperado pelas elites políticas. 1.2 ESTADOS UNIDOS: O PRINCÍPIO DA DISTINÇÃO NÃO ESTÁ NO PAPEL, MAS ESTÁ PRESENTE Manin (2010, p. 194) aponta que os efeitos do princípio da distinção eram menos marcantes na França do que na Inglaterra. Ainda assim, a fundação do governo representativo francês deu conta de que os eleitos fossem “mais ricos e proeminentes do que seus eleitores”. Se na Inglaterra essa garantia foi dada por meio de normas sociais e imposições de restrições financeiras, na França isso se deu por meio de regras institucionais explícitas, que afiançavam que eleições indiretas tivessem o efeito de “filtragem” no processo eleitoral. Para lembrar : a Convenção da Filadélfia (1787) foi uma reunião entre as elites estadunidenses para debater a criação de um novo governo após a independência dos Estados Unidos. Fruto desse debate, nasceu a Constituição dos Estados Unidos da América. Da mesma forma que aconteceu com os franceses, a Convenção da Filadélfia optou por uma demarcação pouco restritiva – para os padrões da época – daqueles cidadãos que teriam o direito de votar. O caminho final foi a opção mais aberta entre todas as discutidas da convenção. Ainda assim, predominava a ideia de que se tivessem posses privadas, os deputados federais se manteriam longe das tentações de corrupção, especialmente dos apelos advindos do poder Executivo, tal como na Inglaterra. De acordo com o Manin, esse é um princípio central do pensamento republicano. A exigência de propriedade era, além de um marcador social de posses/dinheiro, uma forma de garantia de que os membros do parlamento trabalhariam em benefício da proteção da propriedade privada, aspecto fundamental para a democracia estadunidense. Assim, apesar da moderada restrição aos eleitores, a Convenção da Filadélfia manteve o princípio da distinção. REPRESENTACAO POLITICA Com desigualdades de modo de produção e de caráter socioeconômico no interior da extensa nação, formular uma definição mais ampla, de nível federal, sobre as características dos elegíveis, se mostrou inviável. Os critérios que seriam suficientemente úteis aos interesses do sul do país seriam inadequados aos estados da costa leste. E vice-versa. Desse modo, o requisito de propriedade não foi imposto aos representantes. Isso, contudo, não aconteceu por uma questão de princípio inclusivo ou igualitário, e sim em resposta à falta de acordo intra-elites, que pudesse beneficiar todos os envolvidos. Por fim, na Constituição de 1787, por razões de “oportunidade ou conveniência” (Manin, 2010, p. 200), não há a exigência de que os representantes sejam proprietários de terras. A ausência do requisito de propriedade na referida Constituição confere aos Estados Unidos pressupostos constitucionais bastante divergentes dos franceses ou ingleses. Da mesma forma, confere à Constituição um caráter mais democrático, porque inclusivo. Manin alerta-nos, todavia, que “é-se tentado a dizer que o caráter excepcionalmente igualitário da representação nos Estados Unidos deve-se mais à geografia do que à filosofia” (Manin, 2010, p. 200). A discussão sobre o tamanho da Câmara dos Deputados se aprofundou bastante. Mais especificamente, antes de definir o número de deputados, seria necessário definir o que estava sendo entendido por representação . O elemento fundamental do dissenso era a compreensão do quanto os representantes deveriam espelhar a identidade da nação, o quanto deveriam ser semelhantes a seus representados. Os antifederalistas foram aqueles que mais fortemente se opuseram à Constituição, por ela não conter essanoção de proximidade requerida entre representantes e representados, noção que Hanna Pitkin nomeou “teoria do mandato”, de acordo com a qual os representantes refletiriam o mais minuciosamente possível os anseios, demandas e opiniões de seus representados. Em contraposição ao termo “teoria do mandato”, estaria a atuação parlamentar “independente”, segundo a qual os representantes agiriam orientados por sua própria consciência, levando em consideração as preferências de seus representados e a melhor forma de chegar aos seus objetivos. Essa última era a noção de representação dos federalistas da Convenção da Filadélfia (Ball, 1987, citado por Manin, 2010). James Madison, importante nome na elaboração da Constituição dos Estados Unidos, parte da força dos federalistas, argumentou em favor de um republicanismo bastante distorcido, a fim de que fosse aplicado aos anseios dos federalistas. Em seu discurso, que pode ser lido nos The Federalists Papers (relatórios e atas das Convenções ocorridas na Filadélfia para a elaboração da Constituição), Madison defende que a essência do republicanismo são as eleições. Mais do que isso, que serão selecionados aqueles cidadãos que tenham “mais sabedoria para discernir, e mais virtude para buscar o bem comum da sociedade” (citado por Manin, 2010). Para Madison, as eleições periódicas e a dependência do voto popular para a manutenção do cargo garantiriam que os representantes não agissem em interesse próprio, conforme temiam os antifederalistas, pois teriam medo de perder seu lugar na Câmara dos Deputados. O próprio mecanismo institucional, portanto – a saber, eleições periódicas e regulares – geraria incentivos para a manutenção de atitudes republicanas por parte dos representantes. Fica claro que, ao elaborarem termos para a definição de representantes, os delegados da Filadélfia buscaram romper com alguns vícios ingleses. Um deles seria o período durante o qual os membros do parlamento ocupam seus assentos: o tempo de mandato dos parlamentares da Inglaterra era extenso, o que, para os delegados, beirava à tirania. Um passo importante para romper com esse padrão foi determinar um mandato eletivo de dois anos. REPRESENTACAO POLITICA Com argumento semelhante, James Wilson, outro importante nome na Convenção da Filadélfia, defendeu que os representantes seriam fruto da escolha da população, e que seriam selecionados os melhores da sociedade. De acordo com James Wilson, com o aumento da riqueza e de acumulação de capital na sociedade, a riqueza viria a ser naturalmente relacionada à virtude, e infelizmente os membros da convenção nada poderiam fazer para impedir que isso acontecesse. Apesar de lamentarem, federalistas defendiam que os “vícios” dos ricos podem ser mais benéficos a uma nação do que os “vícios” dos pobres. Segundo Manin (2010), argumentos como os de Madison e Wilson, que foram amplamente utilizados e repetidos em reuniões que dariam origem à Constituição, mostram a presença do princípio da distinção, encontrado também na formação do governo estadunidense. Embora nesse caso o governo não usasse de meios institucionais para definir atributos distintivos de seus representantes (diferenciando-se da Inglaterra e da França), a mesma lógica está presente no discurso dos arquitetos do governo que estava nascendo, pois utilizaram esse princípio como diretriz informal para a composição de parlamentos. Vamos recordar: nas origens das repúblicas da Inglaterra e França, havia garantia institucional de que os membros do parlamento seriam pessoas distintas do restante da população. A exigência da propriedade e do pagamento de certo valor de tributos assegurava o status social elevado dos representantes na Inglaterra, e o mesmo efeito acontecia na França, com a eleição indireta, com delegados intermediários de prestígio social. Já nos Estados Unidos, Manin argumenta que, por fatores geográficos, e por oposição dos antifederalistas, não estava explícito na Constituição Federal, à letra da lei, a distinção social esperada dos representantes. Ela era incentivada por meio da definição de distritos amplos, o que tende a beneficiar candidaturas ricas, mas “tender a” é diferente de “irá”. Manin quer dizer com isso que, enquanto os exemplos europeus contavam com leis rígidas e explícitas, que protegiam o princípio da distinção, os Estados Unidos apresentaram uma nova possibilidade de construção republicana. Os casos europeus citados nunca se propuseram a espelhar a sociedade em termos de “semelhança e proximidade”, que significa vivência, proximidade de experiência de vida, também em termos espaciais. Para que fosse possível mudar as exigências de atributos de superioridade social, era necessário alterar as leis. Para a alteração das leis, seria necessário contar com a aprovação justamente das pessoas que se beneficiam das leis tais como são, o que é um processo político muito mais complexo e menos provável. Nesse sentido, os Estados Unidos, com a “semelhança e proximidade” requerida pelos antifederalistas, tinham mais condições de chegarem a esse objetivo na prática, uma vez que não seria preciso alteração de leis para isso, mas sim alteração de conduta por parte do eleitorado, de forma que “a vantagem da riqueza poderia ser alterada”. Manin ressalva, no entanto, que evidentemente isso não é algo simples, já que as normas sociais também empurram para a seleção de candidatos prestigiosos. Contudo, a possibilidade aberta pela Constituição dos Estados Unidos, diferentemente do que aconteceu na Inglaterra e na França, permitiu que grupos políticos diversos pudessem chegar ao poder. Havia, ainda, a possibilidade – ainda que restrita – de que cidadãos comuns pudessem galgar esse degrau. Com isso, Manin afirma que, com as diferenças institucionais propostas pelos delegados da Convenção da Filadélfia no Novo Mundo, os Estados Unidos foram pioneiros na apresentação de um modelo que aliava perfeitamente o princípio da distinção com um governo representativo (Manin, 2010, p. 219).