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Resumo: MATTOS, Patrícia. O reconhecimento, entre a justiça e a identidade. Lua Nova, n.º 63, São Paulo, 2004. O objetivo primordial da Patrícia Mattos encontra-se no debate entre Axel Honneth e Nancy Fraser, o qual possui como cerne a determinação do “alcance e dos limites da perspectiva do reconhecimento para a análise das modernas sociedades do Ocidente”. Diante disso, verifica-se, inicialmente, que ambos problematizam os pontos principais acerca da teoria do reconhecimento, além de seus pilares primordiais, de maneira a possibilitar uma teoria da Justiça. Para tanto, almejam “(i) colocar a categoria do reconhecimento como central para a reconstrução de um pensamento crítico; (ii) estabelecer uma posição crítica em relação às lutas sociais contemporâneas; e (iii) teorizar o lugar da cultura no capitalismo e pensar padrões de Justiça”. O Dualismo de Perspectiva de Fraser Assim, Fraser defende que as demandas por reconhecimento encontram-se enquanto fenômeno recente da sociedade, de forma que fariam parte de um processo da evolução capitalista (era pós-socialista), o qual é marcado por uma nova configuração e importância das lutas de ordem culturais, haja vista que os conflitos de classe seriam suplantados pelo reconhecimento ou conflitos de status social, advindos da dominação cultural.1 2 Nesse ponto, observa-se que Fraser verifica esse fenômeno da mudança da redistribuição para o reconhecimento a partir das novas demandas dos movimentos 1 Fraser parece concordar parcialmente com o diagnóstico do cientista político Ronald Inglehart de que vivemos atualmente uma revolução silenciosa, na qual há uma decrescente ênfase em valores materiais, relacionados à economia-política, em favor de valores “pós-materiais”. 2 Inglehart afirma que houve uma mudança enorme na cultura política nos últimos tempos. Segundo ele, a partir da Segunda Guerra Mundial, com o estabelecimento do Estado de Bem-Estar social, com o advento das novas tecnologias, com a educação maciça e de boa qualidade acessível a todos houve mudanças importantes nos valores em todas as esferas: política, economia, em relação ao trabalho, à família, ao comportamento sexual, dentre outras. Essas mudanças teriam proporcionado um progresso social que permitiu a superação de necessidades básicas através de políticas distributivas e que, atualmente, as sociedades contemporâneas, ou melhor, os países centrais, estariam vivenciando uma mudança na cultura política que comportaria lutas por em relação às identidades culturais e étnicas, em defesa do meio ambiente etc. Estas se caracterizariam pelo seu conteúdo não material, seriam lutas que não têm por fim a redistribuição de renda. INGLEHART, Ronald. Modernization and Postmodernization: cultural, economic and political change in 43 societies. Princeton: Princeton Universtiy Press, 1997. sociais, da mesma forma que Inglehart. No entanto, contrariamente a ele, ela acredita que há, na verdade, um crescimento das desigualdades sociais na maioria dos países, mesmo aqueles considerados “desenvolvidos”. Fraser, portanto, preocupa-se com a desconexão entre as dimensões econômica e cultural dos conflitos sociais, tendo em vista que nessas novas demandas acaba ocorrendo uma certa minimização de questões concernentes às desigualdades econômicas e, dessa maneira, vê-se que a suposta divisão acima é falsa. Dessa forma, o desafio reside em “descobrir como conceitualizar reconhecimento cultural e igualdade social de maneira que uma demanda não enfraqueça a outra”, bem como “teorizar sobre os modos pelos quais as desvantagens econômicas e o desrespeito cultural estão entrelaçados e apoiados um no outro”. Para tanto, Fraser, em seu texto “Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista”, ela “constrói tipos ideais de conflitos sociais com o intuito de mostrar a interrelação entre as demandas por redistribuição e por reconhecimento através da análise dos possíveis remédios adotados para vencer injustiças sociais específicas” ao ilustrar determinados esquemas de análise que permitam conciliar essas duas demandas, tomando como exemplo as lutas de gênero e raça. Inicialmente, portanto, distingue-se analiticamente os dois tipos de reinvindicações, de forma que a por redistribuição enfatiza que a injustiça socioeconômica está enraizada na estrutura político-econômica, a exemplo da marginalização econômica, ao passo em que a por reconhecimento, que visa vencer as injustiças culturas, busca a destruição de padrões sociais de comportamento e interpretação já enraizados socialmente, ou seja, almeja o fim de pré-conceitos. Contudo, as soluções que se encontram acabam sendo um tanto quanto contraditórias e, para ilustrar isso, analisam-se as lutas de gênero e raça, os quais sofrem de injustiça econômica e cultural, conjuntamente. Assim sendo, no tocante a essas lutas, ambas necessitam da afirmação do princípio da igualdade, mas também o da diferença. Alternativamente a essa suposta contradição, Fraser analisa as estratégias denominadas de afirmação ou transformação, de maneira que as primeiras almejam a correção de resultados indesejados sem mexer na estrutura formativa, enquanto as segundas possuem o mesmo objetivo, mas reestruturando a estrutura que os produz.3 3 Tomemos como exemplo a questão das desigualdades econômicas. Remédios afirmativos tendem a enfatizar medidas de transferência de renda através de programas de seguro social, de assistência pública A vista disso, Fraser propõe, no caso das questões de gênero, na tentativa da construção de remédios alternativos e transformativos, a combinação entre redistribuição transformativa e reconhecimento transformativo, adotando-se um feminismo socialista, bem como uma desconstrução guiada pelo desmantelamento do androcentrismo, desestabilizando-se as dicotomias de gênero ao se permitir uma releitura das diferenças e construção de novas identidades. Na sequência, observa-se que Fraser buscou desenvolver uma teoria social que não permitisse apenas fundamentar sua concepção social, mas também que aclarasse os debates políticos. Diante disso, vê-se que o ponto central de seu livro seria “como entender melhor a relação entre redistribuição e reconhecimento?”. Nesse questionamento reside a principal diferença entre ela e Honneth, uma vez que este argumenta que todos os conflitos sociais possuem como natureza primária a luta por reconhecimento, ao passo em que Fraser acredita que ele tenha subsumido as lutas por distribuição de renda ao reconhecimento. Destarte, ela propõe “uma perspectiva dualista de análise dos conflitos sociais com o objetivo de pensar um conceito de justiça social que agregue essas duas dimensões, possibilitando, assim, uma teorização da cultura no capitalismo contemporâneo”. Ressalta-se, todavia, que a teoria do reconhecimento possui como escopo mostrar que “todo processo de interação é constituído pelo reconhecimento mútuo e que todos os conflitos estão baseados na violação desse consenso que fundamenta acordos intersubjetivos”. A evolução dos indivíduos e da sociedade, portanto, ocorreria ao passo em que esse reconhecimento se ampliasse e permitisse novas formas de individuação e inclusão social, o que é discutido pela teoria de Honneth. Diante disso, Honneth, seguindo os ensinamentos de Hegel, afirma que “o reconhecimento intersubjetivo é condição para o desenvolvimento de uma identidade positiva necessária para a participação na esfera pública”, de forma que existiria sempre etc. Longe de abolir as diferenças de classe, esses remédios as suportam e as modelam, deixando intacta a estrutura que produz as desvantagens de classe. Além disso, tendem a criar uma estilização do grupo “favorecido” como sendo inferior por não conseguirem por si mesmos uma situação favorável de vida, colocando, assim, em xeque a con cepção universalista do igualvalor das pessoas. Remédios transformativos, ao contrário, combinam programas universalistas de bem-estar social, impostos progressivos, políticas macroeconômicas voltadas para a criação do emprego e tomadas de decisões democráticas sobre prioridades macroeconômicas. A tendência é, portanto, a minar a diferença de classes. Os remédios afirmativos podem ter um efeito perverso na promoção da diferenciação entre classes, estigmatizando a diferença, somando o insulto da falta de reconhecimento à injúria da privação. A redistribuição transformativa, em contraste, pode promover a solidariedade e ajudar a rever formas de não- reconhecimento. FRASER, op. cit., p. 270-271. uma concepção de boa vida baseada em critérios normativos e que estaria por trás das lutas por reconhecimento. Em contrapartida, Fraser enxerga o reconhecimento como uma questão essencialmente de justiça e, conforme os ensinamentos de Kant, demonstra que “a categoria do reconhecimento pode ser melhor explicada de acordo com um padrão universal de justiça, aceito por todos, a partir do pressuposto de igual valor do ser humano”, ou seja, esse não-reconhecimento seria analisado mais pelo exame das práticas discriminatórias institucionalizadas, do que pelas atitudes depreciatórias. Dessa maneira, seria possível a fundação de um padrão de justiça de acordo com a noção de participação paritária, o qual teria como vantagem a justificação das lutas como moralmente obrigatórias, deixando a auto-realização e os valores éticos em segundo plano. Nesse ínterim, ressalta-se que, para Fraser, o que asseguraria a moralidade seria a garantia de participação paritária em sociedade, tanto no âmbito privado quanto público, ao passo em que, para Honneth, essa estima social seria alcançada enquanto condição de intersubjetividade não distorcida, de forma a se criar uma identidade positiva, no âmbito do cotidiano. Por conseguinte, de maneira a se melhor compreender a relação entre má- distribuição e não-reconhecimento, Fraser se utiliza de dois conceitos centrais: classe e status social. Ambos denotam ordens de subordinação ligadas e legitimadas socialmente, uma vez que afirmar que “a sociedade possui uma estrutura de classes é dizer que ela institucionaliza mecanismos econômicos que sistematicamente negam a alguns de seus membros oportunidades necessárias para que eles participem junto com os outros da vida social”. O prestígio social, portanto, seria derivado de “uma ordem intersubjetiva que reconhece que determinados membros contribuem de forma diferenciada para a reprodução da vida social”, de maneira que estruturas de classe e de status social constituiriam obstáculos para a participação paritária. Fraser, por sua vez, almeja “construir a sua teoria social para deixar evidente que as injustiças de status estão relacionadas com a estrutura moderna do capitalismo e não desapareceram com a mudança da sociedade tradicional para a sociedade moderna, apenas se modificam os padrões que fundam o status social”. Outrossim, acredita na possibilidade de eliminação dos padrões hierarquizantes da sociedade através da continuação de um processo de transformação qualitativa da sociedade, o qual possuiu contribuição do mercado e do crescimento de uma sociedade civil plural, o que permitiu ampliação de padrões culturais. No entanto, ela argumenta que “as abordagens que se propõem a analisar a realidade social contemporânea tendem a subsumir as duas dimensões dos conflitos sociais uma na outra”. Sua proposta, portanto, é do uso de um dualismo de perspectiva, o qual permitiria a avaliação analítica das demandas por reconhecimento e por redistribuição, mas esse também não resolveria o problema de conexão de domínios, apenas deixando mais evidente o sintoma do problema, bem assim evitando a redução de um domínio no outro. O Monismo Moral de Honneth Por outro lado, Honneth não acredita ser suficiente para a construção dessa teoria social meramente pensar a teoria do reconhecimento a partir apenas da análise dos novos movimentos sociais. Acredita, por sua vez, que para se afirmar que os conflitos contemporâneos são lutas por reconhecimento cultural é necessário, primeiramente, verificar quais são as formas morais relevantes de privação e sofrimento, de forma a se pensar em um critério normativo abstrato para esse exame dos conflitos sociais atuais. Dessa forma, para ele “todas as demandas por justiça distributiva podem ser mais bem explicadas com ajuda de categorias normativas que emergem da teoria do reconhecimento”. Contrariamente à Fraser, acredita que “todos os conflitos sociais têm como base uma luta por reconhecimento. Honneth propõe a utilização de categorias explicativas da teoria do reconhecimento desenvolvida por ele, a partir da teoria do reconhecimento de Hegel, para analisar as demandas dos conflitos sociais contemporâneos”. Questionando acerca das possíveis formas de sofrimento social, seus estudos parecem carecer de uma análise que ressalte a natureza normativa da moral. Além disso, baseando-se nos estudos de Thompson e Moore, os quais verificaram que “o conteúdo das lutas do século XIX não era essencialmente por distribuição de renda, mas sim pelo reconhecimento de que expectativas intersubjetivas não foram consideradas ou cumpridas”, de forma que “todas as lutas por distribuição representam uma luta por reconhecimento de acordos firmados intersubjetivamente e que possuem validade normativa”. Ou seja, é o não-reconhecimento que está na base dos sentimentos de sofrimento, humilhação e privação. Diante disso, pode-se examinar o cerne da discordância entre Fraser e Honneth, haja vista que ele discorda da separação feita por ela entre demandas por reconhecimento e por redistribuição para que se possa compreender a conexão entre cultura e economia na sociedade capitalista. O motivo para isso seria que essa dicotomia entre lutas negligenciaria as litas por reconhecimento presentes nos conflitos por igualdade legal. Dentro da temática do reconhecimento legal, Honneth visualiza uma dualidade na categoria de honra, de maneira que teríamos duas fontes de reconhecimento: a legal (igualdade legal-formal), em que a honra seria democratizada, e a de status ou apreciação social (valorização religiosa do trabalho profissional), na qual a honra seria meritocracizada. Destarte, vê-se que essa luta por reconhecimento, para ele, ocorre através de uma dialética do geral e do particular, assumindo uma espécie de monismo moral, uma vez que “desde que as instituições centrais do capitalismo são dependentes de legitimação racionalmente motivada permanecendo, portanto, dependente de consenso moral”, criticando, contrariamente à Fraser, a ausência de explicação adequada que possa legitimar o seu perspectivismo dualista. Conclusão Assim, para Patrícia, Fraser acaba separando indevidamente economia de cultura, como se houvesse possibilidade de alguma forma econômica não estar perpassada por valores. Desse modo, essa postura equivaleria a “retirar da perspectiva teórica do reconhecimento precisamente seu principal mérito, que é haver contribuído para re-significar tudo aquilo que o capitalismo tem tornado crescentemente naturalizado, muito especialmente na ordem econômica”. Dessa forma, ainda que haja essa crítica e que tenda a concordar, majoritariamente, com Honneth, ela acredita que a visão de Fraser também é primordial, haja vista que verifica a necessidade de questões concretas e crescentes, o que logrou na transformação em movimentos sociais próprios, os quais precisam ser estudados em suas nuances estratégicas de luta política.
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