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Resumo: BOURDIEU, Pierre. A força do direito – elementos para uma sociologia do campo jurídico. In: O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989 – Capítulo VIII. Primeiramente, Bordieu afirma que uma ciência rigorosa do direito distingue-se do que se chama de ciência jurídica, evitando o formalismo e o instrumentalismo, sem que o direito seja visto como fechado e autônomo. Assim, neste último reivindica-se uma autonomia absoluta do pensamento ao se constituir uma teoria de um modo de pensamento específico (Kelsen – teoria pura do direito) tendo nele próprio o seu fundamento. Assim, afirma que os marxistas estruturalistas ignoraram a estrutura dos sistemas simbólicos e a forma específica do discurso jurídico, de forma a terem passado a questão das condições históricas que se devem verificar para podem emergir um universo social autônomo capaz de produzir um “corpo jurídico” independente de fatores externos. Essa preocupação, portanto, encontra-se em situar o direito em um lugar impedido pelas “forças históricas” em que se apreenda sua especificidade, qual seja, o universo social específico em que ele se produz e se exerce. De forma a se romper essa ideologia da independência do direito e do corpo judicial, deve-se levar em consideração aquilo que as visões internalistas e externalistas (antagônicas) ignoram, ou seja, a existência de um universo social relativamente independente de pressões externas, no interior no qual se produz e se exerce a autoridade jurídica (violência simbólica legítima – monopólio estatal). Desse modo, as práticas e os discursos jurídicos são produto do funcionamento de um campo cuja lógica específica está duplamente determinada: (i) pelas relações de força específicas que conferem a sua estrutura e orientam lutas de concorrência; e (ii) pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam o espaço dos possíveis. A divisão do trabalho jurídico Em seguida, é afirmado que o campo jurídico é um lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, ou seja, aquele local em que existam agentes com competência e com reconhecida capacidade de interpretar um corpo de textos que consagram a visão justa do mundo social. Assim, pode-se dar as razões da autonomia relativa do direito e do efeito simbólico de desconhecimento resultado da ilusão de uma autonomia absoluta em relação às pressões externas. Na sequência, alega existir uma lógica paradoxal de uma divisão do trabalho, determinando-se na concorrência estruturalmente regulada entre os agentes e as instituições envolvidas no campo, de maneira a constituir o princípio de um sistema de normas e práticas, o qual pode se impor ao reconhecimento por uma necessidade lógica e ética. (??) Outrossim, Bordieu afirma que no texto jurídico encontram-se em jogo lutas, haja vista ser a leitura uma maneira de apropriação da força simbólica em estado potencial que nele existe. Dessa maneira, ainda que juristas possam se opor a certos textos cujo sentido não poderá ser oposto de maneira inteiramente imperativa, ainda assim permanecem insertos em um corpo dentro do qual existem instâncias hierarquizadas, de forma a serem aptos a resolverem conflitos entre os intérpretes e as interpretações. Diante disso, é mais fácil a esses juristas acreditar que o direito tem o seu fundamento nele próprio, ou seja, em uma norma fundamental tal qual a Constituição, de que se deduzem normas de ordem inferior, de maneira a terem a crença em uma suposta visão ordenada da ordem social por eles produzida. Ademais, observa-se o efeito de “apriorização” nesse campo jurídico, o qual é revelado na linguagem jurídica, de forma se combinar elementos da linguagem comum com aqueles estranhos ao sistema, nessa tentativa de criar uma retórica da neutralidade. Aqui, portanto, criam-se os efeitos da neutralização e o da universalização. Essa retórica, por sua vez, é a expressão do funcionamento do campo jurídico a que o sistema das normas jurídicas está sujeito. Destarte, essa postura universalizante é uma forma específica de juízo, irredutível às intuições, por exemplo, haja vista se basear na dedução consequente a partir de um corpo de regras sustentado pela sua coerência interna. Portanto, a elaboração de um corpo de regras e procedimentos com pretensão universal acaba por ser produto de uma divisão do trabalho. Ou seja, conforme se observa na esfera jurídica, existem hierarquias entre as grandes classes de agentes jurídicos. Assim, essa significação prática da lei se determina de fato durante a confrontação entre diferentes pessoas de interesses específicos divergentes (magistrados e advogados, por exemplo), podendo até mesmo estarem em grupos opostos, no toante à hierarquia. Outrossim, verifica-se que no trabalho jurídico existe uma tendência mais própria dos teóricos e dos professores, que é a de insistir na sintaxe do direito, ao passo em que existe aquela mais provável entre os juízes, ou seja, a atenção à pragmática. Esse antagonismo, por seu turno, acaba servindo de base a uma forma sútil de divisão do trabalho de dominação simbólica (adversários se servem uns aos outros). Assim, verifica-se que os juristas tendem a puxar o direito no sentido da teoria pura, ou seja, ordenada em um sistema autônomo e autossuficiente. Os juízes, por sua vez, possuem um viés mais prático, haja vista orientarem o direito para as situações concretas, formando repertório de jurisprudência, de forma a assegurar essa função de adaptação ao plano real. Dessa maneira, observa-se que o juiz, nas palavras de Bordieu: “ao invés de ser sempre um simples executante que deduzisse da lei as conclusões diretamente aplicáveis ao caso particular, dispõe antes de uma parte de autonomia que constitui sem dúvida a melhor medida da sua posição na estrutura da distribuição do capital específico de autoridade jurídica”. Outrossim, sua lógica interpretativa possui uma função de invenção, ainda que possa haver caminhos anteriores e posteriores a isso que sejam considerados arbitrários (decisões políticas concernentes à prisão, por exemplo). Essa interpretação, portanto, opera a historicização da norma, ao adaptar as fontes a circunstâncias novas. Destarte, esse conteúdo prático da lei que acaba por se revelar na ocasião da sentença, por exemplo, ocorre como resultado de uma luta simbólica entre profissionais detentores de competências técnicas e sociais desiguais, mas que, ainda assim, são capazes de mobilizar os meios e recursos jurídicos disponíveis utilizando-os como armas simbólicas em prol de sua causa. A instituição do monopólio Em seguida, analisa-se a linguagem jurídica, ao se afirmar que existem palavras que possuem mais de um significado o que pode levar a mal-entendidos (colisão homonímica), de forma a camuflar certa discordância postural (fundamento estrutural dos mal-entendidos). Diante disso, Bordieu alega uma “representação nativa”, na qual descreve o tribunal como um espaço separado e delimitado, em que o conflito acaba se transformando em um diálogo de peritos e o processo, de maneira a se evocar o efeito simbólico do ato jurídico como aplicação prática, livre e racional de uma norma universal e cientificamente fundamentada. Ou seja: Dessa forma, adentrar nesse campo jurídico acaba significando a aceitação tácita da adoção de um modo de expressão e discussão que implica à renúncia a formas da violência simbólica (a injúria, por exemplo), haja vista que sua constituição se encontra como um princípio de constituição da realidade. Para essa entrada, portanto, existem exigências, nas quais se mencionam três principais: (i) deve-se chegar a uma decisão; (ii) a acusação e a defesa devem se ordenar em uma das categorias reconhecidas do procedimento; e (iii) deve-se recorrer a precedentes e conformar-se com eles. O poder de nomeaçãoNa sequência, observa-se que, ao se resolverem confrontos de pontos de vista singulares por meio de um veredicto de certa autoridade legitimada para tanto, pode-se assim visualizar uma espécie de encenação da luta simbólica, em que se está em jogo o monopólio do poder de impor um princípio de conhecimento universal. Aqui se verifica a visão soberana do Estado enquanto detentor do monopólio da violência simbólica legítima (veredicto do juiz = atos de nomeação ou instituição/palavra pública autorizada, oficial). Destarte, verifica-se que, na verdade, o direito é a forma por excelência do poder simbólico de nomeação que cria as coisas nomeadas, especialmente os grupos, de modo a conferir às realidades surgidas das suas operações de classificação toda a permanência que uma instituição histórica é capaz de conferir a elas. Ou seja, é capaz, por sua própria força, de produzir efeitos. A força da forma Ademais, Bourdieu alega que essa legitimidade que se aufere ao campo do direito não pode ser compreendida como uma jurisdição que seria o enunciado de valores universais e eternos (transcendentes aos interesses particulares) e tampouco como efeito da adesão aos interesses dos dominantes. No entanto, sua eficácia vai além desse círculo, por assim dizer, especialmente por essa pretensão à universalidade. Todavia, aqui se ressalta que o direito só pode exercer a sua eficácia específica na medida em que obtém o reconhecimento, ou seja, na medida em que permanece “desconhecida” suas nuances arbitrárias que se encontram na origem de seu funcionamento. Assim, o trabalho jurídico constitui um dos maiores fundamentos da manutenção da ordem simbólica justamente pela sistematização e racionalização que ele submete às decisões jurídicas e às regras invocadas para as justificar, de maneira a conferir a estas o selo da universalidade (eficácia simbólica). Existe, portanto, um efeito próprio dessa criação jurídica, que seria uma representação oficial do mundo social que esteja em conformidade com sua visão do mundo e favorável aos seus interesses. Ou seja, o direito acaba sendo um verdadeiro instrumento de normalização. Os efeitos da homologia Em suma, Bourdieu ressalta essa ideia de que o campo jurídico dispõe de autonomia para contribuir para a manutenção da ordem simbólica ou social, bem como de que dentro dele existe essa hierarquia jurídica. Dessa maneira, a medida em que aumenta a força dos dominados no campo social e jurídico, também aumenta a sua representatividade e avanços nesse mundo jurídico, através de transformações e inclusões de direitos, por exemplo (relação entre o campo jurídico e o campo do poder). Dessa forma, a função de manutenção da ordem simbólica que é assegurada pela contribuição do campo jurídico é produto de ações que não possuem o intuito da realização dessa função dentro da qual existem intenções diversas. Estas, por sua vez, contribuem para determinar a adaptação do direito e do campo jurídico ao novo estado das relações sociais garantindo, portanto, a legitimação da forma estabelecida dessas relações (estrutura do jogo).
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