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Christopher Dawson pode ser descrito como o último exem­
plar de sua espécie. Altamente erudito e dono de uma visão his­
tórica monumental, Dawson era um intelectual consciencioso 
que buscava compreender as ações particulares do processo his­
tórico e encaixá-las em um contexto mais amplo, traços que lhe 
renderam a alcunha de historiador filosófico. 
Ainda que possamos chamá-lo de "gigante", pois permitiu 
que subissem em seus ombros grandes intelectuais contemporâ­
neos, como, por exemplo, T. S. Eliot e Russell Kirk, Dawson era 
um homem franzino, de saúde frágil, com capacidades oratórias 
e didáticas muito inferiores à sua magnífica prosa. 
Os anos de Harvard foram os mais produtivos de Dawson 
desde 1935. Um dos belos frutos do período é A Formação da 
Cristandade, primeira parte do tríptico que traça o rico processo 
histórico de constituição da identidade cultural cristã. Neste vo­
lume, Dawson delineia a formação cultural do cristianismo das 
raízes na tradição judaico-cristã até a ascenção e decadência da 
cristandade medieval, com incrível riqueza de detalhes, a par­
tir de um princípio que chama de "católico". A presente obra 
complementa e amplia escritos anteriores como The Making 
of Europe [A Criação da Europa], de 1932; Medieval Religion 
and Other Essays [Religião Medieval e Outros Ensaios], de 
1934; Religion and the Rise of Western Culture [Religião e o 
Nascimento da Cultura Ocidental], de 1950; e Medieval Essays 
[Ensaios Medievais], de 1954. 
Certa vez, uma revista de Boston referiu-se a ele como uma 
"antítese animadora [ ... ] ao acadêmico encastelado na torre de 
marfim'' , já que Dawson trazia consigo a marca do verdadeiro 
intelectual: a humildade. Não obstante, esse homem despreten­
sioso e frágil teve imensa coragem e excepcional domínio da His­
tória ao esboçá-la de um ponto de vista absolutamente inovador: 
a partir de um poder de expressão dinâmico, base de toda a cul­
tura do homem, a pedra angular que os homens de nosso tempo 
rejeitaram chamada religião. 
Márcia Xavier de Brito 
Vice-Presidente do Centro Interdisciplinar de Ética e 
Economia Personalista (CIEEP) . Editora Responsável de 
COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura 
Christopher Dawson foi 
um dos historiadores mais 
influentes do século XX na 
Grã-Bretanhq, e nos Estados 
Unidos. Nasceu no dia 12 de 
outubro de 1889 em Hay-on­
-Wye, em Brecknockshire, no 
País de Gales. Até os dez anos 
foi educado exclusivamente 
em casa por tutores. Estu­
dou no Winchester College 
e cursou história no Trinity 
College da Universidade de 
Oxford. Notabilizou-se pela 
grande erudição e capaci­
dade de transitar com rara 
facilidade e sólida competência por quase todos os domínios 
das ciências humanas, ao abarcar, nos estudos históricos, pro­
fundas reflexões dos campos da Literatura, da Antropologia, da 
Sociologia, da Filosofia e da Teologia. Durante a maior parte 
da vida foi um pesquisador independente, no entanto, atuou 
como professor universitário do University College em Exeter 
(1930-1936), da Universidade de Liverpool (1934), da Uni­
versidade de Edinburgh (1947-1948) e da Universidade de 
Harvard (1958-1962). Faleceu no dia 25 de maio de 1970 em 
Budleigh Salterton, em Devonshire, na Inglaterra. Foi autor 
de 24 livros publicados originalmente em inglês entre 1928 e 
1975. Em língua portuguesa, além do livro A Formação da 
Cristandade (2014), a É Realizações já lançou Dinâmicas 
da História do Mundo (2010), Progresso e Religião (2012) e 
A Divisão da Cristandade (2014). 
Imagem da capa: © Cindy Pavlinac 
( www.sacred-land-photography.com) 
Impresso no Brasil, setembro de 2014. 
Título original: The Formation of Christendom 
Copyright © Julian Philip Scott, Literary Executor of the Sta te of Christopher 
Dawson, 2010 
Os direitos desta edição pertencem a 
É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. 
Caixa Postal 45321 - CEP 04010-970 - São Paulo, SP, Brasil 
Telefax: (5511) 5572-5363 
e@erealizacoes.com. br · www.erealizacoes.com. br 
Editor 
Edson Manoel de Oliveira Filho 
Gerente editorial 
Sonnini Ruiz 
Produção editorial 
William C. Cruz e Liliana Cruz 
Tradução 
Márcia Xavier de Brito 
Revisão técnica, preparação de texto e elaboração do índice remissivo 
Alex Catharino 
Revisão 
Cecília Madarás 
Projeto gráfico 
Mauricio Nisi Gonçalves/ Estúdio É 
Capa e diagramação 
André Cavalcante Gimenez / Estúdio É 
Pré-impressão e impressão 
Gráfica Vida & Consciência 
Reservados todos os direitos desta obra. 
Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou 
forma, seja eletrônica ou mecânica fotocópia, gravação ou qualquer outro 
meio de reprodução sem permissão expressa do editor. 
A FORMAÇÃO DA 
CRISTANDADE 
Das Origens na Tradição 
Judaico-Cristã à Ascensão e 
Queda da Unidade Medieval 
Christopher Dawson 
TRADUÇÃO DE MÁRCIA XAVIER DE BRITO 
APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE MANUEL ROLPH CABECEIRAS 
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE BRADLEY J. BIRZER 
INTRODUÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE DERMOT QUINN 
POSFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE ALEX CATHARINO 
Apresentação à Edição Brasileira: Christopher Dawson, 
Historiografia, Cristianismo e os Desafios de Nosso Tempo 
S u m á r i o 
Manuel Rolph Cabeceiras ..................................................................... 7 
Prefácio à Edição Brasileira: A Cristandade de Christopher Dawson 
Bradley ]. Birzer .................................................................................. 31 
Introdução à Edição Brasileira: Christopher Dawson e 
a Ideia Católica de História 
Dermot Quinn .................................................................................... 43 
Nota sobre a Tradução 
Márcia Xavier de Brito ....................................................................... 7 5 
Nota do Autor ......................................................................................... 81 
PARTE I - Apresentação 
Capítulo 1 1 Introdução ao Presente Estudo ............................................. 85 
Capítulo 2 1 O Cristianismo e a História da Cultura ............................. 101 
Capítulo 3 1 A Natureza da Cultura ...................................................... 115 
Capítulo 4 1 O Crescimento e a Difusão da Cultura .............................. 135 
PARTE II - Os Primórdios da Cultura Cristã 
Capítulo 5 1 As Ideias Cristã e Judaica de Revelação ............................. 153 
Capítulo 6 1 A Vinda do Reino de Deus ................................................. 171 
Capítulo 7 1 O Cristianismo e o Mundo Grego .......................... ............ 191 
Capítulo 8 1 O Império Cristão .............................................................. 207 
Capítulo 9 1 A Influência da Liturgia e da Teologia no Desenvolvimento 
da Cultura Bizantina ...................................... .................... 229 
Capítulo 1 O 1 A Igreja e a Conversão dos Bárbaros .............................. 249 
PARTE III - A Formação da Cristandade Medieval: Ascensão e Declínio 
Capítulo 11 A Fundação da Europa: Os Monges do Ocidente ........... 261 
Capítulo 12 A Era Carolíngia ............... .............................................. 277 
Capítulo 13 A Europa Feudal e a Era da Anarquia ............. ................ 291 
Capítulo 14 O Papado e a Europa Medieval ...................................... 303 
Capítulo 1 5 A Unidade da Cristandade Ocidental... ......... ............... . .. 317 
Capítulo 16 Os Feitos do Pensamento Medieval... ........................... ... 335 
Capítulo 17 Oriente e Ocidente na Idade Média ................................ 359 
Capítulo 18 O Declínio da Unidade Medieval .. ........................... .... . .. 375 
Epílogo 
Capítulo 19 1 A Ideia Católica de Sociedade Espiritual Universal ......... 393 
Posfácio à Edição Brasileira: Teologia e História na 
Reconstrução da Unidade Cristã 
A/ex Catharino ............................... .................................................. 411 
Índice Remissivo .................................................................................... 427 
Apr e s e n t a ç ã o à E d i ç ã o B r a s i l e i r a 
CHRISTOPHER DAWSON, HISTORIOGRAFIA, 
CRISTIANISMO E OS DESAFIOS DE NOSSO TEMPO 
MANUEL ROLPH CABECEIRAS 
1 7 
Natural do País de Gales, Christopher Henry Dawson nasceu em 
12 de outubro de 1 8 89, na pequena cidade de Hay-on-Wye (em ga­
lês "Y Gelli Gandryll " ) , também chamada simplesmente de "Hay" . 
À época pertencia a Brecknockshire (condado administrativo de 
Brecknock, extinto em 1 974) , exatamente na fronteira entre este e 
Herfordshire, no lado inglês. Pacata, transformou-se a partir dos 
anos 1 980, por conta das lojas de publicações usadas, na "Meca dos 
bibliófilos" , sendo muitas vezes descrita como "a cidade dos livros" . 
Embora tenha mudado algumas vezes de residência, a infância 
de Dawson sempre se passou nesse ambiente rural vitoriano (e ele 
próprio virá a destacar a importância deste fato em sua formação) , 
sendo educado exclusivamente por tutores, em casa, até os dez anos, 
quando passa a frequentar a escola preparatória . Em 1 908 , ingressou 
no Trinity College da University of Oxford, onde estudou História 
com o grande helenista Ernest Barker ( 1 874-1 960) . 
Em 1 909, acompanhado de seu melhor amigo, Edward 1. Watkin 
( 1 888-1981 ) , viajou para Roma e lá, nos degraus do Capitólio, no lugar 
mais sagrado das sete colinas da antiga Roma, para onde levam todas 
as ruas, sob o impacto da Cidade Eterna, sente-se desafiado a escrever a 
história da cultura; inspiração que seguirá pelo resto da vida. No mes­
mo ano, já de volta a Oxford, conheceu a futura esposa, Valery Mills, a 
caçula de três filhas de uma viúva, com quem, em 19 16, se casou e foi 
a companheira de toda a vida, sobrevivendo-lhe por mais quatro anos. 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le ira 
Ao mesmo tempo, por volta dessa época, Dawson trilhava um iti­
nerário espiritual que veio a culminar na sua conversão de um angli­
canismo praticante a um catolicismo não menos engajado. Para a to­
mada de decisão, em 1 9 1 3 , não faltou o apoio do melhor amigo e da 
namorada, ambos católicos. No dia 5 de j aneiro de 1 9 14, Christopher 
Henry Dawson foi batizado na igreja, em Oxford. Iniciada a Primeira 
Guerra, tentou ingressar no serviço militar, mas é rejeitado em razão 
da saúde ( sempre debilitada ) . 
Em breve, a s suas pesquisas começaram a dar frutos e sucederam 
as publicações: The Nature and Destiny of Man e The Passing of 
Industrialism ( 1 920) , Cycle of Civilizations ( 1 922 ) , The Age of Gods 
( 1 928 ) , Progress and Religion ( 1 929) , Christianity and the New Age 
( 1 93 1 ) , The Making of Europe e The Modern Dilemma ( 1 932), The 
Spirit of the Oxford Movement e Enquiries into Religion and Culture 
( 1 933 ) , Medieval Religion and Other Essays ( 1 934) , Religion and 
the Modern State ( 1 935 ) , Beyond Politics ( 1 939 ) , Judgment of the 
Nations ( 1 942 ) , Religion and Culture ( 1 948 ) , Religion and the Rise 
of Western Culture ( 1 950) , Medieval Essays ( 1 954), Dynamics of 
World History ( 1 956) , The Movement of World Revolution ( 1 959) , 
The Historie Reality of Christian Culture ( 1 960) , The Crisis of 
Western Education ( 1 96 1 ) , The Dividing of Christendom ( 1 965) , 
The Formation of Christendom ( 1 967) e, postumamente, The Gods 
of Revolution ( 1 972 ) e Religion and World History ( 1 975 ) . Para um 
público como o brasileiro, ao qual Dawson foi apresentado apenas 
recentemente, a relação visa a dar alguma ideia sobre os temas por 
ele investigados e o ritmo de produção, sem qualquer pretensão de 
esgotarmos a totalidade de sua obra. 
Entre tais títulos, alguns foram aclamados, desde o lançamento, 
como marcos fundamentais, o que enalteceu a amplitude do conhe­
cimento e a lucidez de estilo do autor. A repercussão dos trabalhos 
dawsonianos pode ser medida pela eleição do autor, em 1 943, para 
membro da British Academy. Apesar de atuar mais fora do ambiente 
8 1 9 
universitário, chegou a ocupar algumas vezes a cátedra no University 
College em Exeter ( 1 930-1 936) , na Universidade de Liverpool ( 1 934) 
e na Universidade de Edimburgo ( 1 947 e 1 948 ) no Reino Unido, bem 
como na Universidade de Harvard ( 1 958-1 962) nos Estados Unidos. 
No ambiente protestante da Universidade de Harvard, em Cambridge, 
Massachusetts, ministrou, como primeiro titular, um curso chamado 
Roman Catholic Studies [Estudos Católico-Romanos], criado por inicia­
tiva e a convite do benemérito católico, também convertido, Chauncey 
Devereux Stillman ( 1 907-1989) . Após a estada norte-americana, retor­
nou para a sua residência em Budleigh Salterton, Devon, na Inglaterra, 
cidade às margens do Canal da Mancha, onde passou os últimos anos, 
vindo a falecer em 25 de maio de 1 970. Seus restos mortais foram depo­
sitados em Bumsall, Yorkshire, no norte da Inglaterra, próximos aos dos 
pais, no local em que passou parte da infância. 
São partes do curso ministrado por Dawson na temporada esta­
dunidense as palestras transformadas em três livros, então entregues 
aos cuidados de Watkin, amigo de toda a vida, companheiro da via­
gem a Roma, e agora seu agente e editor literário. Diferente das outras 
obras anteriores, a publicação das referidas palestras repercutiu mui­
to pouco. Era o ocaso de um gênio e de um modo de fazer História . 
Dos três, o terceiro e último volume The Return to Christian Unity 
[O Retorno da Unidade Cristã] permanece ainda inédito mesmo em 
língua inglesa. Quanto aos dois primeiros, os já citados The Formation 
of Christendom [A Formação da Cristandade] e The Dividing of 
Christendom [A Divisão da Cristandade] , foram publicados respec­
tivamente em 1 967 e 1 965, assim mesmo, nessa ordem (para a qual, 
mais adiante, propomos uma leitura interpretativa dos motivos) . 
O público de língua portuguesa1 é agora, e m 2014, agraciado no 
1 A presente publicação - A Formação da Cristandade - e A Divisão da Cris­
tandade se somam aos outros livros do autor já traduzidos para o português 
e também publicados pela editora É Realizações: Dinâmicas da História do 
Mundo (2010) e Progresso e Religião (2012) . 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Ed ição Brasi le ira 
Brasil com um lançamento simultâneo dessas duas obras, justamente 
no ano do centenário da conversão de Dawson ao catolicismo, oca­
sião em que assistimos a um renovado interesse pelo seu pensamento 
em meio aos impasses vividos na atualidade. Impasses historiográfi­
cos e civilizacionais, impasses sobre a presença cristã e, mais particu­
larmente, católica, em tais contextos. 
Fiel à inspiração inicial, temos nesse percurso uma vida dedica­
da ao estudo das culturas históricas, ao papel desempenhado pela 
religião, nesse caso visto como central, e, em particular, o exame do 
cristianismo histórico e da cristandade. Eis um historiador da cultura 
britânico; mas, o que significa ser um historiador da cultura ? 
Voltando ao público brasileiro, eis uma pergunta pertinente e res­
ta aqui um importante esclarecimento. Para quem, como nós, está ha­
bituado a combinar o binômio "História " e " Cultura " , nessa ordem, 
sob a etiqueta de "história cultural " , o termo "história da cultura " 
soa como algo estranho, completamente exótico. 
A história cultural no Brasil, no recorte teórico-metodológico, 
é suscetível às modas intelectuais. Estas vêm fundamentalmente dos 
franceses que, com Roger Chartier ( 1 945-) , ao tratar da chamada 
"nova história cultural "2 sentiu necessidade de fazer dois movimentos 
para demarcar o terreno: um interno, no bojo da Nouvelle Histoire 
[História Nova] , cujo objetivo era distingui-la da "história das menta­
lidades" , sem deixar de apresentar-se como seu herdeiro; e outro ex­
terno, ao identificar uma "história das ideias" e/ou " intelectual " (vez 
por outra esses termos se sobrepõemou são pensados como campos 
distintos ) , assinalando-a como pertencente a um universo bastante 
diverso da sua proposta de pesquisa. 
Todavia, do outro lado do Canal da Mancha, apesar dessa história 
das ideias, independente do nome dado, se fazer hegemônica e usufruir 
2 Roger Chartier, A História Cultural entre Práticas e Representações. Trad. 
Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1990. 
10 111 
de grande fortuna, o quadro guardava uma complexidade maior. Foi 
preciso esperar por outro prócer da "nova história cultural" , o in­
glês Peter Burke ( 1 937-) , cuja carreira teve início como professor de 
Intellectual History [História das Ideias] na Universidade de Sussex, 
em 1 962, e veio a assumir, em 1 979, a cadeira de História Cultural na 
Universidade de Cambridge, onde hoje é professor emérito. 
Pois bem, como parte do desafio do qual se desincumbe no livro 
O Que É História Cultural?,3 Peter Burke faz de seu eixo de argumen­
tação um esquema apresentado com o intuito de distinguir essa "nova 
história cultural" (NHC ou, em inglês, NCH), da "história cultural" 
que seria praticada nas " fases" anteriores. E, entre elas, a primeira se­
ria, justamente, mais amiúde chamada de "história da cultura " , apre­
sentada mais como uma "história de obras-primas" estudadas como 
expressão de determinada cultura seja nas artes, nas letras ou nas 
ciências, predominando em suas análises o tom filosófico, estetizante 
e elitista . Burke, ao identificá-la como a primeira fase da história da 
história cultural, denomina-a de "clássica" e marca o seu início na 
Alemanha dos anos 1 780, notando-a vigorosa até 1 950, quando seria 
suplantada pelo movimento da "história social da arte " . Este último, 
vindo de 1 930, seria representado, entre outros, por Arnold Hauser 
( 1 892-1 978 ) e Ernst Gombrich ( 1 909-200 1 ) , enquanto da fase clás­
sica, anterior, são destacadas as obras do suíço Jacob Burckhardt 
( 1 8 1 8-1 897) e do neerlandês Johan Huizinga ( 1 872- 1 945 ) como as 
maiores e mais emblemáticas. 
Segundo Peter Burke, a história da história cultural ainda teria mais 
duas fases: a terceira, caracterizada pela "descoberta da cultura popu­
lar" nos anos 1960 e a quarta, justamente a da "nova história cultural" , 
na qual se insere. Entre os primeiros relaciona E. P. Thompson ( 1924-
1 993) , Eric Hobsbawm ( 1 9 1 7-2012) e Christopher Hill ( 1 912-2003) . 
3 Peter Burke, O Que É História Cultural?. Trad. Sérgio Goes de Paula. Rio 
de janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005. 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Ed ição Bras i le ira 
Já, para a fase presente, iniciada nos anos 1980, aponta o G-4 das re­
ferências teóricas do movimento nas obras de Mikhail Bakhtin ( 1 895-
1 975 ) , Norbert Elias ( 1 897-1 990) , Michel Foucault ( 1 926-1 984) e Pier­
re Bourdieu ( 1 930-2002), distinguindo Chartier como um dos princi­
pais líderes. Completar-se-ia, então, o que Burke considera, numa visão 
panorâmica, o alargamento do escopo da história cultural, de restrita 
em sua fase clássica à alta cultura até a inclusão da cultura cotidiana, 
abrangendo os costumes, valores e modos de vida, convergindo com a 
maneira de ver a cultura dos antropólogos. 
Há sérios problemas nessa classificação, que pelo prestígio de seu 
autor vem se transformando em cânone, ao menos nas terras brasíli­
cas, tantas são as reduplicações e citações feitas sem qualquer crítica. 
Não sendo aqui o lugar para exercê-la sistematicamente, pontuare­
mos apenas aquilo que diz respeito ao nosso autor. 
Peter Burke observa existir na anglofonia um importante con­
traste, nesse terreno, entre os Estados Unidos, marcado por uma tra­
dição de interesse nos estudos culturais, e a resistência a tal estudo, 
no lado britânico do Atlântico, mais afeito ao estudo das ideias. As 
principais e raras exceções listadas são o Christopher Dawson de The 
Making of Europe ( 1 932) , os doze volumes de A Study of History 
( 1 934- 1 96 1 ) escritos por Arnold Toynbee ( 1 8 89-1 975 ) e, o que mais 
impressiona a Burke, o projeto concebido e planejado, nos anos 1 930, 
pelo bioquímico Joseph Needham ( 1 900-1 995 ) , cujo resultado foi a 
publicação, iniciada por ele à frente de um grupo de colaboradores, 
de Science and Civilisation in China ( 1 954-200 8 ) . 
Ora, n o afã d e demarcar terrenos, guiados por afeições inte­
lectuais, muitas vezes a retórica passa a predominar, simplificando 
posições e, por consequência, aspectos importantes deixam de ser 
contemplados. Assim, por exemplo, a vitória obtida pelas duas pri­
meiras gerações dos Annales, revista em torno da qual se desenvol­
veu a História Nova, com proposições de enorme relevância para a 
historiografia contemporânea, deu-se acompanhada pelo desprezo 
12 l 13 
e abandono, por um bom tempo, de setores temáticos como o da 
política e o da guerra, denunciados no combate pela renovação 
teórico-metodológica como típicos de uma história acontecimental 
(événementielle ) , de uma história do tempo breve. No entanto, des­
de então, quando o tempo acentuou a relevância de tais domínios, 
surgiram diferentes iniciativas cujo objeto era a recuperação e reno­
vação dos referidos temas. 
À semelhança do ocorrido acima, por mais que Peter Burke te­
nha a delicadeza de afirmar o valor de todas as chamadas quatro 
fases da história da história cultural e o permanente interesse pelas 
principais obras de cada tradição (cada fase seria a expressão de uma 
determinada tradição nos estudos históricos da cultura ) , o resultado 
também aqui é a valorização daquilo que se revela próximo de suas 
afinidades intelectuais. Isso se revela na breve menção feita à obra de 
Christopher Dawson, reduzindo-a a um único título significativo e, 
apesar de positiva, vem acompanhada de um comentário que resume 
as investigações de Dawson nesse campo aos seis anos de atuação 
como conferencista de história da cultura em Exeter, ocasião em que 
teria produzido aquela mencionada obra. Tudo isso somente revela 
quão imenso é o desconhecimento de Burke a respeito da obra e do 
pensamento dawsoniano. 
O preço pago por tal lacuna mostra ser elevado quando pas­
samos a observar, nas citações e resenhas da revisão historiográ­
fica empreendida por Peter Burke, a tendência de transformar as 
simplificações presentes em seu texto, em algo caricatural . Enfati­
zando o exercício retórico promovido vemos, entre outras consi­
derações, a " história da cultura " ser chamada de " história das be­
las artes " . E bastaria trazer à memória nomes como os de Oswald 
Spengler ( 1 8 80- 1 93 6 ) e do já citado Arnold Toynbee, autores que 
o leitor brasileiro de história tem certa familiaridade, e que, ape­
sar da distância, tiveram várias obras traduzidas para o português 
(o que permite, pois, que sej am consultados nas boas bibliotecas ) 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le i ra 
para perceber que esse não é o caso. Aliás, em ambos, Spengler e 
Toynbee, o nosso leitor pode vir a obter uma imagem pouco mais 
aproximada do tipo de trabalho empreendido por Christopher 
Dawson. No entanto, ainda assim, são obras bem distintas, sej a 
em muitos dos procedimentos, sej a mais ainda nas interpretações 
e conclusões. O próprio Dawson, ao dialogar com elas, mesmo em 
face da obra de Toynbee, de quem foi colega de classe, não deixa 
de criticá-las firmemente, e de indicar os pontos que as considerava 
deficientes ou contraditórias. 
Se voltarmos para a fonte das citações e resenhas - o próprio 
texto de Peter Burke -, um olhar atento torna possível localizar a ra­
zão do desconhecimento e da pouca afeição pela obra de Christopher 
Dawson. A perspectiva de Burke ao abordar a cultura é a do viés 
econômico-social, num horizonte nitidamente marxista . Não há mo­
mento em que a dimensão religiosa é tratada com a atenção devida 
nas considerações e abordagem a respeito da cultura . É como se não 
houvesse lugar para esse campo de pesquisa . E de fato não há.Por 
não existir, Dawson permanece deslocado. 
Esse não deveria ser um problema para Burke, visto que intenta 
contemplar diferentes pontos de vista . Em época como a atual, em 
que os fenômenos religiosos ganham cada vez maior destaque, torna­
-se irrecusável a percepção de sua magnitude na realidade social, e 
um autor como Dawson, que concede primazia a esse plano na dinâ­
mica das culturas históricas, merece, ao menos, ser lido com um pou­
co mais de atenção. Isso sem contar que, ao continuarmos afastados 
de tal retórica de combate, entre a " história cultural " e a "história 
da cultura" , as propostas teórico-metodológicas subjazem variadas, 
guardando, cada uma, as suas virtudes. E Burke está certo; frequen­
tar as diferentes tradições intelectuais no campo da história cultural 
areja essa esfera de conhecimento e contribui para o desenvolvimento 
das investigações, refinando-nos o instrumental. E, entre os grandes 
expoentes, Dawson é um gigante. 
14 j 1 5 
Um tema, por exemplo, d a "história d a cultura" , não contem­
plado pela "história cultural " , é o das civilizações, que, pelo caráter 
compendioso, já foi objeto de estudo de dois dos nomes mais icônicos 
da História Nova, Fernand Braudel ( 1 902- 1985 ) e Jacques Le Goff 
( 1 924-2014 ) . Hoje, contudo, tornou-se marginal, em virtude daquilo 
que foi denominado de "história em migalhas" ,4 uma tendência que 
se mantém em razão da imensa e nebulosa pluralidade de novos pro­
blemas, novas abordagens e novos objetos que, desde os anos 1 970, 
quando foi inventariada, já era impactante.5 Essa perspectiva não 
para de crescer, fazendo-nos descrer da capacidade de uma só inteli­
gência abarcar todo esse universo com um só golpe de vista . 
Entre civilização e cultura, é costume aproveitar, em relação à pri­
meira noção, a rota inicialmente traçada pelos franceses e, em relação 
à segunda, a dada pelos alemães, demonstrando que ambas são oriun­
das de tradições distintas. A partir de tal operação, muitos se sentem 
autorizados a descolar da noção de cultura o aspecto de grande sínte­
se, o qual também lhe era e é próprio, tanto que, para muitos autores 
e circunstâncias, os vocábulos são intercambiáveis. Assim, deixam de 
lado a magistral lição de Fernand Braudel que, aproveitando a existên­
cia dos dois termos, fazia coincidir a ideia de civilização com um tipo 
específico de cultura, a urbana ( Grammaire des civilisations,6 de 1 987, 
ao retomar o núcleo de outra obra de sua autoria, datada de 1 963 ) . 
Não obstante, tal visão larga, abrangente, dotada de altos voos, 
característica dessa "história da cultura " , já tinha sofrido um grande 
4 François Dosse, A História em Migalhas. Trad. Dulce A. Silva Ramos. São 
Paulo/Campinas, Ensaio/Editora Universidade Estadual de Campinas, 1992. 
5 Jacques Le Goff e Pierre Nora (dir. ) , História: Novos Problemas. 4. ed. Trad. 
Theo Santiago. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995; Idem, História: Novos 
Objetos. Trad. Teresinha Marinho. 4. ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 
1995; Idem, História: Novas Abordagens. 4. ed. Trad. Henrique Mesquita. 
Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995. 
6 Fernand Braudel, Gramática das Civilizações. 3. ed. Trad. Antônio de Pádua 
Danesi. São Paulo, Martins Fontes, 2004. 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le ira 
estrago, resultado do combate da História Nova em torno das in­
terpretações filosóficas do processo histórico ou, mais precisamente, 
da energia despendida pelos historiadores em adequar os estudos à 
determinada filosofia da história . A isto, e assim designa o próprio 
Dawson, chamamos de meta-história . A ideia dos "novos historiado­
res" era, em troca, apostar no contato com as demais ciências sociais 
(a interdisciplinaridade) ; na prática da pesquisa problematizada; no 
desenvolvimento de técnicas mais rigorosas e controladas, no intui­
to de evitar interpretações impressionistas dos fenômenos históricos. 
Essa necessidade ingente de inculcar no historiador um refinamento 
teórico e metodológico testado na pesquisa sistemática das fontes le­
vava à necessidade de ostracizar a filosofia e, mais particularmente, a 
filosofia da história da cidadela de Clio, relegando a meta-história a 
assunto de filósofos . 
Ora, os resultados pretendidos foram alcançados . Já são quatro 
as gerações desde os Annales, a revista em torno da qual, desde 1 929, 
se desenvolveu a Nova História. As críticas dirigidas ao movimento 
nos anos 1 9 80 e 1 990 evidenciaram os limites da proposta e a ne­
cessidade de revisão crítica . Cada vez mais a revisão crítica se faz 
necessária, pois as questões seguem em aberto, a retomada de certos 
temas e autores esquecidos no fragor do combate, e é preciso dar-lhes 
nova dimensão. 
Christopher Dawson é um dos autores, como pode ser antevisto, 
que muito tem a dizer para aqueles que pertencem aos domínios da 
História . Estamos a falar de um dos pioneiros no diálogo com as 
Ciências Sociais, particularmente, com a Antropologia e a Sociologia, 
muitas décadas antes da História Nova. A virada, por exemplo, que 
Peter Burke identifica, entre os anos 1 960 a 1 990, da história cultural 
em direção à Antropologia, em decorrência dos problemas de defini­
ção daquilo que viria a ser cultura, encontra em Dawson um expe­
riente precursor, pois, na década de 1 920, inaugurara esse diálogo. De 
sua meta-história não estão ausentes tais diálogos; evita as excessivas 
1 6 l 1 7 
simplificações que ele mesmo denuncia em Oswald Spengler e Arnold 
Toynbee, mas também em Karl Marx ( 1 8 1 8- 1 8 8 3 ) . Aliás, um dos em­
bates da meta-história dawsoniana é contra as excessivas generaliza­
ções e o empenho em fixar leis da história, algo por ele descartado 
justamente graças à enraizada visão cristã e à profunda atenção para 
com as particularidades sociais. 
Muitas vezes somos levados a pensar que a meta-história está 
ausente da prática historiográfica vigente. O sucesso das lutas anna­
lesistas nos distrai do fato que as teorias sociais de dois dos autores 
teóricos mais frequentados por quem pratica História no Brasil, o já 
citado Karl Marx e Max Weber ( 1 864- 1 920) , têm subjacente às suas 
propostas interpretativas também uma meta-história . Aliás, à medi­
da que se constata ser crescente o renovado interesse pelas obras de 
Dawson mundo afora (há um reviva/ dawsoniano) , Weber tem sido 
reiteradamente comparado a Dawson, e com razão, não quanto à 
meta-história, mas no diálogo entre a história e outras ciências huma­
nas, bem como no interesse do papel da religião na cultura ocidental . 
Retornar à ambição pela síntese, tê-la em mente no horizonte 
investigativo: é preciso reatar essa conexão que se manteve presente 
até a terceira geração dos Annales, com Jacques Le Goff, por exem­
plo, como tivemos ocasião de citar. É preciso recordar às raízes dos 
Annales, recordar Henri Berr ( 1 863- 1 954 ), para quem, sem tergiver­
sações, a síntese ocupava papel central . Daí a sua Revue de Synthese 
Historique ( 1 900, após 1 930, simplesmente, Revue de Synthese) e 
o Centre International de Synthese ( 1 925 ) , ambos frequentados por 
Marc Bloch ( 1 8 86-1 944 ) e Lucien Febvre ( 1 878- 1 95 6 ) . A evocação 
aqui, porém, é a da exigência, esgotado o caminho, de resultar na 
"História em migalhas" . E aqui também Dawson fornece inestimá­
vel contribuição. 
O que sustenta a meta-história de Dawson e qualquer meta-his­
tória e qualquer análise relevante dos fenômenos sociais e históricos 
é a imaginação criativa. O caminho da síntese é o da " imaginação 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le ira 
criativa " , de visões inspiradoras que nos lançam para frente e nos 
permite contemplar grandes horizontes. Quem a estudou suficiente­
mente bem no campo das ciências sociais foi Charles Wright Mills 
( 1 9 1 6- 1 962 ) , chamando-a de " imaginação sociológica " . 7 A " imagi­
nação sociológica" é um ato que permite a quem a pratica partir do 
horizonteimediato, no qual se acham as vivências e constatações 
pessoais, até as grandes questões públicas, inserindo-se compreen­
sivamente no contexto maior da própria sociedade. Por ser uma 
prática criativa, Mills fala de uma qualidade de espírito que permite 
ao sujeito usar a informação de que dispõe e desenvolver a própria 
razão de modo a obter maior clareza acerca do que ocorre no mun­
do e consigo mesmo. 
Analogamente, em cada campo, podemos encontrar uma feição 
dessa " imaginação criativa " . Toda grande obra intelectual, científica 
ou artística é alimentada e sustentada por tal visão. Principia, dentre 
os procedimentos de conhecimento, muitas vezes em um insight, uma 
intuição, favorecida por um ambiente, pelo contato com os clássicos, 
o exercício da fantasia e do jogo, na projeção refletida e vivenciada de 
nossas ações em um quadro informado por determinada ideologia ou 
religião. Experiências de construção de sentido. Há, outrossim, uma 
" imaginação histórica" . 
Falamos em ideologia e religião como fontes da imaginação cria­
tiva. Entretanto, não só é fundamental esclarecer o papel desses ele­
mentos em tal processo, como também é crucial ilustrá-lo na obra 
historiográfica ou em qualquer interpretação a respeito da realidade. 
No empenho de apresentar Dawson ao público brasileiro e conceder­
-lhe o devido e inestimável valor, é preciso que nos acautelemos dian­
te da leitura fácil e tentadora que pretende encerrá-lo, atendendo a 
uma perspectiva apologética, em determinado nicho: o do historiador 
7 C. Wright Mills, A Imaginação Sociológica. 6. ed. Trad. Waltensir Dutra . Rio 
de Janeiro, Zahar Editores, 1982. 
1 8 l 19 
conservador e partidariamente católico, como pretendem alguns da­
queles que o têm resgatado recentemente. 
A apologética possui função e valor, mas, para ela, a História 
interessa apenas de maneira instrumental, pragmática, quando está 
a serviço de determinada causa ou interesse. Não lhe interessa a His­
tória na qualidade de um campo de investigação próprio. Assim o é 
quando muito abrangida pelo que convencionalmente designamos, 
hoje, de "história pública " , ou sej a, o uso social das investigações 
históricas. Uma vez restritos a tal gênero de história pública, não de­
vemos confundir os campos: a história profissional/acadêmica e tal 
uso instrumental da tarefa do historiador na defesa de determinada 
fé, seja ideológica ou religiosa . 
A despeito dos historiadores adotarem ideologias e estas inspi­
rarem as suas pesquisas, interpretações e análises, as investigações 
não são, ou ao menos não deveriam ser, direcionadas por esse mesmo 
ideário particular. Um trabalho profissional de qualidade ultrapassa 
as ideologias, seguindo regras próprias do ofício. 
Inspirar significa sugerir o que está na raiz dos dilemas e dos ques­
tionamentos do historiador, manifestando o quanto estamos imersos 
e comprometidos na própria época. Significa dizer, igualmente, que as 
ideologias estão mediadas por nossas teorias sociais, estão no cerne 
das hipóteses ou das respostas dadas aos dilemas e questionamentos 
anteriormente propostos. A ideologia tem relação clara com a per­
cepção da política, no modo como são justificadas e projetadas as 
ações nesse campo. Já a religião, quando é mais que uma palavra na 
boca do fiel, extravasa o campo da política e passa a ter um cará­
ter mais existencial, abarcando a vida em todas as suas dimensões, 
fornecendo-lhe respostas de maior amplitude, capazes de adequada­
mente conferir sentindo ao seu viver. Cumpre observar que apenas 
uma ou outra possui tal condição - não estamos aqui sectarizando. 
É da própria vida, da reflexão que fazemos a seu respeito que proce­
dem as questões e hipóteses acerca dessas dimensões. O fundamental 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Ed ição Bras i le i ra 
aqui é que sejam construídas e testadas conforme os procedimentos 
de cada disciplina . 
Ideologias e religiões, cada uma a seu modo, podem alimentar a 
imaginação criativa do pesquisador do fenômeno humano, o qual, 
por natureza, é social e histórico. Se Wright Mills nos fala em ima­
ginação sociológica e igualmente constatamos que não estão des­
providas de imaginação as grandes obras no campo historiográfico, 
insistimos que uma e outra são formas da imaginação criativa que 
alicerçam qualquer investimento sério e sistemático em determinado 
ramo de pesquisa ou saber. Ora, em toda forma de saber, há regras 
e procedimentos que devem ser seguidos, a despeito das ideologias e 
das religiões, e a imaginação criativa expressada nas teorias e hipóte­
ses é constantemente posta à prova. Desse modo, apenas resultam, so­
brevivem e se tornam clássicas as teorias e hipóteses que se coadunam 
em escala significativa com os dados disponíveis. Se a imaginação 
sociológica é um exercício de construção de sentido social, por via da 
imaginação histórica opera-se a construção de sentido ao longo do 
tempo, unindo-nos não só às pessoas, às sociedades e às culturas nas 
quais vivemos na dimensão temporal mais estrita, como também a 
outras épocas em perspectivas mais longas. 
Assim, é empobrecedor reduzir Christopher Dawson, ou qual­
quer grande autor, ao campo ideológico . Uma boa obra se faz clás­
sica por ultrapassar tal bairrismo sectário, por iluminar desassom­
bradamente aspectos fundamentais da realidade humana . O mes­
mo se pode dizer da religião. Se Dawson é um historiador católico 
e esta identidade se constitui em chave de sua obra, não o é por 
atender interesses apologéticos, mas pelo fato de ter tal vivência 
como ponto de partida das inspirações, dos questionamentos e das 
hipóteses de um modo que falta, em tempos pós-iluministas, aos 
intelectuais cristãos em geral , salvo honrosas exceções. Uma delas é 
a vida, a carreira e a obra de Christopher Dawson que nos trazem 
riquíssimas lições ! 
20 121 
Como vimos, o livro que ora temos em mãos, A Formação da Cris­
tandade ( 1 967) , foi originalmente lançado após, não antes, o volume 
A Divisão da Cristandade ( 1 965 ) , que aborda os acontecimentos que 
lhe são posteriores. A narrativa deste último inicia com um olhar de 
conjunto sobre a época contemplada no volume, examinando, no Oci­
dente, os impactos culturais da quebra da unidade cristã . A seguir, des­
creve as manifestações dolorosas de declínio dessa unidade em pleno 
século XIV até a consumação da Cristandade dividida, passando pela 
Renascença, pelo Barroco e pelo Iluminismo. O Cisma Protestante, a 
Reforma e as monarquias nacionais são examinados detalhadamente 
em seus desdobramentos culturais em um e outro lado do Atlântico. 
Já n'A Formação da Cristandade, especial importância adqui­
rem os prolegômenos, de cunho nitidamente teórico, que podem ser 
divididos em duas partes: uma primeira, histórico-cultural, sobre o 
cristianismo e a história da cultura, as culturas históricas e sua di­
nâmica; e outro segmento, teológico, sobre Revelação e o Reino de 
Deus. A seguir, a narrativa acompanha a Cristandade Medieval em 
seus primórdios, a ascensão e o declínio, examinando os elementos de 
integração e de dissolução e as manifestações culturais no Ocidente 
e no Oriente. Ao fim, após apresentar as primeiras fissuras ( séculos 
XIII e XIV), expõe uma análise acerca da ideia católica de sociedade 
espiritual universal (epílogo) . 
Enfim, The Return to Christian Unity [ O Retorno à Unidade 
Cristã] , ainda inédito e no aguardo de publicação, completa o per­
curso ao abranger o final do século XVIII e os séculos XIX e XX. No 
título, indica mais um desejo, um empenho e um projeto que uma 
efetiva realização, ao mesmo tempo aponta, também, ao encaminhar 
às duas obras anteriores, tratar-se de um conjunto único, centrado na 
ação da unidade cristã : na necessidade de retomada e de iniciativas 
nessa direção, o que o remete a analisar o modo como se deu tal perda 
e seus desdobramentos, bem como recorda sua constituição primeva 
e a manifestação da força dessa unidade. 
A Formação da C ristandade 1 Apresentaçãoà Edição Brasi le ira 
Um único argumento, uma única ação a costurar os três volumes, 
os quais, portanto, fazem parte de um único canto. Assim como a Ilíada 
narra a ira de Aquiles e a Odisseia, a volta de Odisseu (Ulisses ) a Ítaca, 
ou seja, ao lar, temos também uma única ação, como nos ensina a poé­
tica clássica, a presidir a grande epopeia que Dawson nos lega, como a 
nos deixar um testamento: a grande série de acontecimentos grandio­
sos da unidade cristã no Ocidente, a Cristandade Europeia. 
As palestras ministradas entre 1 958 e 1 962, e publicadas em 
1 965 e 1 967, ocorrem no contexto do Concílio Vaticano II: eleito 
pontífice romano o cardeal Angelo Roncalli ( 1 8 8 1 - 1 963 ) em fins de 
1 958 (em 28 de outubro, e assumindo o pontificado em 4 de no­
vembro ) com o nome de João XXIII, o novo papa convoca, com a 
bula papal Humanae Salutis, o Concílio em 25 de dezembro de 1 96 1 , 
cujas sessões ocorrem de 1 1 de outubro de 1 962 a 8 de dezembro 
de 1 965, encerrando já no pontificado de Paulo VI ( 1 897- 1 978 ) . 
O ecumenismo que sempre estivera no foco das ações de Dawson, e 
fora promovido por intermédio das mais diversas iniciativas, encon­
trava em João XXIII largos e decisivos gestos, como a criação, em 
1 960, do Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos. As 
palestras em Harvard, portanto, mostravam-se bem oportunas. 
À decisão de lançar A Divisão da Cristandade antes de A For­
mação da Cristandade, provavelmente tomada por Watkin, não deve 
ter faltado certo senso de dramaticidade, pois visava a introduzir o 
leitor in media res, no meio dos eventos que acabaram por cindir 
a cristandade e, por tabela, favorecer culturalmente a cristandade, 
ganhando espaço para uma modernidade que dela estava ausente, 
apesar do vigor cultural que ainda demonstrava. Essa publicação foi 
seguida d' A Formação da Cristandade, como digressão retrospectiva 
que pretendia exibir o remédio ao mal, cuja visão da unidade perdi­
da deveria contribuir para o retorno. A fria recepção na ocasião do 
lançamento dos dois primeiros volumes, e um Dawson cada vez mais 
doente, somou-se ao acentuado pessimismo de Watkin em face dos 
22 l 23 
novos tempos: tais ingredientes compuseram o quadro que conduziu 
à decisão pela não publicação do terceiro volume, deixando-nos ór­
fãos da obra completa. 
Até que venha o terceiro livro temos naquilo que foi publicado 
um tesouro inestimável, em dois volumes que se justificam por si sós e 
podem ser lidos independentemente ou na sequência, se o leitor assim 
desejar. Quanto ao ecumenismo, este continua a ser um desafio para 
os cristãos. Além da urgência da unidade, dado o avanço do secula­
rismo que alcança no Ocidente uma capilaridade nunca antes vista, 
a fragmentação da unidade da Igreja revela-se como um espinho à 
medida que o amor-caridade entre os irmãos não se mostra capaz, 
dados os limites humanos, de demonstrar, no tempo, sinais mais pa­
tentes da unidade. A ruptura da união desejada pelo Cristo para a Sua 
Igreja veio a se constituir num doloroso óbice à atividade missionária 
e à obra de construção do Reino de Deus. Um escândalo. Como co­
adunar unidade e diversidade quando as manifestações culturais e as 
culturas históricas são plurais ? 
Nas pesquisas, Dawson demonstra como os fatores de ordem 
cultural tiveram forte atuação nos desentendimentos entre cristãos. 
Logo, compreender as culturas, as dinâmicas e as histórias passa a 
ser um empreendimento decisivo e central . Isso não significa fazer 
dos cristãos, historiadores; mas, o cristianismo nunca deixou de 
ter uma dimensão efetivamente histórica. Eis a compreensão que 
Dawson pretende proporcionar, não só aos católicos, mas também 
aos protestantes, pois não podemos esquecer o ambiente no qual as 
palestras foram originalmente ministradas. Há no historiador galês 
um empenho em construir pontes, visando ao entendimento mútuo 
entre os irmãos em Cristo. 
A memória sempre foi uma característica decisiva na experiência 
cristã : Evangelhos, Atos dos Apóstolos, Atas dos Mártires, História 
Eclesiástica . . . A própria celebração litúrgica é memorial. Distintas em 
sua dinâmica, memória e história coletivas também se cruzam e tecem 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le i ra 
relações entre si, nutrindo-se mutuamente. Isso está presente desde 
o primeiro momento da caminhada do povo cristão. Em diferentes 
sentidos, o cristianismo é uma religião histórica, e isso pode ser dito 
de modo mais preciso ao dizer que a todos cabe ter, desta história, 
algum conhecimento. 
Na obra de Christopher Dawson, ao falar de História, podemos 
entendê-la de três modos diferentes. 
1 º ) No plano da Fé cristã, a história pode ser vista como uma 
perspectiva interna à comunidade de crentes, hermenêutica da me­
mória, na qual, apesar de distinta da memória, não deixa de atuar 
subsidiariamente, forjando o que podemos chamar de uma "história 
sagrada" , ou seja, de uma História como alimento da Fé. Neste siste­
ma, estuda como se dá a intervenção divina na história. É a crônica de 
um povo e de sua Fé, sem dúvida, mas não apenas isso. 
Interessa-se, todavia, por constatar a intervenção de Deus na his­
tória. Em A Formação da Cristandade, há a nota particular da busca 
de uma base comum. Aí, Dawson relembra o ensinamento de Santo 
Tomás de Aquino ( 1225-1 274 ) , em que é essencial, ao entabular um 
diálogo com aqueles de quem guardamos diferenças, principiar re­
tomando o patrimônio comum, além disso, mostra ser igualmente 
necessário identificar a ação de sal da Terra . 
Por outro lado, e aqui se faz também presente algo do interesse 
de quem não pertence à comunidade cristã : tomar Cristo como "ca­
minho, verdade e vida" , critério para a ação, alfa e ômega, senhor da 
História, significa que essa Fé se encarna e se assume como manifes­
tação cultural, informando e conformando a cultura. Não só tal fé 
transforma por dentro como cria o novo. Para o cristão isso ocorre 
em virtude do Criador fazer dele o Seu instrumento. A justificativa 
dada, porém, não importa : o fato é que mudanças históricas e cultu­
rais têm registro. Isso é o que melhor nos permite compreender o pa­
pel da religião nos fenômenos histórico-culturais e, ao mesmo tempo, 
torna patente ao próprio cristão tais desdobramentos da experiência 
24 l 25 
cristã . Então, a história cultural passa, também, a revelar um valor 
sagrado, ressaltando o sentido pouco aprofundado, mas importante, 
de testemunho de uma fé. 
2º) Há o plano do fazer historiográfico, a dimensão prática. Já o 
vimos exaustivamente, todavia, vale retomar alguns pontos. Ao his­
toriador católico ou protestante, ao pesquisador cristão em geral, é 
exigida a feitura de uma " boa" história, rigorosa, como é exigido de 
qualquer historiador que queira ter o trabalho validado, o que en­
globa o modo como opera suas generalizações. Conceitos, modelos e 
problemas, tudo é o resultado de generalizações sistemáticas e cons­
cientes, as quais são aplicadas a estudos particulares e bem delimita­
dos. Se assim não fosse, a História não passaria de crônica . 
As análises e interpretações, por seu turno, bem como, por sua 
vez, as sínteses, são interdependentes e uma não subsiste adequada­
mente sem a outra. É fundamental recuperar tal exercício que tam­
bém faz parte da prática historiográfica. 
Voltando a Santo Tomás de Aquino, ou à Razão, aquele sabendo-a 
limitada, faz com que siga autônoma em relação à Fé; caso contrário, 
não haveria sentido em dela sermos dotados . Assim, da mesma ma­
neira como a filosofia e a teologia possuem suas autonomias, seguin­
do cada uma procedimentos próprios, o mesmo também é válido para 
a História. Claro que não é suficiente para um historiador católico ser 
um bom historiador no sentido de aplicar correta e rigorosamente os 
métodos e técnicas próprios desse campo do saber. No entanto, tal 
condição é necessária e imprescindível. Igualmente aqui, o agostia­
nismo de Dawson é exemplar ao empregarnão só os instrumentos 
proporcionados pela historiografia do período, como ao atuar pionei­
ramente numa perspectiva interdisciplinar. 
3º) Há ainda o plano propriamente da razão histórica como pro­
cedimento interpretativo, vista como um sério empenho de compreen­
são do processos históricos conforme as regras próprias e autonomias 
desse tipo de investigação. Acima, no plano do fazer historiográfico 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le ira 
foram mais considerados os meios; neste campo particular é levado 
em conta o conteúdo a ser examinado e os resultados obtidos, o co­
nhecimento alcançado, as teorias formuladas e as propostas interpre­
tativas. Sem desdizer a importância de qualquer um desses planos, é 
deste quesito que mais carecemos. E é aqui que a leitura de Dawson, 
talvez, mais possa nos ajudar. 
A respeito da razão histórica, o católico e o protestante, o cris­
tão em geral carece de uma reassunção de áreas do pensamento em 
que parece ter abdicado do exercício da cidadania. É preciso uma 
retomada efetiva. Abrimos mão da formulação de teorias sociais e 
de hipóteses interpretativas próprias com a marca de uma reflexão 
genuinamente cristã . Não se assume seriamente o desafio do Cristo, 
alfa e ômega, do Cristo critério de apreensão da realidade. Quando 
dizemos apreensão da realidade não é somente no julgar, mas também 
no ver, no modo de entendê-la e interpretá-la. 
Cedemos terreno diante dos ataques da modernidade iluminista. 
Sem deixar de reconhecer, na atualidade, o empenho dialogal estabe­
lecido entre a cristandade e a presente modernidade, não podemos es­
quecer a virulência dos ataques passados movidos contra a cristandade. 
E, não obstante a identificação de elementos profundamente humanos 
em tal perspectiva de modernidade, a esta também são próprios os fa­
tores que, mesmo hoje, a mantém em rota de colisão com a cristandade. 
A vitalidade demonstrada, por exemplo, na modernidade barroca 
parece ter se assustado diante do desencadeamento, a partir de 1 789, 
dos ventos revolucionários e do furor das guerras que lhes acompa­
nhavam. A resposta do romantismo em sua vertente católica é tímida 
e acanhada, está mais preocupada em justificar-se e em lutar pela pró­
pria defesa e sobrevivência . De certo modo, mesmo não tendo faltado 
santos e profetas, a cristandade encastelou-se. 
O campo das ciências humanas, salvo raríssimas exceções, foi de 
tal modo preterido no exercício intelectual criativo que os pressupos­
tos e leituras secularistas, materialistas e ateus parecem fazer mais 
26 1 27 
sentido e parecem mostrar ser os mais adequados. Uma vez que na 
vertente protestante, para ficarmos em um exemplo, os abusos subje­
tivistas da teologia liberal resultaram na reação do fundamentalismo; 
no meio católico, a resposta mais emblemática veio, em 1 864, com o 
Syllabus Errorum Modernorum [Sílaba dos Erros de Nossa Época] , 
uma enumeração sumária dos erros modernos apensada à encíclica 
Quanta Cura, promulgada pelo papa Pio IX ( 1 792-1 878 ) em 8 de 
dezembro de 1 864. 
Essas reações costumam ser vilipendiadas ou enaltecidas, num 
confronto ideológico que nada acrescenta à cristandade, mas é pre­
ciso compreendê-las em seu contexto. Restringindo-nos ao caso da 
encíclica e do respectivo anexo, havia tamanha indigência intelectual 
entre os católicos, que o papa, como diz a linha inicial do documento 
pontifício, "movido por grande solicitude e zelo pastoral " , não podia 
omitir-se, oferecendo a orientação possível no momento (D-2890 ) . 8 
Era e é preciso sair do castelo. Uma tentativa que se alastrou 
rapidamente foi a iniciativa do sacerdote belga Josef Cardijn ( 1 8 82-
1 967) , coadjutor em sua paróquia, que começou, em 1 9 1 2, a desen­
volver um trabalho pastoral entre os jovens operários que acabou 
por ser o embrião da Ação Católica, fundada por ele em 1 920. Em 
pouco tempo outros núcleos se disseminaram, chegando ao Brasil em 
1 935 . Uma das razões de seu sucesso foi o método de análise da rea­
lidade incutido em seu seio: o ver-julgar-agir. Este método, apesar de 
desempenhar um relevante papel na recomposição do diálogo com as 
ciências humanas, em si traz um vício de origem, revelador da mes­
ma indigência no meio intelectual católico demonstrada pela encíclica 
Quanta Cura e o seu Sílabo. Na maneira como o método é aplicado, 
o ver se remete aos instrumentos de leitura das ciências, ao passo que 
atribui à Bíblia o julgar. Ou sej a, a Bíblia nada teria a dizer em relação 
8 Pio IX, Encíclica Quanta Cura de 8 de dezembro de 1 864. ln: Heinrich 
Denzinger, Compêndio dos Símbolos, Definições e Declarações de Fé e Moral. 
São Paulo, Paulinas/Loyola, 2007. 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Ed ição Brasi le ira 
ao ver, deixando o terreno aberto, nesse particular, para a semeadura 
de teorias que em muitas situações não guardam nenhuma relação 
com a experiência cristã, a exemplo das teorias forjadas no horizonte 
materialista e ateu. 
É um equívoco imaginar tais respostas como permanentes ou 
ideais. Em ambos os casos, elas tiveram os seus momentos nos respecti­
vos anos de 1 864 e 1 9 1 2 (os anos aqui são apenas simbólicos) , e devem 
ser superadas. Ser católico, como o cristão, em geral, é consequência 
do seguimento a Cristo e n'Ele nos orientamos, tomando o Evangelho 
como inspiração ao elaborarmos as nossas teorias e interpretações. 
Christopher Dawson, como dissemos, é um exemplo de exercí­
cio vigoroso nesse aspecto. O encontro com a sua obra nos oferece 
modelos, interpretações e hipóteses, toda uma problemática orgânica 
e genuinamente cristã, que usufrui de uma tradição de pensar que 
procede de um período muito anterior. Há temas próprios introdu­
zidos na reflexão historiográfica e há frutos da experiência cristã . 
O mestre Étienne Gilson ( 1 8 84-1 978 ) , com extraordinário sucesso, 
demonstrou algo análogo para a Filosofia: a existência, com foros le­
gítimos, de uma filosofia caracteristicamente cristã, iluminada por tal 
experiência. São várias as obras do eminente filósofo nas quais pode­
mos encontrar uma sistematização a esse respeito, mas em particular 
cito O Espírito da Filosofia Medieval,9 obra toda dedicada ao tema 
da natureza da filosofia cristã e de suas características; vemos isso, 
igualmente, na obra História da Filosofia Cristã, escrita juntamente 
com Philotheus Boehner ( 1 90 1 - 1 955 ) . 1º 
Como aqui não é o lugar para um tratado de maior fôlego, ca­
bem apenas rápidas e modestas anotações de quais seriam alguns 
9 Étienne Gilson, O Espírito da Filosofia Medieval. Trad. Eduardo Brandão. 
São Paulo, Martins Fontes, 2006. 
10 Philotheus Boehner e Étienne Gilson, História da Filosofia Cristã: Desde 
as Origens até Nicolau de Cusa. 8. ed. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis, 
Vozes, 2003 . 
28 l 29 
dos temas trazidos pela experiência cristã à escrita da História e 
que, portanto, podem ser encontrados em Dawson: o humanismo 
ou a dignidade própria do aspecto cultural e a autonomia do reli­
gioso; a exigência de síntese ou de perspectiva integral (holística ) 
da realidade; a relação entre espírito e matéria, o u como atuam as 
condicionantes ( fatores ) materiais e imateriais - como desdobra­
mento desses temas; a relevância e a efetiva dimensão da liberdade 
humana na ação histórica; o caráter dramático da síntese apre­
sentada como a luta entre forças de integração e de dissolução. 
Nesses contributos, fundamentalmente enraizados numa antropo­
logia filosófica coerentemente evangélica, pode-se afirmar, indubi­
tavelmente, haver uma História com uma propriedade dita cristã a 
irradiar-se para outras historiografias . 
Não é, pois, menor dizer que, independente da crença (ou mesmo 
na ausência desta ) , quem quer que se interesse tanto pela história 
do cristianismo, bem como pela história da cristandade - esta vis­
ta como expressão cultural daquele -, sairá beneficiado pela leitura 
d'A Formação da Cristandade: uma obra única, construída em aten­
çãoàs exigências íntimas de uma humanidade que anseia por reali­
zação plena, que não abre mão de compreender o seu lugar e se sente 
chamada à ação. A História de Dawson fala-nos ainda hoje, mais que 
nunca, não só ao cristão, mas ao homem de boa vontade, afirmando­
-se como uma obra clássica e de referência para quem quer que se 
interesse pela dinâmica das culturas históricas - aqui também inde­
pendente das diferentes filiações teórico-metodológicas que possamos 
vir a ter nesse campo de estudo. Como se vê, o pensamento e a obra 
Dawson seguem palpitando de vibrante atualidade. 
Uma palavra final de agradecimento e louvor ao empenho de 
Alex Catharino e de Márcia Xavier de Brito, bem como da É Realiza­
ções Editora, na figura de seu editor Edson Manoel de Oliveira Filho, 
ao trazer para o Brasil uma obra que não só enriquecerá o leitor como 
também a nossa cultura, pelo contato mais extenso e intenso com o 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le ira 
pensamento dawsoniano, em uma edição tão bem cuidada quanto a 
presente e que o caro leitor, agora, tem o privilégio de ter em mãos. 
Rio de Janeiro, RJ, Brasil 
Na festa dos Santos Mártires Marcelino e Pedro 
Manuel Rolph Cabeceiras 
Cursou o bacharelado e a licenciatura em História e o mestrado em História 
Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) , com a dissertação As 
Metamorphoses de Ovídio e as Lutas de Representação na Roma Antiga, e o dou­
torado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com a tese Urbi et 
Orbi, Nós e os Outros: Romanidade(s), Fronteira Étnica e a História como escrita 
dos dilemas pátrios. Professor, entre outras instituições, da Universidade Estadual do 
Sudoeste da Bahia (UESB, 1 986-1 997) e da UFF (desde 1 997), onde fundou, com ou­
tros docentes, estudantes e pesquisadores, o Centro de Estudos Interdisciplinares da 
Antiguidade (CEIA-UFF) . Atua na área de História da Antiguidade Greco-romana e 
da Alta Idade Média, com ênfase nos seguintes temas: Mediterrâneo, História Cultu­
ral, Discurso e História, Etnicidade, Mitologias, Tradições Clássicas, História Militar, 
História das Religiões e Paleocristianismo. Sócio-fundador da Sociedade Brasileira de 
Estudos Clássicos (SBEC) e membro da Associação Nacional de História (ANPUH) 
e da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB) . Sócio emérito do Instituto 
de Geografia e História Militar do Brasil ( IGHMB), ocupando a cadeira 89, cujo 
patrono é Olavo Bilac. Editor assistente e membro do Conselho Editorial da edição 
brasileira de COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura. 
P r e f á c i o à E d i ç ã o B r a s i l e i r a 
A CRIS TAN D A D E D E CHRIS TOPH ER D AWSON -
POR BRA DLEY J . BIRZER 
1 3 1 
Como verificamos, a trilogia da cristandade foi a última gran­
de obra do historiador anglo-galês e l iterato Christopher Dawson 
( 1 8 89-1 970 ) . Mais ou menos . A trilogia surgiu, originalmente, das 
palestras que Dawson ministrara enquanto lecionou na Universidade 
de Harvard, entre 1 95 8 e 1 962. Desej ava que fizessem parte da trilo­
gia da cristandade o presente livro, The Formation of Christendom 
[A Formação da Cristandade] , lançado originalmente em 1 967; The 
Dividing of Christendom [A Divisão da Cristandade] , publicado em 
1 9651 , e The Return to Christian Unity [O Retorno à Unidade Cris­
tã] . No geral, cada volume representava um dos grandes períodos 
do mundo cristão: o vínculo entre os períodos antigo e medieval; a 
Reforma Protestante e a Contrarreforma Católica; e a Igreja na era 
da democracia, dos nacionalismos e das ideologias. 
Embora A Formação da Cristandade sej a , tecnicamente, o pri­
meiro volume da série, a obra surgiu dois anos após o lançamento 
do segundo volume, A Divisão da Cristandade. A ideia de publi­
car as conferências como trilogia ocorreu a Dawson em 1 96 3 . Seu 
editor, Frank Sheed ( 1 8 97-1 9 8 1 ) , prontamente concordou. A úni­
ca questão era se os publicariam separadamente, como três obras 
1 Os dois livros foram relançados em inglês nas respectivas edições: Christo­
pher Dawson, The Formation of Christendom. San Francisco, lgnatius Press, 
2008; Idem, The Dividing of Christendom. Pref. James Hitchcock; intr. David 
Knowles. San Francisco, lgnatius Press, 2008. 
A Formação da C ristandade 1 Prefácio à Ed ição Brasi le i ra 
distintas, ou logo corno urna trilogia . 2 Sheed gostaria de publicá­
-las o quanto antes, pois esperava que os livros pudessem servir de 
base para os debates do Concílio Vaticano II, realizado entre 1 962 
e 1 96 5 . Não sem razão, Sheed acreditava que Dawson - j unta­
mente com urna série de outros humanistas cristãos corno Jacques 
Maritain ( 1 8 82- 1 973 ) e Étienne Gilson ( 1 8 84- 1 97 8 ) - pudesse ser­
vir corno pedra angular e manancial para as importantes delibe­
rações e reformas do Concílio. Afinal, figuras importantes, corno 
Romano Guardini ( 1 8 85 - 1 96 8 ), clamavam por reformas litúrgicas 
desde a década de 1 920 . 3 
Nada, corno de fato aconteceu, poderia estar mais distante da 
verdade. Corno acreditava a maioria dos teólogos e das editoras ca­
tólicas nos anos 1 960, o Espírito Santo abolira muito do passado 
recente, e poucos, afora um pequeno número de fiéis, ainda pensavam 
que Dawson tinha muito a contribuir para o futuro do catolicismo. 
O próprio sucesso que obtivera corno pensador católico de 1 928 a 
1 962, nesse momento, contava negativamente, e muitos o viam corno 
urna relíquia da geração passada e um símbolo daquilo que acabara 
de ser superado. Corno posteriormente explicou o teólogo neocon­
servador Michael Novak: "É corno se todos aqueles escritos potentes 
de Dawson, Maritain, Guardini e de tantos outros nunca tivessem 
realmente criado raízes" . 4 
Além disso, Frank Sheed se aposentou em 1 963, saindo quase to­
talmente do caminho de seus sucessores. Sem Sheed na editora Sheed 
and Ward, não restava ninguém no mundo editorial que promovesse, 
2 Carta de Frank Sheed para Christopher Dawson, de 16 de dezembro de 
1 963 . ln: Box 1 , Folder 13 , Sheed and Ward Family Papers, Archives of the 
University of Notre Dame, Notre Dame, Indiana. 
3 Carta de Sheed para Dawson, 10 de dezembro de 1 963 . ln: Box 1, Folder 13 , 
Sheed and Ward Family Papers, Notre Dame. 
4 Michael Novak, "The Political Identity of Catholics" . Commonweal 97, 
16 de fevereiro de 1 973, p. 44 1 . 
32 l 33 
ativa e significativamente, as obras de Dawson. Quando incitado a 
responder por que a editora Sheed and Ward fez tão pouco para pro­
mover A Formação da Cristandade, o sucessor de Sheed desculpou-se: 
"Há, como sabem, uma falta de interesse nesta obra que acho extre­
mamente lamentável. Ao mesmo tempo, só posso sugerir que, em ge­
ral, parece existir uma total falta de interesse na História da Igreja " , 
escreveu numa carta privada o editor-chefe Philip Scharper ( 1 9 1 9-
1 985 ) . Quase ninguém prestou atenção n'A Divisão da Cristandade, 
observou, e, provavelmente, um número muito menor de pessoas se 
importariam com A Formação da Cristandade. 5 Infelizmente, fosse 
ou não autorrealizável a profecia de Scharper, muito poucos se deram 
conta dessa obra quando foi lançada . 
A imprensa mainstream norte-americana, como o New York 
Times e o Wall Street ]ournal, ignorou-a completamente. Somen­
te duas revistas acadêmicas, a Sociological Analysis e a Catholic 
Historical Review escreveram resenhas a respeito do livro de 1 967.6 
Os resenhistas apresentaram pontos de vista opostos aos de Daw­
son. Werner Stark ( 1 909- 1 985 ) , da universidade j esuíta Fordham 
em Nova York, nitidamente queria gostar do livro, ao chamar o 
autor de "distinto" e ao saudar a intenção de escrever uma história 
a partir da perspectiva católica como algo admirável e louvável. "A 
questão é, certamente, quão bem tal programa foi implementado e, 
a esse respeito, infelizmente, não posso negar certo desapontamen­
to" , afirmou Stark . As próprias visões datadas deDawson de uma 
"teoria da história de grandes homens" já estavam morrendo, la­
mentou o resenhista . O maior problema de Dawson, contudo, vinha 
de sua incapacidade de explicar o catolicismo e sua profundidade 
aos protestantes. "A discussão sobre o monaquismo, por exemplo, 
5 Carta de Philip Scharper para John Mulloy, de 29 de novembro de 1 967. ln: 
Box 1 1 3, Folder 44, Sheed and Ward Business Collection, Notre Dame. 
6 Ver: Werner Stark, Sociological Analysis 28, Outono, 1 967, p. 1 72-73; 
Martin R. P. McGuire, Catholic Historical Re11iew 56, Abril, 1 970, p. 2 1 9-20. 
A Formação da C ristandade 1 Prefácio à Ed ição Brasi le ira 
deixa de transmitir o que era seu significado mais profundo " , escre­
veu Stark. "O professor Dawson não disse aos alunos que os pio­
neiros do monaquismo queriam provar para Deus e para os homens 
que, na verdade, homens podiam ser divinos e, mesmo decaídos, 
podiam ser como Adão fora antes do Pecado Original " . 7 O pro­
fessor da Catholic University of America ( CUA) , Martin McGuire 
( 1 897- 1 969 ) , no entanto, não encontrou erros na obra A Formação 
da Cristandade. Representava o historiador galês "em sua melhor 
forma " , oferecendo "profundos insights e grande poder de síntese" . 
O leitor, McGuire entusiasma, "é arrebatado não só pela profundi­
dade das reflexões, mas pela concretude dos exemplos " . Compará­
vel à originalidade do pensamento de Dawson, conclui, está o estilo 
de escrita "cativante" do autor. 8 
Devemos notar que, apesar de Sheed ter-se aposentado da editora 
Sheed and Ward, nunca perdeu a fé em Dawson. Desde o primeiro 
encontro, os dois iniciaram uma amizade rápida e, por vezes, frus­
trante. Sheed não só encorajou Dawson profissionalmente, ao editar 
significativa parcela da obra do amigo, mas também ajudou a dar 
alguma estabilidade ao maníaco-depressivo Dawson. Se existiu um 
"renascimento literário católico" no mundo de língua inglesa após 
a Primeira Guerra Mundial, Sheed o creditou a seis homens: Hilaire 
Belloc ( 1 870- 1 953 ) , G. K. Chesterton ( 1 874-1 936 ) , C. C. Martindale 
( 1 879- 1 963 ) , Ronald Knox ( 1 8 8 8- 1 957) , Christopher Dawson e ao 
inspirador de todos, o maior teólogo de todos os tempos, Santo Agos­
tinho de Hipona ( 354-430) . 9 Sheed, no entanto, tinha perdido a fé no 
renascimento pleno do catolicismo já em 1 958 . A mentalidade cató­
lica provara, repetidas vezes, a própria genialidade em autores como 
Dawson, mas nunca se estendeu além das letras para os domínios 
7 Werner Stark, Sociological Analysis, p. 1 72-73 . 
8 Martin McGuire, Catholic Historical Review, p. 220. 
9 Frank Sheed, The Church and I. Garden City, Doubleday, 1 974, p. 107-29. 
34 l 35 
da arte e da arquitetura, lamentava . Tal limitação levaria, por fim, à 
implosão do movimento. 10 
Igualmente prejudicial a Dawson foi a indicação de seu melhor anú­
go, E. I. Watkin ( 1 888-1981 ), como seu agente e editor literário. Dawson 
sofrera uma série de derrames devastadores ao longo da década de 1960, 
perdendo, por fim, a capacidade de escrever e falar. Certamente precisava 
indicar alguém para ternúnar a obra. Watkin, entretanto, pernútiu que suas 
paixões roubassem o que tinha de melhor a oferecer. O Concílio Vatica­
no II o enfureceu. Rotulou o concílio e suas conclusões de "deformação" . 
A nova Igreja, preocupava-se Watkin, tinha retornado ao barbarismo 
e nunca entenderia as nuances de um pensador tão profundo quanto 
Dawson.1 1 Desencorajado, Watkin editou as últimas duas obras de Da­
wson, mas com pouco entusiasmo. Em 1969, um ano antes da morte de 
Dawson, seu melhor anúgo escreveu a respeito dele e das últimas obras. 
O Vaticano II nunca poderia refutar Dawson, mesmo se tentasse fazê-lo: 
"Não pode, pois suas interpretações estão seguramente ancoradas no fato 
histórico. Ele é, simplesmente, descartado" . 12 Apesar de Dawson também 
crer que o Vaticano II estava repleto de erros, aceitara o concílio e seus 
ensinamentos por questão de autoridade. Watkin nunca o aceitou. 13 
1 0 Idem, "I am a Catholic Publisher" . Westminster Cathedral Chronicle, set./ 
out. , 1 959, p. 1 37. 
1 1 Carta de E. 1. Watkin para Bernard Wall, de 28 de fevereiro de 1 969. ln: 
Box 1, Folder 24, Bernard Wall Papers, Archives of Georgetown University, 
Georgetown, Washington, D.C. 
1 2 E. 1 . Watkin, "Tribute to Christopher Dawson" , The Tablet, 1 969, p. 974. 
1 3 Watkin é uma figura fascinante por si mesma. Escreveu inúmeras obras críti­
cas sobre arte e cultura na mesma época em que Dawson escrevera suas obras. 
Frequentaram a mesma escola quando crianças e mantiveram uma amizade 
muito próxima por toda a vida. Watkin, certa vez, descrevera o relacionamento 
deles em termos clássicos. Ele era grego e Dawson, romano. Watkin, no entan­
to, sempre fora um tanto heterodoxo. Manteve um estrito pacifismo e viveu 
de modo quase bígamo durante a maior parte da vida adulta. A seu respeito 
só existe uma biografia, escrita pela própria filha. Ver: Magdalen Goffin, The 
Watkin Path: An Approach to Belie(. Eastbourne, Sussex Academic Press, 2006. 
A Formação da C ristandade 1 Prefácio à Edição Bras i le i ra 
Não é de espantar que Watkin também nunca tenha editado o ter­
ceiro volume, O Retorno à Unidade Cristã. Inédito, o único manuscrito 
da conclusão da trilogia - que necessita urgentemente de revisão, edição 
e organização - repousa na Harvard Theological Library. Fragmentos 
apareceram como artigos em vários periódicos acadêmicos da década 
de 1 960, mas apenas pequenos trechos. Algum dia, quem sabe, um edi­
tor possa comprar os direitos autorais e, apropriadamente, lançá-lo. Até 
que isso aconteça, devemos nos contentar com o que Dawson nos legou. 
Decerto, deixou-nos uma herança riquíssima ! 
Dawson, ou, mais provavelmente, Watkin organizou A Formação 
da Cristandade em quatro partes: Apresentação, Os Primórdios da 
Cultura Cristã, A Formação da Cristandade Medieval e um Epílogo. 
Ainda que a história de Dawson seja, é claro, excelente e suas conferên­
cias bela e cuidadosamente preparadas, a verdadeira importância de 
A Formação da Cristandade não está em narrar novamente a história 
da civilização ocidental, mas na teoria que apresenta a respeito da 
natureza e filosofia da história, o papel fundamental da Igreja em 
reconciliar o pensamento clássico com o cristianismo e, em especial, 
no primado da cultura. De fato, muito daquilo que Dawson escreve 
ao detalhar a história da civilização ocidental pode ser facilmente en­
contrado em suas obras anteriores, desde meados da Primeira Guerra 
Mundial. Em vez disso, o que torna A Formação da Cristandade tão 
fundamental, não somente como uma parte do corpus dawsoniano, 
mas também como uma das grandes obras de todo o século XX, é a 
longa seção introdutória. O professor McGuire estava correto. Isso 
é Christopher Dawson em sua melhor forma em termos de lógica e 
retórica. A seção introdutória reflete toda a vida de reflexão de uma 
das maiores mentes de sua época, uma mente católica cheia de vida, 
no auge da capacidade. 
"A cultura" , Dawson explicou com falaz simplicidade n' A For­
mação da Cristandade, "é o modo de vida humano comunicado por 
uma língua, de modo que a palavra do homem tanto é criadora como 
36 l 37 
transmissora de cultura" . 1 4 Não interessa quão fáceis possam parecer 
tais palavras, a profundidade paira em cada fragmento dessa afirmação 
de Dawson. Ao mesmo tempo que Dawson ministrava essas famosas 
conferências em Harvard, também tentava fomentar suas interpretações 
pessoais por vários empreendimentos educacionais. A cultura, afirma­
va juntamente com o grande estadista irlandês Edmund Burke ( 1 729-
1797) e com o filósofo francês Alexis de Tocqueville ( 1 805-1 859) : 
é um produto artificial. É como uma cidade laboriosamente construída 
pela obra de sucessivas gerações, não uma floresta que cresceu espon­
taneamente pela pressão cega de forças naturais. A essência da cultura 
que é comunicada e adquirida e, ainda que seja legadade uma geração 
para outra, é uma herança social e não biológica, uma tradição de 
aprendizado, um capital de conhecimento acumulado e uma comuni­
dade de "costumes" em que o indivíduo tem de ser iniciado. Por isso, é 
evidente que a cultura é inseparável da educação. 15 
Como Dawson sempre afirmou, a cultura encontra suas expres­
sões mais significativas nas coisas mais humanas, em gestos e, espe­
cialmente, na liturgia religiosa. 
Desde o primeiro livro, The Age of the Gods16 [A Era dos Deu­
ses] , publicado em 1 928, Dawson promoveu, incessantemente, uma 
análise da cultura como o fundamento mais importante de compreen­
são da sociedade, da família e da pessoa. Nisso, Dawson contrariou 
a obsessão do século XX com ideologias fanáticas e política. De fato, 
Dawson acreditava que o desejo de dar primazia à política e ao pen­
samento político levou, inevitavelmente, na pessoa individual, à perda 
1 4 Ver na presente obra o capítulo V (As Ideias Cristã e Judaica de Revelação), 
p. 153 . 
1 5 Christopher Dawson, The Crisis o( Western Education. Steubenville, 
Franciscan University Press, 1 989, p. 3 . 
1 6 Idem, The Age o( the Gods: A Study in the Origins o( Culture in Prehistoric 
Europe and Ancient Egypt. Intr. Dermot Quinn. Washington, D.C., The 
Catholic University of America Press, 2012 . 
A Formação da C ristandade 1 Prefácio à Ed ição Bras i le i ra 
da imaginação e, nas sociedades humanas, ao empobrecimento do ra­
ciocínio superior. Sem nuance e sempre, e em todos os lugares, tendo 
algo de imperial, a política tenta expandir a própria esfera de influên­
cia em todos os aspectos da vida. Em última análise, porém, a política 
só pode ser bem-sucedida ao neutralizar a pessoa, rotulando-a como 
algo inferior do que fora pretendido por Deus ou pela natureza . "Te­
mos de encarar o fato de que houve um declínio nas ideias" , confiden­
ciou a um amigo íntimo, Bernard Wall ( 1 894-1 976 ) , "há não só uma 
falta positiva de novas ideias, mas, também, uma perda subjetiva de 
interesse nas ideias como tal" . 1 7 Por certo, Marte e Demos apressaram 
o crescimento do Leviatã, temia Dawson. "Ainda vivemos à sombra 
da guerra e na incerteza do futuro da Europa ser favorável à obra 
criativa " , 18 afligia-se. As limitações ideológicas e a propaganda polí­
tica rapidamente se infiltraram no pensamento, nas artes e na música 
de várias igrejas cristãs, católicas e protestantes, afirmava Dawson. 
"Os teólogos modernos, ao deixarem de ser poetas, também deixa­
ram de ser filósofos." 1 9 
Embora Dawson tenha gasto um tempo considerável analisando 
a política e a ideologia, especialmente entre os anos de 1 93 1 e 1 942, 
ele sempre se ressentiu desse aspecto de seus escritos, acreditando 
que eram necessários somente para combater os erros do século XX. 
De modo algum, temeu e lamentou; argumentos políticos pró ou 
contra fizeram progredir a causa de Deus, a cristandade ou a pessoa . 
A política serviu somente como uma distração neste mundo de so­
frimentos, mas uma distração mortal como provaram ser os campos 
de concentração e os gulags. Ainda assim, a análise política deve ser 
feita, mas sempre no sentido de explicar sua insignificância se com­
parada à cultura . Na última de suas obras declaradamente políticas, 
1 7 Carta de Dawson para Bernard Wall de 26 de agosto de 1 946. 
1 8 Carta de Dawson para Bernard Wall de 9 de setembro de 1 946. 
1 9 Carta de Dawson para Bernard Wall de 28 de julho de 1 946. 
38 l 39 
The Judgment of the Nations20 [O Julgamento das Nações] , de 1 942, 
Dawson, de modo surpreendente, dedica a obra "a todos os que não 
perderam a esperança na república, na comunidade dos povos cris­
tãos, nesses tempos sombrios" . 
Apesar do projeto dawsoniano de reforma d o mundo ocidental 
nunca ter tido êxito, sem dúvida, aj udou a preservar a melhor parte 
da civilização ocidental . Certamente seria muito difícil exagerar a 
importância de Dawson ao inspirar vários dos melhores pensado­
res do século passado. Dentre eles, temos poetas, romancistas, crí­
ticos culturais e artistas como T. S . Eliot ( 1 8 8 8- 1 965 ) , David Jones 
( 1 895-1 974 ) , C . S . Lewis ( 1 898 - 1 963 ) , J. R. R. Tolkien ( 1 8 92- 1 973 ) , 
Thomas Merton ( 1 9 1 5- 1 9 6 8 ) e Russell Kirk ( 1 9 1 8 - 1 994 ) , e todos, 
durante suas vidas, adotaram abertamente a posição de Dawson a 
respeito de cultura . 
Bastam dois exemplos. No poema Four Quartets [Quatro Quar­
tetos] de T. S. Eliot, indiscutivelmente, a maior obra de arte do século 
XX, quase ao final do quarto poema, "Little Gidding" , publicado em 
1 94 2, escreveu Eliot: 
E cada frase 
Ou sentença de rigor (onde cada palavra se familiariza, 
Assumindo seu posto para suportar as demais, 
A palavra sem pompa ou timidez, 
Um natural intercâmbio do antigo e do novo 
A palavra corrente, correta, digna, 
A palavra essencial e exata, mas sem pedanteria, 
O íntegro consórcio de um bailado unívoco)2 1 
20 Christopher Dawson, The ]udgment of the Nations. lntr. Michael J. Kea­
ting. Washington, D.C., The Catholic University of America Press, 201 1 . 
21 No original: And every phrase / And sentence that is right (where every 
word is at home, / Taking its place to support the others / The word neither 
diffident nor ostentatious / An easy commerce of the old and the new / The 
common word exact without vulgarity / The formal word precise but not 
pedantic / The complete consort dancing together) . (T. S. Eliot, "Little Gidding" . 
A Formação da C ristandade 1 Prefácio à Edição Brasi le ira 
De maneira menos poética, mas com palavras igualmente pro­
fundas, o crítico cultural e historiador norte-americano Russell Kirk 
escreveu em seu livro sobre liberdade acadêmica de 1 955: 
O principal sustentáculo da liberdade acadêmica, no mundo antigo, 
no mundo medieval e na tradição educacional norte-americana foi a 
convicção, entre estudiosos e professores, de que eram os Portadores 
da Palavra - homens consagrados, cuja primeira obrigação é com a 
Verdade, e que a Verdade deriva da apreensão de uma ordem superior 
à natural ou à material .22 
Tanto Eliot quanto Kirk refletiram diretamente um sentimento 
muito joanino e a argumentação de Dawson. Corno escreveu no iní­
cio do capítulo II d'A Formação da Cristandade: 
A história do cristianismo é a história de uma intervenção divina na 
história, e não podemos estudá-la à parte da história da cultura no 
sentido mais amplo do termo. A palavra de Deus foi primeiramente 
revelada ao povo de Israel e se incorporou na lei e na sociedade. De­
pois, o Verbo de Deus se encarnou em uma determinada pessoa, em um 
determinado momento da história, e, posteriormente, esse processo da 
redenção humana perdurou na vida da Igreja, a nova Israel, a comuni­
dade universal portadora da Revelação divina, e foi o meio pelo qual o 
homem participou da nova vida do Verbo Encarnado.23 
Dawson via cada um corno um pequeno verbo, que traz dentro 
de si um ícone, urna imagem perfeita daquilo que estamos destinados 
a ser, segundo Aquele que criou o mundo e o redimiu. Corno nos 
assegura São João, o lógos é "a verdadeira luz que, vindo ao mundo 
Four Quartets, seção V, versos 234-41 ) . Utilizamos aqui a versão em português 
da seguinte edição brasileira: T. S. Eliot, Quatro Quartetos. ln: T. S. Eliot: Obra 
Completa - Volume 1: Poesia. Trad., intr. e notas Ivan Junqueira. São Paulo, Arx, 
2004, p. 385. (N. T. ) 
22 Russell Kirk, Academic Freedom: An Essay in Definition. Chicago, Regnery, 
1 955, p. 29. 
23 Ver na presente obra o capítulo II (0 Cristianismo e a História da Cultura ), 
p. 1 0 1 . 
40 l 4 1 
ilumina todo homem" (João 1 ,9 ) . Todo aspecto da imaginação e da 
razão superior nos é dado por algo exterior a nós mesmos. Ironica­
mente, aquilo que é menos humano em nós é o que nos torna mais 
humanos. Dawson acreditava que essa verdade era a mais importante 
que podemos conhecer em nossa peregrinação por este mundo, ao 
nos prepararmos para a cidadaniaceleste. A Formação da Cristanda­
de figura como uma alma que se ergue no mundo para testemunhar 
o brilhantismo de Christopher Dawson, bem como para encorajar, de 
modo profundo, nossas vidas a continuarem intelectual e sobrenatu­
ralmente vivas, ou seja, a permanecerem católicas. 
Bradley ]. Birzer 
Professor titular de História da cátedra " Russell Amos Kirk em Estudos 
Norte-americanos" do Hillsdale College, em Michigan, nos EUA. Cursou o B.A. na 
University of Notre Dame, o M.A. em História na Utah State University e o PhD 
em História na Indiana University. É autor dos livros J. R. R. Tolkien 's Sanctifying 
Myth: Understanding Middle-earth ( ISI Books, 2003 ), Sanctifying the World: The 
Augustinian Life and Mind of Christopher Dawson (Christendom Press, 2007), 
American Cicero: The Life of Charles Carrol/ ( ISI Books, 20 10 ) , The Humane Repu­
blic: The Imagination of Russell Kirk (University Press of Kentucky, 2014) , coautor, 
com Larry Schweikart, do livro The American West (Wiley, 2002 ) e coeditor, com 
John Willson, da coletânea de escritos de James Fenimore Cooper The American 
Democrat and Other Political Writings (Gateway, 200 1 ) . 
I n t r o d u ç ã o à E d i ç ã o B r a s i l e i r a 
CHRISTOPHER DAWSON E A I DEIA CAT Ó LI CA DE HIST ÓRIA 1 
DERMOT Q UINN 
l 43 
Christopher Dawson ( 1 8 89-1 970) foi o mais eminente historiador 
católico de língua inglesa do século XX, mas, apesar de toda sua dis­
tinção, ele permanece um enigma. Examinar a sua obra é dar-se conta 
de que o paradoxo está em seu cerne, que uma simples frase não pode 
capturar a totalidade de sua realização. Num elegante ensaio revisio­
nista, James Hitchcock demonstrou a consistência com que Dawson 
parece frustrar expectativas. De gostos rústicos, ele foi "o mais cos­
mopolita dos eruditos" ;2 ardentemente inglês, aceitou uma cadeira na 
Harvard University, já perto da terceira idade, deixando sua terra na­
tal; um crítico do industrialismo e individualismo americanos,3 passou 
a amar os Estados Unidos da América, e continua mais admirado lá do 
1 Ensaio publicado pela primeira vez em língua portuguesa com o mesmo 
título, em tradução de Mareio de Paula S. Hack, no periódico trimestral 
COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura, vol. XXVII, n. 
3 (edição 99) , jul ./set. 2008, p. 697-71 8 . Agradecemos aos editores respon­
sáveis Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo e Márcia Xavier de Brito, 
bem como ao gerente editorial Alex Catharino, que gentilmente autorizaram 
a reprodução do texto na presente edição. Todas as notas do editor (N. E.) no 
presente ensaio são de autoria de Alex Catharino. A versão aqui publicada foi 
devidamente revisada, atualizada e acrescida de notas do tradutor (N. T. ) para 
esta edição por Márcia Xavier de Brito. 
2 James Hitchcock, "Christopher Dawson: A Reappraisal " . ln: The American 
Scholar, vol. 62, 1 993, p. 1 1 1 . 
3 Aquela conjunção era, em si, paradoxal, como observou Dawson: industria­
lismo e individualismo muitas vezes se suprimem mutuamente. 
A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Ed ição Brasi le i ra 
que na Inglaterra; distante de companhias intelectuais por grande par­
te de sua vida, e antimoderno por temperamento, era ousado em ques­
tões de metodologia histórica; um cristão conservador, reconheceu 
não obstante o " Reino de Cristo" como um princípio "de importância 
revolucionária, tanto para a ordem política quanto para a moral " .4 
Sua vida variegada, em outras palavras, parece resistir aos contornos 
definidos das biografias. Suas excentricidades zombam das conven­
ções; o inesperado não cessa de aparecer. Dawson dá a impressão de 
ser da melhor espécie de não conformista: aquele que não se conforma 
sequer com o próprio não conformismo. 
Essas ambiguidades não esgotam sua complexidade. Chamar 
Dawson de expressivo dentre os historiadores católicos já é em si 
enigmático, e parte do enigma tem a ver com uma maneira de pen­
sar - chame-a "História Católica " - quanto com o próprio homem 
em questão. Certamente, não há dúvidas quanto à sua distinção. Seu 
tutor na University of Oxford, Sir Ernest Barker ( 1 874- 1 960), o con­
siderava inigualável dentre seus pupilos, "um homem e um erudito 
da mesma espécie de qualidade de Lorde Acton ( 1 834-1 902) e de 
Friedrich von Hügel ( 1 852-1 925 ) " .5 O padre David Knowles, O.S.B. 
( 1 896-1 974 ) afirmava que era "em seu campo, o mais eminente pen­
sador católico deste século" .6 Mas os testemunhos chamam a atenção 
apenas para o fato de que Dawson, como historiador, se encontra em 
grande medida esquecido. Ele está fora de moda. Talvez sua insis­
tência de que a religião está no centro da cultura pareça redutiva ou 
confessional . Talvez sua crença na Europa como uma "unidade espi­
ritual [com um] sistema comum de valores morais" 7 seja eurocêntrica 
4 Christopher Dawson, The Sword of the Spirit. London, Sand, 1 942, p. 4. 
5 Citado em Christina Scott, A Historian and His World: A Life of Christo­
pher Dawson 1 889-1 9 70. London, Sheed and Ward, 1 984, p. 1 1 0. 
6 Ibidem, p. 2 1 0 . 
7 Christopher Dawson, Understanding Europe. New York, Sheed and Ward, 
1 960, p. 6 . 
44 j 45 
demais para a nossa época eurofóbica ou multiculturalista . Mais pro­
vável, porém, é que ele esteja fora de moda por nunca ter estado nela . 
De fato, Dawson não parece de modo algum pertencer ao sécu­
lo XX. A comparação com Lorde Acton é apropriada: ambos foram 
eruditos reservados que se devotaram aos grandes temas, convencidos 
de que o estudo da história é uma empreitada profundamente moral. 
Mas a comparação com Lorde Acton parece investir sobre ele uma 
gravitas vitoriana, separando-o de seus contemporâneos. Dawson 
chegou à maturidade após a Grande Guerra, quando a mente acto­
niana - confiante, liberal, progressiva, racional - havia perecido nas 
trincheiras. Depois das batalhas de Passchendaele e Somme, o mundo 
passou a suspeitar do político como pregador, do historiador como 
homiliasta . Ele continuou a enxergar padrões na história, mesmo de­
pois que os outros não conseguiam ver nada além do absurdo. E em 
outro sentido, ele não se encaixa bem entre os historiadores ingleses . 
Se os escritos de história revelam o estilo nacional, então há nele mais 
Alemanha do que Inglaterra, mais Theodor Mommsen ( 1 8 1 7- 1 903 ) 
do que Frederic William Maitland ( 1 850- 1 906 ) , mais Oswald Spen­
gler ( 1 880- 1 936 ) do que William Stubbs ( 1 825-1 90 1 ) . O miniaturis­
mo das monografias não o atraía: a paisagem, sim. Suas preocupa­
ções eram a natureza da cultura e da civilização, do progresso e da 
religião, os contornos da história mesma: questões metafísicas muito 
distantes do quo warranto [com que direito] , o reino do rei Stephen 
de Blois ( 1 096- 1 1 54 ) e a ascensão do feudalismo bastardo. Sua me­
todologia era sempre empírica: nisto, ao menos, ele era inglês . Mas a 
"meta-história" tinha muito maior importância para ele do que para 
os outros. Era, de fato, seu recurso fundamental : 
O historiador acadêmico está perfeitamente certo ao insistir na impor­
tância das técnicas da crítica e da pesquisa históricas. Mas o domínio 
dessas técnicas não produzirá boa história, mais do que o domínio 
da métrica produz grande poesia. Para isto, algo mais é necessário. 
A experiência dos grandes historiadores, como Alexis de Tocqueville 
A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Ed ição Brasi le ira 
( 1 805-1859 ) e Leopold von Ranke ( 1 795-1 886) , me leva a crer que 
uma visão universal meta-histórica [ . . . ] partilhando mais da natureza 
da contemplação religiosa que da generalização científica, está bem 
próxima da fonte de seu poder criativo. 8 
A defesa pede um exame melhor. "Visão universal meta-histórica " 
soa como a escola continental nos seus piores momentos de vagueza 
e indefinição. Mas a melhor arma contra o fogo é o próprio fogo. 
Dawson sabia do que falava. Pense na sua crítica a Oswald Spengler, 
cujo continentalismosó não era mais exacerbado do que seu relati­
vismo.9 A acuidade de Spengler ao descrever civilizações não era ba­
seada em qualquer crença na "civilização" mesma. Em última análise, 
ele dissolveu "a unidade da história numa pluralidade ininteligível 
de processos culturais isolados e estéreis " . 1 0 A insistência de Dawson 
sobre a meta-história, deste modo, revelou as falhas daquela escola, 
melhor do que a simples confiança num empirismo que, apesar de 
toda sua atratividade, j amais poderia provar algo fora de si mesmo. 
Até aqui, então, alguns enigmas. Dawson foi um galês que es­
creveu à maneira dos alemães; uma figura do século XIX exilada no 
século XX; ele era rus in urbe; um revolucionário conservador. Todas 
estas são ideias úteis. Mas o paradoxo mais revelador ainda está para 
8 Idem, "The Problem of Metahistory: The Nature and Meaning of History 
and the Cause and Significance of Historical Change" . ln: History Today, 1, 
junho, 1 95 1 , p. 9- 12 . 
9 Idem, Progress and Religion: An Historical Enquiry into the Causes and 
Development of the Idea of Progress and Its Relationship to Religion. New 
York, Doubleday Image, 1 929, p. 38 . [Ao longo de todo o presente texto subs­
tituiremos as passagens da versão original em português do artigo publicado 
em COMM UNIO pelas equivalentes da tradução brasileira da obra, lança­
da posteriormente, além de indicarmos entre colchetes as páginas do livro 
em português. A obra foi lançada em português na seguinte edição brasilei­
ra: Christopher Dawson, Progresso e Religião: Uma Investigação Histórica. 
Apres. Joseph T. Stuart; pref. Christina Scott; intr. Mary Douglas; trad. Fabio 
Farias. São Paulo, É Realizações, 2012, p. 86-87. (N. T. ) ] . 
1 0 Ibidem, p. 43 [p. 95] . 
46 l 47 
ser explorado. Dawson era um historiador católico; e o catolicismo 
está no centro de sua identidade. O que isto significa ? Num certo 
nível, as implicações parecem claras . "Historiador católico" implica 
tanto combinação quanto contraposição. É ser católico, é escrever 
inter alia sobre questões católicas, e fazê-lo com empatia, mas sem 
abandono da faculdade crítica . Isso parece incontestável, uma com­
binação sem controvérsia . Mas a contraposição também jaz escon­
dida . Por que falar de historiador católico senão para sugerir uma 
identidade dupla, uma lealdade dividida ? O católico segue regras di­
ferentes e responde a um juiz mais elevado, assim reza o argumento. 
Ele finge ser um pluralista, mas, no fim das contas, somente a Mãe 
Igreja importa . É o velho hino agostiniano tornado estridente pelo 
secularismo. Mas considere suas pressuposições. Se há de fato duas 
cidades, como Santo Agostinho (354-430) as descreve, perceba como 
é estranho que seja o secularista a exigir (em nome do pluralismo) que 
o católico viva em apenas uma delas. Em qualquer lealdade dividida, 
ele afirma, prerrogativas sagradas devem ser, primeiro, abandonadas, 
fazendo assim o verdadeiro pluralismo impossível. Mas isto é, eviden­
temente, arbitrário, acrítico e em si mesmo antipluralista : não uma 
identidade dupla, mas um padrão duplo. Como disse o historiador 
Johann Peter Kirsch ( 1 86 1 - 1 94 1 ) : 
Exigir do historiador eclesiástico uma ausência de todo tipo de compreen­
sões prévias não é apenas inteiramente irracional, mas uma ofensa à 
objetividade histórica [ . . . ] . Esta atitude só seria sustentável admitida a 
hipótese de que o fim da investigação científica não é a descoberta, mas 
simplesmente a busca da verdade, sem que jamais possamos encontrá-la 
[ . . . ] . [Uma hipótese] completamente impossível de ser defendida, pois a 
afirmação de que a verdade sobrenatural, ou sequer a simples verdade 
objetiva de qualquer espécie, está além do nosso alcance, é em si uma 
hipótese prévia . 1 1 
1 1 Johann Peter Kirsch, "History" . ln: The Catholic Encyclopedia - Volume 
VII. New York, Robert Appleton Company, 1 9 1 0, p. 367. 
A Formação da C ristandade 1 Introdução à Ed ição Bras i le i ra 
Antes que o historiador católico precise se defender contra acusa­
ções de antipluralismo, em suma, ele tem o direito de exigir uma de­
fesa semelhante (se não um pedido de desculpas) de seus acusadores. 
É errôneo, portanto, imaginar a "história católica " como um 
pleito especial ou uma renúncia ao julgamento crítico. Neste cami­
nho, encontra-se a história mesquinha. Mais importante, neste ca­
minho encontra-se também o catolicismo mesquinho. No primeiro 
exemplo, o historiador acadêmico está "perfeitamente justificado" 
ao insistir em técnicas de crítica e pesquisa históricas. Sem estas coi­
sas, ele não é nada. O argumento de Dawson é de que eram insufi­
cientes, e não de que eram desnecessárias. Evidente, isto não resolve 
o dilema da lealdade cindida, mas o fortalece, ao deixar implícita 
a insuficiência de meios puramente históricos de entender a histó­
ria . Mas não faz mal algum à integridade profissional sugerir que 
a "verdade" pode estar em algum lugar para além do empirismo. 
O católico sustenta uma visão de mundo peculiar. Disto não decorre 
a impossibilidade do pluralismo: logicamente, na verdade, implica a 
sua necessidade. Sequer é razoável supor - como Charles Kingsley 
( 1 8 1 9- 1 8 75 ) famosamente fez com John Henry Newman ( 1 801 -
1 890) - que o católico não se interessa pela verdade como tal. Pelo 
contrário, o católico revela seu catolicismo dizendo a verdade. Se até 
isto for posto em dúvida, então devemos concluir que nenhum diálo­
go é possível entre o que é sagrado e o que é secular. 
Tudo isto deveria ser óbvio, e se a "história católica " fosse, ape­
nas, a crônica de um povo e de sua fé, não haveria dificuldade em 
empregar os métodos convencionais para entendê-la . Estes métodos 
não são "positivistas" , são apenas aplicações da razão humana aos 
problemas concretos. Nem deveria a acusação de meta-história ser 
causa de alarma. Como lembra-nos o teólogo suíço Hans Urs von 
Balthasar ( 1 905- 1 9 8 8 ) , a busca do historiador é: 
Captar as coisas mediante uma divisão radical em dois elementos: o 
fático - que, como tal, é o " individuado" , sensível, concreto e casual - e 
o necessário e universal - cuja universalidade leva, por mais preparado 
que seja, o abstrato, essa lei e esse valor que partem do caso singular 
para regulá-lo superando-o. 1 2 
48 l 49 
Assim, qualquer afirmação histórica isolada contém uma afirma­
ção sobre a história mesma: só desta maneira se torna convincente . 
Do mesmo modo, o historiador que não generalizou, não disse abso­
lutamente nada. Ele compilou fatos erroneamente crendo que fatos 
falam por si mesmos. O particular e o universal não existem como 
elementos separados, mas são intimamente ligados em todos os mo­
mentos históricos. A questão das leis históricas surge daí. Entre a opi­
nião radical de que não existem leis históricas e a visão igualmente 
radical de que toda história é regida por leis, o historiador católico 
toma o caminho do meio. De um lado, a negação da lei histórica cai 
por contradição: afirmar que não há leis históricas é em si afirmar 
uma lei histórica . Mas apenas isto não justifica o historicismo empo­
lado de, digamos, G. W. F. Hegel ( 1 770- 1 83 1 ) ou Karl Marx ( 1 8 1 8-
1 8 83 ); pois qualquer esquema que tente entender o particular com 
uma elaborada arquitetura de " leis " ou " forças" comumente nega a 
própria particularidade que procura explicar. 
Será este, então, o problema característico da "história católica " ? 
Não. Explicar a contingência dentro da teleologia não é um problema 
peculiarmente católico. Mesmo historiadores que negam a finalidade 
enfrentam este problema: a antiteleologia deles é igualmente esque­
mática, o contingencialismo radical igualmente uma afirmação sobre 
a historicidade e, portanto, sobre a história mesma. O problema do 
historiador católico é, na verdade, o seu providencialismo. Ele deve 
12 Hans Urs von Balthasar, A Theology of History. New York, Sheed and 
Ward, 1 963, p. 5 . [As passagens da obracitadas na versão original em por­
tuguês do artigo publicado em COMMUNIO serão substituídas no presente 
texto pelas equivalentes da tradução da obra em português, sendo informa­
das entra colchetes as páginas da seguinte edição brasileira: Hans Urs von 
Balthasar, Teologia da História. Trad. Claudio J. A. Rodrigues. São Paulo, 
Fonte Editorial, 2005, p. 12 . (N. T.) ] 
A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Ed ição Brasi le ira 
defender a ideia de criação, e também o propósito divino entrona­
do nela. Isto é possível, mas a confusão da história, muitas vezes, 
barra esse caminho. Pense no bispo Jacques Bossuet ( 1 627-1 704 ), 
cujo grande esquema de história universal "baseado nas Escrituras 
Sagradas" alcançou a harmonia somente ao preço das particularida­
des históricas. O resultado foi insatisfatório, não apenas do ponto de 
vista do historiador, como também do ponto de vista do teólogo. Ao 
destituir a contingência, da concretude do aqui-e-agora, ele destituiu 
a própria história, desta forma prejudicando seu próprio esquema 
incarnacional. Cristo, de fato, se tornou o Senhor da História, mas 
foi um reinado vazio, uma soberania sem sentido. Bossuet parecia 
encarar a história como um drama, cujo ato final já era conhecido, 
e a escrita da História como um ramo da apologética, que não tinha 
que prestar contas de coisa alguma. Sua teleologia requeria uma sa­
bedoria que era demasiado otimista e um determinismo que era por 
demais pessimista . É uma armadilha que ainda em nossos dias amea­
ça os incautos. 
Isto não é o mesmo que dizer que a história providencial é impos­
sível . Pelo contrário, tal leitura apresenta dificuldades precisamente 
porque é necessária. Sem o reconhecimento de que Cristo é o Senhor 
da História, de que toda história está resumida e ganha sentido na 
Encarnação, o historiador católico difere muito pouco do historia­
dor secular que procura escrever a história universal a partir de uma 
perspectiva puramente material. Mas se o católico vê a história como 
revelação de uma economia divina da salvação, então seu projeto se 
tornou teológico. Crucialmente, porém, isto não aniquila as normas 
ou métodos históricos. Como lembra-nos Balthasar: 
Nem se pode tratar de metafísica natural, de ética natural, de direito 
natural, de ciência histórica natural, como se não fosse Cristo a nor­
ma concreta do todo; nem tão pouco se pode estabelecer uma "du­
pla verdade" sem relação, segundo a qual os teólogos e os especialistas 
profanos investiguem sobre o mesmo objeto, sem que seus respectivos 
métodos se encontrem nem se cruzem jamais; nem tão pouco, por últi­
mo, se podem dissolver as ciências do mundo na teologia, como se esta 
fosse a única competente, porque Cristo é a exclusiva norma concreta . 
Precisamente porque Cristo é norma absolutamente irrepetível, seu pre­
sente é incomensurável com relação às normas interiores do mundo. 1 3 
50 l 5 1 
A tarefa do historiador católico não é, portanto, escrever " boa 
história" , quer de uma perspectiva católica ou não católica: é, em vez 
disso, decidir até que ponto seu projeto histórico é mais ou menos 
aberto às normas teológicas que ele reconhece ao reconhecer a pró­
pria catolicidade. Talvez o fracasso de Bossuet tenha sido o fracasso 
em distinguir com propriedade entre ambos, para prejuízo de ambos. 
Esses, portanto, são os problemas que o historiador galês 
Christopher Dawson apresenta . Mas para entender Dawson, o his­
toriador, precisamos entender Dawson, o homem. Os dois não exis­
tiam separadamente, mas eram integrados num nível profundo de 
sua personalidade. Mas, ainda assim, ele impõe exigências severas 
ao biógrafo, que deve compor uma história a partir dos insuficientes 
entusiasmos de erudição provinciana e de uma razoável obscuridade. 
A vida de Dawson é um estudo em anonimidade. Juventude passa­
da entre livros, Oxford, exígua existência em Exeter por um tempo, 
de volta a Yorkshire como um cavalheiro escritor, Harvard no final: 
dificilmente material para um Richard Hannay14 ou um Dornford 
Yates . 1 5 Mas uma vida tão solitária e tão resolutamente intelectual 
1 3 Ibidem, p. 14 [p. 1 9] . 
1 4 O major Sir Richard Hannay é um fictício agente secreto criado pelo ro­
mancista, historiador e estadista escocês John Buchan ( 1 8 75-1940) , primeiro 
barão Tweedsmuir. A inspiração de John Buchan na criação desta persona­
gem foi, em parte, o marechal Edmund Ironside ( 1 880- 1 959) , primeiro barão 
Ironside, que atuou como espião durante a segunda guerra dos bôeres, na 
África do Sul. (N. E. ) 
1 5 Dornford Yates é o pseudônimo do romancista inglês Ceei) William Mercer 
( 1 885-1 960), cujas estórias curtas e bem-humoradas, publicadas em revistas, 
se tornaram best-sellers no período entre as duas guerras mundiais. (N. E. ) 
A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Ed ição Brasi le i ra 
gera a sua própria evidência. Livros e artigos revelam os contornos 
de uma sensibilidade e as experiências que a formaram. Os escritos 
sozinhos proveem a autobiografia. Temos a sorte, também, de Chris­
tina Scott ( 1 922-200 1 ) ter-nos dado um relato soberbo sobre seu pai. 
Nele, ela registra as primeiras memórias de Dawson, de Hay-on-Wye 
e Yorkshire, de paisagens permeadas de história . Quando criança, ele 
"gostava da liberdade e da ausência de limites nos selvagens pân­
tanos do interior do país" , como se a imensidão vazia o ligasse ao 
mundo dos mitos e lendas. Aquele mundo mítico - "metade história 
e metade poesia" - formava uma paisagem de poderosa atração. Ele 
parecia enxergar nele: "A velha estrada que nos leva de volta não 
meramente por séculos, mas por milhares de anos; a estrada pela qual 
todas as pessoas viajaram e da qual os começos de todas as litera­
turas surgiram" . 16 Assim foi que ele veio a adquirir um "amor pela 
história" e um " interesse pelas diferenças entres culturas" . 1 7 Sua ima­
ginação era primariamente visual. A história não era uma abstração, 
mas uma coisa a ser vista, em igrejas e túmulos, na própria terra. Isto 
é certamente revelador. Ele se tornou um historiador visionário, ima­
ginativamente consciente dos grandes movimentos dos povos e das 
civilizações, porque começou como um historiador visual . Usando as 
palavras do poeta Thomas Hardy ( 1 840- 1 928 ) , "era um homem que 
costumava notar tais coisas" . 1 8 
Nenhuma reflexão subsequente erradicou esta experiência da his­
tória como algo tangível. "O passado não morre" , ele gostava de dizer, 
citando Santo Agostinho. "Ele se incorpora na humanidade" . 1 9 Aqui 
estava um sentimento quase místico de que, em oposição às " leis da his­
tória" , que explicam ou obscurecem o passado, " sempre permanece um 
1 6 Christina Scott, A Historian and His World, p. 27. 
1 7 Ibidem, p. 1 5 . 
1 8 No original: "he was a man who used to notice such things ". Thomas 
Hardy, Afterwards, verso 4. (N. T. ) 
19 Christina Scott, A Historian and His World, p. 99. 
52 l 53 
irredutível elemento de mistério" .2° Começou no mundo imaginativo 
da infância e foi ligado a um poderoso intelecto que, ao explorar cone­
xões entre as paisagens e a história, também intuía uma relação entre 
tempo e eternidade. A carreira de Dawson em Oxford (praticamente 
autodidata ) refinou seu intelecto. Também o fez a sua conversão ao ca­
tolicismo, que deveu muito a um temperamento histórico cativado pelo 
drama do passado cristão, que se concretizou no presente cristão.2 1 De­
pois de Oxford, o pendor de sua mente se tornou mais contemplativo. 
"Eu [o] achei repleto de misticismo e de história" , escreveu seu amigo 
E. l. Watkin ( 1 888-1 981 ) , "ocupado com um ensaio sobre o significado 
religioso da história" . 22 Watkin continua afirmando que: "Ele encon­
tra, na revelação, a chave necessária para a interpretação da história " . 
Perceba a interação de duas ideias: a revelação por s i como doadora de 
sentido à história, a história mesma como parte de uma revelação que 
se desenrola no tempo. 
Dawsonjamais abandonou estas preocupações: por um lado, a 
relação entre cultura e religião, por outro lado, o papel da Revelação 
na história e o da história na Revelação. Desde The Age of the Gods 
[A Era dos Deuses] ,23 em 1 928, até The Gods of Revolution [Os Deu­
ses da Revolução] , 24 em 1 972, publicado dois anos após a sua mor­
te, tais obras constituíram o trabalho de uma vida. juntamente com 
2° Christopher Dawson, The Historie Rea/ity of Christian Culture: A Way to 
the Renewal of Human Lifet. New York, Harper & Bros., 1 960, p. 1 8 . 
2 1 Christina Scott, A Historian and His World, p. 63 . "Assim como Newman, 
sua abordagem do catolicismo era por meio da História. 'Os Padres da Igreja 
me fizeram católico', escreveu certa vez Newman [ . . . ] e, em outra ocasião, 'Ser 
profundo em História é deixar de ser protestante' [ . . . ] ou seja, a prova cumu-
lativa do passado cristão o levou à plena aceitação do presente católico" . 
22 Ibidem, p . 57. 
21 Christopher Dawson, The Age of the Gods: A Study in the Origins of Culture 
in Pre-historic Europe and the Ancient East. London, J. Murray, 1 928 . 
2 4 Idem, The Gods of Revolution. Intr. Arnold Toynbee. London, Sidgwick & 
Jackson, 1 972. 
A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Edição Brasi le i ra 
Lorde Acton, ele sustinha que a religião oferecia a chave da história. 
Nenhum outro princípio - econômico, social, cultural - igualava o 
seu poder explanatório. "Não importa o quão longe formos na his­
tória da raça, não podemos j amais encontrar uma época ou um lugar 
onde o homem não estivesse consciente da alma e de um poder divino 
do qual sua vida dependia " . 25 Além do mais, a religião era a chave 
para a cultura: uma cultura decaía na medida em que se secularizava. 
Dawson evitou a afirmação de que a simples longevidade era pro­
va de verdades religiosas. Nem sequer fundia a numinosidade - um 
vago impulso para a espiritualidade - com a religião propriamente 
dita . Mas a pura escala da experiência religiosa do homem o comovia 
grandemente; nas palavras de Dawson: " um poder maciço, objeti­
vo, não questionado, que entrou em tudo e imprimiu sua marca no 
mundo externo tanto quanto no interno" .26 Isto dava uma espécie de 
segurança de que, "não importa quão negro seja o panorama '' , há 
sentido na falta de sentido, ordem no caos. 27 
Esta busca por um princípio histórico universal é evidente em 
tudo o que Dawson fez. Uma ideia - uma palavra - percorre a sua 
obra, como um leitmotiv: " unidade" . A escrita está banhada com lin­
guagem de harmonia e consonância, um senso sinfônico da história 
como uma dança para a música do tempo, requerendo uma melo­
dia abarcante para salvá-la da cacofonia. Veja Progress and Religion 
[Progresso e Religião] , de 1 929, seu livro mais importante, no qual 
escreve sobre tais coisas como: "A nação como uma unidade espi­
ritual [ . . . ] unidades [como ideias] culturais ditadas por condições 
materiais " ; "crença religiosa, uma fonte de desunião" após René 
Descartes ( 1 596- 1 650) ; "a unidade da cultura europeia restabelecida 
sobre a base da ciência internacional" no século XVIII; "necessidade 
25 Idem, Religion and Culture. London, Sheed and Ward, 1 948, p. 4 1 . 
26 Citado em Christina Scott, A Historian and His World, p. 15 . 
2 7 Christopher Dawson, The Sword of the Spirit, p. 4 . 
54 l 55 
de unificação social e moral" na Europa contemporânea; " desunião 
intelectual e espiritual " desde a Reforma; "divórcio entre a religião e 
a vida social, fatal para a civilização" ; " Cristandade e unidade inter­
nacional" . Impossível não perceber o tema e suas variações. 
Por que a preocupação com a unidade ? Ela representava uma 
busca pelo princípio da integração. Sociedade e civilizações formam 
um todo integral: fazê-lo é de sua natureza. A história, também, deve 
ser coerente; de outra forma, o providencialismo é absurdo. E assim, 
um unificador (e unidades relacionadas ) deve ser encontrado. Quatro 
"unidades" preocupavam Dawson especialmente: aquelas da socie­
dade, da cultura, da Europa, e da civilização. Cada uma delas era 
importante. Juntas, formavam uma quinta unidade: a própria his­
tória. Como um esquema, isso possuía algo da confiança da grande 
corrente do Ser, aquela visão de mundo elisabetana onde cada objeto, 
do menor ao maior, encontrava o seu lugar. O esboço de Dawson era 
menos grandioso, mas igualmente confiante. Mas qual era o princípio 
unificador ? Dawson acreditava que a religião o supria : 
Todas as culturas vivas precisam possuir alguma dinâmica espiritual 
que forneça a energia necessária para aquele esforço social sustentado 
que é a civilização . Normalmente essa dinâmica é fornecida por uma 
religião, mas em circunstâncias excepcionais o impulso religioso pode 
se disfarçar em formas filosóficas ou políticas.28 
Epigramático, erudito e sereno, o insight era típico. Ele provinha 
de três fontes - conhecimento da religião do mundo, uma habilidade 
de antropólogo para categorizar tipos e formas, e o reconhecimento 
da insuficiência de explicações não religiosas para o processo histó­
rico. Considere essas fontes por um instante. A erudição era extraor­
dinariamente ampla. Dawson estava à vontade, junto de Juliano, o 
Apóstata ( 3 3 1 -363 ) e de Santa Juliana de Norwich ( 1 342- 142 1 ) , com 
o evangelho de São Marcos e com o "evangelho" de Karl Marx. Ele 
28 Idem, Progress and Religion, p. viii (p. 48 ] . 
A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Ed ição Brasi le ira 
podia ir dos xamãs da Sibéria aos índios Pueblo do Arizona, de Ísis e 
Osíris a Confúcio (55 1 -479 a .C . ) e Lao-Tsé. Há uma qualidade po­
límata em sua obra, que delicia tanto quanto desconcerta . Quanto à 
antropologia, ela era também abalizada. Dawson escreveu sobre to­
tens e totemismo, sobre cultos e culturas, sobre civilizações elevadas 
e inferiores, sobre religiões verdadeiras e falsas, com grande esmero. 
Certamente, ele percebia que as deficiências teóricas da antropologia, 
particularmente seu darwinismo acrítico e sua indiferença aos pro­
cessos efetivos de mudança histórica. Citando Maitland, ele pensava 
que "mais cedo ou mais tarde a antropologia teria que optar entre ser 
história ou não ser nada " . 29 Mas seus insights sobre a cultura primi­
tiva muito deviam à antropologia. E ela tinha outra utilidade. Ele via 
como a antropologia "debilitava suposições do Iluminismo de uma 
maneira importante - crenças 'primitivas' não podiam meramente ser 
descartadas como absurdas e irracionais, mas mostrou-se que possuí­
am um sentido profundo dentro de suas culturas particulares" . 30 
Os críticos de Dawson chamavam-no de antirrelativista e até anti­
-histórico:3 1 considerando essas evidências, vê-se que não é o caso. 
A religião primitiva era uma censura importante àqueles que nega­
vam a espiritualidade do homem. Apesar de toda a sua "obscuri­
dade e aparente falta de lógica " ,32 possuía profundidade e riqueza 
psicológica, enquanto o racionalismo oferecia somente arrogância e 
29 Ibidem, p. 50 [p. 1 02] . 
3 0 James Hitchcock, " Christopher Dawson: A Reappraisal " , p. 1 12 . 
3 1 Veja, por exemplo, Hayden White, "Religion, Culture and Western 
Civilization in Christopher Dawson" . English Miscellany, vol . 9, 1 958, 
p. 247-87. [O texto se encontra disponível, também, na seguinte coletânea de 
escritos do historiador norte-americano Hayden White, "Religion, Culture and 
Western Civilization in Christopher Dawson" . ln: The Fiction of Narrative: 
Essays on History, Literature, and Theory, 1 957-2007. Ed. e intr. Robert Doran. 
Baltimore, Johns Hopkins University Press, 2010, p. 23-49. (N. E.) ] 
32 John J. Mulloy, " Christopher Dawson and a Christian Apologetic" . The 
Dawson Newsletter, outono, 1 987, p. 3 . 
56 l 57 
superficialidade: " Quanto mais alto [o racionalista) ergue sua torre de 
civilização, mais instável ela se torna, pois a natureza dele permanece 
essencialmente a mesma do homem primitivo" . 33Terei mais a dizer sobre o Iluminismo daqui a pouco. Retorne­
mos ao tema da unidade, particularmente a das sociedades humanas. 
Dawson sentia, fortemente, que a estabilidade de qualquer organiza­
ção humana derivava de sua identidade orgânica . Era um ser vivo. 
Possuía ritmo e sazonalidade. Crescia devagar. Respeitava as limita­
ções das geografias humana e física. Veja esta passagem de Progress 
and Religion, na qual Dawson examina a capacidade das cidades 
para perder contato econômico e vital com suas regiões: 
É esse processo de degeneração urbana que se constitui uma das maio­
res fontes de fraqueza da nossa moderna cultura europeia. Nossa ci­
vilização está se tornando disforme e moribumda porque perdeu suas 
raízes e não possui mais ritmo vital e equilíbrio. [ . . . ] Assim como uma 
civilização mecânica e industrial buscará eliminar todo desperdício dos 
movimentos no trabalho, de forma a tornar o operador o complemen­
to perfeito de sua máquina, uma civi lização vital fará que todas as fun­
ções e todos os atos percam sua graça vital e sua beleza. ( . . . ] Por que 
um corretor de bolsa é menos bonito do que um guerreiro homérico ou 
um sacerdote egípcio? Porque e le está menos incorporado à vida; ele 
não é inevitável, mas acidental, quase parasita. Quando uma cultura 
conhece suas reais necessidades e organiza suas funções vitais, todos 
os ofícios ficam bonitos. 34 
Muito de Dawson está aqui: amplitude, senso estético, um óbvio 
antimodernismo, paixão moral. "A perfeição de uma cultura" , defen­
deu, é "medida por sua correspondência com seu ambiente" . 35 Era 
por isto, aliás, que a vida industrial urbana parecia tão falsa . " Sem 
33 Christopher Dawson, Religion and Culture, p. 28 . Citado, também, em 
John j. Mulloy, "Christopher Dawson and a Christian Apologetic'' , p. 3 . 
3 4 Christopher Dawson, Progress and Religion, p . 68 [p. 1 1 6- 1 7] . 
3 5 Ibidem, p . x [p. 5 1 ] . 
A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Ed ição Brasi le i ra 
dúvida, o artesão medieval não possuía um alto padrão de vida" , 
escreveu Dawson, "mas ao menos compartilhava da vida orgânica da 
cidade. O abismo entre sua existência e aquela vivida pelo mineiro e 
pelo operário de tecelagem do final do século XVIII é quase tão pro­
fundo quanto aquele que separa a civilização da barbárie" .36 
Isto era unidade no nível simples de uma cultura à vontade consigo 
mesma. Mas a unidade também tinha relação com continuidade e me­
mória coletiva, a história compartilhada e consciente de unidade espiri­
tual pela qual as grandes civilizações são conhecidas. A Europa exibia 
tal unidade, e Dawson devotou muitos de seus escritos a esse exame. 
Entender a Europa foi, de fato, a sua realização mais significativa . Mas 
o que era a Europa ? Mais, é certo, do que uma expressão geográfica: 
A Europa é uma comunidade de povos que compartilham de uma tra­
dição espiritual comum, que teve suas origens 3 mil anos atrás, no 
leste do Mediterrâneo, e que foi transmitida de época em época e de 
povo para povo até chegar a abarcar o mundo [ . . . ) O que chamamos 
" Europa " no sentido cultural é, na verdade, somente uma fase deste 
desenvolvimento cultural. 37 
A Europa de Dawson era uma sociedade de povos regionalmente 
diversos, geograficamente misturados e historicamente variados. Mas 
não havia nada de frágil nessa diversidade, nem qualquer unidade 
meramente hipotética, encontrada numa variedade compartilhada. 
A unidade era algo substancial . Sua base era a igreja cristã . Não é 
trivialmente que se diz que a Igreja era a Europa e a Europa era a Igre­
ja . Aqui havia uma confraternidade, transcendendo divisões raciais e 
36 Idem, Dynamics o( World History. Ed. John J. Mulloy. New York, Sheed 
and Ward, 1 957, p. 1 92. [A passagem da versão original em português do ar­
tigo publicado em COMM UNIO foi substituída por equivalente da tradução 
brasileira da obra, lançada posteriormente na seguinte edição: Christopher 
Dawson, Dinâmicas da História do Mundo. Ed., pref. , intr. e posf. John J. 
Mulloy; intr. Dermot Quinn; pref. e trad. Maurício G. Righi. São Paulo, 
É Realizações, 2010, p. 292. (N. T. ) ] 
37 Idem, Understanding Europe, p. 32. 
58 l 59 
políticas, oferecendo, mesmo em seu declínio, a memória da unida­
de, a lembrança de uma cidadania comum. "O que fizemos com esta 
herança ? " , Dawson costumava perguntar. "Ao menos nós a tivemos. 
Ela tem sido parte de nossa carne e sangue, e das palavras de nossa 
própria língua " . 38 Este plangente anseio que os críticos ouviram em 
Dawson pode ser ouvido aqui, porém não como nostalgia, mas como 
um chamado à ação. Enquanto escrevia, ele viu ameaças à unidade 
europeia sob as formas da guerra, do totalitarismo e do materialismo. 
A redescoberta da identidade espiritual da Europa não era devaneio 
histórico, mas uma questão de urgente necessidade. 
O historiador galês prestou os reconhecimentos devidos às raízes 
gregas da Europa . Sem o platonismo e suas elaborações, a "Euro­
pa " como um ideal teria sido impossível. Mas, acima de tudo, foi 
o cristianismo que mudou a Europa, transformando um helenismo 
filosoficamente finito em uma cultura com extraordinários poderes de 
adaptação, expansão, autoconhecimento e capacidade para o infinito. 
A Encarnação foi tudo. A Revelação foi Revolução. Tanto o Orien­
te quanto o Ocidente foram transformados por esta . O estilo de tal 
transformação diferia em cada lugar. Sob a influência do neoplatonis­
mo, no Oriente a Encarnação foi reespiritualizada, fazendo a divin­
dade perder a carne que brevemente assumira. Influenciado por Santo 
Agostinho, no Ocidente a ordem espiritual se desenvolveu não como 
um princípio metafísico estático, mas como "uma força dinâmica mo­
ral e social" .39 Este insight agostiniano foi profundamente importante 
para a igreja cristã, e central para a compreensão que Dawson tinha 
do Ocidente. Através dele, a integridade do cristianismo como encar­
nacional foi preservada . Através dele, o mundo do Ser Finito podia ser 
compreendido, não como estático ou ilusório, mas como dinâmico e 
espiritualmente dirigido. Através dele, uma nova ordem social pôde se 
38 Idem, Religion and the Rise of Western Culture: Gifford Lectures, 1 948-
1 949. London, Sheed and Ward, 1 950, p. 273 . 
39 Idem, Progress and Religion, p. 1 64 [p. 202) . 
A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Edição Bras i le i ra 
erguer, baseada na " única cidadania verdadeira " , "a associação com a 
Igreja " .40 Santo Agostinho demonstrou, através de seu entendimento 
da Encarnação como um acontecimento no tempo e além do tempo, 
que Igreja e sacramento tornavam manifesto, na Terra, um mundo 
celeste do qual eram ao mesmo tempo antegozo e realização. 
Dawson acreditava que essa unidade espiritual chegara mais per­
to de ser atingida na Europa da Idade Média. O medievalismo tem 
uma importância tão grande em seus escritos - e na crítica deles - que 
é importante saber qual significado lhe dava. Talvez seja mais simples 
saber qual significado ele não lhe dava. Não era a perfeição, ou pa­
raíso na Terra, ou "algum padrão ideal [ . . . ] pelo qual as sociedades 
existentes possam ser julgadas '' ,41 ou mesmo especialmente agradá­
vel .42 Foi, no entanto, uma época na qual as implicações da unidade 
espiritual eram elaboradas e manifestadas na vida de uma socieda­
de. Na esfera secular, " um novo espírito democrático de irmandade 
e cooperação social começa a se sentir na Europa nessa época " , 43 
junto com um crescimento nas atividades comunais e corporativas. 
Na esfera eclesiástica, a igreja se tornou responsável pela educação, 
pela arte, pela literatura, pelo cuidado dos pobres, pelo consolo dos 
moribundos: não como obrigações institucionais, mas como deveres 
que os homens sentiam ter para com os outros. Naturalmente, um 
40 Ibidem, p. 166 [p. 203-04] . 
41 Idem, The Historie Reality of Christian Culture, p. 14. 
42 "A Europa medieval não possuía mais uma culturamaterial homogênea 
[ . . . ] . Era uma federação solta dos mais diversos tipos de raça e de cultura sob 
a hegemonia de uma tradição comum religiosa e eclesiástica. Isso explica as 
contradições e a desunião da cultura medieval - o contraste de sua crueldade 
e de sua caridade, de sua beleza e de sua sordidez, de sua vitalidade espiritual 
e de seu barbarismo material. Pois o elemento de uma cultura superior não 
surgiu naturalmente das tradições do organismo social em si, mas veio do 
exterior como um poder espiritual que teve que remoldar e transformar o 
material social no qual tentou se incorporar" ( Idem, Progress and Religion, 
p. 1 66 [p. 204] ) . 
4 3 Ibidem, p. 1 67 [p . 205 ) . 
60 l 6 1 
ideal tão dominante poderia degenerar em teocracia. Mas a espiritua­
lidade medieval alegremente acolheu o ideal da irmandade cristã: veja 
os escritos de São Bernardo de Claraval ( 1 090- 1 1 5 3 ) , a vida de São 
Francisco de Assis ( 1 1 8 1 - 1226 ) . A separação entre fé e vida, ou entre 
o espiritual e o material, era evitada, " já que os dois mundos [haviam) 
se fundido na realidade viva da experiência prática " . São Francisco 
de Assis fez daquela fusão agostiniana, realidade; Santo Tomás de 
Aquino ( 1 225-1 274 ) lhe deu autoridade filosófica. Foi o Aquinate 
quem reconheceu a autonomia da razão natural na epistemologia, na 
ética e na política, precisamente porque ele reconhecia as implicações 
encarnacionais daquela autonomia . Dawson resumiu os insights do 
Doutor Angélico com afinidade e de forma sucinta : 
O homem ocupa uma posição única no universo [ . . . ] . Ele é o ponto 
no qual o mundo dos espíritos toca o mundo do sentido, e é por meio 
dele e nele que a criação materia l chega à inteligibilidade e torna-se 
iluminada e espiritualizada. 
[ . . . ] Portanto, a Encarnação não destrói nem se sobrepõe à natureza . 
Ela é análoga e complementar a ela, uma vez que restaura e estende a 
função natural do homem como elo de união entre os mundos materia l 
e espiritual .44 
Este era o medievalismo que Dawson celebrava: uma época e 
um povo transformados pelo poder do Evangelho. Aqui, não havia 
um exercício em mera pietas, nenhum lamento por séculos perdidos. 
A importância daqueles séculos não "seria encontrada na ordem ex­
terna que eles criaram ou tentaram criar, mas na mudança interior 
que realizaram na alma do homem ocidental" . 45 O historiador galês 
amava o grande poema visionário de William Langland ( 1 332- 1 3 86 ) , 
Piers Plowman, achando-o "a última [ . . . ) e mais inflexível expres­
são do ideal medieval da unidade entre religião e cultura " . Perceba a 
44 Ibidem, p. 1 75 [p. 2 1 0] . 
• 5 Idem, Religion and the Rise of Western Culture, p. 274. 
A Formação da C ristandade 1 Introdução à Edição Bras i le ira 
conclusão; a cultura não era engolida pela religião, mas, sim, trans­
formada por ela; a religião não era engolida pela cultura, mas a trans­
formava e transcendia, de modo que a própria Encarnação começa a 
ser entendida na e pela cultura, e não separadamente dela : 
Para Langland, o outro mundo está sempre presente em cada rela­
cionamento humano, e a vida cotidiana de todos os homens é orga­
nicamente ligada à vida da Igreja . Desta forma, cada estágio de vida 
da cristandade é uma vida cristã em sentido pleno - uma extensão da 
vida de Cristo na Terra . E a ordem sobrenatural da graça está fundada 
e enraizada na ordem natural e na vida comum da humanidade [ . . . ] 
Ele percebeu, com mais clareza do que os poetas e mais intensamente 
do que os filósofos, que a religião não era um modo particular de vida, 
mas o caminho de toda a vida, e que o amor divino que é "o líder do 
povo do paraíso de Deus" é também a lei da vida sobre a Terra.46 
A eloquência de Langland é ricamente repercutida por seu expositor. 
Sugeri que há três fundamentos para a ênfase de Dawson na reli­
gião como a base da cultura. Até agora, examinamos dois: seu conhe­
cimento das religiões do mundo e sua habilidade em distinguir tipos e 
formas da crença religiosa ou semirreligiosa . Consideremos agora um 
terceiro: a insuficiência das explicações não religiosas dos processos 
históricos, especialmente aquelas propostas pelo pensamento ilumi­
nista e pós-iluminista . Dawson era um crítico excepcionalmente astuto 
do Iluminismo, primariamente porque as armas que empregava contra 
ele - um apelo à razão e à história - eram as do próprio Iluminismo. 
Sua objeção era a de que, como explicação do homem e de seu mundo, 
era não persuasiva, e que suplantava uma outra muito mais persua­
siva . Não seria difícil, na verdade, ver a " idade da razão" como uma 
época de múltiplas descontinuidades intelectuais. Vejamos algumas 
delas. Primeiro, veio o divórcio entre mente e corpo promovido por 
René Descartes, que acarretou uma celebração da razão independente 
da existência física, e da verdade como independente da experiência 
46 Ibidem, p. 270-72. 
62 l 63 
ou da autoridade.47 Então, veio o divórcio entre indivíduo e "socie­
dade" , promovido pela teoria do contrato social, que substituiu as 
comunidades por Estados autoconscientes e criou pessoas reverentes 
por direitos, apenas, quando percebiam que os possuíam. E assim con­
tinuou. Thomas Hobbes ( 1 588-1 679) convocou o onipotente Estado 
para proteger "direitos" , e a proteção foi tão completa que os próprios 
direitos desapareceram. John Locke ( 1 632- 1 704) separou a pessoa do 
corpo, e a separação foi tão eficaz que o indivíduo se "possuiu" como 
a uma propriedade, presumivelmente diminuindo em pessoalidade, 
quando sofre amputações, perde um dente ou fica careca. Jean-Jacques 
Rousseau ( 1 712-1 778 ) separou a humanidade dos seres humanos, e o 
cisma foi tão amplo que a primeira veio a ser adorada, e os últimos, 
desprezados. Havia algo de radicalmente cindido em tudo isso, como 
se uma cultura ou uma maneira de pensar tivessem perdido a conexão 
com sua própria fonte. Dawson capturou brilhantemente este fenôme­
no. "O ideal abstrato de 'civilização"' , ele sugeriu, "tomou o lugar da 
tradição histórica da cultura europeia" [ . . . ] . Os "conceitos de razão, 
verdade e civilização" foram usados "como armas para atacar todas 
as verdades e para enfraquecer as fundações sobre as quais a [ . . . ] es­
trutura da cultura europeia se baseava" . 48 
A divisão entre a Europa antes e depois do Iluminismo pode ser 
exagerada, mas um contraste revela a diferença. Considere o tomismo 
e o cartesianismo. O primeiro oferecia a divindade na contemplação 
de si mesma. O segundo oferecia a mente na contemplação de nada 
além de si mesma: uma decadência assustadora. Dawson sustentava, 
e com bons motivos, que existia somente uma pequena distância entre 
Descartes e a adoração irracional da racionalidade49 de Maximilien 
Robespierre ( 1 758-1 794) e o otimismo sombrio de Charles Darwin 
47 Idem, Progress and Religion, p. 10 [p. 67-68 ] . 
4 8 Idem, Understanding Europe, p. 1 92. 
49 Arnold Toynbee, " lntroduction" . ln : Christopher Dawson, The Gods of 
Revolution, p. x. 
A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Ed ição Brasi le ira 
( 1 809- 1 882 ) . Veja esta passagem memorável, na qual mostrou como 
o confiante ideal da perfectibilidade encontrava o seu quietus [quita­
ção] na seleção natural: 
Mesmo quando eram materialistas, os filósofos do século XVIII coloca­
vam o homem em uma categoria acima e distinta do resto da natureza, 
e hipostasiavam a razão humana em um princípio de desenvolvimento 
mundial. Mas a nova teoria evolucionista colocava o homem de volta 
à natureza e debitava seu desenvolvimento a uma operação mecânica 
das mesmas forças cegas que governavam o mundo material. [ . . . ] 
[ . . . ] Era uma lei do Progresso, porém a de um progresso cego e não 
ético, em que o sofrimento e a morte desempenhavam um papel maior 
do que a antevisão ou a cooperação. [ . . . ] 
[ . . . ] Assim, a razão cartesiana, que tinha entrado tão triunfalmente em 
suamissão de explicar para si a natureza e o homem por seu próprio 
poder desassistido, terminou em um tipo de suicídio racional tendo 
que se justificar.50 
Uma frase chocante; e versátil também. O " suicídio racional" 
do cartesianismo não terminou com a Revolução Francesa ou com o 
darwinismo, mas se metastizou em novas formas que buscavam tor­
nar desnecessária a religião ou substituí-la por ideologias semirreli­
giosas . Uma delas foi o nacionalismo. Outra o liberalismo. Ambas 
eram perigosas. Quanto à primeira, Dawson viu como poderia ter­
minar num particularismo "mais dissolvente [da] tradição europeia 
do que a própria Revolução Francesa " .5 1 Quanto à segunda, pro­
duziu, em sua versão econômica, extremos de vileza e riqueza; em 
sua forma política, um incoerente erastianismo,52 que substituía o 
Estado confessional por um anticonfessional, oferecendo apenas a 
5° Christopher Dawson, Progress and Religion, p. 1 8 , 22 [p. 74, 75, 77] . 
51 Idem, Understanding Europe, p. 1 93 . 
5 2 Referência à doutrina concebida pelo teólogo protestante e médico suí­
ço Thomas Lüber ( 1 524- 1583 ) , mais conhecido como Erastus. De acordo 
com Thomas Erastus, o Estado tem ascendência sobre a Igreja em assuntos 
eclesiásticos, o que justifica o controle governamental sobre a religião. (N. E. ) 
64 l 65 
moral convencional, porque a própria convenção havia se tornado 
o código moral. Dawson escreveu a crônica dessas patologias com 
a sombria inteligência de um homem que vê um acidente prestes a 
acontecer. Na medida em que abordava o seu próprio século, podia 
ver o impulso secular, a autoimolação secularista, galopar rumo à 
insanidade. No totalitarismo, atingiram o seu apogeu, quando os 
EStados tentaram "erradicar as raízes mesmas da liberdade espiri­
tual do homem e fazer da sociedade um mecanismo de funciona­
mento azeitado, planejado e controlado por 'especialistas' em nome 
da eficiência social " . 53 A alternativa liberal era pouco melhor. "Nós 
podemos ou permanecer na casa provisória da democracia liberal " , 
Dawson advertiu, " buscando desesperadamente manter o s mais ele­
vados padrões de vida econômica, que são a j ustificação principal 
da nossa cultura secularizada; ou podemos retornar à tradição so­
bre a qual a Europa foi fundada e nos dedicar à imensa tarefa de 
restaurar a cultura cristã " .54 Esta foi a sua recomendação final para 
o seu próprio mundo e para o nosso. 
Esta exposição da compreensão histórica de Dawson foi breve 
e talvez pobre também. Deveria nos incitar, porém, algumas refle­
xões mais amplas, tanto sobre sua visão da história quanto sobre a 
empreitada histórica católica em geral . Essencial a esta visão - algo 
já deve estar óbvio - era a religião: "o poder maciço, objetivo, não 
questionado, que entrou em tudo" e imprimiu sua marca em todas as 
coisas. Ora, isto é controverso, e os críticos de Dawson não tardaram 
em dizê-lo. Que forma tomam as críticas, e que poder têm? Deve­
mos distinguir duas objeções: a primeira resiste a qualquer princípio 
histórico unificador; a segunda resiste ao princípio particular, a reli­
gião, que Dawson abraça. A distinção é importante, mas largamente 
53 Christopher Dawson, "Newman and the Sword of the Spirit" . ln: The 
Dawson Newsletter, primavera / verão, 1 9 9 1 , p. 1 3 . 
5 4 Christopher Dawson, The Movement of World Revolution. London, Sheed 
and Ward, 1 959, p. 65 . 
A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Ed ição B rasi le ira 
ignorada pelos próprios críticos . Assim, se eles caem na primeira ca­
tegoria, tendem a renegar a meta-história, mas se traem numa auto­
contradição, o próprio argumento sendo meta-histórico; ou (caso se 
enquadrem na segunda ) negam a religião apenas para substituí-la 
por alguma criptorreligião de seu próprio cunho, mais comumente o 
humanismo secular. 
No entanto, examinemos essas críticas gêmeas mais de perto. 
Vej amos de novo o princípio unificador de Dawson. Todas as cul­
turas vivas precisam possuir alguma dinâmica espiritual, afirma, 
normalmente suprida por uma religião. Em circunstâncias excepcio­
nais, no entanto, o impulso religioso pode se disfarçar sob formas 
filosóficas ou políticas. Pode haver dois tipos de circularidade aqui. 
De um lado, se Dawson está de fato embebido na história da reli­
gião, pode ser o caso que ele exagere a sua importância para a his­
tória; tudo visto por daquele prisma é, por ele, distorcido. Por outro 
lado, isso parece habilitá-lo a afirmar que certas ideologias, talvez, 
sej am religiões bastardas (e abertas a críticas como tais ) , enquanto 
ao mesmo tempo preserva a religião propriamente dita da acusação 
de ser uma ideologia bastarda . Essas dificuldades não são triviais: 
não são, porém, intransponíveis . 
A primeira se responde a si mesma . Que a especialização sej a 
prova de uma compreensão desproporcionada é uma ideia estranha 
e, na verdade, uma ideia circular. Dawson enfatizou a importância 
da religião, na história, não porque estava imerso nela: ele estava 
imerso nela porque era importante . A segunda crítica, entretanto, 
pede um exame mais cuidadoso. Talvez sua versão mais sofistica­
da tenha sido oferecida em 1 95 8 pelo historiador norte-americano 
Hayden White . A partir de cinco bases, White contestou todo o pro­
jeto de Dawson. Primeiramente, o historiador norte-americano afir­
mou que Dawson estava indisposto a admitir que a dialética históri­
ca possa continuar para além do ponto alcançado pelo cristianismo 
num dado estágio do seu desenvolvimento. Como numa primeira 
66 l 67 
versão de Francis Fukuyama e de sua escola do " fim da história " , 
Dawson oferecia a Igreja católica medieval como a única portadora 
de tudo o que havia de genuinamente espiritual no Ocidente : de­
pois disso, a história "parou " ou entrou em declínio.55 Uma variante 
disso é o argumento de que a construção de tipos sociológicos de 
Dawson era falha. " Para ele " , argumenta White, " uma civilização 
pode ser considerada sadia apenas se e quando se conforma a um 
tipo que existiu num dado tempo e num dado espaço [ . . . ] Aquelas 
que não desenvolveram [ . . . ] uma casta sacerdotal, ele as chama pri­
mitivas; aquelas que rejeitaram a sua, as chama de decadentes" .56 
A segunda objeção de White é a de que "a sociologia da cultura 
de Dawson não o é de forma alguma, mas, sim, uma sociologia da 
religião " .57 A terceira é a de que o esquema de Dawson (precisamen­
te, ao que parece, por ser esquemático) fracassa em " fazer j ustiça 
à multiplicidade da criatividade humana " . 58 A quarta objeção é a 
de que Dawson nega qualquer valor positivo à cultura secular. Por 
fim, argumenta que Dawson é, de fato, anti-histórico, defendendo 
como defende que alguns " insights sobre a cena histórica requerem 
formas especiais de entendimento" ,59 pelo que ele queria dizer, sim­
plesmente, que apenas os católicos podiam entender o verdadeiro 
significado da história europeia. 
O que concluir disso ? Parece uma avaliação sóbria, escrupulosa 
tanto no método quanto nas razões. Na verdade, muito dela está erra­
do, e chega ao ponto do desatino. Parte dessa avaliação, certamente, 
não deve ser levada muito a sério. Sugerir que a sociologia da cultura 
de Dawson nada mais é do que uma sociologia da religião parece 
55 Hayden White, "Religion, Culture and Western Civilization in Christopher 
Dawson'' , p. 277. 
56 Ibidem, p. 278. 
57 Ibidem, p. 278. 
58 Ibidem, p. 2 8 1 . 
5 9 Ibidem, p . 285. 
A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Edição Brasi le i ra 
ser uma interpretação totalmente errada. O mesmo acontece com o 
argumento de que Dawson fracassa em reconhecer a multiplicidade 
da criatividade humana ou - no fim das contas é a mesma coisa - ten­
de a depreciar a cultura secular. Um passar de olhos sobre Progress 
and Religion, talvez, sugira o contrário. Fundir um esquema histórico 
unificado com a múltipla diversidade da história é um erro de cate­
gorização que Dawson não cometeu, e no qual o próprioWhite caiu. 
Igualmente curiosa é a alegação de que Dawson " fetichizou" o me­
dievalismo, como se sua obra fosse um longo lamento por um Éden 
perdido. Mas Cristo foi o Senhor de toda história. Se história e cul­
tura são, de fato, encarnacionais, então aquele tipo de anseio é uma 
espécie de desespero. Afinal, a nostalgia é apenas um maniqueísmo 
choroso. Seu desejo por um mundo perdido é um desprezo pelas coi­
sas do mundo, uma aversão ao contemporâneo, porque uma aversão 
à própria temporalidade. O Cristo que entrou na história, entrou em 
toda ela. "Nós vemos de novo" , escreveu Dawson, "o milagre da cria­
tividade divina e uma nova colheita espiritual surgindo do velho solo 
da natureza humana" .60 Ele não era um nostálgico. Condenava o cul­
to do progresso como uma perversão da perfectibilidade iluminista, 
porque o via como é na verdade: maniqueísmo sob outro disfarce -
desgosto pelo aqui e agora, exprimido como um desejo pelo futuro 
em vez de pelo passado. Dawson não desejava o passado por des­
prezar o presente. Imaginar que ele o encarava como um museu que 
habitamos como forma de fuga do mundo é entender mal a noção 
que Dawson tinha da história . 
Mas White cai no desatino, e não só no erro. A pose de neutra­
lidade acadêmica esconde um desacordo altamente partidário com a 
obra de Dawson, particularmente pelo seu catolicismo. "É muito di­
fícil para qualquer pessoa que não sej a católica " , White cita Dawson 
argumentando, "entender o significado pleno da" história europeia, 
6° Christopher Dawson, The Historie Reality of Christian Culture, p. 14. 
68 l 69 
significado pleno, envolvendo uma verdade que requer, não uma ha­
bilidade humana ou histórica, mas uma revelação epistemológica es­
pecial . A lógica é fraca. "Muito difícil " não é o mesmo que " impossí­
vel " : pelo contrário, implica possibilidade. Além disso, é claro que é 
White, e não Dawson, quem exige privilégios epistemológicos. Veja a 
pejoração, uma paródia do cientificismo secular: 
Se sociedades antigas pareciam melhor aj ustadas ou mais harmo­
niosas, era porque a Igreja e os Estados agiam conj untamente para 
destruir a responsabilidade individual, em vez de de encorajá- la . 
Para o bem ou para o mal, a ciência moderna rompeu com essas 
antigas coerções e ofereceu ao homem a responsabilidade por tudo 
o que ele faz. A religião deve oferecer, como a ciência, a filosofia, 
uma verdade que admite a possibilidade de revisão. [Então] , não 
terá necessidade de sedativos . 6 1 
Mas isso é incoerente . A própria história é absolutizada, ganha 
uma autoridade que não pode possuir. O julgamento histórico é vis­
to como de algum modo autoafirmativo, dispensando outros argu­
mentos ou provas. Da mesma forma que a moralidade convencional 
fracassa - porque a própria convenção se torna o código moral -, 
também a compreensão histórica informada apelar por uma "his­
tória" absolutizada não é compreensão de maneira alguma. Para 
adotar a terminologia do próprio crítico, torna-se uma verdade que 
não admite possibilidade de revisão, uma espécie de historicismo 
se abrindo para um quarto vazio. Cria o passado como sanção ou 
norma, mas não fornece nenhum fundamento além de si mesmo 
para fazê-lo. O historicista que defende a invencível "preteridade " 
do passado torna insignificante qualquer j ulgamento - mesmo aque­
le julgamento que se dá ao trabalho de fazer sobre o passado mes­
mo. Se o passado é um país estrangeiro, se eles, realmente, fazem as 
6 1 Hayden White, "Religion, Culture and Western Civilization in Christopher 
Dawson", p. 283. 
A Formação da C ristandade 1 Introdução à Edição Brasi le i ra 
coisas de modo diferente por lá,62 o historiador não pode saber ou 
mesmo saber que não pode saber. 
A segunda acusação de circularidade assim fracassa da mesma 
forma que a primeira . Dawson não inventa a religião como chave dos 
processos históricos, e então descobre a religião bastarda - a ideo­
logia - como prova da alegação anterior. Pelo contrário, ele é cuida­
doso na definição de ambas, e nas evidências que delas oferece; mais 
cuidadoso do que seus críticos. Além disso, a noção de Dawson sobre 
a religião na História é mais sutil do que a deles. Não é o "elemento 
que tudo explica" de alguma teleologia determinista - servindo a fun­
ção para o religioso que a economia (digamos) serve para o marxista 
ou a libido para o freudiano. Se a história é encarnacional, então é 
carregada de religião de um modo inteiramente diferente; e noções 
de passado, presente e futuro são obliteradas na realidade central de 
Cristo, alfa e ômega, que é Senhor de toda a História . 
E então nos aproximamos do cerne da questão. Dawson gostava 
de citar o estadista e escritor irlandês Edmund Burke ( 1729-1797) so­
bre a vacuidade do historicismo. "Burke escreveu com muita verdade 
e fineza", disse, "que as assim chamadas leis da história, que tentam 
subordinar o futuro a alguma espécie de determinismo histórico, são 
apenas as combinações da mente humana. Sempre resta um elemento 
irredutível de mistério". 63 O argumento é sólido. Na medida em que 
os sistemas se expandem, paradoxalmente se contraem: a tentativa 
62 Referência à sentença "The past is a foreign country: they do things differently 
there" [O passado é um país estrangeiro: eles fazem as coisas de modo di­
ferente por lá} . Esta é a famosa frase inicial do romance The Go-Between 
[O Mensageiro] do escritor britânico Leslie Poles Hartley ( 1 895-1 972), publi­
cado, originalmente, em 1 953. O livro foi adaptado por Harold Pinter ( 1 930-
2008) como roteiro do premiado filme homônimo, lançado em 1 971 , com 
direção de Joseph Losey ( 1 909-1 984) e estrelado, dentre outros, pelos atores 
Julie Christie, Edward Fox, Alan Bates ( 1 934-2003 ), Margaret Leighton ( 1 922-
1 976 ) e Michael Redgrave ( 1 908- 1 985) . (N. E.) 
63 Christopher Dawson, The Historie Reality of Christian Culture, p. 1 8 . 
70 l 7 1 
de explicar tudo termina por não explicar nada. Mas onde isso dei­
xa o próprio Dawson? Não se pode objetar à sua própria busca por 
um princípio unificador? Não inteiramente. O elemento irredutível 
de mistério que zombava das pretensões dos deterministas - e que, 
também, se tornou um perigoso gnosticismo para os antideterminis­
tas - tornou-se para ele uma espécie de epifania: "Para o cristão, o 
mistério da história não é totalmente obscuro, já que é um véu que 
esconde, apenas parcialmente, a atividade criativa das forças espiri­
tuais e a operação das leis espirituais".64 
Hans Urs von Balthasar oferece um insight semelhante, ao defen­
der que qualquer tentativa de interpretar a história como um todo, 
para não sucumbir ao mito gnóstico, deve "designar como núcleo e 
norma de toda historicidade" algum sujeito que trabalha em e se reve­
la capaz de prover normas gerais. Tanto para o teólogo suíço quanto 
para o historiador galês, aquele sujeito é Cristo, cuja vida "se faz nor­
ma de toda vida histórica e, com isso, de toda a história em geral " . 65 
Assim, começamos a entender mais completamente a visão de 
Dawson. Era formada por aquele sentimento agostiniano do passado, não 
morto, mas incorporado no todo da humanidade. Num certo nível, parece 
um clamor pela meta-história, um simples reconhecimento de que o histo­
riador católico necessariamente faz as coisas de um modo diferente: 
Enquanto o historiador secular não está comprometido, de forma algu­
ma, com as culturas do passado, o católico, e de fato todo cristão, está 
obrigado a reconhecer a existência de um elemento supratemporal trans­
cendente que age na história. A Igreja existe na história, mas a transcende 
de modo que cada uma de suas manifestações temporais possui um valor 
e um significado sobrenaturais. Para o católico, todas as eras sucessivas 
da Igreja e todas as formas da cultura cristã formam parte de uma unida­
de vivente, na qual ainda participamos como de uma realidade vivente.66 
64 Ibidem, p. 1 8 . 
65 Hans Urs von Balthasar, A Theologyof History, p. 2 1 [p. 24] . 
66 Christopher Dawson, The Historie Reality of Christian Culture, p. 58 . 
A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Edição Brasi le ira 
Mas há mais nesta transcendência do que se percebe à primeira 
vista . A noção de que a história não é completa, de que participamos 
dela e de que somos criativamente transformados por ela, é tão teoló­
gica quanto é histórica, embora não menos histórica por ser teológi­
ca. Como diz memoravelmente Balthasar, "os destinos de todos estão 
entrelaçados; até que haja vivido o último, não está claro definitiva­
mente qual foi o sentido do primeiro" .67 Para Dawson, também, a 
"comunhão dos santos" era efetiva, e não abstrata . E enquanto parti­
cipamos da história, participamos no Cristo que entrou na história e é 
senhor dela . Mas entenda bem o que isto significa. O Cristo histórico 
é a norma de toda história não simplesmente porque é Cristo, mas 
porque ele é histórico. A historicidade - o efetivo, o concreto, o par­
ticular - não é obliterada, mas ganha Nele um novo sentido, exposto 
por Balthasar com as seguintes palavras: 
Ao interpretar o sentido da história, nas duas direções, desde o cum­
primento, [o Cristo] realiza no meio da história um ato que abarca 
toda a história: enquanto que o éschaton (extremidade) da história 
está presente em seu centro, e desvela em um kairós (oportunidade) 
plenamente histórico o sentido de cada kairós.68 
Mas como Dawson nos lembra, " Deus não somente governa a 
história, Ele intervém na história como um agente " .69 Ele é Senhor 
da História, mas também senhor na história . Assim, Balthasar res­
salta que a " plenitude última de sentido da história em Cristo não 
pode se entender como se os seres naturais prescindissem de um 
eidos próprio imanente e só o possuíssem em Cristo" , pois de ou­
tro modo " não se poderia tampouco sustentar que Deus se tivesse 
tornado verdadeiramente homem e história " . 70 A lógica da história 
67 Hans Urs von Balthasar, A Theology of History, p. 73 [p. 60] . 
68 Ibidem, p. 86 [p. 67] . 
6 9 Christopher Dawson, The Sword of the Spirit, p. 4 . 
70 Hans Urs von Balthasar, A Theology of History, p. 1 12 [p. 84] . 
72 1 73 
não é suspendida pelo Cristo, mas reconhecida no ato mesmo de 
Ele, por intermédio da Encarnação, tornar-se histórico. 
Assim terminamos, como começamos, num paradoxo. Mas alguns 
paradoxos são mais valiosos do que outros. Os enigmas de Christo­
pher Dawson são, apenas, os enigmas de qualquer vida razoavelmente 
complexa. Rusticidade e urbanidade, companheirismo e solidão, conti­
nuidade e mudança, na verdade, formam um todo perfeitamente bom. 
Dawson, o historiador, oferece desafios mais impressionantes - ao inte­
lecto, à imaginação, e mesmo à alma. A medida de suas realizações não 
deve ser procurada no peso de seus livros ou artigos, bem como em sua 
erudição, por mais formidáveis e duradouramente importantes que se­
jam. Deve, ao invés, ser encontrada numa escala de tipo diferente. O his­
toriador galês propôs um paradoxo real, e não trivial, e o explorou com 
habilidade consumada: que para uma fé histórica o passado é tudo, mas, 
noutro sentido, não existe de forma alguma, estando ligado ao presente 
e ao futuro, no mundo que é e no que está por ser. Suas leis são humanas, 
mas também divinamente inspiradas; seu sentido acessível à razão, mas 
também irredutivelmente misterioso. Tal era a visão e a fé de Christopher 
Dawson: tal deve ser a visão de todos os historiadores católicos. 
Dermot Quinn 
Professor e diretor do Departamento de História da Seton Hall University, em 
South Orange, New Jersey, nos EUA; diretor do G. K. Chesterton Institute for Faith 
and Culture e membro do Conselho Editorial do periódico The Chesterton Review. 
Cursou B.A. em História no Trinity College, na University of Dublin, na Irlanda, e o 
PhD em Filosofia na University of Oxford, na Inglaterra. Tem escrito diversos artigos 
sobre o pensamento social de G. K. Chesterton e de Christopher Dawson para diferen­
tes periódicos. É autor dos livros Patronage and Piety: Eng/ish Roman Catholics and 
Politics, 1 850- 1 900 (Stanford University Press, 1 993 ), Understanding Northern Ire­
land (Baseline Books, 1 993) e The Irish in New Jersey: Four Centuries of American Life 
(Rutgers University Press, 2004) . Escreveu o estudo introdutório para a nova edição 
do livro Dynamics of World History ( ISI Books, 2002) de Christopher Dawson, obra 
lançada no Brasil com o título Dinâmicas da História do Mundo (É Realizações, 2010) . 
1 7 5 
N o t a s o b r e a Tra d u ç ã o 
MÁRCIA XAVIER DE BRITO 
Christopher Dawson foi um dos últimos grandes intelectuais ge­
neralistas. Dono de uma erudição impressionante, fruto de uma vida 
dedicada aos estudos, debruçou-se sobre a história da cultura e da 
civilização ocidental sem as restrições limitantes da vida acadêmica 
profissional. Poder oferecer ao leitor de língua portuguesa mais uma 
obra-prima desse grande historiador é uma honra para qualquer tra­
dutor, mas a missão ganha sabor especial caso o tradutor sej a um 
apaixonado pela história, como no meu caso. 
O presente livro, fruto de conferências na Universidade de 
Harvard, por ser uma coletânea de palestras ministradas em datas di­
ferentes e tomadas como unidades autônomas, nem sempre apresen­
ta, em todos os textos, a mesma precisão na grafia de nomes, locais e 
na referência às fontes das citações. Até onde foi possível, na presente 
tradução procurei preencher essa lacuna para o leitor. 
Ao lidar com as inúmeras personagens históricas que surgem 
ao longo do texto, deparei-me com alguns desafios . Muitas vezes, 
este era, simplesmente, saber de quem se tratava visto a grafia an­
glicizada do nome, por ter a personalidade diversos homônimos 
( alguns contemporâneos ) , ou por erro de grafia (o que ocorreu por­
que muitos dos textos foram ditados, posteriormente, por Dawson 
com base nas notas das palestras, pois já estava doente ao preparar 
o presente livro ) . Nesta tradução, tomei como padrão grafar as 
personagens citadas, sempre que aparecem pela primeira vez, pelos 
A Formação da C ristandade 1 Nota sobre a Tradução 
nomes completos e da maneira como, em geral, são conhecidas nas 
obras históricas no Brasil . Também tomei o cuidado de, nessa pri­
meira citação, fazer constar, entre parênteses, as respectivas datas 
de nascimento e morte das figuras históricas, uniformizando todos 
os capítulos do livro e facilitando a compreensão cronológica dos 
acontecimentos. 
Graças ao advento da internet e ao privilégio de ter podido rea­
lizar este trabalho na biblioteca do Russell Kirk Center for Cultural 
Renewal, em Mecosta, Michigan, nos EUA, tive a possibilidade de re­
tornar a algumas das fontes de Dawson. Por isso, várias citações que 
no original em inglês aparecem sem referência, ganharam indicação 
bibliográfica ao longo do presente texto. Algumas citações parafra­
seadas por Dawson por motivo de oralidade, visto que inseridas em 
palestras, foram restauradas à literalidade das fontes, o que confe­
riu maior precisão acadêmica ao texto. Nesse trabalho de pesquisa, 
pude acrescentar, quando necessário, observações sobre descobertas 
históricas e arqueológicas mais recentes, atualizando os dados ou 
confirmando suspeitas de Dawson, além de indicar, quando existente, 
as obras disponíveis em português, todas devidamente identificadas 
com (N. T. ) . Nas citações bíblicas, utilizei como referência a Bíblia de 
Jerusalém ( São Paulo, Paulus, 1 995 ) . 
Assim como nos nomes, o problema de erro de grafia também 
surge nas passagens em que Dawson cita alguma língua estrangeira, 
como os trechos em latim, francês e italiano. Neste particular, agra­
deço ao amigo e mestre Carlos Nougué por elaborar as traduções do 
latim, corrigir o meu francês, bem como pela "supervisão" nas tradu­
ções poéticas. Igualmente agradeço ao meu brilhante afilhado, Vitor 
Pimentel Pereira, pela tradução "emergencial" de um trecho legisla­tivo em latim e ao amigo Fábio Wagner por ter esclarecido algumas 
dúvidas sobre o cristianismo oriental . Pela paciente leitura técnica da 
tradução e por ter colaborado, com sua vasta erudição, na solução de 
dúvidas sobre alguns detalhes históricos, filosóficos e teológicos, bem 
76 l 77 
como pela ajuda na cuidadosa elaboração do índice remissivo, sou 
muitíssimo grata ao meu "companheiro de viagem" , Alex Catharino. 
Gostaria de agradecer, também, a Annette Kirk, presidente do 
Russell Kirk Center for Cultura Renewal pela oportunidade de pesqui­
sar na Biblioteca do Centro e pelo carinho de apresentar-me a diversos 
estudiosos de Dawson, com os quais pude manter contato durante 
a tradução, como o Prof. Dr. Bradley Birzer (autor de uma biografia 
de Dawson e do prefácio à edição brasileira de A Formação da Cris­
tandade) e o Prof. Dr. Joseph Stuart (autor de uma tese de doutorado 
sobre Dawson e da apresentação à edição brasileira de Progresso e 
Religião) , a quem sou muito grata pela elucidativa e longa conversa 
sobre Dawson, numa agradável noite em Piety Hill. 
Não poderia deixar de agradecer ao meu editor, Edson Manoel 
de Oliveira Filho, pelo belíssimo trabalho de unir, no catálogo de sua 
editora, cultura, religião e arte, oferecendo, aos leitores de língua por­
tuguesa, uma visão única do melhor que j á foi produzido nessas áreas 
do conhecimento humano. 
Mecosta, MI - Inverno de 2014 
Márcia Xavier de Brito 
Vice-presidente de Relações Institucionais do Centro Interdisciplinar de Ética 
e Economia Personalista (CIEEP), editora responsável do periódico COMMUNIO: 
Revista Internacional de Teologia e Cultura, e pesquisadora do Russell Kirk Center 
for Cultural Renewal. Cursou a Faculdade de Direito na Universidade do Estado 
do Rio de janeiro (UERJ) e a pós-graduação de Tradução de Inglês na Universida­
de Gama Filho (UGF). Dentre outros trabalhos como tradutora há mais de quinze 
anos, destacamos as traduções para a editora É Realizações dos livros A Era de T. S. 
Eliot: A Imaginação Moral do Século XX e A Política da Prudência, de Russell Kirk, 
e A Formação da Cristandade e A Divisão da Cristandade, de Christopher Dawson. 
A FORMAÇÃO DA CRISTANDADE 
l 8 1 
N o t a d o A u t o r 
Como primeiro ocupante da cátedra Charles Chauncey Stillman 
de Estudos Católico-romanos em Harvard, de 1 958 a 1 962, escolhi 
o tema CRISTANDADE. As palestras naturalmente se dividiram em 
três grupos - a formação da Cristandade, a divisão da Cristandade e 
o retorno à unidade cristã . 
O segundo grupo, que cobre o período da Reforma Protestante 
à Revolução Francesa, foi publicado em 1 965 no livro A Divisão da 
Cristandade. O presente livro contém todas as palestras do primeiro 
grupo e trata da formação da cristandade, das origens na tradição 
judaico-cristã até a ascensão e queda da unidade medieval . 
PARTE 1 
A p r e s e n t a ç ã o 
l 85 
C a p í t u l o 1 1 I n t r o d u ç ã o a o P r e s e n t e E s t u d o 
Esta cátedra é uma criação recente e, até agora, o estudo do ca­
tolicismo romano não teve espaço algum no currículo da Harvard 
Divinity School. É fácil compreender as razões históricas disso. 
O Harvard College foi uma das primeiras instituições desta nação, 
assim, desde sua fundação até a independência dos Estados Unidos 
foi, em essência, uma instituição protestante, intimamente ligada à 
igreja de Massachusetts e à tradição da teologia puritana e calvinista . 
Quando a Faculdade de Teologia foi fundada, no início do século 
XIX, refletia as mudanças religiosas que ocorreram na Nova Inglater­
ra desde a independência e descobrira expressão intelectual no movi­
mento unitarista, que teve origem em Boston no final do século XVIII. 
Este foi, essencialmente, um movimento liberal que buscou ampliar e 
liberalizar os estudos teológicos, mas, é claro, seu liberalismo não ia 
tão longe a ponto de alcançar o catolicismo. É verdade que William 
Ellery Channing ( 1 780-1 842 ) , talvez a principal influência no início 
da Faculdade de Teologia, foi um defensor do catolicismo, mas a sua 
concepção de "cristandade católica" (para usar a expressão por ele 
cunhada ) estava mais distante do catolicismo histórico que mesmo a 
ortodoxia calvinista contra a qual lutava. 
Ao longo do século XIX, o vínculo entre a Faculdade de Teolo­
gia e a igrej a unitarista aos poucos foi diminuindo até se tornar, à 
época do reitor Charles William Eliot ( 1 834- 1 926 ) , simplesmente, 
uma faculdade não sectária de estudos históricos e científicos sobre 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 1 
religião. Nesse caso, não havia mais motivos para excluir o estudo 
daquela forma de cristianismo que ocupa o primeiro lugar em ex­
tensão, antiguidade e número de membros. Na ocasião, contudo, 
tal acréscimo era inconcebível. Caso venhamos a ler o discurso do 
reitor Eliot sobre a religião dos Pais da Pátria, proferido em 1 909, 
no curso de verão da Faculdade de Teologia, veremos que Eliot ti­
nha pouquíssimo interesse no cristianismo como realidade históri­
ca ou como estudo teológico, mas, antes, identificava religião e cul­
tura com a crescente preocupação ética de progresso social e saúde 
pública, de modo que o médico e o inspetor sanitário tomariam o 
lugar do presbítero ou do bispo como portadores e representantes 
de uma nova ordem. 
Estou longe de querer depreciar a importância da questão cul­
tural - é exatamente o assunto que mais me interessa -, mas estou 
certo de que essa não é a abordagem correta . Caso fosse, a Faculdade 
de Teologia deveria fechar as portas e todos deveríamos ingressar na 
faculdade de Medicina ou de Saúde Pública. 
A teologia deve ser soberana em sua casa. É um campo de estu­
do autônomo que não pode ser reduzido ao departamento de ética 
social, da mesma forma que a Igreja não pode ser reduzida a uma 
instituição filantrópica. Desde os dias de Eliot há um amplo reco­
nhecimento dessa realidade e um movimento genuíno de retorno à 
teologia e a uma nova compreensão do significado de Igreja . Esse 
movimento é comum a protestantes e católicos e, não há dúvidas, é 
o grande responsável pelo progresso do movimento ecumênico e o 
crescente interesse no problema da reconciliação cristã : movimento e 
interesse que estão destinados a se tornarem ainda maiores nos pró­
ximos anos. É impossível ir muito adiante nessas questões sem algum 
estudo do catolicismo, pois a existência da Igreja Católica é uma das 
grandes realidades objetivas da história . Sem ela é impossível escrever 
a história do cristianismo, e é igualmente impossível compreender a 
história de nossa civilização, j á que o catolicismo é uma das maiores 
86 l 87 
forças formadoras da história e deixou sua marca em muitas das ins­
tituições características da civilização ocidental . 
Tal predominância cultural é devida, acima de tudo, ao fato de 
a Igreja Católica ter sido a responsável pela conversão da Europa 
Setentrional ao cristianismo e foi dessa igreja que os povos do Norte 
receberam os fundamentos da nova civilização que continuariam a 
desenvolver, durante séculos, sob influência católica. Por outro lado, 
contudo, devemos reconhecer que ao longo dos últimos quatro sécu­
los, desde a Reforma, tem sido cada vez mais difícil perceber os valo­
res comuns dessa herança cultural . O fato do catolicismo estar pro­
fundamente imiscuído na história e na cultura europeia do passado se 
tornou fonte de antagonismo, e não de unidade, já que os protestan­
tes, em especial, os calvinistas e puritanos da Inglaterra e dos Estados 
Unidos, vieram a considerar todo o passado cristão de um milênio 
como uma idade das trevas de superstição religiosa e idolatria, de 
barbarismo cultural, de onde emergiram as igrejas reformadas. 
Assim, cresceu um forte antagonismo cultural, bem como uma 
oposição religiosa entre as duas metades da dividida cristandade. 
Cada vez mais as diferenças se fundiram com as divisões nacionais 
e políticas, de modo que católicos e protestantes não falavammais a 
mesma língua ou pertenciam ao mesmo universo social . Tal tendência 
de fusões das divisões religiosas e culturais não era um fenômeno 
novo na história cristã . Os grandes cismas da Igreja antiga tendiam, 
mais uma vez, a seguir os caminhos da raça, da língua e da naciona­
lidade. O cisma, por exemplo, entre catolicismo e monofisismo foi 
parte de uma cisão entre o Oriente e o Ocidente, entre o Império 
Romano do Oriente e os súditos sírios e egípcios. Do mesmo modo, o 
cisma entre o Ocidente católico e o Oriente ortodoxo na Idade Média 
foi o resultado de uma crescente alienação cultural e social entre os 
súditos do Império Bizantino e os novos povos do Ocidente. 
Em mudanças religiosas como essas, o elemento de responsabili­
dade individual é pequeno, às vezes, infinitesimal. Ao admitir tudo o 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 1 
que os Padres da Igreja nos séculos III e IV e tudo o que os teólogos 
posteriores disseram a respeito do cisma e da heresia como os maiores 
dos males; ao admitir que em todo o verdadeiro cisma e heresia al­
guns homens devem ser responsabilizados individualmente, é fato que 
homens e mulheres comuns, dificilmente, têm alguma parcela dessa 
culpa. Imperadores, reis e bispos tomaram decisões e os súditos não 
sabiam nada além de que tal decisão tinha sido tomada . Eram corpo­
ralmente arrebatados, numa espécie de esmagadora maioria sociorre­
ligiosa que mudava as relações eclesiásticas com o restante do mundo 
cristão, sem que eles mudassem as próprias crenças ou tradições. 
Isso também era verdade, num grau mais elevado do que esta­
mos dispostos a admitir, para as mudanças que se seguiram à Re­
forma. O novo mapa eclesiástico da Europa era obra não dos re­
formadores, mas de políticos e soldados, e o resultado do conflito 
traçou uma divisão cultural bem nítida entre o Norte protestante e 
o Sul católico. E foi diante desse cenário de divisão cultural europeia 
que foram forjados os padrões religiosos predominantes do Novo 
Mundo. A protestante América do Norte e a católica América do Sul 
eram dois mundos diferentes que tinham muito pouco em comum. 
A possibilidade, portanto, de um debate religioso proveitoso entre 
um professor de Harvard e um professor da Universidade de San 
Marcos no Peru, no século XVII, era inconcebível, apesar dos siste­
mas educacionais partilharem inúmeras características comuns. 
Apenas no século XIX tal estado de separação e de falta de comu­
nicação chegou ao fim, sobretudo nos Estados Unidos, que numa épo­
ca de grande imigração se tornou um "crisol de raças" e um ponto de 
encontro de diversas religiões. Em nenhum outro lugar os resultados 
foram mais notáveis do que na Nova Inglaterra, pois foi nessa região 
que a tradição protestante norte-americana mais se desenvolveu, do­
minando a cultura e as instituições de modo mais intenso. Não obs­
tante, foi também o local mais exposto à onda de imigração que levou 
para Boston e para outras cidades marítimas uma nova população 
88 l 89 
quase toda católica . Como um dos historiadores desse movimento 
escreve, "por volta de 1 850, a nova Inglaterra era o lar de dois povos, 
cada qual possuía um modo de vida próprio, bem como padrões de 
conduta particulares e uma forte hostilidade entre si " . 1 
Ao longo do século seguinte esse dualismo cultural foi aos pou­
cos superado. Os dois povos se tornaram um ao partilhar uma cul­
tura norte-americana. O processo de assimilação, todavia, recusara 
cruzar o portal da igreja . A justaposição social dos dois segmentos 
da população não gerou nenhum contato religioso ou espiritual mais 
próximo. O abismo permanecia muito grande - maior, talvez, que no 
Velho Mundo. 
Tal situação era bastante natural no século XIX, quando a dife­
rença religiosa correspondia à divisão de classes; a tradição protes­
tante ainda mantinha o domínio político e social, ao passo que os imi­
grantes e seus filhos eram vistos como intrusos, ainda não totalmente 
incorporados ao modo de vida norte-americano. Hoje, no entanto, 
esse não é mais o caso. A grande imigração do século XIX se tornou 
parte da história norte-americana, assim como a vinda dos primei­
ros colonos, e os católicos norte-americanos são parte integrante da 
nação norte-americana . Tal situação, que surgiu do encontro de di­
ferentes religiões no âmbito de uma cultura comum, é um fenômeno 
distintivo dos Estados Unidos. Durante o mesmo período, no entan­
to, houve outro tipo de confluência - o encontro entre catolicismo e 
protestantismo ocorrido durante o século XIX, na Inglaterra. Essa foi 
uma situação que conheci de perto, intimamente, e que teve influência 
direta na minha vida religiosa . Refiro-me, é claro, ao Movimento de 
Oxford, que uniu católicos e protestantes, de modo particularmente 
íntimo, por 120 anos - uma espécie de guerra civil que dividiu ami­
gos, famílias e escolas de pensamento por gerações, mas que, não 
1 Marcus Lee Hansen, The Immigrant in American History. Massachusetts, 
Peter Smith, 1 942, p. 1 1 0. 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 1 
obstante, sempre esteve acompanhada de uma considerável medida 
de compreensão pessoal e compaixão. 
Esse movimento era, no início, nitidamente anglicano. Surgiu no 
âmago das autoridades constituídas - daquelas corporações clericais 
intimamente vigiadas que eram as faculdades de Oxford na época que 
antecedeu a reforma universitária -, e se fortaleceu pela tentativa dos 
teólogos de Oxford do início do século XIX de estudar e entender a 
natureza do catolicismo. Assim, enquanto na Nova Inglaterra o en­
contro de duas tradições religiosas se deveu a uma invasão externa 
de imigrantes católicos numa população protestante, na Inglaterra 
foi o resultado de uma mudança interna - uma revolução intelectual 
dentro da própria tradição protestante. Foi, é claro, um movimento 
de proporções muito pequenas, que começou na sala comunal de uma 
faculdade de Oxford e, aos poucos, espalhou-se, chegando a afetar 
a Universidade e, limitadamente, o clero e os leigos cultos da Igreja 
da Inglaterra. Apesar disso, teve efeitos de longo alcance na religião 
inglesa, em ambos os lados da fronteira religiosa . Por um lado, trans­
formou o espírito da Igreja da Inglaterra, ao introduzir novos ideais 
litúrgicos e novos padrões teológicos, em especial nos estudos patrís­
ticos; por outro, influenciou o catolicismo inglês ao produzir uma 
sucessão contínua de convertidos - cardeal John Henry Newman 
( 1 80 1 -900) e Frederick William Faber ( 1 8 14-1 863 ) , William George 
Ward ( 1 8 12- 1 8 82 ) , cardeal Henry Edward Manning ( 1 808-1 892) 
e Robert Wilberforce ( 1 802- 1 857) , Lorde George Frederick Samuel 
Robinson ( 1 827- 1 909 ) , o primeiro marquês de Ripon, Lorde John 
Crichton-Stuart ( 1 847-1 900 ) , terceiro marquês de Bute, Coventry 
Patmore ( 1 823- 1 896 ) e Gerard Manley Hopkins S. J. ( 1 844- 1 8 89) , 
uma torrente que continua a jorrar até os dias atuais, produzindo em 
nossa época homens como o monsenhor Ronald Knox ( 1 8 8 8- 1 957) . 
A grande e singular importância desse movimento talvez não 
deva ser encontrada, em minha opinião, nos feitos intelectuais, embo­
ra, no caso de Newman, tenha produzido um pensador religioso de 
90 l 9 1 
extraordinário mérito. Ela está, mais propriamente, no íntimo conta­
to social que produziu, pela primeira vez, entre católicos e protestan­
tes desde a Reforma. Isso funcionou de dois modos diferentes. 
Primeiramente, pela divisão dentro de uma mesma família . 
Assim, Newman tinha um irmão unitarista, Francis William 
Newman ( 1 805- 1 8 97 ) , e um cunhado anglicano, Thomas Mozley 
( 1 806- 1 893 ) . Os Wilberforces estavam divididos entre o influente 
bispo anglicano Samuel Wilberforce ( 1 805- 1 873 ) e dois irmãos ca­
tólicos : o já citado Robert Wilberforce, amigo de Manning, e Henry 
Wilberforce ( 1 807- 1 8 73 ) , amigo de Newman. A mais surpreenden­
te de todas foi a divisão na família Stanley, em que o irmão mais 
velho, Henry Stanley ( 1 82 7-1 903 ) , se tornou maometano, o irmão 
mais novo, Algernon Stanley ( 1 843- 1 92 8 ) , se tornou bispo católico 
e a irmã, Katharine Russell ( 1 844- 1 8 74 ) , mãe do filósofo Bertrand 
Russell ( 1 872- 1 970 ) . 
O segundo modo e , quiçá, o mais importante, foi a divisão en­
tre amigos . Manning fora amigo íntimo de William Ewart Gladstone 
( 1 809- 1 898 ) . Newman manteve a amizade pessoal com o pastor an­
glicano John Keble ( 1 792- 1 866 ) , com Edward Bouverie Pusey ( 1 800-
1 8 82 ) e com Richard William Church ( 1 8 1 5- 1 890) , o deão da cate­
dral de St. Paul. W. G. Ward era amigo de Alfred Tennyson ( 1 809-
1 8 92) , de Arthur Stanley ( 1 8 1 5- 1 8 8 1 ) , o deão de Westminster, e de 
muitos outros vitorianos célebres. 
Assim, embora ao longo do século XIX tenha continuado a exis­
tir na Inglaterra um abismo social entre católicos e protestantes, este 
já tinha deixado de existir nas altas esferas sociais e intelectuais, de 
modo que a ponte que fora construída sobre tal abismo nunca foi 
destruída. Creio - e falo do assunto como parte interessada - que esse 
movimento marca o momento de virada da história religiosa ociden­
tal nos últimos 130 anos, e é ainda mais significativo porque foi a 
obra de uma minoria muito ínfima, cuja influência agiu como fermen­
to na massa que a cercava. 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 1 
A situação nos Estados Unidos é, por essência, diferente. Resta a 
questão do impacto recíproco das duas grandes parcelas da popula­
ção de diferentes tradições religiosas. Não é uma questão de contato 
intelectual e religioso, pois esses dois grupos ignoram a existência um 
do outro na esfera religiosa . O resultado, no entanto, tem sido igual 
ou análogo, pois em ambos os casos ocorre o encontro de religiões há 
muito separadas dentro de uma mesma cultura: num dos casos pelo 
processo de descoberta religiosa ou redescoberta, e, no outro, por 
pura força das circunstâncias que levaram duas populações diferentes 
a se unir para formar uma nova unidade social. Em ambos os casos, 
as tradições dominantes da cultura eram protestantes, com muitas 
coisas em comum, já que partilhavam a mesma tradição linguística 
e, até certo ponto, a mesma literatura religiosa, em especial, a mesma 
versão da Bíblia em inglês. No lado católico, contudo, havia dife­
renças consideráveis entre a Inglaterra e os Estados Unidos. Neste, e 
particularmente na Nova Inglaterra, a influência predominante sem­
pre foi irlandesa, e o caso de um convertido como Orestes Brownson 
( 1 803-1 876 ) era bastante excepcional. Na Inglaterra, por outro lado, 
o renascimento católico sempre foi predominantemente inglês e a 
influência dos imigrantes irlandeses foi secundária, embora estivesse 
longe de não ter importância. 
Assim, pode parecer que as expressões norte-americana e inglesa 
nesse particular são complementares e que podemos aprender, consi­
deravelmente, de uma com a outra. Em comparação com os Estados 
Unidos, a gradual evolução inglesa foi uma questão bem menor, mas 
representa justamente o elemento faltante - o diálogo contínuo por 
mais de um século entre católicos e protestantes em um patamar cul­
tural relativamente alto. Do ponto de vista sociológico, no entanto, 
o desenvolvimento dos Estados Unidos é o mais importante, graças à 
magnitude das forças envolvidas e ao fato de a cultura em que ope­
ram ainda ser móvel e amoldável. Desse modo, a coexistência de duas 
tradições religiosas diferentes dentro de uma sociedade comum se 
92 l 93 
tornou um dos traços distintivos da moderna cultura norte-america­
na e deve ser aceito como ponto de partida de nossa pesquisa . 
Devemos admitir que, do ponto de vista religioso, tal tipo de so­
ciedade pluralista encerra sérias desvantagens. Ela tende a tornar a 
religião um assunto de importância secundária. Isso significa que o 
primeiro dever do homem não é religioso, mas político. Não pergun­
tamos se um homem é um bom cristão ou um bom católico, mas se é 
um bom cidadão ou um bom norte-americano. Caso o seja, sua reli­
gião é assunto que diz respeito somente a ele mesmo - e há o perigo 
ainda maior de que seja tratada como um passatempo privado, de 
modo que, o pertencer a uma igreja poderá não significar nada mais 
que a filiação a um clube de golfe. 
Por outro lado, uma sociedade pluralista desse tipo traz, retri­
butivamente, certas vantagens para a religião. Confere um grande 
valor à responsabilidade espiritual e ao cristão individual. Ele não 
pode mais dar-se ao luxo de tomar por certa a religião. Caso tenha 
de permanecer firme nas areias movediças da opinião democrática, 
deve saber o que defende e o que pretende, e já que está em contato 
com várias formas de cristianismo, deve saber o que elas também 
defendem - em que concordam, em que diferem e até onde é possível 
ou necessário cooperar na defesa do interesse comum e dos valores 
espirituais comuns. 
Tudo isso provoca um considerável esforço intelectual e moral, 
um esforço que nos é difícil, nos dias de hoje, quando há toda uma 
tendência da educação popular e da opinião pública modernas em 
concentrar a atenção nos problemas da atual democracia secular e 
da cultura tecnológica que se impõem à nossa atenção por intermé­
dio das milhares de línguas despudoradas da publicidade organizada. 
Não há dúvidas que aqui em Harvard estamos em uma posição extre­
mamente favorável. Esta faculdade é um oásis de cultura teológica em 
um mundo secularizado, e possui uma tradição de estudo teológico 
que remonta ao início da história norte-americana. Não obstante, no 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 1 
passado, tal tradição de estudo, por mais que tenha sido concebida 
com tolerância, não incluiu o estudo do catolicismo. No passado, era 
fácil estudar teologia cristã e história do cristianismo com nada mais 
do que uma breve pincelada na história do catolicismo, que continua­
va a ser um mundo estranho. 
Isso não se deu somente aqui, nos Estados Unidos, mas na Eu­
ropa também, de tal modo que um dos mais cultos dos estudiosos 
protestantes de minha juventude, Adolf von Harnack ( 1 85 1 - 1 930) , 
destaca esse como um dos defeitos mais notáveis do sistema de edu­
cação superior germânico. Ele escreveu: 
Estou convencido, pela experiência constante, de que os alunos que dei­
xam nossas escolas têm as ideias mais desconexas e absurdas a respeito 
da história eclesiástica. Alguns deles sabem alguma coisa sobre gnos­
ticismo ou outro detalhe curioso, para eles, sem valor. Mas, da Igreja 
Católica, a maior criação religiosa e política conhecida na história, não 
sabem absolutamente nada, e perdem-se, sob esse aspecto, em noções 
completamente triviais, incertas e, muitas vezes, nitidamente sem senti­
do. Como originaram suas grandes instituições, o que significam na vida 
da Igreja, quão facilmente podem ser interpretadas de maneira errônea 
e por que funcionam de modo tão certo e impressivo: tudo, segundo 
minha experiência, lhes é, com poucas exceções, uma terra incógnita.2 
A atual geração tem presenciado uma grande mudança nesse 
particular, como prova a fundação desta cátedra. Tal fundação teria 
sido inconcebível há cem ou cinquenta anos. Há apenas 130 anos, 
um cidadão da Nova Inglaterra escreveu que a instituição de uma 
Igreja Católica em Boston seria tão assombrosa quanto a criação de 
uma capela protestante no Vaticano! Mas o resultado de gerações 
de negligência ainda permanece, e aqueles que se tornarão clérigos 
devem esperar ainda prevalecer, entre a maioria do laicado, o estado 
de ignorância que Harnack descreve. 
2 Adolf von Harnack, Aus Wissenschaft und Leben, vol. l. Giessen, A. Tõpelmann, 
1 9 1 1 , p. 97. 
94 l 95 
Por isso, ao estudar o catolicismo, creio que devemos abordá­
-lo, na expressão de Harnack, como terra incognita - um continente 
espiritual desconhecido que temos de explorar. Pois, o que quer que 
pensemos a respeito da verdade da doutrina católica ou dos valores 
espirituais católicos, sem dúvida, o catolicismorepresenta uma por­
ção considerável da experiência espiritual e histórica. Se ignorarmos 
isso, não poderemos nos considerar pessoas bem instruídas. 
Se, no entanto, pretendermos explorar esse continente desconhe­
cido, precisaremos da ajuda de uma série de disciplinas diferentes. 
Uma abordagem puramente teológica não é o bastante, embora essa 
é a que requererá o maior esforço de compreensão. Devemos também 
estudá-lo como historiadores, já que de todas as espécies de cristianis­
mo, o catolicismo é uma das formas mais profundamente comprome­
tidas com a história; por fim e antes de mais nada, devemos estudá-lo 
como pesquisadores da cultura, buscando compreender um modo de 
vida religioso nada familiar, pois, quando protestantes e católicos se 
encontram, a primeira coisa que os impressiona não é o conjunto 
diferente de dogmas teológicos, mas o padrão diferente de vida reli­
giosa . Mesmo onde usamos palavras similares (e usamos as mesmas 
palavras - Igreja e sacramento, fé, graça e redenção) , elas estão funda­
mentadas numa estrutura de instituições religiosas e práticas diversa, 
e produzem resultados sociais e intelectuais diferentes. 
O entendimento mútuo dessas diferenças na cultura entre católi­
cos e protestantes é uma das tarefas preliminares mais necessárias que 
tem de ser empreendidas ao prepararmos o caminho para a unidade 
cristã . Sua busca, no entanto, é o estudo mais difícil porque envolve 
muitos fatores que não são absolutamente religiosos. Toda cultura é 
um fenômeno complexo, e é muito fácil confundir o fator político ou 
material com o religioso ou espiritual . Ao longo de toda a história, 
somos apresentados ao espetáculo dos conflitos políticos e sociais dis­
farçados de conflitos religiosos, e é essa confusão de motivos que traz 
tanta amargura social a muitas das aparentes controvérsias religiosas. 
A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 1 
Seria, no entanto, um grande erro concluir que todas as diferenças 
religiosas, do ponto de vista religioso, são irrelevantes. A fé religiosa 
deve produzir algum efeito no comportamento humano, ainda que 
muito menor do que os religiosos exigem ou esperam. Em alguns ca­
sos, em especial nos Estados Unidos de hoje, a demanda é, em grande 
parte, por um padrão de comportamento mais elevado. No passado, 
contudo, e noutras partes do mundo, a religião fez exigências mais 
explícitas na vida dos homens - por exemplo, os judeus exigindo que 
cada detalhe da vida humana devesse ser regulamentado e cercado 
por leis religiosas. 
Ora, o catolicismo sempre teve essa espécie de impacto externo 
na cultura. É uma forma de religião altamente institucionalizada e so­
cializada e expressa suas crenças e propósitos por intermédio de todos 
os canais materiais disponíveis . Isso, é claro, é uma das muitas críticas 
feitas aos católicos no passado, na época da Reforma e ainda mais no 
século XVIII . Reformadores religiosos e sociais igualmente objetavam 
que o catolicismo era demasiado excessivo. Eram gastos muitos dias 
de trabalho para a celebração das festas, investiam, no longo prazo, 
muito capital em despesas improdutivas.3 Qualquer que seja a visão 
que tenhamos acerca de tais objeções, não há dúvidas de que a ten­
dência católica de se expressar exteriormente em instituições e cultura 
é uma vantagem para o historiador e para o pesquisador da cultura, 
pois lhes oferece uma grande quantidade de material de estudo. 
A tendência do catolicismo sempre foi a de se encarnar na cultura . 
Em todas as épocas e povos encontramos o catolicismo se expressando 
em novos modos e insituições típicos daquela cultura em particular. 
À primeira vista, isso parece inconsistente com a disciplina autoritária 
e a unidade centralizada da Igreja Católica . Contudo, não é este o caso. 
3 Ver a análise de C. W. Eliot a respeito das catedrais. (N. T. : Southworth 
Cathedral, 1 907- 1 909, Box 123, Records of the President of Harvard 
University, Charles W. Eliot, 1 869-1 930, Archives of the Harvard University, 
Cambridge, Massachusetts . ) 
96 l 97 
As formas de cristianismo mais conservadoras e menos sensíveis à mu­
dança cultural são as menores denominações dissidentes, tais como os 
Velhos Crentes russos4 ou alguns grupos religiosos encontrados neste 
país, tais como os Schwenckfeldianos5 ou os Dunkers. 6 
No caso do catolicismo, todavia, cada sucessiva era da Igreja ma­
nifesta um aspecto diferente da catolicidade e, poderíamos dizer, uma 
forma diferente de cultura católica . Como a vejo, existem seis eras, 
cada uma com três ou quatro séculos de duração, à exceção da sexta 
que ainda está ocorrendo. Existem, assim, ( 1 ) o período do cristianis­
mo primitivo, do início das primeiras comunidades cristãs no século 1 
até a paz da Igreja no início do século IV; (2 ) o período patrístico, da 
conversão do Império Romano no século IV até a ascensão do Islã 
no início do século VII; ( 3 ) a era que viu a formação da cristandade 
ocidental e a predominância da cultura bizantina no Oriente, do ano 
600 ao ano 1 000; (4 ) a grande era da cultura medieval, que durou 
do movimento de reforma eclesiástica no século XI até a Renascença 
e a Reforma Protestante, e ( 5 ) a era da cristandade dividida a partir 
do século XVI, a época da Contra-Reforma - da cultura barroca do 
4 Grupo cismático da Igreja Ortodoxa Russa que se separou em 1 666 por dis­
cordar das reformas do Patriarca Nikon ( 1 605- 1 68 1 ) ocorridas entre 1 662-
1 666. (N. T. ) 
5 Igreja cristã surgida no século XX baseada nos ensinamentos de Caspar 
Schwenkfeld von Ossig ( 1489- 156 1 ) , cujos seguidores já se encontravam dis­
persos nos Estados Unidos desde o século XVIII. As ideias de Schwenkfeld pa­
recem ser um meio-termo entre as reformas de Martinho Lutero ( 1483-1546) , 
João Calvino ( 1 509-1564), Ulrico Zwinglio ( 1484-153 1 ) e os anabatistas. 
Em 2009, a igreja contava com cerca de 2.500 membros, divididos em cinco 
congregações na Filadélfia. (N. T. ) 
6 A Igreja "Dunker" foi organizada em 1 827 por Peter Eyman ( 1 762-1 844) 
em Ohio, como uma das ramificações do Schwarzenau Brethen (Batistas 
Alemães ) , grupo surgido na Alemanha no final do século XVII como conse­
quência do movimento pietista radical. Em 1 848, a congregação se dividiu 
por discordar de algumas práticas e surgiu o grupo dos Novos Dunkers (ou 
Igreja de Deus) que perdurou até 1 962. (N. T. ) 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 1 
Concílio de Trento até a Revolução Francesa . Finalmente, a era mo­
derna ( 6 ) que não sabemos a duração ou o fim. 
Cada uma dessas eras tem uma característica distinta e expressa 
uma faceta diferente da cultura cristã. No entanto, nenhuma delas 
é definitiva, de modo que não podemos dizer que um determinado 
período, como o século IV ou o XIII, é a expressão total do cato­
licismo. Com menos razão ainda podemos tornar nossa época um 
padrão de j ulgamento, como se os feitos das eras passadas só fos­
sem valiosos na medida em que tenham contribuído com algo para 
o mundo moderno. Como Leopold von Ranke ( 1 795- 1 8 8 6 ) disse, 
em resposta ao filósofos hegelianos da história, "]eder Epoche ist 
unmittelbar zu Gott" ,7 ou sej a, " Cada época está imediatamente 
relacionada a Deus " . 
Esse é o conhecido problema do relativismo histórico sobre o 
qual tanto foi escrito nos últimos anos. A posição do católico, no 
entanto, é diferente daquela do historiador secular, visto que está es­
piritualmente comprometido com cada uma e com todas as culturas 
do passado, na proporção em que sejam cristãs, já que acredita na 
persistência da tradição espiritual que preserva a identidade no curso 
de todas as mudanças da história e da cultura . 
Tal visão da multiplicidade da cultura cristã, contudo, não pres­
supõe, necessariamente, uma teoria evolucionista do progresso reli­
gioso. O curso dessa evolução deve, antes, ser explicado como descre­
ve Santo Agostinho de Hipona (354-430) na tese das Duas Cidades, 
graças ao conflito contínuo entre dois princípiosopostos, o espiritual 
e o social . Cada época é um período de crise para a Igreja cristã . 
Em cada era a Igreja deve enfrentar novas situações históricas, cujos 
problemas não podem ser resolvidos da mesma maneira que foram 
no passado. A crise somente pode ser enfrentada pela ação espiritual 
7 Leopold von Ranke, Über die Epochen der neueren Geschichte: Historisch­
kritische Ausgabe. München, Theodor Schieder und Helmut Berding, 1971 , 
p . 60. (N. T. ) 
98 l 99 
criativa e, ao ter êxito, a Igreja cria um novo modo de vida, já que está 
comprometida com a determinada situação que enfrentou naquele 
período em particular. 
Hoje está bastante claro para todos, católicos e não católicos, 
cristãos e não cristãos, que vivemos numa época de crise. Talvez seja 
perigoso tentar definir a natureza dessa crise com muita precisão, uma 
vez que os assuntos são demasiado complexos e de grande amplitude. 
Não obstante, creio ser possível dizer que neste país e no presente 
século chegamos a um ponto decisivo no movimento rumo à unidade 
cristã . Como tenho dito, durante três séculos, desde a Reforma até o 
século XIX, o catolicismo e o protestantismo permaneceram em cam­
pos opostos e hostis, um empenhado na destruição do outro. Cada 
uma das nações da Europa e os novos povos dos Estados Unidos 
tomaram uma ou outra posição, e desprezaram qualquer membro de 
suas sociedades que fizesse uma escolha diferente, de modo que todo 
católico em um país protestante ou todo protestante em um país ca­
tólico era visto como potencial traidor e inimigo público. 
No entanto, hoje, nos Estados Unidos encontramos uma situa­
ção completamente diferente . Em uma mesma sociedade vivem to­
das as diferentes formas de religião e a falta de religião coexiste e 
partilha de uma cultura comum. Não há mais o domínio exclusivo 
de uma forma de cristianismo, nem mesmo o dualismo exclusivo de 
católicos e protestantes, mas um espectro em que está representada 
cada nuance de crença religiosa . Igrejas e ritos que no passado e no 
Velho Mundo existiam tão isolados que dificilmente tinham cons­
ciência da existência da alteridade, foram confrontados e colidiram 
nas ruas da moderna Babilônia. De certa forma, isso nos recorda a 
situação em Roma e em Alexandria nos primeiros séculos do cristia­
nismo. A conj untura é dolorosa, visto que expõe plenamente o es­
cândalo da desunião cristã . Não obstante, ao mesmo tempo, oferece 
uma oportunidade tal como nunca existiu no mundo anteriormente, 
para que os cristãos se reúnam e venham a se entender. Sem essa 
A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 1 
compreensão não pode haver esperança de um retorno à unidade 
cristã . Mas não basta que os cristãos se encontrem num clima de 
boa vontade. O que é mais necessário é uma compreensão profun­
da, e isso não pode ser obtido sem um empenho sério e diligente de 
estudo e pesquisa. 
C a p í t u l o 2 1 O C r i s t i a n i s m o e a H i s t ó r i a d a 
C u l t u r a 
1 00 1 1 0 1 
A história do cristianismo é a história de uma intervenção di­
vina na história, e não podemos estudá-la à parte da história da 
cultura no sentido mais amplo do termo. A palavra de Deus foi 
primeiramente revelada ao povo de Israel e se incorporou na lei e 
na sociedade. Depois, o Verbo de Deus se encarnou em uma deter­
minada pessoa, em um determinado momento da história e, poste­
riormente, esse processo da redenção humana perdurou na vida da 
Igreja, a nova Israel, a comunidade universal portadora da Revela­
ção divina e foi o meio pelo qual o homem participou da nova vida 
do Verbo Encarnado. 
Assim, o cristianismo entrou na corrente da história e no proces­
so da cultura . Tornou-se culturalmente criativo, pois mudou a vida 
humana, e não há nada no pensamento e na ação dos homens que 
não tenha sido submetido à sua influência, posto que, ao mesmo tem­
po, experimentou as limitações e vicissitudes inseparáveis da existên­
cia temporal. 
Há quem rejeite, todavia, essa mistura de religião e história, ou 
cristianismo e cultura, já que creem que religião diz respeito a Deus e 
não ao homem, ao absoluto e eterno, e não ao histórico e transitório. 
Certamente, precisamos reconhecer quão importante é tal aspecto da 
religião e como o homem tem um senso natural da transcendência 
divina . Sabemos, pela história do pensamento religioso, que realmen­
te encontramos homens religiosos desse tipo - homens que buscam 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 2 
transcender a natureza humana pelo "voo do solitário ao Solitário" , 1 
nas palavras do filósofo neoplatonista Plotino (204/205-270) , e que 
descobrem a essência da religião na contemplação do puro ser ou 
daquilo que está além do ser. 
Isso, no entanto, não é cristianismo. Ainda que o cristianismo 
não negue o valor da contemplação ou da experiência mística, sua 
natureza essencial é diferente. É a religião da Revelação, Encarnação 
e Comunhão; uma religião que une o humano e o divino e vê, na his­
tória, a manifestação do desígnio divino para a raça humana. 
É impossível compreender o cristianismo sem o estudo da his­
tória do cristianismo. E isso, como o vejo, encerra muito mais que o 
estudo da história eclesiástica no sentido tradicional. Inclui o estudo 
de dois processos diferentes que agem, simultaneamente, na humani­
dade ao longo do tempo. De um lado, temos o processo de formação 
e mutação da cultura que é objeto da antropologia, da história e de 
disciplinas afins; e, de outro, temos o processo da Revelação e da ação 
da Graça divina, que criou uma sociedade espiritual e uma história 
sagrada, embora isso só possa ser estudado como parte da teologia e 
em termos teológicos. 
Na cultura cristã esses dois processos ocorrem em conjunto, 
numa unidade orgânica, de modo que seu estudo requer a cooperação 
íntima da teologia e da história . É óbvio que essa é uma tarefa difícil, 
mas muito necessária, já que não há outra maneira de estudar o cris­
tianismo como uma força viva no mundo dos homens e é da essência 
do cristianismo ser uma força e não uma ideologia abstrata ou um 
sistema de ideias. Desse modo, a história da cultura cristã difere em 
natureza da História da Igreja. Esta, por séculos, tem sido um estudo 
muito especializado, que fica, de certo modo, fora das categorias his­
tóricas. Há uma percepção de que a Igreja, como conceito teológico, 
está fora e acima da história . Durante os últimos séculos, contudo, a 
1 No original: "qnryfi µÓvou itpoç µÓvov " . Plotino. Enéada. VI, 9, 1 1 . (N. T. ) 
1 02 l 1 03 
história da Igreja tem sido vista como algo equivalente à história ecle­
siástica - uma espécie de tópico especial à margem da história políti­
ca. Desse ponto de vista, a História da Igreja é algo só encontrado em 
sociedades e períodos em que se distingue, claramente, Igreja e Estado 
ou que há a distinção entre religião e política. Portanto, isso tende a 
se tornar um assunto algo arbitrário e artificial, já que a história das 
Igrejas modernas está condicionada e limitada pela história do Estado 
ao qual, de certo modo, pertencem. E, onde existe uma total sepa­
ração de Igreja e Estado, como nos Estados Unidos do século XIX, 
a história da Igreja se vê esvaziada de conteúdo significativo, como 
vemos nos doze primeiros volumes da obra, típica do século XIX, The 
American Church History Series [A Série de História da Igreja nos 
Estados Unidos da América] . Não há nenhuma unidade científica, de 
modo que a unidade se dá somente pelas tradições corporativas de 
uma determinada facção. 2 
2 Publicados com o apoio da American Society of Church History, os doze 
primeiros volumes, na ordem numérica da série, são, respectivamente, os se­
guintes: 
H. K. Carroll, The Religious Forces of the United States: Inumerated, Classi­
fied, and Described on the Basis of the Government Census of 1 890. New 
York, The Christian Literature, 1 893; 
A. H. Newman, A History of the Baptist Churches in the United States. New 
York, The Christian Literature, 1 8 94; 
WillistonWalker, A History of the Congregational Churches in the United 
States. New York, The Christian Literature, 1 894; 
Henry Eyster jacobs, A History of the Evangelical Lutheran Churches in the 
United States. New York, The Christian Literature, 1 8 97; 
]. M. Buckley, A History of the Methodists in the United States. New York, 
The Christian Literature, 1 896; 
Robert Ellis Thompson, A History of the Presbyterian Churches in the United 
States. New York, The Christian Literature, 1 8 95; 
Charles C. Tiffany, A History of the Protestant Episcopal Churches in the 
United States. New York, The Christian Literature, 1 895; 
E. T. Corwin; J. H. Dubbs; T. ]. Hamilton, A History of the Reformed Church, 
Dutch the Reformed Church, German and the Moravian Church in the 
United States. New York, The Christian Literature, 1 895; 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 2 
A história da Igreja pode, é claro, ser estudada, cientificamente, 
de um ângulo sociológico, como o fez Ernst Troeltsch ( 1 865- 1 923 ) 
em seu famoso livro,3 mas isso leva a dificuldades teológicas. 
O estudo da cultura cristã, por outro lado, não acarreta tal dua­
lismo, já que o conceito de cultura é uma unidade que abraça tanto 
a Igreja quanto o Estado. A cultura é um fenômeno universal que 
pode ser objeto de estudo científico. Uma vez que toda cultura his­
tórica tem um aspecto religioso, a cultura cristã não é exceção nesse 
particular, mas é comparável às demais culturas que estão associa­
das a uma determinada religião, à cultura da Índia, por exemplo, ou 
à cultura ou culturas dos povos muçulmanos. Instituição caracterís­
tica da cultura cristã, uma igreja de natureza independente da so­
ciedade política é irrelevante para o estudo comparativo e científico 
das culturas . 
Thomas O'Gorman, A History of the Roman Catholic Church in the United 
States. New York, The Christian Literature, 1 8 99; 
Joseph Henry Allen e Richard Eddy, A History of the Unitarians and the 
Universalists in the United States. New York, The Christian Literature, 1894; 
Gross Alexander et ai., A History of the Metodist Church, South, the 
United Presbyterian Churh, the Cumperland Presbyterian Curch and the 
Presbyterian Church, South in the United States. New York, The Christian 
Literature, 1 894; 
B. B. Tyler et ai., A History of the Disciples of Christ, the Society of Frien· 
ds, the United Brethren in Christ and the Evangelical Association, and 
Bibliography of American Church History. New York, The Christian 
Literature, 1 894. 
O décimo terceiro e último volume da série, mais geral, é o seguinte: Leonard 
Woolsey Bacon, A History of American Christianity. New York, The Christian 
Literature, 1 897. (N. T.) 
3 Referência à obra Die Soziallehren der christlichen Kirchen und Gruppen 
[Os Ensinamentos Sociais das Igrejas e Seitas Cristãs] , publicada originalmen­
te em 1 9 1 2 pela Verlag von J. C. B. Mohr, em Tübingen. Em língua inglesa, a 
obra foi publicada em 1 93 1 e, atualmente, se encontra disponível na seguin­
te reedição: Ernst Troeltsch, The Social Teaching of the Christian Churches. 
Pref. James Luther Adams; trad. Olive Wyon. Louisville, Westminster John 
Knox Press, 2009. 2v. (N. T. ) 
1 04 l 1 05 
Por outro lado, não podemos ignorar as grandes dificuldades que 
afetam, hoje, o estudo acadêmico da religião e a mudança de clima 
intelectual que está cada vez mais desfavorável ao estudo das relações 
entre religião e cultura no mundo atual e nas universidades moder­
nas. Há muito a teologia perdeu o posto de faculdade dominante na 
universidade e como parte integral do currículo educacional comum. 
Continua a existir, por condescendência, apenas como um estudo 
eclesiástico especializado e destinado ao clero. 
Consequentemente, o aluno da universidade moderna pode ser to­
talmente ignorante a respeito de religião, visto que requer um tipo de 
instrução muito elementar, ao passo que o aluno de teologia não tem 
necessidade de estudos elementares, já que supõe (ainda que injustifi­
cadamente) a validade de uma determinada forma de teologia cristã . 
Esse é um estado de coisas muito inauspicioso, pois cria um hiato entre 
os estudos universitários e os estudos teológicos ou eclesiásticos que 
não cabe a ninguém preencher. Há, no modo como vejo a questão, 
uma terra de ninguém entre a universidade e a faculdade de teologia. 
É claro que, nessa situação, não há mais nenhuma tradição religio­
sa comum. Não podemos mais pressupor alguns princípios ou verda­
des geralmente aceitos. Temos de considerar a existência de quatro ou 
cinco pontos de vista fundamentalmente diferentes em questões religio­
sas: o secular e o cristão, o protestante e o católico. E existe uma imensa 
diferença no campo secular entre os humanistas liberais e os materia­
listas dogmáticos. Mais uma vez, no caso dos protestantes, existe a 
divisão entre protestantes liberais, que representam a antiga tradição 
unitária humanista e os neo-ortodoxos, que buscam reviver as tradi­
ções dos reformadores e dos teólogos puritanos. O hiato é tão extenso 
que é difícil encontrar alguma coisa, sobretudo em relação à teologia 
natural e à natureza da religião, sobre a qual as duas partes concordem. 
Nessas circunstâncias, a única abordagem comum que resta a to­
dos os possíveis alunos é a fenomenológica, que tanto é social quanto 
psicológica . Por um lado, todos concordam que o cristianismo e o 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 2 
catolicismo são fatos sociológicos e históricos significativos que ti­
veram profunda importância na história humana; ao mesmo tempo 
que, por outro lado, a religião é um fenômeno psicológico quase uni­
versal e comum a todas as culturas e períodos, de modo que é impos­
sível questionar sua importância humana subjetiva. Ademais, apesar 
da quase infinita diversidade de fenômenos religiosos, existem certos 
elementos comuns a todos e que podem ser vistos como essencial­
mente religiosos, tais como a adoração e a prece, ou também o rito 
do sacrifício. 
Adorar sugere a existência de algum poder sobre-humano que 
as pessoas veneram como algo maior do que elas mesmas, do mesmo 
modo que a prece e o sacrifício significam a existência de uma du­
pla relação pela qual o homem estabelece certo canal de comunica­
ção com o poder superior. Esse poder desconhecido que o homem de 
modo instintivo e natural adora é comumente conhecido como deus 
ou deuses. De fato, a definição fenomenológica seria: "Deus é aquilo 
que o homem adora e aquilo que o homem adora é Deus" . 
Tal noção de adoração pode ser contestada por não dizer nada a 
respeito da verdadeira natureza do objeto de adoração. Na verdade, 
sabemos pelo estudo de religião comparada que o homem é capaz 
de adorar quase tudo, do mais sublime ao mais vil, e a grande tarefa 
da filosofia tem sido purificar o conceito humano a respeito do divi­
no e libertar a razão do serviço aos ídolos - da veneração a tudo o 
que não é Deus. E esse processo, em alguns aspectos, se assemelha à 
obra da Revelação, que também consiste na purificação dos instintos 
religiosos naturais do homem pela eliminação dos falsos objetos de 
adoração e o redirecionamento da razão humana para Deus, a única 
realidade transcendente suprema e absoluta . 
Ao homem moderno, a palavra "deus" significa muito mais do 
que isso, pois chegou até nós enriquecida pelos conteúdos das revela­
ções judaica e cristã, de modo que adquiriu valores morais e particu­
lares que se tornaram quase inseparáveis do próprio termo. Além da 
1 06 j 1 07 
tradição religiosa, todavia, a palavra também adquiriu um significado 
filosófico e foi enriquecida por séculos de tradição filosófica. 
Para a religião e a teologia ocidentais tal termo representa a sín­
tese de duas tradições diferentes, a tradição de revelação religiosa 
hebraica, representada pela Bíblia, e a tradição helênica de teologia 
metafísica ou natural, aceita pelos Padres Cristãos da Igreja e teó­
logos como uma espécie de propedêutica racional ou fundamento 
para a teologiaem geral. No entanto, de modo algum, essa tradição 
filosófica carecia de conteúdo religioso; este era dado pela contem­
plação estética ou mística, uma de suas características. De um lado, 
a filosofia grega contemplou o universo como uma ordem visível que 
era o reflexo ou a criação de um princípio espiritual - o lógos di­
vino; em contrapartida, via o mundo espiritual como uma ordem 
ascendente ou hierarquia de formas inteligíveis que culminavam no 
bem absoluto ou na unidade absoluta, de modo que, para o estoico 
ou neoplatônico, as disciplinas intelectuais da ciência e da filosofia 
encontravam o fim supremo num ato religioso de contemplação que, 
para nós, assemelha-se ao místico. 
A teologia helênica foi rapidamente adotada pelos teólogos cris­
tãos, como vemos nos primeiros escritos de Santo Agostinho, nos 
Padres gregos, e nas obras que chegaram até nós como de Pseudo­
-Dionísio, o Areopagita . Houve uma evolução um tanto similar na 
teologia filosófica da época moderna nos séculos XVII e XVIII, fruto 
do deísmo e do racionalismo. Entretanto, esse movimento moderno 
tendeu a perder o caráter religioso tão logo se separou da tradição 
cristã, e prontamente deixou de apresentar qualquer traço daquelas 
tendências contemplativas ou místicas que caracterizaram a tradição 
helênica mais antiga . Por conseguinte, nos tempos modernos a aliança 
histórica entre a teologia natural e a teologia da revelação foi rompi­
da, salvo no caso do tomismo, que estava aferrado na antiga tradição. 
A moderna teologia protestante, em especial a escola de Karl Barth 
( 1 886-1968 ) , rejeitou como completamente falsa e inútil qualquer 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 2 
teologia filosófica ou racional e se recusou, até mesmo, a admitir a 
existência de qualquer forma de conhecimento religioso autêntico, a 
não ser o presente na revelação bíblica e apreendido pela fé divina. 
Se, porém, aceitarmos o princípio barthiano, a total inexistência de 
qualquer canal natural de compreensão entre Deus e o homem torna 
difícil ver como o ato de fé pode ser deduzido, a não ser para aqueles 
que já possuem algum tipo de fé. O Deus que falou a Abraão não era 
um ser totalmente desconhecido. Era alguém já aceito ou tido como 
existente, como o Deus dos patriarcas. 
Não existe, entretanto, nada na teologia natural ou na ideia filo­
sófica de Deus que contradiga ou exclua a ideia de Revelação. Uma 
vez admitida a existência de um ser divino transcendente, que é ob­
jeto de veneração e preces humanas, é concebível que tal ser venha a 
intervir na vida humana ao manifestar sua vontade ao homem ou ao 
estabelecer algum canal de comunicação. A dificuldade de crer nisso 
não repousa em uma possibilidade ou probabilidade abstratas, mas 
na aparente impossibilidade de o homem compreender o desígnio 
divino ou seu modo de operação. É óbvio que se o homem tivesse 
de possuir o poder de influenciar o comportamento dos insetos por 
meios científicos, o inseto seria incapaz de compreender o que estava 
acontecendo, e isso só poderia ser explicado a partir da perspectiva 
humana. Todavia, a diferença entre Deus e o animal racional é muito 
maior que a existente entre o homem e o mundo dos insetos, e é in­
concebível que a inteligência humana possa compreender o processo 
de revelação divina, muito embora o homem seja o receptor. Deus 
não é somente o doador da Revelação, é também aquele que deve 
criar o veículo para sua transmissão e a disposição para recebê-la . 
Os cristãos admitem a ideia de uma Palavra que, de algum modo, 
é comum a Deus e ao homem, no entanto, isso é uma verdade de fé, 
inalcançável pela razão humana. Ela contém aquilo que os teólogos 
gregos denominam "economia " divina - uma adaptação da verdade 
divina aos meios de compreensão humanos, seja por uma escritura 
1 08 l 1 09 
inspirada, como no caso dos profetas hebreus, seja por uma dispen­
sação histórica, como na história do povo eleito, ou, sobretudo, pelo 
mistério central da Encarnação em que o Verbo de Deus é encarnado 
numa pessoa histórica humana e divina. Isso marca um novo início na 
história da raça humana - uma nova criação pela qual a humanidade 
é elevada a um nível espiritual superior que transcende a vida natural 
e o conhecimento racional do animal humano. 
É verdade que o homem pode fazer um estudo racional dessa 
suprema dispensação e do conteúdo da Revelação - estudo tradicio­
nalmente conhecido como ciência teológica, mas, a função de pes­
quisa, nesse estudo, está estritamente limitada, já que os dados nos 
quais se apoia são verdades de fé que transcendem a esfera da razão. 
Por sua vez, a extensão da Revelação e a vida do Verbo Encarnado 
na Igreja cria uma espécie de zona intermediária entre Deus e o ho­
mem que é " sobrenatural " na linguagem dos teólogos, mas, apesar 
disso, é tão acessível à experiência e ao estudo racional quanto o 
restante da história humana . Essa penetração da linguagem divi­
na no mundo do discurso humano é uma concepção difícil para a 
moderna inteligência secular compreender ou assimilar, no entanto, 
é parte essencial da visão cristã de história e, não menos ou dificil­
mente menos, da visão judaica ou muçulmana. De fato, até certo 
ponto, é uma característica de todas as grandes religiões; mesmo 
aquelas, como o hinduísmo, que parecem, à primeira vista, estar 
baseadas em teorias metafísicas e especulações. 
Aquelas religiões que estão, ou alegam estar, fundamentadas na 
pura razão nunca tiveram nenhuma influência profunda na vida es­
piritual da humanidade ou da história humana. A Religião Natural 
ou Deísmo dos filósofos do século XVIII, a Religião da Humanida­
de positivista do século XIX, ou as tentativas mais recentes de cons­
truir uma religião puramente ética despertam algum interesse pela 
luz que lançam sobre a cultura contemporânea, mas todas falharam 
totalmente no campo da religião como tentativas de oferecer um 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 2 
substituto humano para as religiões históricas que requeriam fé e uma 
Revelação divina. 
A religião autêntica, mesmo na mais simples e elementar das for­
mas, penetra mais profundamente que a razão. Alcança os níveis mais 
profundos da alma e da consciência humanas. Há na natureza huma­
na uma fome e sede de transcendência e de divino que não podem 
ser satisfeitas com nada menos que Deus, e já que o conhecimento de 
Deus excede toda a medida da razão humana, o estudioso de religião 
é conduzido ao início desse estudo e se vê diante de uma dificuldade 
fundamental que parece intransponível . Como escreveu Santo Ansel­
mo ( 1 033- 1 1 09 ) , "Ó luz suprema e inacessível; ó verdade profunda 
e bem-aventurada, como estás distante de mim, embora eu estej a tão 
perto de ti ! Quão afastada te encontras do meu olhar, quando eu es­
tou continuamente presente ao teu ! Tu estás presente, inteira, em toda 
parte e eu não te vejo ! " . 4 
Esse paradoxo foi compreendido e plenamente aceito pelos 
grandes pensadores cristãos do passado, como Santo Agostinho, por 
exemplo, São Gregório Nazianzeno (329-3 89 ) ou Santo Anselmo. Na 
verdade, todas as mentes naturalmente religiosas, mesmo fora da cris­
tandade ou em qualquer religião revelada, reconhecem o ser divino 
como um mistério que transcende a inteligência humana e é inaces­
sível à razão e, ao mesmo tempo, como realidade misteriosamente 
presente na alma humana - uma realidade que tudo abarca na qual 
"vivemos, nos movemos e existimos " (Atos dos Apóstolos 1 7,28 ) . 
Isso não quer dizer, todavia, que o conhecimento d e Deus é pu­
ramente intuitivo e que a razão é incapaz de afirmar a verdade da 
existência de Deus. O pensamento humano sempre esteve consciente 
da necessidade de uma causa primeira ou um princípio absoluto do 
4 Santo Anselmo da Cantuária, Proslógio, XVI. Utilizamos a tradução em 
língua portuguesa da coleção "Os Pensadores" na seguinte edição brasileira: 
Santo Anselmo da Cantuária, Proslógio. Trad. Angelo Ricci. São Paulo, Abril 
Cultural, 1 973, p. 11 9 . (N. T. ) 
1 1 o 1 1 1 1 
ser para explicar a existência do mundo natural ou do ser contin­
gente . Um mundo de puro vir-a-ser, sem princípio ou fim, sem causa 
ou fundamento, seria um caos onde a própria razão não poderia 
existir. Desse modo, o homem está consciente da existência de um 
princípio de unidade e de ordem no universo, e não pode introduzir 
tal princípio no mundo da razão, da ciência e da filosofia, caso ele 
mesmo seja o produto irracional de um mundo desordenado - faís­
cas lançadas no caos. 
Essa concepção do universo como uma ordem inteligível inspi­
rou toda a evolução da ciência ocidental, e de modo semelhante, na 
Antiguidade Clássica e na Época Moderna; e o período formativo 
da moderna ciência de Galileu Galilei ( 1 564- 1 642) a Isaac Newton 
( 1 643- 1 729) a crença em Deus como causa primeira e criador da or­
dem da natureza, bem como regente supremo e j uiz do mundo moral, 
formava uma parte essencial do Weltanschauung. Sem dúvida, tais 
crenças foram sendo racionalizadas e antropomorfizadas pela vulga­
rização filosófica do deísmo e as vulgarizações teológicas da teologia 
cristã, como a de William Paley ( 1 743- 1 805 ) . Não obstante, como 
observou o professor Alfred North Whitehead ( 1 86 1 - 1 947) na obra 
Science and the Modern World [A Ciência e o Mundo Moderno]5 de 
1 925, os feitos da ciência moderna dificilmente são concebíveis sem 
essa preparação teológica que estabeleceu uma ligação entre a ordem 
subjetiva da razão humana e a ordem racional objetiva no universo 
de onde se origina e, a partir daí, afirma o criador divino. 
A secularização da ciência moderna e da civilização, em parte, 
deve sua criação à teologia natural do século XVIII ter sido desacredi­
tada pela superficialidade, e mais ainda aos efeitos da especialização, 
que tornou o cientista moderno em tecnólogo, e não em "filósofo na­
tural " . Uma civilização tecnológica como a nossa tem uma tendência 
5 Alfred North Whicehead, A Ciência e o Mundo Moderno. Trad. Hermano 
Herbert Waczlawskied. São Paulo, Paulus, 2006 . (N. T. ) 
A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 2 
natural ao secularismo, visto que estende os limites do controle social 
até tornar o homem prisioneiro dentro de um mundo artificial criado 
por ele mesmo. 
No passado, especialmente nas culturas agrárias, o homem era 
imediatamente dependente da natureza e a vida estava intimamente 
ligada ao ciclo natural das estações, da época do plantio e da co­
lheita, e essa dependência de poderes que estavam fora do controle 
familiarizou-o com as concepções de Mistério e de Providência Divi­
na. Atualmente, o Mistério foi banido do cotidiano do homem. Se as 
coisas dão errado, ele busca auxílio no governo ou na ciência em vez 
de buscar em Deus e na religião. Não há dúvida de que isso libertou a 
humanidade do fardo da superstição e do medo irracional, mas tam­
bém deixou o homem à mercê das próprias invenções e substituiu o 
mistério da natureza e o poder de Deus pela onipotência do monstro 
criado pelos homens: o Estado burocrático e tecnocrático, o novo 
Leviatã . Quando esses novos poderes são plenamente desenvolvidos 
pela organização social dos meios de comunicação de massa e pelos 
métodos científicos de controle psicológico, o Estado secular se torna 
quase automaticamente totalitário, de modo que não há mais espaço 
para a liberdade espiritual do homem. 
Apesar disso, a natureza essencial da situação humana não se 
modificou com o advento da ciência e da tecnologia. O homem mo­
derno pode deificar essas coisas e criar uma religião de "Humanismo 
Científico" que oferece a perspectiva utópica do progresso ilimitado. 
Mas todas essas construções são inevitavelmente frágeis, já que estão 
na dependência da vontade e paixões humanas, bem como da inteli­
gência, e vemos em nossa própria geração quanto o elemento irracio­
nal na natureza humana pode se mostrar mais forte que a inteligência 
científica, de modo a perverter todos os recursos da civilização tecno­
lógica para fins mais vis e destrutivos. 
A natureza humana sempre conserva na memória o caráter espi­
ritual - a ligação com o transcendente e o divino. Se tivesse de perder 
1 1 2 1 1 1 3 
isso, deveria libertar-se e tornar-se serva de forças inferiores, de modo 
que a civilização secular, como Friedrich Nietzsche ( 1 844-1 900) a 
viu, conduziria inevitavelmente ao niilismo e à autodestruição. Se 
olharmos o mundo hoje, isolando-o do passado e do futuro, as forças 
do secularismo parecem triunfantes. Isso, no entanto, não é senão um 
momento na vida da humanidade e não possui a promessa de estabi­
lidade e permanência. A lição da história leva a entender que existem 
tradições duradouras que podem ser temporariamente obscurecidas, 
mas guardam sua força implícita e, cedo ou tarde, voltam a se afirmar. 
Tal ocorre com a tradição da cultura cristã hoje. Ela não desapareceu, 
mas experimentou uma grande perda de influência e prestígio devido 
às mudanças sociais nos dois últimos séculos que transformaram os 
sistemas educacionais, assim como a ordem política e econômica. 
A diminuição temporária do elemento religioso na cultura 
aumenta enormemente a dificuldade de nossa tarefa . Torna todo estu­
do teológico uma tarefa árdua - um nadar contra a corrente de nossa 
época. Em muitos casos isso significa uma verdadeira ocultação do 
divino, uma perda daquele senso espontâneo de valores religiosos que 
era uma parcela normal da experiência humana no passado. É como 
se Deus voltasse a face contra nossa civilização e deixasse o mundo 
em trevas espirituais. 
Sabemos, não somente por nossa fé como cristãos, mas pelo es­
tudo imparcial da história da cultura humana, que esse é um estado 
de coisas transitório e excepcional . Cedo ou tarde, certamente, a cor­
rente mudará e o homem recuperará o sentido dos valores espirituais 
e o interesse nas realidades supremas. Na verdade, creio que isso já 
está acontecendo e o presente século está a testemunhar o ressurgi­
mento da consciência religiosa . Isso é apenas uma opinião privada, 
pois ninguém é capaz de saber para onde a própria geração está se 
dirigindo. As grandes mudanças espirituais que alteram o curso da 
história tem origem abaixo do nível da consciência e não se mani­
festam plenamente até que o fruto esteja maduro. Veremos ao longo 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 2 
deste estudo quantas vezes foi esse o caso, tanto para o bem quanto 
para o mal. 
Ao estudar o processo de expansão e contração da cultura cristã 
na sucessão das eras históricas, analisamos um processo natural que 
segue o curso normal de formação e mudança cultural. Estamos, no 
entanto, estudando também um mistério religioso - a vida de Cristo 
na história -, a progressiva percepção da humanidade pela ação da 
revelação divina, a extensão da Encarnação na vida da Igreja . Este é 
um aspecto da doutrina católica que hoje está sendo mais trabalhado 
do que nunca por teólogos e é importante que ganhemos uma ideia 
geral a respeito disso antes de embarcar no estudo da cultura católi­
ca. Está exposto de modo muito simples e conciso na carta pastoral 
Essor ou déclin de l'Église6 [Crescimento ou Declínio da Igreja] do 
finado cardeal Emmanuel-Célestin Suhard ( 1 874- 1 949 ) . E tem sido 
desenvolvida com mais profundidade por uma série de escritores mo­
dernos como Karl Adam ( 1 876- 1 966 ) , Henri de Lubac ( 1 896- 1 991 ) e 
Yves Congar ( 1 904- 1 995 ) , mas os fundamentos teológicos foram ofe­
recidos por teólogos do renascimento católico do século XIX como 
J. Adam Moehler ( 1 796-1 8 3 8 ) e Matthias Joseph Scheeben ( 1 835-
18 8 8) . Se estudarmos esta ou uma série dessas ideias, elas nos levarão 
a mergulhar muito profundamente na teologia, mas ao mesmo tem­
po, creio, irão lançar novas luzes sobre a cultura cristã e a visão cristã 
do significado da história . 
6 Carta pastoral escrita pelo cardeal Suhard, na ocasião arcebispo de Paris, 
em fevereiro de 1 947. Apesar de ter sido escrita para adiocese parisiense, o 
documento ganhou relevância mundial pelo tema . (N. T. ) 
1 1 4 1 1 1 5 
C a p í t u l o 3 1 A N a t u r e z a d a C u l t u r a 
O estudo da cultura cristã é de singular importância, primeiro, 
porque é necessário para a compreensão de nosso passado e de nosso 
modo tradicional de cultura e, em segundo lugar, por causa da excep­
cional riqueza de material disponível para estudo. Não só possuímos 
uma riqueza inigualável de documentos religiosos a respeito da evolu­
ção do cristianismo por dezenove séculos, como também temos uma 
tradição histórica contínua pela qual esses documentos podem ser 
situados no tempo e no espaço num grau que, dificilmente, alcança­
mos em qualquer das outras grandes culturas. Na Índia, por exemplo, 
também temos a grande riqueza dos escritos religiosos, mas muitas 
vezes não temos, no presente, um conhecimento detalhado do passa­
do histórico das culturas hindus. Em outros casos, temos toda uma 
tradição histórica, mas há hiatos nos registros · religiosos, de maneira 
que nosso conhecimento da cultura cristã é mais profundo e amplo 
que o de outras culturas contemporâneas mundiais. 
Devido, sobretudo, à progressiva expansão da cultura cristã, ini­
cialmente, pela conversão dos impérios romano e bizantino, depois pela 
conversão da Europa Setentrional e Ocidental e em terceiro lugar, pela 
expansão ao Novo Mundo e sua participação no avanço da exploração 
mundial e das descobertas científicas, tal cultura adquiriu uma visão 
de mundo universal como nenhuma outra civilização jamais possuiu. 
É verdade que o pleno desenvolvimento dessas tendências mundiais fo­
ram pós-cristãs e não cristãs, mas nenhum dos modernos movimentos 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 3 
ideológicos mundiais: o Iluminismo, o Liberalismo, a Democracia e o 
Socialismo são compreensíveis sem o conhecimento da cultura cristã 
que subjaz a todos. É um campo de estudo muito complexo. 
A cultura histórica da cristandade encontra-se a meio caminho 
entre a transformação moderna da cultura ocidental em uma cultura 
mundial, que é o fenômeno característico da presente era, e as primi­
tivas formas de cultura cristã que surgiram no mundo mediterrâneo e 
na Europa Ocidental há mais de quinze séculos. 
Antes, todavia, de tentarmos traçar a história desse ou de outros 
avanços, primeiro devemos voltar ao início e estudar a natureza da 
cultura e o processo de mudança e de evolução cultural . 
Cultura é o nome dado para a herança social do homem - tudo 
o que o homem aprendeu do passado via processo de imitação, edu­
cação e aprendizagem e tudo aquilo que passa adiante como cos­
tume para os descendentes e sucessores. Isso inclui a totalidade do 
que o homem tem e é. Se fosse possível separar completamente um 
indivíduo de sua cultura e herança social, seria um sujeito estúpi­
do, a viver num mundo privativo de sentimentos amorfos, inferior 
ao das feras, já que não teria mais a orientação dos instintos, base 
do comportamento animal . Por isso, qualquer sociedade humana, 
sej a primitiva ou bárbara, é uma cultura, e é o processo cultural ou 
tradição que cria a sociedade. Mesmo os povos muito simples e pri­
mitivos podem reconhecer intuitivamente a diversidade das culturas 
e a importância, para cada povo, de seu modo de vida particular. 
Ruth Benedict ( 1 8 8 7- 1 949 ) cita um momento memorável de uma 
conversa que travou com um índio da Califórnia . "No início" , disse 
ele, "Deus deu para todos os povos uma taça, uma taça de barro, 
e dessa taça beberam a vida . [ . . . ] Todos a mergulharam na mesma 
água, mas as taças eram diferentes. Nossa taça agora está quebrada. 
Ela desa pareceu " . 1 
1 Ruth Benedict, Patterns of Culture. Boston, Houghton Mifflin Co., 1934, p. 33. 
1 1 6 1 1 1 7 
Do mesmo modo, nenhuma sociedade pode tornar-se tão avan­
çada que transcenda a cultura . A civilização também é uma cultura 
que segue as mesmas leis de crescimento e evolução da cultura primi­
tiva, embora possa ter-se tornado incomparavelmente maior e mais 
complexa . Assim, a distinção entre cultura e civilização é um tanto 
arbitrária . Eu mesmo sigo a tradição que define civilização como um 
estágio de cultura mais elevado, associado ao crescimento das cidades 
e ao uso da escrita - a forma de cultura que surgiu primeiramente na 
Mesopotâmia e no Egito há uns 5 mil anos e que, aos poucos, se disse­
minou, até abarcar todo o mundo habitado. Assim, a civilização é um 
fenômeno comparativamente recente, apesar das enormes mudanças 
que produziu na vida humana e no meio ambiente. Se nosso conhe­
cimento do passado continuar a avançar, como ocorreu nos últimos 
cem anos, pode ser que, por fim, venhamos a ser capazes de escrever a 
história da civilização como escrevemos, hoje, a história do Estado ou 
da nação. Cinco ou mesmo 10 mil anos são apenas um momento na 
vida da natureza. Todo o curso da civilização humana e todas as suas 
obras, contudo, são apenas uma questão de uns milhares de anos. E 
esse é um processo contínuo que ainda está a se desenvolver, de modo 
que, ao estudamos o crescimento da civilização, somos testemunhas 
vivas da maior de todas as obras criadas. 
Como chegamos a tal milagre ? Como aconteceu do homem, den­
tre as inúmeras formas de vida que existiram neste planeta, ter sido 
capaz de se destacar dos outros animais, mudar o modo de viver e, 
por fim, transformar o mundo em que vive ? Não sabemos exatamente 
como e quando o homem veio a existir, mas sabemos que a humani­
dade é muito mais antiga que a civilização: os primórdios remontam 
o período geológico e, mesmo nessas eras distantes, a natureza hu­
mana diferia dos outros animais e já haviam sido lançadas as bases 
sociais sobre as quais a civilização, por fim, seria erigida. 
Não basta dizer que o homem é um animal social, pois Aristóteles 
(3 84-322 a.C. ) , o pai da antropologia, reconhecia outros animais -
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 3 
como as abelhas, por exemplo - também como amma1s sociais. 
O homem, como diz Aristóteles, diferente dos outros animais, é dota­
do de fala; e essa faculdade distingue as comunidades humanas de ou­
tras sociedades animais, comunidades que não são regidas totalmente 
pelo instinto, mas possuem maiores possibilidades de comunicação, 
compreensão e cooperação social. 
"No princípio era o Verbo" (João 1 , 1 ) . A língua é o portal para 
o mundo humano, que também é um mundo moral, já que, como diz 
novamente Aristóteles: 
[ . . . ] a fala tem a finalidade de indicar o conveniente e o nocivo, e portanto, 
também o justo e o injusto; a característica específica do homem em com­
paração com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do 
bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais, e é a co­
munidade de seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade.2 
A língua é mais antiga que a civilização e suas origens se repor­
tam aos primórdios da cultura humana e, portanto, ao princípio da 
própria humanidade. Não sabemos, todavia, quando esse aconteci­
mento deveras importante ocorreu, e a história da linguagem não nos 
deixa nenhuma pista, pois não há nada como uma língua primitiva e 
não há nenhuma prova de algum estágio intermediário que prepare o 
caminho para o surgimento de formas superiores de discurso. A hipó­
tese dos antigos etnólogos de que quanto mais descemos na escala da 
cultura, mais empobrecida se torna a língua, e, por isso, os selvagens 
teriam pouco vocabulário e uma gramática escassa, não foi ratificada 
pela pesquisa moderna . Ao contrário, as línguas de povos antigos, 
assim como suas formas de organização social, todas, demonstram 
impressionante grau de desenvolvimento e complexidade. 
2 Aristóteles, A Política. Livro I, 1 253a. Utilizamos a versão da seguinte edição 
brasileira: Aristóteles, A Política. Int., trad. e notas Mário da Gama Kury. Bra­
sília, Editora Universidade de Brasília, 1 985 . Vale notar que tanto no texto de 
São João quanto na passagem citada deAristóteles, o que foi traduzido por 
"verbo" ou " fala " , respectivamente, é a palavra grega "/ógos" . (N. T. ) 
1 1 8 l 1 1 9 
Sem dúvida é possível, e mesmo provável, que criaturas humanoi­
des tenham existido na Terra por muito tempo, antes da evolução da 
língua. Certamente, diversos antropólogos acreditam que a língua te­
nha surgido somente nos últimos estágios do Pleistoceno, e que os ar­
tífices de machadinhas do período Paleolítico Inferior não possuíam 
a capacidade de falar. Neste caso, no entanto, não eram homens 
no sentido pleno da palavra, e devemos situar o advento do homo 
sapiens num período relativamente tardio no registro arqueológico. 
O fato de ser possível ensinar macacos a andar de bicicleta, mas de ser 
impossível ensiná-los a falar, sugere que é o uso do idioma, e não o de 
ferramentas, a característica essencial da humanidade. A fala, e não 
a lança ou a pá, é a força que cria a cultura humana . A invenção da 
língua foi o primeiro passo no processo que conduziu à civilização, e 
nenhuma das invenções humanas subsequentes - a agricultura e a do­
mesticação dos animais, o uso dos metais e a descoberta da escrita, a 
construção da cidade e do Estado - ainda que importantes, podem ser 
comparadas com esse arquétipo e fonte de toda a atividade cultural . 
Sem o idioma teria sido impossível ao homem libertar-se do domí­
nio dos instintos que determinam a vida imutável da existência não hu­
mana. É somente por intermédio da língua que o homem pode transmi­
tir a memória da experiência passada para as gerações futuras e, desse 
modo, gerar o acúmulo de conhecimento que é a condição da cultura . 
A língua é o veículo da tradição e o meio da comunicação social, e esses 
são dois fatores importantes que tornam possível a cultura humana. 
A cultura é um modo de vida comum pelo qual o homem se ajus­
ta ao ambiente natural e às necessidades econômicas. É condicionada 
pelos mesmos fatores fundamentais que determinaram a evolução das 
espécies animais - a interrelação entre organismos, meio ambiente 
e função. No entanto, a mera diferenciação de sociedades por tais 
fatores não é uma explicação suficiente de cultura. Foi o advento do 
idioma que acrescentou uma nova dimensão à sociedade e conferiu 
um novo caráter, especificamente humano, a todos os elementos. 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 3 
A língua amplia a herança física do sangue pela herança espiritual da 
memória e da tradição, que torna a comunidade consciente da pró­
pria existência no passado, de sua continuidade e experiência histó­
ricas, por meio das quais é possível generalizar invenções individuais 
e transmitir técnicas adquiridas. Por fim, e principalmente, a língua 
permite ao homem pensar, o faz criar um novo mundo de imaginação 
e razão. Esse mundo inteligível e psicológico não é menos importante 
para a cultura que o mundo exterior de atividades sociais e econômi­
cas. Um influencia o outro, e a cultura representa o todo complexo da 
vida e do pensamento - modos de comportamento, formas de crença, 
padrões de valores, técnicas, símbolos e instituições - que constitui a 
vida da comunidade. 
Assim, não há motivos para supor que as mais simples e mais 
primitivas formas de cultura e as mais antigas formas dos idiomas 
estavam limitadas a finalidades materiais e utilitaristas. Importância e 
utilidade são conceitos abstratos, e para o homem primitivo uma pre­
ce ou uma fórmula mágica poderiam ser mais "úteis" e, certamente, 
mais poderosas do que uma enxada ou uma cabana. Desde as origens, 
a cultura humana sempre foi útil e dinâmica, no entanto, já que a 
língua se encontra na raiz da cultura, o dinamismo desta está incorpo­
rado no poder da palavra, ao menos no trabalho e na guerra . Quanto 
mais primitivo o nível cultural, maior parece ser a importância que o 
homem confere aos nomes. Dar e conhecer os nomes parece encerrar, 
para os povos primitivos, um elemento de poder e controle sobre a 
coisa nomeada, e são rigorosamente análogos às formas simbólicas de 
ritual e arte, expressões similares do caráter dinâmico da cultura pri­
mitiva, como podemos ver com maior clareza nas pinturas rupestres 
do período Paleolítico Superior, que exprimem o dinamismo da cul­
tura primitiva com extraordinária força e proximidade. Arte, gestos e 
língua estão intimamente relacionados como formas de comunicação 
simbólica, mas desses três a língua é, de longe, a mais importante, 
visto que interpenetra no todo da cultura e não há nada na cultura 
1 20 1 1 2 1 
que nela não esteja refletido. Cultura e língua são aspectos insepa­
ráveis de um mesmo processo, de modo que é impossível admitir a 
existência de uma sem a outra . Ademais, ambas são parecidas, ao se 
organizarem em sistemas com determinada unidade formal . A língua 
não é uma simples compilação de palavras; é, como diz Edward Sapir 
( 1 8 84- 1 939 ) , " uma organização simbólica, criativa e autônoma"3 que 
pode ser comparada a um sistema matemático. 
Do mesmo modo, a cultura não é uma simples coletânea de "tra­
ços culturais" - costumes, hábitos, instituições e crenças -, é um sis­
tema organizado de vida social e comportamento com leis próprias e 
princípios de desenvolvimento, que são distintos das forças ecológi­
cas, geográficas e biológicas externas que condicionam sua existência. 
Desse modo, uma cultura e sua língua, tomadas em conjunto, formam 
um mundo autônomo de significados e existência que é, realmente, o 
único mundo de significado e vida, a qual é, na verdade, o único mun­
do do qual o indivíduo está consciente. É criado pelo homem, visto 
que é produto da criatividade humana e da capacidade do homem de 
comunicação simbólica. O indivíduo, todavia, não está ciente disso, 
já que tanto a cultura quanto a linguagem são processos inconscientes 
nos quais os homens estão imersos desde a mais tenra infância e que 
são a base das primeiras atividades sociais e individuais. 
O homem vive nessa teia multicolorida e repleta de contornos 
que sua cultura e história criaram, como a abelha na colmeia e o 
pólipo nos recifes de coral . No entanto, como todas as sociedades de 
insetos e de animais da mesma espécie são sempre iguais e mantêm 
as formas inalteradas ao longo de gerações, todas as culturas são di­
ferentes e possuem forças de expansão e mudança, de adaptação e 
assimilação, que não existem em outras formas de vida. 
3 Edward Sapir, " Conceptual Categories in Primitive Languages " . ln : 
The Collected Works of Edward Sapir. Berl im, Mouton de Gruyter, 
2008, p. 4 9 8 . (N . T. ) 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 3 
Esse novo princípio de mudança dinâmica, característico da cul­
tura humana, é, por certo, inseparável do dom da linguagem, sem o 
qual a evolução da cultura seria impossível. Não há dúvida de que ao 
olharmos para formas de cultura tão inconfundíveis e diferenciadas 
como as do antigo Egito ou a da China do século XVIII e notarmos 
como mantiveram as instituições especiais e tradições intactas por 
milhares de anos, é fácil concluir que são mundos fechados, imunes à 
mudança e à influência externa. Tal imunidade, entretanto, é sempre 
relativa . Até a mais estável e estática das culturas está em constante 
mudança, e quanto mais adiantada se torna, maior é a capacidade 
de assimilação e receptividade. Uma cultura, diferente de um modo 
de vida animal, é um sistema aberto - aberto não só para novos co­
nhecimentos e modos de comportamento, mas também para outras 
culturas, caso possa ser estabelecida uma ponte de comunicação e 
contato social entre elas. 
Isso é possível , sobretudo, pelo fato de o indivíduo não estar 
atrelado a sua cultura como o animal está confinado ao próprio 
modo de vida pelo instinto e por hábito inatos. Cultura e idioma 
são adquiridos via comunicação social, de modo que a cultura do 
indivíduo não depende do berço, mas da educação, e os indiví­
duos podem ser transferidos de uma para outra cultura por um 
processo de reeducação e adaptação social . Mesmo quando umacultura tenta separar-se das demais culturas vizinhas por urna polí­
tica deliberada de exclusão e isolamento, como o Japão nos séculos 
XVII e XVIII, ou como hoje e outrora a União Soviética , há sempre 
indivíduos que, por uma ou outra razão, buscam ou são compe­
lidos a abrir caminhos, como prisioneiros ou reféns, mercenários 
ou comerciantes, missionários ou renegados, tornando-se agentes 
de difusão e mudança. Um prisioneiro escravizado, vítima de um 
ataque brusco dos bárbaros, como São Patrício, pode tornar-se o 
ponto de partida de um movimento de mudança religiosa e cultural 
que transforma toda a cultura. 
1 22 l 1 23 
Dessa maneira, o mundo dos homens é dividido numa multiplici­
dade de culturas diferentes e separadas, mas capazes de comunicação. 
Todas, da civilização mais alta à mais inferior forma de barbarismo, 
possuem certos elementos em comum: língua, religião e ritual, mora­
lidade, arte, tecnologia, organização social, leis e costumes, educação 
ou inculturação e, em muitos casos, esse elemento de paralelismo cul­
tural é tão nítido que o observador é levado a traduzir as formas de 
uma cultura estrangeira em termos da cultura que lhe é familiar. 
Graças a tal semelhança básica, é comparativamente fácil para 
um povo ou classe de conquistadores unirem diferentes culturas em 
uma mesma estrutura política comum, tendo por base os impostos ou 
a servidão, e esse pode ser o ponto de partida de um processo de difu­
são cultural e de fusão que, em última análise, produz uma nova cul­
tura . E se essa cultura é suficientemente adiantada para os homens se 
conscientizarem do processo de mudança, como foi o caso do império 
mundial da Antiguidade, a ideia de uma civilização comum começa a 
surgir, isso quer dizer, surge uma norma padrão de cultura que pode 
ser aplicada a diversas sociedades e que não são necessariamente uni­
formes, mas possuem certo grau de comunicação cultural . A partir 
daí estamos apenas a um passo da concepção de "mundo civiliza­
do" , um mundo que é visto como coextensivo tanto à realidade social 
quanto à geográfica, o "mundo habitado" ou oecumene da Grécia 
helenística, o orbis terrarum dos romanos, ou "todas as coisas sob o 
Céu " dos chineses. Assim, por milhares de anos, o homem no Oriente 
e no Ocidente tem visto o mundo e a humanidade desse modo uni­
tário, mas limitado, como um círculo de luz cercado por um halo de 
trevas, uma ilha de civilização em um mar de barbarismo. 
No início, contudo, cada povo deveria considerar-se assim, de 
modo que toda a cultura deve ter parecido ser a única maneira cor­
reta de vida possível para um homem razoável . Isso é sugerido pela 
frequência com que nomes tribais ou nacionais correspondem a pa­
lavra usada para designar "homem", como se qualquer um fora da 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 3 
comunidade de fala e cultura comuns não fosse plenamente huma­
no. Decerto, a evolução original dos diferentes idiomas supõe certo 
grau de isolamento cultural, já que nunca poderiam vir a existir, 
caso os falantes não vivessem em mundos de pensamento e cultura 
diferentes, sem uma relação regular com outras sociedades. Assim, 
a comunidade de língua é a mais fundamental das culturas . Como 
o uso da língua distingue o homem dos outros animais, da mesma 
forma é a formação e o uso de determinado idioma que distingue 
uma de outra cultura . 
Na verdade, esse não é mais o caso quando chegamos às formas 
elevadas de cultura que chamamos civilização. Aí encontramos exem­
plos de culturas comuns com diferentes línguas, como o caso do bre­
tão, do provençal e do basco, que ainda são faladas por minorias que 
partilham a herança comum da cultura francesa. Não obstante, essas 
diferenças linguísticas correspondem às antigas divisões culturais e re­
montam a uma época em que o bretão, o provençal e o basco tinham 
uma existência cultural separada. Por outro lado, uma mudança lin­
guística é sempre acompanhada ou precedida por uma mudança cultu­
ral, de modo que o desaparecimento das antigas línguas nativas do sul 
da Europa antes do avanço do latim é prova conclusiva da importân­
cia das mudanças culturais que ocorreram no Império Romano. Do 
mesmo modo, um fenômeno linguístico menor, como o empréstimo de 
palavras e nomes, são provas valiosas da influência e difusão cultural; 
por exemplo, o turco emprestou palavras ao russo ou a presença con­
siderável do elemento árabe no espanhol moderno. 
De todos os elementos da cultura, a língua é o mais suscetível 
ao preciso estudo científico. É muito mais fácil traçar a exata distri­
buição das línguas e o relacionamento entre elas do que a relação 
entre instituições ou formas de comportamento social. E, desse modo, 
enquanto o estudo da cultura ainda está na infância e sujeito a de­
sordens infantis, o estudo da linguagem há muito já estabeleceu sua 
posição e metodologia. Na verdade, o estudo da linguagem sempre 
1 24 1 1 2 5 
foi uma ciência humana padrão e oferece um modelo para as outras 
ciências soc1a1s mais novas. 
Em comparação à linguagem, o estudo da antropologia física e o 
conceito de raça tem, comparativamente, pouca relação com a cultu­
ra, embora sempre tenha exercido uma influência muito deletéria no 
seu estudo. Sem dúvida, nas remotas eras pré-históricas, a segregação, 
condição de diferenciação racial, era igualmente a condição de dife­
renciação cultural, mas tal período é tão remoto que nada podemos 
dizer a respeito das características culturais. De qualquer modo, a 
cultura segue o próprio caminho evolutivo, independente de raça fí­
sica . Encontramos alguns negros que pertencem à cultura islâmica e 
outros que partilham a mesma cultura dos anglo-americanos ou dos 
brasileiros, embora as próprias culturas autóctones da África negra 
contenham elementos derivados de fontes não negras. É verdade que 
a consciência de um sangue comum, sej a real ou fictício, tem uma 
enorme e importante influência na unidade social e cultural, mas esse 
é, comparativamente, um fator de curto prazo e a unidade resultan­
te é tribal ou nacional, não racial. Certamente, uma nação de des­
cendência racial mista pode ter maior consciência de unidade e uma 
capacidade maior de herança cultural que um grupo relativamente 
puro, em termos raciais. 
Infelizmente, nos tempos modernos há uma tendência a exagerar 
o elemento racial na nacionalidade e a atribuir os elementos de mais 
alto valor na tradição de uma cultura às características inatas de uma 
suposta raça superior, e este talvez seja o maior fator isolado de mú­
tua intolerância e antagonismo entre nações e civilizações. Na reali­
dade, uma cultura se parece mais com a língua que com a raça . Como 
a língua é um modo particular de comunicação criado por um grupo 
de homens para expressar ideias e necessidades comuns, portanto, 
uma cultura é um modo particular de comportamento desenvolvido 
por um grupo de homens que os permite ter sucesso na vida, dadas 
as circunstâncias particulares e o ambiente . A língua, em si, é somente 
A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 3 
uma parte da cultura, mas é o aspecto da cultura que melhor define e 
se destaca com maior clareza dos elementos não culturais. A cultura, 
como um todo, é muito mais difícil de compreender, já que encerra 
vários fatores, de modo que uma cultura altamente desenvolvida é, 
talvez, o fenômeno mais complexo que podemos estudar. Mesmo no 
caso de uma cultura imaginável ou da mais simples que conhecemos 
existem, ao menos, quatro fatores sem os quais ela não pode existir. 
São eles: ( 1 ) o fator sociológico, ou o princípio da organização social; 
(2 ) o fator geográfico ou ecológico - a adaptação da cultura ao meio 
ambiente físico; ( 3 ) o fator econômico - a relação entre o "modo de 
vida " do homem e a maneira como "ganha seu sustento" ; e (4 ) o fator 
moral - a regra da vida humana em conformidade com alguns siste­
mas de valor e padrões de comportamento. 
O primeiro desses fatores é tão fundamental que muitos antro­
pólogos trataram-nocomo o objeto único ou predominante de seus 
estudos, pois, a não ser que compreendamos a estrutura de uma socie­
dade e a natureza da unidade social, não temos bases concretas para 
o estudo da cultura. Cultura e sociedade são aspectos interdepen­
dentes de uma única realidade, e uma não pode existir sem a outra . 
Sem dúvida é possível conceber sociedades sem cultura : na verdade 
sabemos que tais sociedades realmente existem, mas são as sociedades 
de animais ou de insetos, e nenhuma sociedade humana pode existir 
sem uma forma cultural . O mesmo é verdadeiro para a família, que 
é a unidade social por excelência. A família biológica existe entre os 
animais e pode assumir uma forma comparativamente estável, mas a 
família humana é uma unidade cultural, bem como biológica, já que 
é o centro de um sistema organizado de relações sociais e a base de 
uma superestrutura cultural elaborada. 
Ao longo da história humana, desde as formas mais inferiores 
de barbarismo primitivo aos tipos mais avançados de civilização, a 
família manteve sua importância como fundamento da sociedade 
e veículo de continuidade cultural . Nas sociedades primitivas, sua 
1 26 1 1 27 
importância é ainda maior que nos tempos modernos, já que os ho­
mens passavam a vida em pequenos grupos organizados, em maior 
ou menor extensão, pelo princípio do parentesco. Nessas pequenas 
sociedades, a família era o centro da ordem social . Ela se resguarda­
va internamente com um elaborado código de restrições nupciais e 
regras, ramificando-se, exteriormente, numa sucessão de consangui­
nidades, até a maior unidade sociopolítica que conheciam - a tribo 
ou o povo - ser sempre vista como uma espécie de superfamília, cujas 
origens remontam a um ancestral mítico comum. Assim, algumas das 
sociedades mais primitivas que conhecemos, em particular os nativos 
da Austrália Central, possuem um sistema extraordinariamente com­
plexo de parentesco e organização social . 
A ênfase na família e no laço de parentesco também é encontrada 
na religião primitiva. A família, antigamente, não era somente o elo 
entre o presente e o passado; era também o laço entre o homem e o 
mundo espiritual. O culto aos mortos e a adoração ou veneração de 
ancestrais sagrados teve uma enorme e profunda influência na cultura 
humana. Isso ainda está vivo, hoje, na adoração familiar do hinduís­
mo ortodoxo e do confucionismo chinês, e reporta-se temporalmente 
à própria origem da cultura . Nosso conhecimento do homem pré-his­
tórico é derivado, em grande parte, dos indícios de tumbas e funerais, 
que possuíam um significado religioso e, em alguns casos, como nos 
monumentos megalíticos da Europa Ocidental, permanecem como tes­
temunhas impressivas da força da religião pré-histórica que os criou. 
Os povos primitivos atuais demonstram preocupação semelhante 
com o culto aos mortos ou aos divinos ancestrais. Um exemplo ex­
traordinário é o culto totêmico na Austrália, que está ligado, por um 
lado, ao modelo de organização social e, por outro, ao mundo sagra­
do dos divinos ancestrais, de modo que a cultura tradicional austra­
liana está centrada na consciência de uma comunidade sagrada que 
envolve o homem e a natureza, o presente e o passado, em modelos 
atemporais de cerimônias expressos nos ritos e danças tribais. 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 3 
É claro que família e parentesco não são as únicas formas de 
organização social, mesmo nas sociedades mais primitivas. O fator 
local ou ambiente físico e o fator trabalho ou função econômica tam­
bém influenciam a estrutura da sociedade e a forma de cultura desde 
o início. A forma mais elementar de sociedade que conhecemos, o 
" bando" de caçadores ou coletores de alimentos, que possivelmente 
existiram até no período Paleolítico, deve sua unidade não só aos 
laços de parentesco, mas à unidade do território em que viviam. O ta­
manho do bando é limitado pelos recursos alimentares do território, 
e a iniciativa comum da caça ou da busca por alimentos impõe cer­
ta forma de cooperação e disciplina social. Essas diferenças de meio 
ambiente e de fontes de abastecimento alimentar e os modos de ex­
ploração sugerem uma diferenciação de cultura . Não é preciso muito 
estudo científico para perceber que habitantes das montanhas diferem 
de habitantes das planícies e o modo de vida de homens que caçam 
animais nas estepes será muito diferente daqueles que coletam nozes 
e bananas na floresta tropical. 
No entanto, somente quando os antropólogos e etnólogos ini­
ciaram as pesquisas é que foi possível entender quão grandes foram 
os feitos das culturas primitivas e com que arte e domínio técnico o 
homem adaptou seu modo de vida às exigências de um meio natural 
que, muitas vezes, parecia hostil à sobrevivência humana . Nesse par­
ticular, nenhuma cultura é mais impressionante que a dos esquimós 
no Ártico, que é incrivelmente antiga e estável, típica e altamente es­
pecializada. É um exemplo clássico da maneira como um povo pode 
aprender a se adaptar a um ambiente rigoroso e desfavorável criando 
modos de vida adaptados às circunstâncias particulares. 
A cultura esquimó é uma obra de arte - uma arte primitiva de 
caça e de direção de trenós puxados por cães, de lampiões de óleo de 
baleia e arpões de osso, caiaques e iglus, mas, mesmo assim, uma obra 
de arte, já que utiliza os parcos materiais que a natureza oferece com 
admirável habilidade e artifício para construir um mundo social que 
1 28 1 1 29 
é o melhor de todos os mundos possíveis para os esquimós - que se 
denominam innuit, os homens. 
Esse processo de criação cultural não era simples ou inevitável. 
Tem uma longa história que antropólogos e arqueólogos estão come­
çando a descobrir. Há, de fato, várias culturas esquimós e algumas 
delas seguiram caminhos diferentes, como o "povo das renas" , que 
basearam seu modo de vida nas renas e não nas focas, ou o dos es­
quimós de Point Barrow, no Alasca, que aprenderam a caçar baleias. 
Ao longo da história devem ter tido os próprios inventores, homens 
de gênio, artistas e poetas, mas as atividades ficaram, inevitavelmen­
te, restritas ao campo limitado ditado pelos rígidos limites impostos 
pelas dificuldades do meio ambiente físico, de modo que os feitos do 
indivíduo beiram à insignificância se comparados às grandes façanhas 
comunais que os permitiram sobreviver. 
Aqui vemos o problema da cultura definido no mais simples dos 
termos, como a adaptação da sociedade humana ao ambiente natural 
por um modo de vida especial, incorporado na associação de uma 
série de atividades e técnicas. E a adaptação da cultura esquimó ao 
ambiente físico, à primeira vista, é tão íntima que o faz parecer ser um 
produto natural daquele meio ambiente tanto quanto as outras cria­
turas do Ártico. De fato, a cultura esquimó é uma obra de arte, não 
da natureza, e é comparável aos procedimentos de equipagem de uma 
moderna expedição polar, com a diferença de que os esquimós não são 
exploradores, mas colonos que criaram uma série de técnicas que os 
tornam aptos a existir, de modo permanente, além das fronteiras da­
quilo que consideramos mundo habitável. Um processo semelhante de 
adaptação a um ambiente desfavorável pode ser visto na maioria das 
culturas primitivas, em geral, evoluções marginais que descobriram 
um modo de existência, como os bosquímanos do deserto do sul da 
África ou os pigmeus nas profundezas das florestas tropicais. 
Ao longo de toda a evolução humana, não conseguimos descobrir 
nenhuma cultura tão primitiva a ponto de ser totalmente determinada 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 3 
pelas influências naturais do meio ambiente e da função econômica, 
tampouco tão avançada que não esteja condicionada por tais influên­
cias. Mesmo hoje, em nossa civilização tecnológica cosmopolita, so­
ciedades e culturas ainda são influenciadas pelo ambiente natural e 
pelas economias locais, bem como pelas línguas e formas de organi­
zação social. Tendemos a considerar globalmente todas asdiferenças 
sob a representação de um caráter e tradições nacionais. A nacionali­
dade, no entanto, é simplesmente um rótulo conveniente que simplifi­
ca a complexidade de realidades culturais de modo a se conformarem 
ao padrão unitário do Estado moderno, enquanto, ao mesmo tempo, 
representa a volta a ideias primitivas de grande poder de atração, 
como as antigas unidades tribais, o mito do sangue e dos ancestrais 
comuns. A verdadeira unidade da cultura, todavia, não deve ser en­
contrada no sangue, no território, na classe ou na função econômica. 
Cada um desses fatores tem importância; no entanto, nenhum deles 
basta para explicar a natureza íntima de uma cultura . Além de todos 
esses elementos parciais de uma comunidade, uma cultura é, também 
e, sobretudo, uma ordem moral e encerra uma comunidade de valores 
e padrões que oferecem um princípio de unidade interna e moral. 
É óbvio que os homens não podem viver juntos sem observar 
regras, e não há base científica para o preconceito tradicional que 
considerava selvageria e barbarismo como sinônimos de ilegalidade. 
Ao contrário, parece que as sociedades primitivas precisavam de um 
padrão mais rigoroso de conformidade dos membros que o das so­
ciedades civilizadas e que o daquelas sociedades em que a vida do 
indivíduo é regulada por um intrincado sistema de proibições e re­
gras de conduta. Tais regras não são nem puramente utilitárias nem 
exclusivamente morais no sentido que atribuímos a tais palavras. 
A distinção entre usos, costumes, leis e ritos que, para nós, é clara, 
não existe na sociedade primitiva . Todos esses conceitos são parte de 
uma enorme unidade que abraça cada aspecto da vida da tribo e do 
indivíduo. Tal ordem não se restringe a um só homem, ela se aplica 
1 30 1 1 3 1 
também à vida da natureza e se relaciona ao sobrenatural ou às forças 
divinas que regem o universo. 
Podemos objetar que esse conceito é por demais abstrato e "me­
tafísico" para a compreensão do homem primitivo. Entretanto, não 
há nada abstrato na noção de que há uma ligação entre a vida da so­
ciedade humana e a vida da natureza ou na crença de que são forças 
sagradas e misteriosas das quais tanto a natureza quanto o homem 
são dependentes. Tais ideias devem ser encontradas em todas as cul­
turas primitivas e, em qualquer lugar, o mais alto grau de importância 
social está relacionado aos ritos e cerimônias sagradas pelas quais 
pode ser obtida a aj uda das potências superiores e o ordenamento da 
vida humana pode ser coordenado com o ciclo da natureza. As fa­
mosas pinturas rupestres da Cantábria, na Espanha, e da Dordonha, 
na França, são a prova visível da existência de tais ritos no período 
Paleolítico, e sugerem comparações e semelhanças com as práticas re­
ligiosas dos caçadores modernos - por exemplo, o culto aos espíritos 
guardiões dos animais dentre os índios norte-americanos. 
A cultura dos caçadores do Paleolítico europeu é singular devido 
à alta qualidade dos feitos artísticos . Em comparação, a cultura de 
"primitivos" modernos, como os australianos, parece empobrecida. 
A cultura australiana, no entanto, apresenta uma evolução igualmen­
te rica em outra direção, a saber: no elaborado sistema de cerimônias 
e ritos totêmicos que preservam o contato da tribo com o mundo 
sagrado dos ancestrais divinos dos quais, também, depende a vida da 
natureza. Desse modo, a cultura primitiva é uma complexa e entrela­
çada estrutura de ritos e técnicas sagradas, símbolos, mitos, crenças 
e tradições, padrões morais e normas de comportamento que une as 
pessoas como uma unidade moral. 
Dentro dessa unidade o indivíduo passa toda a vida. Isso lhe con­
fere posição social e função, ensina o que fazer e o porquê de fazer 
assim, e confere um senso de participação em uma comunidade que 
transcende a sua experiência pessoal . 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 3 
Decerto, a famosa passagem que Edmund Burke ( 1 729-1 797) es­
creveu a respeito do contrato social se aplica muito melhor às socie­
dades primitivas que ao Estado do século XVIII: 
Não é uma associação com vistas a assegurar a grosseira existência 
animal de uma natureza efêmera e perecível . [ . . . ] é uma associação que 
leva em conta toda a ciência, toda arte, toda virtude e toda perfeição, 
e como os fins de tal associação não são obtidos em muitas gerações, 
[ . . . ] torna-se uma associação não só entre vivos, mas também entre os 
que estão mortos e irão nascer.4 
A universalidade e perfeição espiritual da cultura primitiva, con­
tudo, possuí um empecilho, e de natureza fundamental . Uma cultura 
primitiva é inteligível somente para si mesma. Para o mundo exterior 
não possui significado ou valor. Quando o primitivo está executando 
os grandes ritos de renovação mundial que reestabelecem a vida da 
Terra e evitam a fome e os terremotos, o estrangeiro nada vê além de 
um grupo de selvagens maltrapilhos que se movem em círculos, fazem 
gestos estranhos e emitem sons ininteligíveis. 
Se o estrangeiro é um homem inteligente, pode, por fim, ficar a par 
do significado de tais ritos e aprender a apreciar o espírito da cultura; 
mas, antes disso ocorrer, é bastante provável que tal cultura tenha sido 
destruída e a tribo dispersa pelas forças da mudança . Uma cultura é 
algo muito frágil e o delicado equilíbrio de sua estrutura social é ar­
ruinado assim que os limites espirituais são rompidos e os membros, 
individualmente, perdem a fé na validade e eficiência dessa ordem mo­
ral. O poder estrangeiro pode ser humano: pode ter o cuidado de res­
peitar a vida e a propriedade dos nativos, mas à medida que introduz 
a própria lei, destrói ou desrespeita os valores morais tradicionais do 
povo, corta as raízes vitais da antiga cultura e mina a vitalidade social. 
4 Edmund Burke, Reflexões sobre a Revolução em França. Apres. Connor 
Cruise O'Brien; trad. Renato de Assumpção Faria, Denis Fontes de Souza Pin­
to e Carmem Lídia Richter Ribeiro Moura. Brasília, Editora da Universidade 
de Brasília, 1 982, p. 1 1 6 . (N. T. ) 
1 32 l 1 33 
O mundo de cultura primitiva é um mundo de unidades isola­
das. Cada cultura é um mundo fechado que pode sobreviver somen­
te enquanto permanecer como um todo intacto. Se é assim, como 
surgiram as sociedades altamente civilizadas ? Não podemos ignorar 
a existência de tais civilizações, pois agora ocupam o mundo, e os 
remanescentes das culturas primitivas só existem, por assim dizer, em 
sofrimento. Não obstante, houve um tempo em que esses grandes im­
périos culturais que chamamos de civilizações não existiam e não ha­
via nada no mundo senão uma multidão de culturas primitivas, todas 
pequenas, frágeis e separadas umas das outras por barreiras aparente­
mente intransponíveis de diversidade linguística e cultural . O fato de 
a mudança ter realmente acontecido demonstra que há um elemento 
dinâmico na cultura humana que é capaz de romper as barreiras entre 
os homens e de criar áreas cada vez maiores de comunicação. 
A civilização, assim como as unidades culturais mais simples, 
também encerra um princípio de ordem moral. Vemos isso com ex­
cepcional clareza no caso da China - melhor dizendo, da China con­
fuciana, que ficou preservada por mais de 2 mil anos pelo que parecia 
uma norma imutável, baseada no código de ética e nos padrões de 
comportamento confucianos. O mesmo é verdade para outras cultu­
ras mundiais como a Índia e o islã, o budismo tibetano, o judaísmo e, 
finalmente, o cristianismo no Ocidente. 
As civilizações mundiais são as grandes estradas muito utiliza­
das que a humanidade tem viajado ao longo da história e que, em 
todos os casos, os homens acreditaram seguir o caminho indicado 
pela divindade. No passado muitos acreditaram e, hoje, acreditam 
que suas civilizações não são meras formas de organização social 
que evoluíram ao longo dos séculos, mas são algo que depende de 
uma ordem divina transcendente revelada nos escritos inspirados 
dos profetas e dos legisladores que lançaram os fundamentos da­quelas culturas . Todas as grandes civilizações foram originalmente, 
como dizem os muçulmanos, " povos do livro " . Todas possuíam um 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 3 
corpus de escrituras sagradas, cada uma tinha a própria língua sacra 
e ordem de mestres sagrados, treinados no estudo ou interpretação 
dos escritos e ritos sagrados. Eruditos confucianos na China, brâma­
nes na Índia, ulemás no Islã, rabinos j udaicos e presbíteros cristãos. 
Existe, portanto, uma relação íntima entre as civilizações e religiões 
mundiais que perdura há um longo período e que devemos estudar, 
caso desejemos compreender os ideais que inspiraram essas grandes 
unidades culturais, que em muito transcendem as unidades políticas e 
nacionais e que tendemos a ver como realidades sociais máximas. 
Nem o advento de uma sociedade tecnológica mundial mudou tal 
visão, pois é uma simples ordem exterior. Não traz consigo uma nova 
ordem moral . No plano moral, portanto, ainda existem as influências 
das antigas tradições religiosas a modelar os modos de pensar e de 
agir dos homens. 
C a p í t u l o 4 1 O C r e s c i m e n t o e a D i f u s ã o 
d a C u l t u r a 
1 34 l 1 3 5 
Vimos que aquilo que distingue a cultura humana dos modos de 
vida das sociedades animais é não ter um modo de comportamento 
comum a todos os membros da espécie, mas possuir algo que pode 
ser aprendido e transmitido de homem para homem, de grupo para 
grupo e de geração em geração. Essa capacidade única do homem de 
transmissão de tradição e cultura se deve à faculdade da língua e aos 
processos de raciocínio que lhe são inseparáveis. Na verdade, a língua 
é, ela mesma, tradição, não uma faculdade inata, e por intermédio 
dessa tradição linguística é mantida a continuidade da cultura e se 
torna possível o processo de mudança cultural . 
Todos os diferentes elementos da cultura possuem essa caracte­
rística tradicional . A vida econômica e respectivas técnicas são uma 
tradição aprendida pelo indivíduo e transmitida pela sociedade, de 
maneira que esta vem a possuir uma riqueza de técnicas acumuladas, 
originadas em diferentes períodos e preservadas pela tradição da cul­
tura . Dessa maneira, as formas mais modernas de cultura ainda são 
dependentes, em grande parte, das conquistas técnicas de um passado 
remoto. A domesticação do gado, o cultivo dos grãos, o arado e a 
roda são, todos, elementos integrais da economia moderna que tive­
ram origem no Período Neolítico. 
Isso também vale para as formas de organização social que de­
terminam a estrutura da sociedade. Cada instituição social represen­
ta uma tradição social estereotipada; tribos, nações e Estados são 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 4 
corporificações de tradições sociais contínuas. Por fim, cada religião 
humana, da mais simples a mais elevada, é uma tradição espiritual e, 
por meio dessas tradições espirituais, é que o homem, primeiramente, 
adquire a consciência da cultura. A ascensão de culturas mais adian­
tadas no Oriente Próximo, como também na América Central num 
período muito posterior, está intimamente relacionada ao desenvolvi­
mento da instituição do templo e do sacerdócio do templo - ou seja, 
uma classe profissional de especialistas dedicados à manutenção da 
tradição sagrada de ordem ritual . A invenção da escrita, de inestimá­
vel importância para a transmissão da cultura, foi obra dessa classe 
e, assim, a tradição religiosa se tornou a fonte da tradição histórica 
em sentido estrito. Decerto, não há limite à sobrevivência e influência 
da tradição cultural quando esta chega a adquirir expressão literária, 
como vemos no caso da cultura clássica chinesa no Oriente e no das 
culturas gregas e latinas no Ocidente . 
As tradições literárias sugerem um aumento imenso na amplitu­
de e profundidade da memória social e da consciência cultural, mas 
não são indispensáveis. Cada cultura, mesmo a mais inferior, tem sua 
tradição, e cada tradição, que depende da língua e não da imitação di­
reta, sugere a existência de uma memória social. Ademais, mesmo nas 
culturas não letradas essa memória social pode tornar-se altamente 
desenvolvida, de modo a tornar a sociedade consciente de seu passa­
do num sentido estritamente histórico, como no caso das genealogias 
reais e as histórias de migração e colonização características dos po­
linésios e de alguns povos da África como os baganda e os iorubás. 
É, portanto, impossível admitir que a consciência e a tradição históri­
cas estejam restritas às formas mais elevadas de cultura . 
Por outro lado, é claro que a tradição cultural transcende a tra­
dição histórica. As culturas mais adiantadas têm uma riqueza acu­
mulada de tradição, boa parcela transmitida por povos cujos nomes 
já foram esquecidos. Conhecemos muito pouco das leis de herança 
cultural e dos processos pelos quais a tradição é transmitida de uma 
1 36 l 1 37 
cultura para outra . No entanto, esse é o fator mais importante de 
todos na manutenção e expansão da cultura . Somos inclinados a ver 
a "tradição" como uma força negativa, conservadora, inibidora, mas, 
na realidade, é o principal veículo da mudança. Não que a tradição 
transforme, automaticamente, por leis internas próprias de evolução, 
mas por causa do contato cultural ou do encontro de duas tradições 
culturais diferentes é iniciado o processo de mudança que perdura até 
produzir uma nova cultura. A antropologia e a arqueÓlogia modernas 
constantemente tendem a aumentar a importância do fator de difu­
são externa em comparação com a evolução interna no progresso da 
cultura; e o principal agente de difusão é a tradição. Realmente, ao 
falarmos de difusão cultural queremos dizer a expansão ou a comu­
nicação de uma tradição. 
A importância do elemento tradicional na mudança cultural, 
muitas vezes, é ocultada pela terminologia que confina a palavra ao 
elemento do processo cultural que resiste à mudança . Contudo, se 
considerarmos um caso típico de mudança cultural nos períodos his­
tóricos, tais como a reorganização dos Estados russos por Pedro, o 
Grande ( 1 672- 1 725 ) ou a modernização do Japão na segunda metade 
do século XIX, veremos que não é somente um caso de subversão da 
ordem tradicional por uma mudança revolucionária, mas, antes, um 
conflito entre duas tradições diferentes, uma nativa e outra importa­
da, de modo que a derrota de uma é a vitória da outra. 
A importância desse tipo de mudança cultural é particularmente 
óbvia na Idade Moderna. Durante os últimos quatro séculos, a civili­
zação do mundo não europeu foi completamente modificada, não por 
uma evolução interna, mas por um movimento de difusão cultural 
que teve origem na Europa Ocidental . Em alguns casos, como nas 
Américas, essa difusão assumiu a forma de uma verdadeira transfe­
rência de população da Europa, via colonização, acompanhada de 
um transplante total de instituições sociais e técnicas econômicas. 
Em outros casos, como na Índia e na Indonésia, esteve associada à 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 4 
conquista europeia e ao controle político, uma vez que em todos os 
demais lugares, como no Japão do século XIX, houve a aceitação vo­
luntária, por parte dos povos asiáticos, da tradição cultural europeia 
para preservar a independência ou para aumentar o poder. Por fim, há 
inumeráveis exemplos da disseminação da cultura europeia em meio 
aos povos menos desenvolvidos, de um lado, pelo comércio europeu 
ou por incursões de missionários, e, de outro, pelo processo espontâ­
neo de imitação ou apropriação. 
As formas simples de difusão cultural por colonização, por con­
quista e por contato sempre foram de primordial importância e se 
reportam aos tempos pré-históricos. Representam, todavia, somente 
um lado do processo de mudança cultural. Não explicam o processo 
de mudança interna da própria tradição, que é a fonte das mudanças 
mais fundamentais na cultura - a origem da agricultura, da cidade, 
da escrita, da filosofia grega ou da ciência moderna . Esse é o proble­ma da invenção cultural ou descoberta - o fator mais misterioso e 
impressionante do talento individual, e não nos surpreende o fato 
de o homem do passado tender a atribuí-lo a algum deus ou herói 
divinizado que considerava a suprema fonte de cultura, por exemplo, 
Atena, a deusa da sabedoria, que emergiu, totalmente armada, da ca­
beça de Zeus, ou Prometeu, o portador do fogo, que roubou o dom 
do fogo dos desconfiados deuses. 
Mesmo nos tempos modernos, em que as origens de uma desco­
berta podem ser investigadas com maiores detalhes, há semelhante 
tendência de exaltar a iniciativa inventiva do gênio individual e de 
tornar a história da ciência ou da pesquisa num cortejo de grandes 
nomes. Mas, visto que é impossível negar a realidade do talento in­
dividual e os feitos criativos dos indivíduos, esse é o único lado da 
história . Um gênio também é um membro da sociedade, portador de 
uma determinada cultura e um elo na tradição. A não ser que as con­
dições da cultura do gênio sejam favoráveis, ele não pode agir, e mes­
mo que o faça, sua descoberta será inútil . As invenções são passos de 
1 38 l 1 39 
um processo cumulativo. Não surgem do nada, mas aparecem como 
parte de um processo social de cooperação, de pensamento competi­
tivo e de debate. Desse modo, por trás de toda invenção individual, 
temos uma tradição e cultura de engenhosidade. Exemplos de tais 
tradições criativas devem ser vistas no pensamento e na ciência gregos 
dos séculos VI a III a .C. , a tradição científica europeia do século XVI 
em diante, e a tradição tecnológica ocidental desde o século XVIII. 
É claro que tradições criativas semelhantes existiram num passado 
remoto, particularmente, no alvorecer da história, na Mesopotâmia, 
onde muitos dos elementos de civilização superior parecem ter-se ori­
ginado ao mesmo tempo, ou em íntima associação, por volta do início 
do terceiro milênio antes de Cristo. 
A origem de tais tradições criativas é o maior problema da his­
tória humana, e quanto mais recuamos em direção à Pré-história, 
torna-se ainda mais misteriosa . Não obstante, no caso das culturas de 
que temos indícios históricos, é possível apontar determinados fato­
res gerais que parecem favorecer a excepcional originalidade cultural. 
A atividade cultural, por exemplo, parece ser maior em regiões onde 
há mistura de raças, de tradições sociais, e que as oportunidades de 
contato cultural e de fertilização recíproca são maiores, sobretudo 
nos casos em que há o encontro e a fusão de duas tradições cultu­
rais distintas e socialmente conscientes, e surge a uma nova unidade 
cultural . Outro caso é o da conquista de uma cultura relativamente 
avançada e antiga por um povo mais " jovem" e vigoroso que adora 
a cultura conquistada e atua como agente de difusão. Um exemplo 
notável desse processo foi a adoção do latim carolíngio e da cultura 
bizantina eslava pelos colonizadores vikings no norte da França e na 
Rússia Ocidental no século XI, seguida pela extraordinária expan­
são cultural dos normandos no Ocidente e do Principado de Kiev no 
Oriente. Há também o caso da expansão não militar e não colonial 
de uma cultura elevada pela atividade de missionários e conversão 
religiosa, cujos exemplos são a introdução da cultura latina cristã na 
A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 4 
Irlanda e na Inglaterra nos séculos V e VII, a introdução do budismo 
hindu na China e do budismo chinês no Japão. 
Por mais importantes que sejam tais processos de contato cultu­
ral, contudo, eles sempre são secundários . Não explicam a gênese dos 
fatores componentes, e não podemos excluir a possibilidade de uma 
tradição criativa surgir de um solo virgem, sem estímulo externo de 
contato cultural ou de miscigenação racial . Mas é difícil encontrar 
exemplos disso, já que os únicos exemplos modernos que podemos 
estudar de culturas "puras" sem nada dever ao contato cultural ten­
dem, como sói acontecer, a ser estáticas e sem criatividade. 
Toda cultura, de fato, tem dois aspectos diferentes. Pode ser vista 
como uma produção orgânica, como uma árvore cujas raízes estão 
na terra e produz folhas e frutos por um comando interno da própria 
natureza específica; ou pode ser vista como um fluxo contínuo de 
tradição, como um rio que é alimentado por centenas de nascentes e 
fica mais extenso ou mais profundo conforme o desaguar dos afluen­
tes ao longo do curso. Assim, quando a estudamos historicamente 
como evolução de uma tradição, ressaltamos o caráter abrangente e 
cumulativo - a capacidade de apropriar-se dos elementos de outras 
culturas, de aceitar e assimilar outras tradições culturais. 
Ambos os aspectos estão presentes, até certo ponto, em todas 
as culturas . Todas as culturas são, em determinada medida, sistemas 
fechados ou regras de vida que resistem à mudança e expulsam o que 
é estranho às próprias tradições como algo bárbaro ou ímpio. Apesar 
disso, até a cultura mais conservadora tem história e processos de 
mudança próprios, e nenhum deles fica totalmente incólume à difusão 
cultural, a menos que esteja completamente isolado por fatores geo­
gráficos, como era o caso da Tasmânia antes do século XIX. É verda­
de que a apropriação de determinados elementos de uma cultura es­
trangeira pode não produzir nenhum abrandamento da tensão e dos 
conflitos culturais. A aquisição do cavalo e do mosquete pelos índios 
das planícies transformou totalmente suas culturas, mas ao mesmo 
1 40 l 1 4 1 
tempo aumentou a resistência à penetração europeia . Como regra, 
no entanto, a difusão da cultura material é acompanhada por certa 
difusão da cultura espiritual. O comerciante e o missionário seguem, 
um, as pegadas do outro, e o mesmo processo deve ter acontecido na 
Pré-história, quando a difusão da religião ou culto megalítico abriu 
caminho para o desenvolvimento do comércio e a difusão da cultura 
material ao longo do litoral atlântico da Europa Ocidental. No passa­
do, os antropólogos concentraram a atenção nas formas mais simples 
de cultura, tais como a dos aborígenes autralianos, dos melanésios e 
dos índios pele vermelha. Mesmo assim, encontraram tais culturas 
muito mais elaboradas e ricas em tradição do que j amais imaginaram 
os missionários e exploradores que os viram pela primeira vez. 
Entretanto, as culturas mais adiantadas com as quais o historia­
dor está preocupado são, imensuravelmente, mais complexas, de modo 
que o historiador acadêmico tendeu, no passado, a limitar-se à simples 
narração dos acontecimentos e à crítica das fontes literárias em que 
baseava a própria narrativa. Mas isso nem sempre foi assim. Heródo­
to (485-420 a .C. ) não foi apenas o "pai da história" , mas também o 
pai da etnografia e até mesmo de um estudo comparativo de culturas, 
ao passo que Tucídides (460-400 a .C. ) e Políbio (203-120 a .C. ) não 
estavam cientes das forças sociológicas que determinaram o curso da 
história. Também não é assim hoje, pois a história dos tempos moder­
nos seguramente ampliou o escopo e a profundidade, de modo que não 
mais se satisfaz com o registro dos eventos, todavia, dedica-se à total 
compreensão do passado pelo estudo do progresso das instituições, da 
economia e da religião de uma determinada sociedade. 
Desse modo, tanto a história como a antropologia culminam no 
estudo da história da cultura, e uma disciplina não pode dispensar 
a ajuda da outra . De fato, o progresso da arqueologia científica está 
tornando a distinção de história e pré-história cada vez mais artificial, 
e estamos começando a perceber a unidade e continuidade fundamen­
tal da cultura humana. 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 4 
Isso é visto, com excepcional clareza, no caso do antigo Egito, 
que representa o exemplo mais perfeito de uma cultura que preser­
vou a identidade e a individualidade intactas por milhares de anos. 
Aí vemos o rio da tradição fluindo como a sua matriz, o Nilo, das 
trevas da barbárie pré-histórica, atravessando o Antigo, o Médio e o 
Novo Império até, por fim, chegarao Mediterrâneo e à Alexandria, 
a cidade do mundo helenístico. O estudo dessa grande tradição se 
tornou uma ciência especial que deve mais à arqueologia que aos 
indícios literários, e tanto está preocupada com a pré-história pré­
-dinástica, como se importa com a história dinástica do segundo 
milênio antes de Cristo. Por outro lado, lançou uma torrente de 
luz na cultura helenística e romana e nos movimentos religiosos do 
mundo " antigo" (que do ponto de vista egípcio era, na verdade, um 
mundo bem moderno) . 
Durante todo o curso de sua história e remontando aos tempos 
pré-históricos, o fator que deu ao Egito unidade e coesão internas foi 
a tradição religiosa altamente original e singular que dominou toda a 
ordem da vida social e política egípcia, e sem a qual a cultura egípcia 
é inconcebível . Como escrevi noutra de minhas obras: 
É de fato um dos espetáculos mais impressionantes na história ver to­
dos os recursos de uma grande cultura e de um Estado poderoso orga­
nizados não para guerra e para a conquista, nem para o enriquecimen­
to de uma classe dominante, mas simplesmente para prover o sepulcro 
e dotar as capelas e os túmulos-templos dos reis mortos. E a inda assim 
foi precisamente essa concentração na morte e na pós-vida que deu à 
civilização egípcia sua notável estabilidade. O sol e o Nilo, Rá e Osíris, 
a pirâmide e a múmia, enquanto perdurassem, parecia que o Egito 
devia permanecer, sua vida ligada na interminável roda de preces e de 
observâncias rituais . Todos os grandes desenvolvimentos da arte egíp­
cia e de aprendizado cresceram a serviço dessa ideia religiosa central, e 
quando, na era da decadência final, potências estrangeiras apossaram­
-se do reino sagrado, líbios e persas, gregos e romanos, todos acha­
ram necessário " levar presentes a Hórus" e disfarçar seu imperialismo 
iniciante sob as formas da velha teocracia solar, a fim de que a maqui­
naria da civilização egípcia pudesse continuar a funcionar. 1 
1 42 l 1 43 
Quando essa tradição religiosa chegou ao fim, no século IV, 
com a conversão do Egito ao cristianismo, a revolução cultural que 
ocorreu foi muito mais fundamental que qualquer outra catástrofe 
política. E toda a vida foi mudada . O resultado dessa revolução, 
contudo, não foi aquilo que poderíamos esperar. Apesar de quase 
mil anos de dominação helenística, o Egito não foi absorvido na 
cultura ecumênica da cristandade bizantina para a qual parecia pre­
destinado pelo longo período de influência helenística . Submergiu e 
foi absorvido pela nova religião do islã, que teve origem na Arábia e 
disseminou-se rapidamente na Ásia Ocidental e no norte da África, 
dos rios Oxo e Indo ao Oceano Atlântico e a cordilheira dos Pire­
neus e, desde então, permaneceu como parte integrante dessa grande 
unidade cultural "afroasiática " . 
Esse é um exemplo clássico do tipo de problema que requer uma 
nova ciência de história cultural ou de mudança cultural para chegar­
mos à solução, já que transcende o escopo tanto da história como da 
antropologia e da religião comparada, como foram compreendidas 
até o momento. É um problema real, todavia, que pode ser elucidado 
caso as contribuições esparsas de várias especialidades independentes 
possam ser coordenadas e enfocadas para tal fim. 
O mesmo é verdadeiro para a própria cultura mundial resultante. 
Não há nenhuma história verdadeira do islã, nem um conhecimento da 
teologia islâmica, ainda que profundo, que possa explicar totalmente a 
cultura islâmica. Não obstante, o islã é uma realidade que é parte do 
mundo contemporâneo e se estende do Oceano Atlântico ao Pacífico e 
da Ásia Central a África Central. Ao observador superficial, pode parecer 
1 Christopher Dawson, Progresso e Religião. Apres. Joseph T. Stuart; pref. 
Christina Scott; intr. Mary Douglas; trad. Fabio Faria . São Paulo, É Realiza­
ções, 201 2, p. 159 . (N. T. ) 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 4 
uma coleção de ruínas de raças e povos - árabes e turcos, hindus e persas, 
negros e berberes - sem nenhum princípio material ou social de unidade. 
No entanto, apesar de tudo, o islã ainda está muito vivo e o mesmo po­
der que rompeu com a unidade do Império Bizantino no século VII foi 
forte o bastante para romper a unidade da Índia em 1 947. 
Aí, então, temos o caso de um novo modo de pensar e de vi­
ver, surgido há uns mil e trezentos anos no coração da Arábia, que 
se perpetua por uma tradição ininterrupta espalhada pelo Oriente e 
Ocidente, engolindo os centros da civilização mais elevada no Orien­
te Próximo e penetrando profundamente na savana africana e na 
selva malaia. E, onde quer que tenha ido, levou consigo não só a fé 
e a lei, mas também imprimiu uma marca profunda no gênio e na 
personalidade humanas, de modo que o negro muçulmano no Sudão 
Ocidental é de tipo bem diferente do conterrâneo pagão - diferente 
não só no vestir, falar e gesticular, mas também na forma de pensar 
e na base de valores . 
Tal expansão, sem dúvida, é um dos exemplos mais notáveis de 
difusão cultural que nos é conhecido e teve lugar no mundo histórico, 
de modo que podemos traçar toda a evolução desde a fonte até o 
apogeu. Apesar de o islã ter-se destacado de outras formas de cultura 
mundial pela rapidez com que se desenvolveu e difundiu, é igualmen­
te impressionante o seu conservadorismo e a capacidade de resistên­
cia à mudança cultural . Mesmo hoje, a sociedade muçulmana é mais 
impenetrável às ideias exteriores e está mais firmemente presa ao seu 
modo de vida tradicional que qualquer outra cultura . 
Nesse particular, o islã é atípico, j á que seu extraordinário po­
der de difusão externa não tem relação com nenhum processo de 
evolução interna ou crescimento . Alcançou o pleno desenvolvimen­
to no início da própria história e preserva as características origi­
nais como um estereótipo que se repete imutável, infinitas vezes. 
Como foi no início, do mesmo modo é hoje e assim deverá ser 
enquanto existir. 
1 44 l 1 45 
Isso se deve, sobretudo, ao caráter religioso. O islã não é, como 
a cristandade, um produto secundário de uma religião mundial, é a 
própria religião. Islã, por definição, nada mais é que um ato de sub­
missão à vontade de Deus como revelado pelo profeta . A comunidade 
do islã é tão-somente uma irmandade de fiéis, e está unida, de manei­
ra indissolúvel, à experiência única de um homem que imprimiu sua 
marca no pensamento e na vida de centenas de milhões de pessoas, ao 
longo de mais de um milênio. 
Dessa maneira, o sucesso do islã foi devido à própria simplicida­
de. Criou uma fé e uma comunidade que transcendeu as divisões com­
plexas da sociedade árabe tribal. Tal fé comum inspirou na comuni­
dade um dinâmico espírito militante que a ampliou, e cada nova onda 
de expansão trouxe um influxo de convertidos que, pela aceitação do 
islã, se tornaram membros de uma nova comunidade. E, visto que a 
comunidade era abrangente - tanto um Estado como uma religião -, 
também era a portadora de uma cultura comum, que absorveu e 
transformou as culturas dos povos conquistados . Até certo ponto, 
tal cultura, nas primeiras fases, era parasitária, já que dependia de 
cidadãos não assimilados, não só para obter recursos econômicos, 
mas também para conseguir técnicos e administradores capazes que 
ofereciam os serviços ao conquistador. Ademais, a instituição da es­
cravidão teve um papel maior no islã do que em qualquer das grandes 
culturas que lhe foram contemporâneas. Particularmente, a institui­
ção da escravidão militar, característica do islã, resultou na formação 
de Estados de escravos como o sultanato dos mamelucos do Egito, 
entre 1250 e 1 5 1 7, e os reis-escravos turcos de Delhi, entre 1206 e 
1398 . Talvez esses sejam os exemplos mais impressionantes na histó­
ria de Estados que existiram sem nenhuma base nacional ou raízes no 
território. O elemento parasitário no islã, todavia, não foi um sinto­
ma de decadência. A grande era da cultura islâmica, tanto no Oriente 
como no Ocidente,foi um período em que esse elemento esteve em 
evidência e o elemento não muçulmano era mais abundante. Quando 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 4 
o processo de absorção foi completado e toda a sociedade se tor­
nou muçulmana, a cultura islâmica se tornou estacionária e, até certo 
ponto, retrógrada e decadente, embora nunca tenha perdido as con­
vicções religiosas e o poder de resistir às culturas estrangeiras. Vemos 
isso, em especial, no islã ocidental, em que os brilhantes feitos cultu­
rais da Idade Média, a época de Averróis ( 1 126-1 1 9 8 ) e lbn Khaldun 
( 1 332-1406 ) , terminaram repentinamente com a reconquista cristã 
da Espanha e foi seguida por um período de estagnação e decadência 
em que as cidades do norte da África se tornaram centros de Estados 
predatórios que viviam da pirataria e do tráfico de escravos. 
Também no século XIX, a única região em que o islã continua­
va a expandir foi na África negra, onde as condições ainda se pare­
ciam com a dos tempos primitivos e onde os Estados muçulmanos 
do Sudão Ocidental e do leste da África ainda podiam continuar 
uma guerra santa e incorporar novas tribos e povos para o domí­
nio do islã. Esse também não foi um movimento puramente exte­
rior de conquista e exploração, incluía o desenvolvimento de uma 
nova forma de cultura negro-muçulmana, expressa pela criação da 
língua suaíli, que se tornou uma língua viva em grande parte do 
leste da África . 
Assim, apesar da rigidez interna e do conservadorismo, o islã ain­
da é uma cultura dinâmica que não perdeu a força de difusão. Difere 
enormemente, entretanto, de outras culturas, em especial do tipo de 
cultura autóctone simples, tais como vemos no Antigo Egito, à qual 
dificilmente pode ser comparado. De fato, é uma espécie de super­
cultura que incorpora um número muito grande de antigas unidades 
culturais sem absorvê-las totalmente. Veremos que isso não é uma 
peculiaridade do islã, mas uma situação presente em outras cultu­
ras mundiais, embora nenhuma delas tenha lidado com tal fenômeno 
como o islã. Ainda que aceitemos tal situação como normal, devemos 
sempre lembrar a existência dessas culturas submersas, pois o erro 
de deixá-las de lado é responsável pela simplificação excessiva que 
1 46 l 1 47 
arruinou os estudos culturais e perverteu muitos dos "filósofos da 
história" e as teorias da evolução da civilização no passado. 
Uma subcultura pode possuir uma riqueza imensa em termos de 
tradição intelectual e religiosa. Esse foi o caso de muitos povos do­
minados pelo islã - o dos parsis na Índia Ocidental e, sobretudo, dos 
judeus, que realizaram a maior de todas as diásporas. Apesar de todo 
o empenho dos judeus de se manterem afastados dos gentios, e dos 
gentios de excluírem os judeus da vida social, em todos os lugares os 
judeus exerceram considerável influência cultural - fosse nos mundos 
helenístico e romano, no islã ou na Europa Ocidental. E, já que mui­
tas vezes ocuparam posições-chave nas culturas dominantes, como 
funcionários públicos, médicos da corte, banqueiros e comerciantes, 
eruditos e beletristas, a influência deles não é proporcional à quanti­
dade de judeus no mundo. 
É difícil exagerar a importância da parcela que cada subcultu­
ra pode representar na difusão da cultura, especialmente quando, 
como no caso dos judeus, é comum a duas culturas mundiais e faz 
a ponte entre o Oriente e o Ocidente. É verdade que a existência de 
uma cultura especificamente judaica muitas vezes foi negada, e uma 
das principais autoridades nesse campo de estudo cultural, o profes­
sor Alfred L. Kroeber ( 1 876-1 960) , descreveu o judaísmo não como 
uma cultura, mas como "uma quase casta social baseada, originária 
e primariamente, na religião " .2 Não obstante, os judeus são um povo 
autêntico com um modo de vida inconfundível e tradição religiosa e 
social excepcionalmente fortes, e o simples fato de não terem unidade 
geográfica e, até hoje, pouca autonomia política, não é suficiente para 
desqualificar sua posição cultural. 
Uma subcultura desse tipo é uma cultura verdadeira, mesmo que 
exista em um estado velado e não possa alcançar a total expres­
são externa, pode ter uma atividade cultural maior que muitas das 
z Alfred L. Kroeber, Anthropology. New York, Harcourt, 1 948, p. 279. 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 4 
culturas normais, que estão livres para se desenvolver nos próprios 
ambientes territoriais. De fato, as subculturas, as culturas e as super­
culturas, todas, desempenham uma parte indispensável no processo 
total de crescimento e difusão da civilização. É fácil imaginar um 
mundo em que cada cultura tenha o próprio lugar no tempo e no 
espaço e trace um percurso, do nascimento à morte, segundo um 
modelo spengleriano. Esse não é, no entanto, o mundo que conhe­
cemos: o mundo histórico em que o rio da tradição nunca deixa de 
fluir e onde o crescimento cultural é inseparável do contato e da 
difusão culturais. Nele, todo o processo cultural é uma imensa rede 
intercomunicante de modelos culturais e tradições. Todo um grupo 
de culturas pode ser introduzido pela influência unificadora de uma 
supercultura, de modo que pareça que perderam a identidade ou 
mesmo a existência. No entanto, algumas das tradições desse grupo 
são incorporadas na cultura dominante e outras vivem sob a super­
fície, na vida subcultural . 
Quando os mongóis destruíram a capital do mundo muçulma­
no em 1258, um representante da subcultura armênia, Kirakos de 
Gandzak ( 1200-1271 ) louvou sua queda ressaltando as mesmas coisas 
que alegraram o profeta hebreu na queda de Nínive quase 2 mil anos 
antes. E a semelhança não é simplesmente o resultado de uma situação 
parecida; ela se deve à sobrevivência de uma tradição literária e de 
um posicionamento espiritual que foram passados de uma subcultura 
para outra, enquanto sucessivos impérios mundiais surgiam e desapa­
reciam. Dessa maneira, a voz de uma cultura desaparecida sempre se 
fará ouvir após estar submersa e esquecida por muito tempo. 
São, entretanto, as culturas das grandes religiões mundiais que 
moldam o curso da civilização e possuem uma espécie de posição 
supercultural, ainda que nem sempre num grau tão distinto quanto 
o islã . Desse modo, no Extremo Oriente temos a tradição confuciana 
da China que esteve intimamente relacionada coma religião estatal 
do antigo império chinês e continuou a dominar não só a cultura 
1 48 l 1 49 
chinesa, mas todas as outras culturas da região até as mudanças revo­
lucionárias do século XX. 
Em um segundo momento, na Índia, temos a tradição igualmente 
antiga do bramanismo, cujas origens remontam o início da cultura 
ariana na Índia e que continuou a modelar a vida da sociedade hindu 
até os dias de hoje. Profundamente relacionada a ela está a segun­
da religião mundial da Índia, o budismo, cuja influência vai desde a 
Mongólia e o Japão até o Sri Lanka e o Camboja . 
Essas são as três grandes religiões do Oriente, e, de modo cor­
respondente, encontramos três grandes religiões no Ocidente: o ju­
daísmo, o cristianismo e o islamismo, que estão historicamente inter­
-relacionadas e partilham certas características comuns que as distin­
guem das demais. Por fim, entre o Oriente e o Ocidente existiu, an­
teriormente, uma sétima religião mundial, o zoroastrismo, a religião 
persa que exerceu grande influência na cultura do Oriente Médio no 
passado, mas hoje quase desapareceu, e é representada apenas pela 
pequena comunidade Parsi na Índia Ocidental . 
Essas seis ou sete grandes religiões são o grande fator unificador 
na civilização do mundo. São, por assim dizer, as estradas espirituais 
que levam a humanidade ao longo da história, da remota Antiguidade 
até os tempos modernos. Os caminhos não são equivalentes ou neces­
sariamente competitivos. As três religiões ocidentais, todas monoteís­
tas e sujeitas à ideia de uma revelação divina particular, são, sem dúvi­
da, competitivas e, num certo sentido, são o budismo e o bramanismo 
que oferecemsoluções alternativas a uma série de problemas comuns. 
Em geral, contudo, é correto dizer que no caso da Índia, China e Eu­
ropa, os fatores da separação geográfica e histórica são tão grandes 
que suas religiões têm-se desenvolvido não como sistemas rivais de 
pensamento e crença, mas como tradições espirituais de três mundos 
diferentes que foram unidas pela expansão material e tecnológica da 
civilização ocidental nos tempos modernos. No passado, todas es­
sas religiões mundiais, com exceção do judaísmo, formavam o que 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 4 
chamei de superculturas - formas comuns de fé e de ordenamento 
moral que abarcavam e uniam grande número de culturas anterior­
mente existentes nas próprias línguas e histórias. 
O problema hoje é se essas grandes culturas mundiais vão se 
amalgamar e gerar uma abrangente civilização mundial tendo por 
base a moderna ciência e tecnologia. Ainda que possamos, no en­
tanto, tomar isso como algo inevitável, não posso dizer que tal ci­
vilização mundial exista no presente. Temos as condições materiais 
para a unidade mundial, mas ainda não existe nenhuma ordem moral 
comum, sem a qual a verdadeira cultura não pode existir. Todo o 
mundo moderno usa as mesmas roupas, dirige os mesmos carros, as­
siste aos mesmos filmes, mas não possui valores éticos comuns ou um 
senso de comunidade espiritual, ou ainda, crenças religiosas comuns. 
Temos um longo caminho a percorrer antes que uma comunidade es­
piritual desse tipo seja concebível, e, enquanto isso, o que chamamos 
de civilização moderna permanecerá uma área de conflito - um caos 
de ideologias, instituições e padrões morais conflitantes. 
PARTE II 
O s P r i m ó r d i o s d a C u l t u r a C r i s t ã 
C a p í t u l o 5 1 A I d e i a C r i s t ã e J u d a i c a d e 
R e v e l a ç ã o 
l 1 53 
Acabamos de ver como todas as grandes civilizações do mun­
do, no passado, foram associadas ou identificadas com uma tradi­
ção religiosa, e que essas tradições pressupõem a existência de uma 
revelação divina incorporada em um cânone de escritura sagrada . 
Essas tradições religiosas foram, originalmente, consideradas úni­
cas e exclusivas. Cada uma delas era uma tradição secreta, ciosa­
mente guardada por uma classe sacerdotal ou casta, e em alguns 
casos, como na Índia, as penalidades mais severas eram decretadas 
contra o forasteiro ou o membro de uma casta inferior que tentasse 
familiarizar-se com os mistérios sagrados. Foi com a chegada dos 
impérios mundiais que surgiu a ideia de que tais tradições eram 
modos alternativos de expressar a mesma verdade - em particular 
no império mongol, onde o grande Khan explicou seu ponto de 
vista para um missionário ocidental , ao comparar as cinco religiões 
aos cinco dedos de uma mão. Nesse caso, o motivo, provavelmente, 
não era teológico ou metafísico, mas político. O império mundial 
deve fazer com que as diferentes religiões cooperem em um vasto 
sistema imperial . 
Seja como for, não deve haver dúvidas de que a ideia de revelação 
foi desenvolvida de maneira independente dentro de cada uma das 
grandes culturas, e que em muitos casos, em especial, no caso do ju­
daísmo, do cristianismo e do islamismo, lhes foi anterior. Há, de fato, 
uma extraordinária analogia entre a ideia de cultura humana, como 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 5 
desenvolvida pelos antropólogos modernos, e a ideia de revelação, do 
modo como foi tratada pelos teólogos antigos . A cultura é o modo 
de vida humano comunicado por uma língua, de modo que a palavra 
do homem tanto é criadora como transmissora de cultura . No caso 
da religião, contudo, é a palavra de Deus que é o princípio dinâmico. 
É comunicada ao homem pelo processo da Revelação, que é um ato 
criador, já que é o princípio de uma nova sociedade espiritual que 
transcende a ordem temporal da cultura e coloca o homem em conta­
to com uma ordem superior de realidade. 
Não há local em que esta ideia de revelação divina tenha sido 
expressa de maneira tão forte ou claramente identificada com a tra­
dição da cultura como no caso de Israel. Aí, todo o modelo social e 
o destino histórico do povo de Israel fora imposto pela Palavra de 
Iahweh, que não era simplesmente, como em outros casos, uma tra­
dição sagrada de conhecimento, mas um modo de vida incorporado 
numa lei moral e numa história sagrada que os separava de todos os 
outros povos do mundo antigo. 
Desde o início, a tradição judaica distinguiu-se por uma firme 
hostilidade às tradições religiosas dos povos mais civilizados que 
acercavam os j udeus. Enquanto o restante do mundo antigo estava 
sendo integrado em uma grande sociedade pela influência da cultura 
helenística e do governo e da lei romanos, um povo obscuro se recu­
sava, obstinadamente, a ser assimilado. Quanto mais forte a pressão 
externa da sociedade mundial, mais intensa era a consciência do sin­
gular destino do povo hebreu que os afastava das nações. Por mais 
de mil anos tinham preservado a fé ao longo de sucessivas ondas 
de conquistas que esmagaram outros povos do Oriente Próximo. Os 
assírios, os babilônios, os persas e os macedônios surgiram e desa­
pareceram, mas a esperança de Israel ainda subsistia, e ao longo das 
tenebrosas eras de conquista e opressão, o remanescente do povo es­
colhido ainda conservava firmemente a herança sagrada da lei divina, 
que era o fundamento da vida nacional . 
1 54 l 1 55 
Essa é uma situação excepcional . As demais religiões mundiais 
como as da Índia e as da China foram religiões de grandes cultu­
ras que se consideravam civilizações mundiais; não tinham rivais 
nos próprios mundos. Israel, todavia, sempre esteve consciente da 
posição de minoria - como um povo entre muitas nações e como 
o povo menor e mais fraco entre os impérios históricos que o cer­
cavam desde o princípio - Egito, Assíria, Babilônia, Pérsia, Ma­
cedônia e Roma . Para os próprios j udeus e, posteriormente, para 
os cristãos, essa singularidade era o resultado de uma vocação e 
eleição divinas . Israel foi escolhido entre as nações para ser teste­
munha de Deus e portador da Revelação divina. O chamado foi 
feito num período bem distante da história, em meados da Idade 
do Bronze, em algum momento na primeira metade do segundo 
milênio antes de Cristo, quando Iahweh chamou Abrão - o pai 
de todos os crentes - para deixar seu lar em Harã, j unto do rio 
Eufrates, e se tornar o fundador de um novo povo, numa nova 
terra . Isso é descrito não como parte de um movimento tribal de 
migração ou conquista, mas como o chamado de um indivíduo 
particular, a quem foi reservado um destino que era incapaz de 
compreender, mas que aceitou, nas trevas da fé, sob a influência 
de uma experiência profética, descrita de maneira obscura, porém 
impressionante, no capítulo 15 do livro do Gênesis . 
Assim, por trás da vocação nacional do povo hebreu está a ideia 
de uma vocação pessoal baseada em uma revelação individual exclu­
siva . Não está bem certo a que povo Abrão pertencia, pois os "he­
breus" , provavelmente, eram os Habiru ou Apiru que surgem nas 
inscrições sírias e egípcias e parecem ter sido uma classe, não uma 
raça. A palavra Apiru parece ser um nome genérico para os guerreiros 
nômades que serviam como mercenários dos príncipes da Síria, como 
os "guerreiros Apiru" com quem o rei Idrimi de Alalakh ( séc. XV 
a.C. ) se refugiou no norte da Palestina durante os sete anos de exílio, 
aproximadamente em 1420 a .C. 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 5 
Sem dúvida, noutra época os hebreus devem ter sido um povo -
"os filhos de Éber" sobre os quais lemos no livro do Gênesis e são 
reconhecidos pela tradição bíblica entre os descendentes de Sem - jun­
tamente com Elam, Assur e Arfaxade - todos, povos do Nordeste se 
comparados com os descendentes de Cam - egípcios, cananeus, árabes 
e babilônios. Quando, no entanto, vêm à luz, ou melhor, ao lusco­
-fusco da história, em meados do segundo milênio antes de Cristo, já 
são um povo despedaçado.Podem ter sido guiados do local de origem 
pelo grande movimento dos povos para o sul que trouxe os povos hur­
ritas para a Síria e norte da Mesopotâmia, levando ao estabelecimento 
do reino do Mitanni e, por fim, à conquista do Egito pelos hicsos. 
Foi em meio a tal movimento de povos que aconteceu a peregri­
nação de Abrão de Harã, na região norte da Mesopotâmia, para Ca­
naã. No capítulo 14 do livro do Génesis, o vemos como um guerreiro 
hebreu tomando de assalto o vitorioso exército elamita após a bata­
lha dos nove reis. Não obstante, o papel que desempenhou não foi o 
de um conquistador. Foi essencialmente um forasteiro, um andarilho 
em terras estranhas, que "partiu sem saber para onde ia " (Hebreus 
1 1 , 8 ) , seguindo o comando divino. 
Dessa maneira, a tradição religiosa precedeu a tradição nacional, 
da qual foi a fonte. Quando os descendentes de Abraão foram para 
o Egito eram, segundo a tradição, uns setenta no total, 1 e no Egito se 
misturaram aos imigrantes sírios, que foram reduzidos à servidão pe­
los faraós da XIX dinastia, de 1293 até 1 1 85 a .C. As origens de Israel 
como nação começaram somente com o êxodo e a aliança no Monte 
Sinai que consagrou todo o povo, assim como Abraão fora consagra­
do na primeira aliança. Aqui, mais uma vez, um profeta individual, 
Moisés, foi apresentado como o salvador do povo para retirá-lo do 
Egito, como o canal da revelação divina e o doador da lei divina . 
1 A versão grega acrescenta outros cinco descendentes, donde o total de 75 
' volta a aparecer na Bíblia cristã em Atos 7, 14 . (N. T. ) 
1 56 l 157 
Consequentemente, Moisés e a aliança do Monte Sinai são re­
memorados por toda a tradição judaica como os criadores da única 
sociedade e cultura teocráticas de Israel - o povo escolhido, o povo 
da aliança e o povo da lei. Daí em diante, segundo essa tradição, a 
história de Israel é o registro da fidelidade ou do insucesso no cumpri­
mento de tal missão divina. Israel permaneceu só, entre os povos do 
antigo Oriente, como testemunha da lei do Deus Único. 
Toda cultura é uma ordem moral, mas o ordenamento moral de 
Israel era idêntico à lei de Iahweh, como revelada a Moisés e elabo­
rada conforme os ensinamentos dos sacerdotes e profetas . A essência 
desse ensinamento é, primeiro, a história sagrada da vocação e liber­
tação de Israel; em segundo lugar, a aliança de Iahweh com Israel 
como a forma constitutiva de existência; e, em terceiro, os encargos 
e obrigações morais impostas a Israel pela lei, condição da aliança. 
Pois tu és um povo consagrado a Iahweh teu Deus; foi a ti que lahweh 
teu Deus escolheu para que pertenças a ele como seu povo próprio, 
dentre todos os povos que existem sobre a face da terra. Se Iahweh se 
afeiçoou a vós e vos escolheu, não é por serdes o mais n umeroso de 
todos os povos - pelo contrário: sois o menor dentre os povos ! - e sim 
por amor a vós e para manter a promessa que ele j urou a vossos pais; 
por isso lahweh vos fez sair com mão forte e te resgatou da casa da es­
cravidão [ . . . ] Observa, pois, os mandamentos, os estatutos e as normas 
que eu hoje te ordeno cumprir (Deuteronômio 7,6-8; 1 1 ) . 
Esse é o tema reiterado ao longo de toda a Escritura - não só 
nas leis, mas nos profetas e nos salmos, e repetida de forma sumária 
no início da pregação apostólica de São Pedro ( t67 ) como descrito 
nos Atos dos Apóstolos ( 3 ,25 ) . Nem mesmo perdeu a importância 
para os cristãos modernos, pois ainda vemos nisso não só o próprio 
"mistério de Israel " , mas a preparação indispensável para a Revela­
ção cristã e a vida da Igreja . A revelação j udaica é de tipo totalmente 
diferente daquelas revelações da sabedoria esotérica sobre as quais 
lemos nos Upanishads e na literatura religiosa do Oriente. Foi uma 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 5 
revelação criadora, um processo de educação e treinamento con­
tínuos pelos quais uma tribo semisselvagem de pastores nômades 
foi gradualmente refeita, transformando-se num instrumento sin­
gular para o cumprimento do propósito divino para a humanidade. 
A aliança ou b 'rith de Iahweh com Israel era mais que um contrato, 
era uma comunhão viva ou, como os profetas posteriores2 a descre­
vem, um casamento sagrado. E esse conceito, que inclui a introdu­
ção de um princípio divino na história - não segundo o estilo pagão 
de deificação das forças da natureza, mas pela associação do homem 
com Deus no cumprimento da missão divina - é a chave para toda 
a revelação judaico-cristã . 
O princípio se diferenciava da antiquíssima tradição do deus da ci­
dade que existira na Suméria desde o alvor da civilização, pois Iahweh 
não era membro de uma sociedade divina ou de um panteão como as 
divindades da Síria e da Mesopotâmia, nem era um princípio metafí­
sico como o Brâman ou o Tao. Era uma personalidade, cuja presença 
sempre esteve diante de Israel, com vontade e poderio continuamente 
manifestados em todos os j ulgamentos da história de seu povo. 
Esse conceito já estava implícito na aliança do Monte Sinai, em 
toda a história do êxodo e da vida de Moisés, mas era difícil conservá­
-lo após o estabelecimento de Israel na Palestina e da exposição à in­
fluência de um novo ambiente, uma nova religião e novas tradições 
culturais dos povos locais. Daí em diante, houve tensão e conflitos con­
tínuos entre a tradição mosaica e a influência da cultura canaanita . 
Paradoxalmente, a cultura material mais adiantada estava ligada a uma 
forma menor de religião, e a religião de Iahweh e da aliança estava 
associada com a cultura primitiva de uma tribo guerreira e a tradição 
do deserto. Tal conflito tornou-se particularmente crítico no século IX 
a.C., quando a consorte fenícia do rei Acabe, a rainha Jezebel, ten­
tou introduzir o culto a Baal como parte da religião estatal de Israel . 
2 Denominação, na Bíblia hebraica, para Isaías, Jeremias e Ezequiel e os doze 
profetas menores. (N. T. ) 
1 58 l 1 59 
A história do profeta Elias, sua oposição ao poder real e o conflito com 
os profetas de Baal nos oferecem um retrato comovente do conflito 
entre duas religiões e dois ideais espirituais que competiam pela alma 
de Israel. A ida de Elias ao Monte Horeb simboliza o retorno à tradição 
mosaica, característica da reforma profética ( 1 Reis 1 8-2 1 ) . 
A partir daí até a queda do reino de Israel e , posteriormente, de 
Judá, a tradição mosaica foi preservada e aprofundada pelo teste­
munho dos profetas que lutavam pela "causa de Iahweh" contra os 
pecados e infidelidades de Israel . Assim, todo o corpus de escritos 
proféticos é um diálogo contínuo entre o porta-voz de Iahweh e seu 
povo, que renova e torna mais forte a relação entre Israel e Iahweh 
estabelecida no Monte Sinai. 
Tal associação não foi algo fácil para Israel. " Só a vós eu conhe­
ci de todas as famílias da terra, por isso vos castigarei por todas as 
vossas faltas" (Amós 3 ,2 ) . " Caminham duas pessoas juntas sem que 
antes tenham combinado ? Ruge o leão na floresta sem que tenha uma 
presa ? " (Amós 3,3-4 ) . "Um leão rugiu: quem não temerá ? O Senhor 
Iahweh falou: quem não profetizará ? " (Amós 3 , 8 ) . 
Deste modo, segundo o ensinamento dos profetas dos séculos VIII 
ao VI a.C., a destruição dos dois reinos foi o julgamento de Iahweh 
sobre a incapacidade de Israel e da casa de Davi de preservar a aliança. 
Apesar disso, a aliança e as promessas divinas ficaram inseparavel­
mente unidas não só à cultura tradicional, mas também à terra da 
Palestina, à cidade de Jerusalém e à linhagem do rei Davi. E essa incor­
poração do culto a Iahweh numa determinada história, radicada no 
espaço e no tempo, e corporificada em instituições ainda guarda sua 
importância mesmo para os profetas que estavam mais conscientes da 
missão universal de Israel . Iahweh é senhor e rei, não só de Israel, mas, 
como declararam os profetas, de toda a Terra e de todas as nações. Ele 
deveria, contudo, ter o próprio reino - num canto do mundo onde sua 
autoridade tivesse sidoreconhecida e seu nome santificado. O restante 
da Terra desistiu e começou a adorar ídolos, mas, nos reinos de Israel 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 5 
e de Judá e na cidade sagrada de Jerusalém, Iahweh reinaria absoluto, 
sem rival. A destruição de Israel não foi, portanto, derradeira. Ao final, 
o reino deverá ser restaurado quando as pessoas deixarem de confiar 
no homem ou no auxílio do "braço da carne"3 e depositarem sua con­
fiança no poder de Iahweh e na sua salvação. 
Essa é a mensagem do grande profeta Jeremias no final do século 
VII a .C. , o homem das dores que teve a amarga missão de anunciar 
e testemunhar a ruína de seu povo e a futilidade da resistência aos 
exércitos babilônicos. No entanto, para ele também foi revelado que 
a antiga observância formal da realeza de Iahweh e a lei não eram 
suficientes. Deveria existir uma aliança espiritual "escrita no coração" 
e, individualmente, na consciência de cada fiel (Jr 3 1 ,3 1 -33 ) . 
Essa esperança n o renascimento espiritual e n a restauração de Is­
rael teve uma influência transformadora na religião de Israel durante 
os séculos subsequentes. Aos poucos, a ênfase da religião judaica foi 
transferida do passado para o futuro e passou a se centrar no futuro 
Reino de Deus. As sucessivas catástrofes e frustrações da história 
de Israel nos séculos VII e VI a .C . retiraram as esperanças da esfera 
política e as tornaram cada vez mais numinosas ou sobrenaturais, 
completamente dependentes da vontade de Iahweh e de seu julga­
mento das nações. 
Da mesma maneira, o centro da comunidade judaica não era 
mais a nobreza e os governantes, mas passou a ser identificado com 
um grupo interno de devotos que representavam os escolhidos, os 
"remanescentes de Israel" . Assim, durante o período do exílio e do 
pós-exílio, Israel transmudou-se de povo em comunidade religiosa -
uma sociedade religiosa unida pela obediência a Iahweh e lealdade à 
lei . Foi nesses séculos que constataram o caráter universal do Reino 
de lahweh, com todas as consequências, de modo que a esperada res­
tauração de Israel foi tida não como um simples retorno dos exilados 
3 Expressão retirada do hino Stand Up, Stand Up for Jesus ( 1 858 ) , de autoria 
do pastor presbiteriano George Duffield ( 1 8 1 8- 1 8 8 8 ) . (N. T. ) 
1 60 l 1 6 1 
ou o reestabelecimento d a adoração no templo, visto senão como um 
triunfo cósmico de lahweh, o único verdadeiro Deus, sobre as nações 
e os falsos deuses. 
E acontecerá, no fim dos dias, 
que a montanha da casa de Iahweh 
estará firme no cume das montanhas 
e se elevará acima das colinas. 
Então, povos afluirão a ela, 
virão numerosas nações e dirão: 
"Vinde, subamos a montanha de Iahweh, 
para a Casa do Deus de Jacó. 
Ele nos ensinará os seus caminhos 
e caminharemos pelas suas vias. 
Pois de Sião sairá a Lei, 
E de Jerusalém a palavra de Iahweh" (Miquéias 4,1-2 ) .4 
Todas as glórias desse futuro reino estavam concentradas na pes­
soa do rei messiânico, "aquele que há de vir" (Mateus 1 1 ,3 ) , que as­
socia na sua pessoa a herança prometida da antiga linhagem real de 
Davi e as qualidades sobrenaturais e universais do novo reino divino. 
Um ramo sairá do tronco de Jessé, 
um rebento brotará de suas raízes. 
Sobre ele repousará o espírito de Iahweh, 
espírito de sabedoria e de inteligência, 
espírito de conselho e de fortaleza, 
espírito de conhecimento e de temor de Iahweh: 
no temor de Iahweh estará a sua inspiração. 
Ele não julgará segundo a aparência. 
Ele não dará sentença apenas por ouvir dizer. 
Antes, julgará os fracos com justiça, 
com equidade pronunciará uma sentença em favor dos pobres da terra . 
Ele ferirá a terra com o bastão da sua boca, 
e com o sopro dos seus lábios matará o ímpio ( Isaías 1 1 , 1 -4 ) . 
4 Ver também: Isaías 2,1-5 . 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 5 
Nas profecias do reino messiânico, sobretudo nos desdobramen­
tos mais amplos que receberão na segunda parte do livro de Isaías, 
a esperança de Israel encontra expressão plena e derradeira . Mesmo 
assim, permanece um dualismo não resolvido entre o universalismo 
espiritual dessa mensagem e o patriotismo nacional, que também era 
parte essencial da tradição judaica . Por vários séculos, sob o governo 
da Pérsia e do Egito ptolomaico, Israel ficou em paz para seguir a lei 
e o ordenamento ritual da adoração no templo restaurado, mas no 
século II a .C. surgiu uma nova crise: a tentativa de um rei selêucida 
incorporar os j udeus à cultura helenística . Novamente, Israel empu­
nhou a espada contra os gentios e, sob a liderança dos macabeus, 
tiveram sucesso ao assegurar a independência política e criar o Estado 
judaico. No entanto, apesar dessa ter sido uma obra dos hassidim, o 
partido rigorosamente ortodoxo, o resultado não foi o glorioso rei­
no da profecia . Foi, simplesmente, outro reino dentre os reinos deste 
mundo - um reino fraco e dependente, forçado a confiar no "braço 
da carne" e na ajuda de um novo poder mundial gentio - o Império 
Romano. Essa foi a pior decepção de todas, já que o Reino Macabeu 
se tornou o Reino de Herodes, o Grande (73-04 a .C. ) , e o Império 
Romano, um inimigo mais formidável que qualquer outro império 
mundial gentio do passado. 
Assim, o problema dos j udeus era : se deveriam esperar o mes­
sias como um libertador político, um novo e mais grandioso Judas 
Macabeus, ou se abandonariam todos os sonhos políticos e depo­
sitariam a fé, exclusivamente, no braço do Senhor e na vinda de 
um messias que iria destruir o mal do império mundial por um 
miraculoso ato de poder. Esse é o passo final na revelação judaica, 
e encontra expressão na literatura apocalíptica característica do 
período pós-macabeu . 
Desse modo, na vinda de Cristo, no século 1 da Era Cristã, ha­
via três escolas de pensamento diferentes entre os judeus. A primeira 
era a dos saduceus, o partido da aristocracia governante que estava 
1 62 l 1 63 
pronto para cooperar com os romanos e com a dinastia herodiana. 
A segunda era a dos zelotas, o partido da resistência atuante que 
estava determinado a repetir a violência revolucionária da inssurei­
ção nacional dos macabeus. Em terceiro lugar havia a dos fariseus, 
os sucessores dos hassidim e antepassados dos judeus rabínicos, que 
eram o partido da observância estrita, dedicado de corpo e alma à 
observância da Lei . 
Além desses, menciona Flavio Josefo ( 3 7- 1 0 1 ) , além dos fari­
seus e saduceus, havia uma "terceira facção " , os essênios, que for­
mavam uma espécie de ordem monástica e seguiam uma regra de 
vida. estritamente ascética. Embora também sejam mencionados por 
Plínio, o Velho (23-79) e Fílon de Alexandria (25 a .C . -50 d .C . ) , a 
importância desse grupo sempre foi subestimada no passado, mas, 
atualmente, a descoberta dos manuscritos do deserto em Wadi 
Qumran, a oeste do Mar Morto, lançou luzes sobre o movimento 
e suscitou vivo interesse e controvérsias. Agora está evidente que 
a seita é idêntica ao partido da Nova Aliança ou zadoquitas, cuja 
existência foi revelada no final do século XIX, e a publicação, em 
1 9 1 0, de dois manuscritos descobertos no Egito e, agora, guardados 
em Cambridge,5 mostrou que estavam muito mais próximos da tra­
dição essencial do judaísmo ortodoxo do que se supunha anterior­
mente . Nesse aspecto, contudo, foram profundamente influenciados 
por ideias apocalípticas e escatológicas, bem como pela prática do 
batismo e da refeição comunal, o que demonstrava que tinham afi­
nidades com o cristianismo primitivo. 
As ideias messiânicas, no entanto, eram singulares, na medida em 
que acreditavam na vinda de dois messias - o messias de Israel, que se­
ria um líder guerreiro na guerra contra as forças do mal, identificadas 
5 Hoje os manuscritos da " Genizá do Cairo" estão dispersos e se encontram 
não só na Universidade de Cambridge como também há uma parte da co­
leção na Universidade de Manchester e no Jewish Theological Seminary of 
America . (N. T. ) 
A Formaçãoda C ristandade 1 Capítu lo 5 
com os exércitos romanos, e o messias de Aarão, que representava o 
poder do sacerdócio e que, por isso, tinha preeminência. 
Talvez, a característica mais impressionante da comunidade de 
Khirbet Qumran seja o caráter militar, mais conforme o espírito dos 
zelotas e dos seguidores de Simão bar Kokhba6 do que o dos primei­
ros cristãos. Isso pode ser visto mais claramente no notável docu­
mento conhecido como " Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos 
das Trevas" ,7 que esboça um plano de campanha para a condução 
de uma guerra santa contra os romanos - potência mundial pagã -
a quem se referem como "os cetim" . Apesar dessas diferenças, os 
documentos do Wadi Qumran e a existência dessa "comunidade da 
Nova Aliança " oferecem uma nova e valiosa fonte de indícios das 
crenças e práticas do judaísmo na época de Cristo e devem nos for­
çar a rever muitas teorias em voga no século XIX com relação as 
influências não judaicas no cristianismo, em especial, talvez, no caso 
do quarto Evangelho. 
De qualquer modo, esse novo indício proporciona mais uma pro­
va da ligação íntima entre cristianismo e judaísmo - entre o antigo Is­
rael e o novo - que é o tema central da liturgia católica, de modo que 
os dois testamentos ou alianças são mostrados como parte integral 
6 Líder da terceira revolta judaica contra o Império Romano ocorrida entre os 
anos de 1 32- 135 . (N. T. ) 
7 A série de pergaminhos, também denominada "Regra de Guerra '' , "Regula­
mento de Guerra" , " Rolo de Guerra" ou "Pergaminho de Guerra" , constitui o 
conjunto mais bem conservado e mais completo dos famosos "Manuscritos do 
Mar Morto" . Esse documento foi encontrado, no ano de 1 947, numa caverna 
em Qumran no deserto da Judeia, na margem noroeste do Mar Morto, pelo jo­
vem beduíno Muhammed edh-Dhib, sendo adquirido pela Hebrew University 
of Jerusalem. Uma versão do pergaminho editada pelo arqueólogo Eleazar 
Sukenik ( 1 889-1953) foi publicada na seguinte edição: The Dead Sea Scrolls 
of the Hebrew University. Jerusalem, Magnes Press I Hebrew University, 1 955. 
Para análises mais recentes do documento, ver Jean Duhaime, The War Texts: 
1 QM and Related Manuscripts. London, T. T. & Clark, 2005; Jim Parker, The 
War Scroll: Genre & Origin. Memphis, BorderStone Press, 2012. (N. T. ) 
1 64 l 1 65 
de uma experiência divina. Isso não quer dizer que somente Israel foi, 
por mais de mil anos, o veículo exclusivo da revelação divina; quer 
dizer também que, na tradição de Israel, foi estabelecida uma relação 
ímpar entre Deus, o homem, a sociedade humana e a história, uma re­
lação que não foi rompida pela deserção de Israel, mas foi continuada 
e ampliada na igreja cristã e na sua história . 
O Antigo e o Novo Testamentos ou alianças, portanto, são uma 
evolução gradual, única e integrada, sem paralelos, entre as religiões 
do mundo. Como vimos, as grandes religiões históricas do mundo 
em que se basearam as civilizações do Antigo Oriente, em especial, 
as da Índia e da China, eram essencialmente religiões naturais - ou 
seja, representavam uma sanção humana, ou uma cooperação, com 
os poderes divinos que governavam o mundo. Buscavam manter a 
harmonia entre a vida humana e o divino ordenamento da natureza 
que é manifestado na ordem das estações e no curso das estrelas, e, 
visto que iam além, como as religiões da Índia e da China tentaram 
fazer, faziam-no por intermédio de um princípio espiritual subjacente 
à ordem visível e à ordem moral que é, ao mesmo tempo, transcen­
dente e imanente; é tudo e mais do que todos. 
A revelação judaica, por outro lado, apresenta uma divinda­
de diferente e um modo distinto de ação divina - um Deus vivo e 
pessoal que é, essencialmente, criador -, o criador do mundo, do 
homem e da história . E esse poder criativo é mostrado não só na­
quilo que ele fez, mas no que faz e no que está prestes a fazer; prin­
cipalmente na criação de um novo povo que está destinado a ser o 
portador, na história, do desígnio divino pelo qual Deus irá mudar 
a própria natureza e renovar a face da Terra . Logo, a doutrina da 
nova criação, que ocupa um lugar central nos escritos paulinos e, 
certamente, no Novo Testamento como um todo, está profunda­
mente enraizada no Antigo Testamento e na tradição de Israel . 
A importância do Antigo Testamento para a compreensão do cris­
tianismo é dupla: por um lado é teológica - a revelação da palavra de 
A Formação da C ristandade 1 Capltulo 5 
Deus como realidade suprema, como Criador e Juiz; e, de outro lado, é 
histórica, já que mostra como a Palavra de Deus foi a força criativa que 
moldou e transformou a vida do povo de Deus e o guiou pela vastidão 
da história, preparando as veredas para a vinda do Reino de Deus. 
Primeiramente, Iahweh inicia um relacionamento particular com 
uma determinada comunidade eleita, que recebe a lei de lahweh, a 
Torá, e torna-se o povo santo. Em segundo lugar, há a palavra dos 
profetas, pelos quais a aliança de lahweh com Israel e seu governo 
sobre as nações é reafirmado em novos contornos. Pela voz dos pro­
fetas, lawveh julga os fracassos de seu povo em manter a aliança, 
apresenta os inimigos de Israel e os sucessivos impérios mundiais 
como instrumentos do juízo divino ao executar o desígnio na histó­
ria . O desígnio divino é visto pelos profetas como a vinda do Reino 
de Deus. O Reino é o objetivo da história, e toda a história é vista 
como uma preparação para a vinda do Reino. Tal Reino, entretanto, 
não está na história, já que os reinos das nações, e mesmo Israel, na 
obstinada recusa em ouvir a palavra de Deus, estavam num estado de 
patente rebelião contra o Reino de Deus. Por isso os profetas anun­
ciaram a vinda do Reino como um evento revolucionário - um juízo 
sobre o homem e o reino do homem, que era uma obra de destruição, 
bem como de salvação. Assim sendo, a tradição literária do Antigo 
Testamento encontra conclusão na nova expressão do espírito pro­
fético - o Apocalipse ou "Revelação das últimas coisas" -, em que a 
vinda do Reino está associada ao fim do mundo ou o fim da presente 
ordem mundial. Cada vez mais as esperanças de Israel foram centra­
das na vinda pessoal daquele que estava destinado a anunciar esse 
Reino e introduzir uma nova dispensação. 
É um registro único e, de certo modo, a fonte de três grandes reli­
giões mundiais. Ele também mostra, com maior clareza, a função socio­
lógica da religião e o modo como a lei religiosa e o ordenamento ritual 
se identificam com a ordem moral e, por fim, com a ordem social, de 
modo que era a Lei que formava o povo e a política, e não o oposto. 
1 66 l 1 67 
O Novo Testamento nos mostra quão profundamente o cristia­
nismo estava enraizado no Antigo Testamento e na tradição judai­
ca, apesar disso não ser, é claro, totalmente admitido pelos j udeus. 8 
A esse respeito devemos lembrar que o j udaísmo, bem como o cristia­
nismo, passou por grandes mudanças nos primeiros séculos de nossa 
época. O judaísmo foi reconstruído depois de duas grandes guerras 
com Roma, e foi o Talmude e o Período Talmúdico que, posterior­
mente, formaram a mentalidade do judaísmo. Da mesma maneira, o 
cristianismo, durante os mesmos séculos, foi profundamente influen­
ciado pelo helenismo; e a tradição judaico-cristã primitiva, aos pou­
cos, desvaneceu após o primeiro século.9 
A Igreja herdou a antiga versão grega do Antigo Testamento - a 
Septuaginta, que originalmente foi a herança comum de cristãos e ju­
deus, mas abandonada por esses após a queda de Jerusalém, quando a 
ruptura entre judeus e cristãos foi total . O Ocidente seguiu a tradição 
judaica das Escrituras, isto é, o texto massorético - primeiro com São 
Jerônimo (347-420) e a Vulgata, que se tornou a Bíblia oficial da Igre­
ja Católica, e depois, com as novas traduções das Escrituras feitas a 
partir do hebraico após a Reforma Protestante. A Igreja Oriental, no 
entanto, como era natural, aderiu à tradição da Septuaginta. 
A influência do Antigo Testamento na Igrejaera extraordinaria­
mente forte, como podemos ver pela liturgia, em especial, a da Vigília 
Pascal. Após a Reforma Protestante, tal influência decaiu, devido à 
ênfase dada pelos reformadores, de modo que essa leitura da Bíblia 
se tornou a marca do protestantismo, ao menos, no caso do Antigo 
Testamento. No século XIX, contudo, a situação novamente mudou 
devido ao desenvolvimento da crítica bíblica no mundo protestante, 
8 Essa postura é explicada em um interessante ensaio de Arthur A. Cohen ( 1 928-
1 986), no volume de ensaios editado por Philip Scharper chamado American 
Catholics: A Protestant-]ewish View (New York, Sheed and Ward, 1 959) . 
9 Ver Gregory Dix, ]ew and Greek: A Study on Primitive Church. London, 
Dacre Press, 1 953 . 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 5 
principalmente na Alemanha, o que levou ao descrédito do valor his­
tórico da tradição bíblica . No século XX, novamente, isso mudou 
graças à reação neo-ortodoxa entre protestantes e o desenvolvimento 
de estudos bíblicos entre os católicos. 
A tradição protestante extremamente liberal tendeu a diminuir 
a importância da tradição judaica no cristianismo não só pela críti­
ca à historicidade das fontes, porém muito mais pela ênfase parcial 
ao conteúdo ético do ensinamento cristão. Agora, em geral, é reco­
nhecido por teólogos protestantes bem como pelos católicos que uma 
interpretação do cristianismo confinada nos ensinamentos morais 
dos Evangelhos nega as raízes históricas e teológicas do cristianismo. 
Um cristianismo sem o Antigo Testamento deixa de ser cristianismo e 
torna-se uma religião bem diferente, como a que os Padres da Igreja 
encontraram quando condenaram os gnósticos Marcião ( 85-160) e os 
maniqueus. A continuidade do cristianismo com a tradição do Antigo 
Testamento e a concepção da Igreja como a nova Israel é parte funda­
mental da fé cristã. 
Ao Antigo Testamento devemos toda uma série de tradições re­
ligiosas características do cristianismo e que não encontram lugar 
nas interpretações totalmente éticas de Ernest Renan ( 1 823- 1 8 92 ) , 
David Friedrich Strauss ( 1 8 0 8 - 1 8 74 ) e outros liberais d o século 
XIX. Não menos importante é a interpretação cristã da história, 
que foi , de fato, criação dos profetas hebreus, e continuada sem 
grandes mudanças por São Paulo (5 -67 ) , São João ( 1 0 ? - 1 0 3 ) e San­
to Agostinho. 
No Antigo Testamento, particularmente nos Profetas, encontra­
mos pela primeira vez a ideia de orientação da Divina Providência e 
da intervenção divina na história - a concepção de que os grandes 
eventos da história estão todos integrados num plano divino voltado 
para o j ulgamento de Deus. 
Há também um dualismo histórico - existem dois princípios em cur­
so na história. A verdadeira história - a história sagrada - não é a mesma 
1 68 l 1 69 
coisa que a história aparente ou secular. O sentido e o valor espirituais 
estão ocultos sob o véu da política visível e da mudança econômica. 
Existe o papel vital dos indivíduos chamados por Deus, muitas 
vezes a contragosto ou sem saber, para desempenhar determinada 
missão. Isso é visto no chamado de Abraão e Moisés, na vocação 
profética de Elias e nos grandes profetas escritores, sobretudo no 
caso de Jeremias, que nos mostra, vividamente, o aspecto psicológi­
co do processo - como o profeta é forçado a aceitar a vocação que 
o coloca em oposição a todas as forças dominantes de sua época. 
E, por outro lado, vemos a vocação de uma personagem histórica 
como Ciro II da Pérsia ( 600/576-530 a .C . ) que está em sintonia 
com as forças dominantes de seu período, mas, não obstante, torna­
-se instrumento, inconsciente ou semiconsciente, do desígnio divino 
( Isaías 4 1 ; 44, 28 ; 45 , 1 ) . 
Por fim, h á o tema do julgamento divino - o fim d a história . Cada 
um dos grandes impérios e civilizações será julgado por Deus e pela 
história. Sucessivamente fracassam e são rejeitados, mas os propósi­
tos de Deus para o homem, Israel e a Igreja são realizados em meio à 
catástrofe histórica e ao colapso temporal. 
Todos esses temas são repetidos e reinterpretados pelos mestres 
cristãos ao longo das eras, por São Paulo e São João, por Santo Agos­
tinho e pelos líderes da reforma eclesiástica no século XI, pelos fran­
ciscanos, pelos reformadores protestantes e, finalmente, por modernos 
escritores católicos como Joseph de Maistre ( 1 753- 1 82 1 ) e o cardeal 
John Henry Newman, cuja pregação inicial, sobretudo nos sermões 
anglicanos, 1 0 é dedicada, abundantemente, ao desenvolvimento do se­
gundo e terceiro temas acima descritos, a saber, o dualismo entre his­
tória externa e interna, entre os processos concorrentes e conflitantes 
1 0 A coletânea de 1 9 1 sermões foi publicada pela primeira vez em 1 868 , em 
oito volumes, com o título de Parochial and Plain Sermons. Todos esses textos 
podem ser encontrados on-line na seguinte página: http://www.newmanrea­
der.org/Works/index.html# Anglican_Period. (N. T. ) 
A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 5 
do mundo e da Igreja e ainda, o papel decisivo dos indivíduos - dos 
poucos que são chamados a testemunhar diante de sua época e, então, 
mudar o fluxo da história . Não conheço nenhum autor cuja mente 
tenha sido permeada de modo mais profundo pelas imagens e ideias 
do Antigo Testamento que John Henry Newman, especialmente no 
período decisivo de sua carreira . 1 1 
1 1 A teoria judaico-cristã da história também teve enorme influência na moder­
na filosofia da história secular. De fato, o livro que deu início à escola alemã de 
filosofia da história - Die Erziehung des Menschengeschlechts [A Educação da 
Humanidade] de Gotthold Ephraim Lessing ( 1 729- 178 1 ) - era simplesmente 
uma versão generalizada e racionalizada da doutrina tradicional. 
Ela também exerceu uma influência considerável na ação social, mas nem 
sempre para o bem. Inspirou judeus a promover duas revoltas violentas e 
desastrosas contra Roma e também inspirou muitos movimentos milenaristas 
e utópicos na história cristã. Foi importante, sobretudo, nos Estados Unidos, 
devido ao biblismo dos puritanos do século XVII - visível, em geral, nos es­
critos dos próprios puritanos e, também, nos livros do professor Perry Miller 
( 1 905-1 963 ) - e, consequentemente, teve um efeito considerável na história 
norte-americana posterior. 
1 70 l 1 7 1 
C a p í t u l o 6 1 A V i n d a d o R e i n o d e D e u s 
Na história de Israel, uma singular tradição religiosa nasceu no 
mundo da história . Em comparação com todas as demais religiões, 
essa tradição não era expressão de uma civilização mundial: ao con­
trário, a cultura - a exclusiva cultura teocrática de Israel - era expres­
são e encarnação da religião e, à parte da religião, a cultura de Israel 
era quase inexistente. Assim sendo, o Antigo Testamento, que era o 
registro da tradição de Israel, também era o registro da revelação di­
vina na aliança do Sinai, a lei de Deus e a palavra dos profetas; e esta 
última culminava no anúncio da vinda do Reino de Deus que se rea­
lizaria pelo advento do messias - ao mesmo tempo rei e salvador - e 
pelo julgamento das nações. 
No primeiro século da era cristã tal expectativa messiânica alcan­
çou o auge: de um lado, no surgimento do cristianismo, e de outro, 
numa tremenda catástrofe - a revolta do povo hebreu contra o poder 
mundial dos gentios, que levou à destruição de Jerusalém e a recons­
trução do judaísmo em novas bases. 
À primeira vista parece incrível que os judeus, o menor dos povos 
do mundo antigo, tivessem ousado desafiar o poder mundial de Roma, 
cujos exércitos subjugaram todo o mundo desde o Oceano Atlântico 
até o rio Eufrates e o Mar Vermelho. Mesmo assim, por três vezes, 
no curso de setenta anos, promoveram uma série de revoltas terrí­
veis - nas épocas de Nero (37-68 ) e Vespasiano (9-79 ) , de 66 a 73; 
no período do governo de Trajano (53-1 1 7) durante a Guerra Parta, 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 6 
de 1 1 5 a 1 1 7, e finalmente,na época de Adriano (76- 1 3 8 ) , de 1 32 a 
135 . Foram superadas somente após anos de amargos combates, que 
não terminaram até que toda a nação estivesse reduzida quase a um 
deserto e o povo hebreu quase fosse exterminado. O tratado sobre 
a guerra entre as forças das trevas e as forças da luz, que é um dos 
documentos mais interessantes descobertos em Wadi Qumran, ilustra 
a mentalidade dos homens que lutaram tais guerras e mostra como 
a resistência deles era intensificada pela crença bastante literal numa 
súbita intervenção divina que os daria a total vitória no final, após 
sucessivas derrotas. 
A vinda de Jesus e a emergência do cristianismo foram quase con­
temporâneas aos últimos estágios da comunidade de Qumran, duran­
te o último período da trégua, quando o povo hebreu estava tomando 
coragem para o grande conflito com Roma. Assim como os homens 
de Qumran, os discípulos de Jesus viviam na expectativa do advento 
iminente do Reino, que marcaria o fim de uma era e o início de uma 
nova ordem mundial. 
O Reino que Jesus pregou, contudo, não era o reino que os 
j udeus estavam esperando, nem a trajetória de sua missão como 
salvador messiânico e filho do homem correspondia à imagem que 
o povo hebreu tinha nutrido: a de um rei guerreiro triunfante que 
iria destruir o poder dos gentios e restaurar o poder de Israel. É ver­
dade que o reino em hebraico, Malchut Shamayin, não é exatamen­
te o que entendemos pelo termo - é a " realeza " ou a " autoridade 
real" ( talvez a palavra latina imperium estej a mais próxima que a 
palavra regnum ) ; mas mesmo assim, passa conotações políticas que 
estão ausentes no Evangelho. O " Reino " dos Evangelhos está muito 
mais próximo do Reino dos autores apocalípticos, j á que supõe a 
ideia de um novo mundo, uma nova dispensação, uma nova ordem 
mundial . Mesmo aí, existem diferenças vitais, uma vez que o Reino 
do Evangelho já está presente, "o Reino de Deus está no meio de 
vós " (Lucas 1 7,2 1 ) ou " O Reino de Deus já chegou a vós" (Lucas 
1 72 1 1 73 
1 1 ,20; Mateus 12 ,2 8 ) . Aqui o Reino é visto, acima de tudo, como 
o poder divino manifestado nas obras sobrenaturais de Jesus. Nou­
tros lugares, e mais comumente, o Reino é mostrado como um novo 
estado ao qual os homens são chamados, ou uma nova descoberta -
é comparado a um banquete nupcial (Mateus 22 ) , a um grão ou 
semente (Mateus 1 3 ,24; 1 3 ,3 1 ; Marcos 4,26-29 ) , à colheita ( Mar­
cos 4,26-29; Mateus 1 3 ,24-30 ) , a um tesouro escondido (Mateus 
1 3 ,44 ) , a uma pérola de grande valor (Mateus 1 3 ,45 ) . 
Ao longo da pregação do Reino, a missão de Jesus, o Filho do 
Homem, como figura central na nova dispensação é reconhecida em 
vez de afirmada . E quando, finalmente, Pedro confessa que Jesus é "o 
Messias", "o filho do Deus vivo" (Mateus 16 , 16 ) , isso é imediatamen­
te seguido não por qualquer declaração de um triunfo futuro, mas 
pelo anúncio feito por Jesus de sua paixão e morte. A revelação do 
mistério do Reino é, ao mesmo tempo, a revelação do mistério da cruz. 
Essa é a novidade suprema do Evangelho de Jesus: a vinda do 
Reino e a nova aliança espiritual que os profetas vaticinaram são 
concretizadas somente pela paixão do messias . " Isto é o meu san­
gue, o sangue da Aliança, que é derramado por muitos" (Mateus 
26,28; Marcos 14 ,24 ) , " Este cálice é a Nova Aliança em meu san­
gue" (Lucas 22, 20 ) . Desse ponto em diante tudo é mudado. A san­
ção da nova aliança na última ceia é imediatamente seguida pela 
rejeição de Jesus como messias por parte dos j udeus, de sua con­
denação e morte nas mãos dos gentios por instigação dos j udeus e, 
finalmente, por sua ressurreição. 
Esses acontecimentos, na visão cristã, são a manifestação final 
da divina missão de Jesus, é o cumprimento histórico da profecia e a 
porta de entrada para uma nova era . Com eles, o Reino de Deus j á 
chegou, uma vez que Jesus está agora sentado à direita do Pai com 
suprema autoridade sobre as forças da Terra e do Céu. E, de ante­
mão, alude à tal autoridade messiânica ao incumbir os apóstolos 
após a ressurreição: "Toda autoridade sobre o Céu e sobre a Terra 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 6 
me foi entregue. Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem 
discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito San­
to" (Mateus 28 , 1 8 - 1 9 ) . 
Assim como a antiga Aliança d o Sinai gerou o antigo Israel, ago­
ra, a nova Aliança no sangue de Cristo cria um novo povo, um se­
gundo Israel espiritual que receberia a promessa e entraria no novo 
Reino. Esse Reino seria universal, estendendo-se a todas as coisas no 
Céu e na Terra, como diz São Paulo: 
para que, ao nome de Jesus, 
se dobre todo ;oelho dos seres celestes, 
dos terrestres e dos que vivem sob a terra, 
e para a glória de Deus, o Pai, 
toda língua confesse: 
Jesus é o Senhor (Filipenses 2, 1 0-1 1 ) . 
A Igreja constituída pela efusão do Espírito Santo no Pentecos­
tes, como fora prometido pelo Cristo Ressuscitado, no entanto, era 
instrumento do Reino em um sentido especial, visto que era o corpo 
de Cristo, e nela e por ela que Jesus estabelecera seu Reino na Terra . 
Foi pelo Espírito, que era o espírito de Cristo, procedente do Pai, 
que a Igreja foi criada e guiada por todo o Novo Testamento. Isso é 
realçado como marca distintiva da nova sociedade, que não era con­
cebida como uma sociedade humana, mas, ao contrário, como uma 
nova criação, renascida em Cristo e destinada a se estender além das 
fronteiras de Israel até os gentios e toda a raça humana. Essa última 
verdade, contudo, só foi realizada gradualmente. Para um forasteiro 
que visitasse a igreja primitiva em Jerusalém, ela deveria parecer ape­
nas outra seita j udaica, tão característica desse período, como vemos 
nas descobertas do Mar Morto. 
Na verdade, a crise messiânica do caminho da cruz foi o ponto 
crítico na história de Israel e do mundo. O povo hebreu, como um 
todo, foi irresistivelmente arrastado para o turbilhão da guerra e da 
destruição que arruinou as pontes entre os mundos dos gentios e dos 
1 74 1 1 75 
judeus. Os judeus foram forçados a recorrer ao estudo da lei como úl­
timo refúgio da identidade nacional judaica, ao passo que os cristãos 
tomaram caminho oposto e começaram, inicialmente por tentativas, 
a se aproximar cada vez mais do mundo gentio que os rodeava. 
Devemos recordar, contudo, que mesmo antes do apostolado cris­
tão dos gentios já havia uma diferença notável entre o judaísmo da 
Palestina e o judaísmo das cidades helênicas. O judaísmo da Palestina 
fora formado em resposta aos desafios apresentados pelo império Se­
lêucida durante o período macabeu, cujo propósito era transformar 
Jerusalém em uma cidade helênica e substituir o culto a Iahweh pelo 
de Zeus. O sucesso da revolta macabeia contra os selêucidas deu aos 
judeus da Palestina a certeza de que Deus estava do lado deles, em ter­
mos de insurreição militar contra as potências mundiais dos gentios. 
Ademais, a vinda do Império Romano e a total sujeição da Terra Santa 
a uma odiosa lei estrangeira aumentou o sentimento de oposição ao 
paganismo e a resistência na manutenção de relações com o helenismo. 
Os judeus das cidades helênicas, por outro lado, embora mantives­
sem a tradição religiosa básica e, de fato, tentassem propagá-la entre 
os gentios nas cidades onde se localizavam as comunidades, eram mui­
to mais abertos à influência da cultura helenista - como certamente 
mostra a tradução da Bíblia que fizeram para o grego, a Septuaginta . 
Em contrapartida, temos a reação ao helenismo, que incluía uma 
maior ênfase na pureza da tradição judaica e na separação mais se­
vera possível dos não judeus; por sua vez, nas comunidades da diás­
pora, temos a aceitação da língua e da cultura helênica à medida que 
estas não conflitassem com o monoteísmo, além de ter sido feito um 
esforço para tornar os gentios cientes da obrigação, também deles, 
de adorar o único Deus verdadeiro, o Deus de Israel. E, uma vez queos judeus da diáspora somavam mais de 75 % da população judaica 
total no Império Romano (esta última estimada entre 5 a 8 milhões 
de pessoas ) , a importância desses judeus como uma ponte entre o j u­
daísmo e o helenismo pode ser facilmente compreendida . 
A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 6 
Entretanto, como observa Henri Daniel-Rops ( 1 90 1 - 1 965 ) : 
Este ramo do j udaísmo teve dificuldades e encontrou a lguma re­
s istência . Os j udeus rigoristas desconfiavam dos convertidos . Além 
disso, o rito de circuncisão era obrigatório para todo homem que 
desejasse tornar-se um verdadeiro filho de Iahweh e membro pleno 
da comunidade j udaica, de modo que um grande número de aspiran­
tes a prosélitos recuavam a o se deparar com tal fato. Assim, dividi­
dos entre u m exclusivismo que iria tornar-se cada vez mais violento 
até o período da catástrofe, conhecido como "a guerra j udaica " , e 
um universal ismo que, embora admirável, não se atreveu a chegar à 
conclusão lógica e declarar que não havia mais " circunciso ou incir­
cuncis o " ( Colossenses 3 , 1 1 ) , a consciência j udaica parecia suspensa 
num estado de desequilíbrio . 1 
Foi o cristianismo, portanto, e não o judaísmo que colheu a sa­
fra desses primeiros esforços missionários feitos pelas comunidades 
judaicas das cidades helenísticas. Ademais, após a revolta de 66 a 
70 A.D. que resultou na destruição de Jerusalém, e as duas revoltas 
subsequentes de 1 1 5- 1 1 7 e 1 32-1 35, a comunidade judaica na Pales­
tina, aos poucos, definiu o modelo também para as comunidades da 
diáspora, e tal modelo não era de um apostolado missionário, mas 
de uma revelação cuidadosa da lei e a elaboração de comentários a 
partir dos preceitos, um crescimento que cada vez mais isolava os ju­
deus do contato com o mundo dos gentios, muito embora isso possa 
ter contribuído para fortalecer os laços das comunidades judaicas em 
face da desintegração ou dissolução. 
A extensão da pregação apostólica aos gentios e a criação de 
uma igreja helênica foi obra de São Paulo, que deu o revolucionário 
passo de insistir no direito dos cristãos gentios de se tornarem mem­
bros da ecclesia sem a necessidade da circuncisão ou da observância 
da lei mosaica. Mostrou que a antiga lei foi ah-rogada pelo sangue 
1 Henri Daniel-Rops, The Age o( the Apostles and Martyrs, vol. 1. New York, 
Doubleday-lmage Book, 1 962, p. 43-44. 
1 76 l 1 77 
de Cristo e substituída pela nova lei, que era a lei da liberdade, e não 
havia mais espaço para nenhuma distinção entre judeus e gentios: 
Vós todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo, pois todos vós, que 
fostes batizados em Cristo, vos vestistes de Cristo. Não há judeu nem 
grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos 
vós sois um só em Cristo Jesus. E se vós sois de Cristo, então sois des­
cendência de Abrãao, herdeiros segundo a promessa (Gálatas 3 ,26-29) . 
Foi essa nova pregação que criou a grande rede de igrejas de 
língua grega ao longo das margens do Mar Mediterrâneo até Antio­
quia, ao longo da Ásia Menor, da Macedônia, da Grécia e da própria 
Roma. Eis o tema dos Atos dos Apóstolos, que é uma história verda­
deira, mas, ao mesmo tempo, é uma espécie de épico cristão. É a Enei­
da espiritual da Igreja de Jerusalém a Roma, com São Paulo, como 
a figura heroica, que efetua a missão sagrada por meio de trabalhos 
sobre-humanos e sofrimentos. Infelizmente, não temos nenhum regis­
tro comparável de como a Igreja se espalhou em direção ao Oriente e 
como a cristianismo siríaco da Mesopotâmia surgiu (pois as tradições 
sobre a fundação da Igreja de Edessa são lendas ) . Mas é provável que 
o cristianismo siríaco tenha derivado da igreja dos gentios, possivel­
mente de Antioquia, e não da igreja judaica em Jerusalém. Esta man­
teve as próprias tradições por todo o cataclisma da Primeira Guerra 
Judaico-romana e a destruição de Jerusalém, e mesmo durante a cri­
se, igualmente séria, da Terceira Guerra Judaico-romana, apesar de 
muita perseguição dos próprios conterrâneos. Aos poucos, todavia, 
perdeu contato com a igreja dos gentios de modo que, por volta do 
terceiro século, a vemos imergir na posição de seita heterodoxa - iso­
lada tanto da igreja dos gentios como da sinagoga judaica e dividida 
internamente pelo cisma dos ebionitas e pela estranha facção dos el­
quesaítas, surgidos por volta do ano 1 0 1 . 
Nesse meio tempo, no entanto, n a igreja dos gentios tornara-se a 
igreja cristã, a Igreja Católica. Na primeira geração não era, é claro, 
totalmente composta por gentios, mas muitos dos membros e líderes 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 6 
da igreja da diáspora, como o próprio São Paulo, eram judeo-cristãos. 
Sobretudo, São Pedro, o príncipe dos apóstolos, que estivera no co­
mando da igreja de Jerusalém nos primeiros tempos, era bastante ati­
vo nas igrejas da diáspora, primeiro em Antioquia e depois em Roma, 
onde, segundo uma tradição antiga e bem atestada, tanto ele quanto 
São Paulo foram levados à morte na época de Nero. 
O papel de São Pedro foi de notável importância nesse progredir, 
porque foram sua autoridade e influência que preservaram a unidade 
da propaganda revolucionária de São Paulo aos gentios e da tradição 
judaico-cristã . Além disso, há um bom motivo para acreditar que foi 
sob influência petrina, e representando a tradição de Pedro, que o 
Evangelho mais antigo, o de São Marcos, foi escrito em Roma duran­
te os anos 60, o que confere uma estrutura histórica estável, aceita 
tanto por j udeo-cristãos como por gentios, como o fundamento da fé. 
Posteriormente, quando São Lucas ( t84) repetiu essa mesma narrati­
va evangélica de forma ampliada, combinou-a numa narrativa única 
e consecutiva com sua história da fundação da Igreja em Jerusalém, 
sua expansão pela pregação apostólica e, sobretudo, a missão de São 
Paulo aos gentios. 
Desse modo, foi criada uma escritura clássica oficial na qual to­
dos os elementos da tradição cristã - os dizeres de Jesus, a fundação 
das igrejas, as epístolas paulinas e outras tradições apostólicas pode­
riam ser incorporadas. 
Nessa altura, na última metade do primeiro século, o problema 
judaizante não era mais tão agudo. Para os convertidos oriundos de 
um ambiente totalmente gentio, o cristianismo não parecia mais uma 
espécie de judaísmo. Era, para os devidos efeitos, uma nova religião -
o Evangelho da Salvação da humanidade em Cristo, o Filho de Deus. 
Quanto mais estavam desunidos da comunidade judaica, contudo, 
mais estavam expostos à hostilidade do mundo pagão, já que não 
tinham mais uma posição social de uma comunidade reconhecida de 
compatriotas para protegê-los. 
1 78 1 1 79 
Assim, os primeiros cristãos pareciam viver num vácuo social, 
pendendo entre os mundos dos j udeus e dos gentios, e esse isolamen­
to cultural nada mais era senão a expressão social de uma questão 
espiritual mais profunda, da qual estavam plenamente conscientes. 
Sentiam que viviam em dois mundos e em duas idades do mundo dife­
rentes. A vinda do Cristo tinha acabado com a antiga ordem; o antigo 
mundo estava morto, o antigo Israel tinha perdido seu posto, uma 
nova ordem nascera, cujos primeiros frutos eram os próprios cristãos. 
Já possuíam o Reino pela fé e esperança; tinham somente que esperar 
pela manifestação final e o triunfo. Consequentemente, as condições 
externas da vida presente não importavam. Estavam apenas viajando 
pelo que restara de um mundo destroçado rumo a um objetivo de­
terminado. A Igreja era a sociedade do mundo que há de vir, e eles já 
possuíam "o penhor do Espírito" (2 Coríntios 1 ,22) e o antegozo da 
vida no novo mundo. 
O autor da epístola aos Hebreus expressou esse sentimento de 
tensão e expectativa numa maravilhosa passagem em que explica a 
continuidade e a diferença das dispensações judaica e cristã . Vê toda 
a história do povo eleito como uma peregrinação de fé desde quan­
do Abraão deixou sua terra em obediência ao chamado divino, sem 
saber aondeiria, vivendo em tendas numa terra estranha, esperan­
do todo o tempo a verdadeira pátria cujo arquiteto e construtor era 
Deus . Do mesmo modo, os descendentes espirituais, "coerdeiros da 
mesma promessa " (Hebreus 1 1 ,9 ) , viajaram por toda a história, supe­
rando cada obstáculo e provação pelo poder da fé. "Na fé, todos estes 
morreram, sem ter obtido a realização da promessa, depois de tê-la 
visto e saudado de longe, e depois de se reconhecerem estrangeiros e 
peregrinos nesta terra" (Hebreus 1 1 , 1 3 ) . Os cristãos são os herdeiros 
dessa grande tradição, mas agora a peregrinação tinha chegado ao 
fim e a promessa está cumprindo-se - não com tempestade, trevas e 
fogo ardente no Monte Sinai, onde os homens não suportavam ouvir 
a terrível voz de Deus . 
A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 6 
Mas vós vos aproximastes do Monte Sião e da Cidade do Deus vivo, 
a Jerusalém celestial, e de milhões de anjos reunidos em festa, e da 
assembleia dos primogênitos cujos nomes estão inscritos nos céus, e 
de Deus, o juiz de todos, e dos espíritos dos justos que chegaram à 
perfeição, e de Jesus, mediador de uma nova aliança, e do sangue da 
aspersão mais eloquente que o de Abel (Hebreus 12,22-24 ) . 
Todas as coisas foram mudadas. Céu e terra serão abalados. So­
mente o Reino permanecerá firme. 
Diante desses extraordinários eventos de transformação mundial, 
todas as diferenças de classe, raça e cultura entre os primeiros cris­
tãos gentios desapareceram. Punham em prática, com relação a eles 
mesmos, a parábola de Jesus que falava de um homem que dera um 
grande jantar e que os convidados tinham se recusado a comparecer, 
de modo que os lugares foram preenchidos pelos sobejos das ruas -
os pobres, os estropiados, os cegos e os coxos (Lucas 14,1 6-24) . 
A unidade da nova comunidade era essencialmente uma unidade so­
brenatural, que não dependia de circunstâncias externas, mas da união 
espiritual dos fiéis entre si, em Cristo. Essa união era realizada, sobre­
tudo, nos sacramentos que eram os canais para a transmissão da vida 
do Espírito e o meio pelo qual o fiel era incorporado no organismo 
divino ou corpo místico do qual Cristo era a cabeça, "cujo Corpo, em 
sua inteireza, bem ajustado e unido por meio de toda junta e ligadura, 
com a operação harmoniosa de cada uma de suas partes, realiza o seu 
crescimento para a sua própria edificação no amor" (Efésios 4, 1 6 ) . 
A unidade orgânica sobrenatural não está limitada à vida espiri­
tual interior do cristão - à vida da fé e da caridade -, mas também é 
um princípio de organização externa e de autoridade hierárquica. As 
diferentes ocupações ou ministérios na Igreja representam as funções 
orgânicas de um Corpo e, como os órgãos físicos, têm funções separa­
das e interdependência mútua e coordenação, da mesma forma ocorre 
com a vida comunal organizada e a vida hierárquica da Igreja . Desde 
as primeiras comunidades cristãs, estas não eram vistas como corpos 
1 80 l 1 8 1 
autônomos independentes. Ainda que estivessem espalhadas pelo 
mundo romano entre muitas cidades e povos, elas eram uma coisa só, 
como Cristo era um. Como Cristo fora mandado para o mundo pelo 
Pai, da mesma maneira os apóstolos foram mandados por Cristo, e 
os ministros das igrejas locais - presbíteros, epíscopos, diáconos -
recebiam a função e a autoridade dos apóstolos. Essa insistência da 
unidade apostólica na tradição, na doutrina e na autoridade percorre 
todo o ensinamento da cristandade primitiva, assim como o Novo 
Testamento e os escritos do período pós-apostólico. 
No início, a questão da organização era, relativamente, pouco 
importante. Tudo dependia da autoridade do grupo central dos após­
tolos, que eram os fundadores e supervisores da nova comunidade, 
e, em segundo lugar, dos outros representantes do ministério supe­
rior - profetas, mestres e missionários - cujas atividades não estavam 
confinadas a nenhum lugar em particular. O ministério local era, na 
verdade, de importância secundária, como vemos na listagem de São 
Paulo dos diferentes ministérios ou "carismas" da Igreja - "Em pri­
meiro lugar, os apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro 
lugar, doutores . . . Vêm a seguir, os dons dos milagres, das curas, da 
assistência, do governo e o de falar diversas línguas" ( 1 Coríntios 
12,28 ) . A importância dos apóstolos, os pais fundadores das igrejas 
locais, era irresistível, tanto como fonte e regra da fé, assim como 
fonte e centro de autoridade, e mesmo as igrejas que não foram dire­
tamente fundadas por eles buscavam-nos para orientação e aceitavam 
a autoridade fiscalizadora deles, assim como as demais igrejas. 
Contudo, quando os apóstolos faleceram, o problema da orga­
nização eclesiástica se tornou de importância imediata para a Igreja . 
A insistência na unidade da Igreja e a manutenção da tradição apostóli­
ca permaneceram tão fortes quanto antes, mas, para ser eficaz tinha de 
ser intensificada pelo fortalecimento do ministério local e pelo laço da 
subordinação hierárquica. Temos um indício muito valioso desse perío­
do de transição na carta escrita por São Clemente I (t99) , o Romano, 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 6 
em nome da Igreja de Roma para a Igreja de Corinto, por volta do ano 
97, pois esta havia deposto do ministério seus principais presbíteros. 
Toda a epístola é dedicada à defesa do princípio da ordem hierárquica 
e da autoridade como provenientes da tradição dos apóstolos. 
Os apóstolos foram constituídos pelo Senhor Jesus Cristo pregadores 
do Evangelho para nós; Jesus Cristo foi enviado por Deus [ . . . ] E assim, 
enquanto iam pregando, por regiões e cidades, a Boa Nova e batiza­
vam os que obedeciam ao desígnio de Deus, iam estabelecendo os pri­
meiros deles [as primícias] - depois de passá-los à prova no espírito -
como bispos e diáconos dos que haveriam de crer.2 
( . . . ] Também nossos Apóstolos tiveram conhecimento por Nosso Se­
nhor Jesus Cristo de que haveria disputa pelo episcopado. 
Por isso, com perfeito conhecimento do que haveria de acontecer, cons­
tituíram bispos e diáconos, e depois deram aos sucessores a norma de 
que, quando morressem, outros homens, postos à prova, os sucederiam 
no ministério. Esses homens, escolhidos por eles, ou posteriormente, 
por outros exímios varões, com o consenso de toda a Igreja [ . . . ] .3 
Nesse momento vemos que a insistência de São Clemente a res­
peito do princípio da autoridade e da sucessão apostólica na Igreja 
é a consequência necessária de sua crença de que os cristãos são um 
povo à parte - "o povo de Deus" no sentido literal . Conquanto o 
rompimento com o judaísmo estivesse completado há mais de uma 
geração, o raciocínio e a linguagem de São Clemente estão enraizados 
na antiga tradição hebraica de modo tão forte quanto a do autor 
da epístola aos hebreus. Fala, não como um gentio, mas como um 
filho espiritual de Israel. Como na primeira epístola de São Pedro, a 
singular vocação dos cristãos é identificada com a do povo eleito, e 
2 1 Clemente (carta Propter Subitas) , §42, 1 ;4. ln: A Fé Católica: Documentos 
do Magistério da Igreja - Das Origens aos Nossos Dias. Org., intr. e notas de 
Justo Collantes, S.J.; trad. cotejada com os originais em latim e grego e atua­
lização com novos documentos de Paulo Rodrigues. Rio de Janeiro/Anápolis, 
Lumen Christi/Diocese de Anápolis, 2003, p. 570. (N. T.) 
3 Idem, §44,1 -2, ibidem. ( N . T. ) 
1 82 l 1 83 
as palavras da escritura sobre a prerrogativa exclusiva de Israel são 
aplicadas à Igreja : 
Quando o Altíssimo dividiu as nações e dispersou os filhos de Adão, 
estabeleceu os limites das nações conforme o número dos anjos de 
Deus. O povo de Jacó tornou-se a porção do Senhor e Israel a medida 
de Sua herança. 
E, noutra parte, Ele disse: Eis que o Senhor tomou para si uma nação 
do meio das nações, como um homem apropria-se das primícias de sua 
eira; e o Santo dos Santos virá adiante dessa nação.4 
E como Israel ficara separadodas nações por intricadas obriga­
ções e restrições da lei, do mesmo modo agora a Igreja era um povo 
à parte, com leis e modo de vida próprios, fato que o afastava dos 
judeus e dos gentios, igualmente. 
À primeira vista parece difícil ver como essa separação pôde ser 
mantida, já que os cristãos não estavam mais segregados dos de­
mais, fosse por nacionalidade ou diferenças culturais . No entanto, 
desde o início, a pressão das hostilidades externas e perseguições 
era tão grande que produziu uma barreira natural que separou os 
cristãos do restante do mundo romano. Por dois séculos e meio 
uma longa guerra foi travada entre a Igrej a e o Império, iniciada 
na época de Nero e nunca totalmente terminada, apesar de perío­
dos ocasionais de trégua e descanso, até a conversão do imperador 
Constantino (272-337 ) . 
As causas da perseguição não são imediatamente óbvias, visto que 
o Império Romano normalmente era tolerante em questões religiosas 
e os cristãos não eram apenas politicamente inofensivos, mas tinham 
inculcado a obediência ao governo romano como um dever religioso. 
Devemos, não obstante, lembrar que a segunda metade do século 
I A.D. e a primeira metade do século II A.D. foram os períodos que 
4 1 Clemente, § 29,2-3 . A tradução do presente trecho foi feita a partir da 
tradução inglesa de J. B. Lightfoot. (N. T. ) 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 6 
testemunharam a luta de vida e morte do povo hebreu contra Roma, 
e a distinção entre j udeus e cristãos não era tão aparente para as au­
toridades nesse período quanto, posteriormente, veio a se tornar. Caio 
Suetônio (69-1 41 ) menciona a perseguição, na época de Domiciano 
( 5 1 -96 ) , daqueles "que, dissimulando a origem, j amais haviam paga­
do os tributos devidos pelo seu povo" . 5 
A reação dos próprios cristãos à perseguição, inevitavelmente, foi 
importante. É no primeiro século, provavelmente no governo de Do­
miciano, em que os cristãos experimentaram perseguições e sentiram 
a hostilidade do Império Romano, que encontramos a expressão mais 
veemente dessa reação nas páginas do Apocalipse. Roma é Babilônia, 
"a grande mãe das prostitutas, [ . . . ] embriagada com o sangue dos 
santos e com o sangue das testemunhas de Jesus" (Apocalipse 1 7,5-6 ) , 
o império do reino da Besta que busca destruir a Igreja, mas que já 
está destinada à destruição pelo retorno triunfante de Jesus e o esta­
belecimento do reino dos santos. 
Essa obra notável, imensamente diferente dos outros escri­
tos do Novo Testamento e da Carta de Clemente 1, que lhe é quase 
contemporânea,6 mostra quão intensa se tornara a hostilidade entre 
a Igreja e o Império, apesar dos cristãos nunca terem se envolvido 
nas sucessivas revoltas judaicas contra Roma. Não é de surpreender, 
todavia, que a atitude de passiva hostilidade dos cristãos, a recusa 
em tomar parte em qualquer das cerimônias públicas e a deliberada 
separação da vida civil do mundo helenístico-romano devessem ter 
provocado a suspeita e a hostilidade das autoridades. 
O Império viu-se na presença de um vasto movimento subterrâ­
neo que não compreendia, mas que temia e suspeitava . E quando, no 
5 Suetônio, A Vida dos Doze Césares, Domiciano § 12 . 
6 Segundo a Bíblia de jerusalém, a composição do Livro do Apocalipse, pos­
sivelmente, deu-se por volta do ano de 95, durante o reinado de Domiciano, 
mas há quem afirme que algumas partes já estavam escritas desde o tempo de 
Nero, ou seja, um pouco antes do ano 70. (N. T. ) 
1 84 l 1 85 
final do século III, o Império esteve envolvido numa série de crises 
sociais, o cristianismo foi escolhido como o representante mais óbvio 
das forças subversivas que ameaçavam o modo de vida romano. 
Da parte dos cristãos, por sua vez, perseguição e martírio eram 
reconhecidos como condições normais da vida da Igreja . Foram vati­
cinados nos Evangelhos e tinham como arquétipo supremo o exem­
plo do próprio Cristo. O mártir seguia os passos de seu mestre, e a 
morte expressava a identidade entre "a cabeça e os membros" , que 
era o princípio-chave da teoria paulina de Igreja . Consequentemente, 
não é de surpreender que a ideia de martírio seja o tema dominante 
da literatura e do pensamento dos antigos cristãos ao longo de todo o 
período do Novo Testamento até Eusébio de Cesareia (265-339 ) . Na 
primeira era da Igreja, o ideal de santidade estava corporificado na 
figura do mártir - o homem que "testemunhava" com o próprio san­
gue a fé cristã . O ideal e mesmo a própria palavra remontam o princí­
pio do cristianismo - de Santo Estêvão ( t34/40 ? ) a Santo Antipas de 
Pérgamo (t90 ? ) , "minha testemunha fiel, que foi morto junto a vós" 
(Apocalipse 2,1 3 ) e a referência em São João de três testemunhas: o 
Espírito, a água (do batismo) e o sangue (do martírio ) ( 1 João 5,7-8 ) . 
Ao longo de todo o período de perseguição o s mártires desempenham 
um papel cada vez mais importante na vida da comunidade cristã . 
A literatura que versa sobre o assunto - as Epístolas de Santo 
Inácio de Antioquia (35 ?-98/1 07? ) , o Martírio de Policarpo (escrito 
por volta do ano de 156 ) , a Carta a Diogneto (final do século II ) , a 
Carta das Igrejas de Lião e Viena às Igrejas da Ásia e da Frígia ( so­
bre o martírio ocorrido na Gália em 1 77) , as Atas de Santa Perpétua 
( 1 8 1 -203 ) e seus companheiros, e as Cartas e Atas de São Cipriano 
de Cartago (t 25 8 ) - nos dá um conhecimento mais íntimo da men­
talidade dos primeiros cristãos do que quaisquer outros documentos. 
Mostram como a expectativa do martírio era um dos fatores perma­
nentes da vida cristã e como o triunfo dos mártires foi partilhado pe­
los fiéis como propriedade e glória comuns a todos. Ao escrever numa 
A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 6 
época de relativa paz, Orígenes ( 1 85-25 3 ) recordava as perseguições 
anteriores como a época de ouro da Igreja : 
O s dias d a verdadeira fé foram aqueles em que tivemos muitos mártires, 
nos dias em que costumávamos levar os corpos dos mártires para o cemi­
tério e voltar diretamente para nos unir à assembleia. Naqueles dias, toda 
a Igreja estava de luto e as instruções que os catecúmenos recebiam pre­
tendiam prepará-los para confessar a fé no exato momento da morte, sem 
vacilar ou falhar na crença no Deus vivo. Havia poucos fiéis nessa ocasião, 
mas eram verdadeiros; seguiam o caminho estreito que conduz à vida.7 
Assim sendo, na cultura dos primeiros cristãos, a figura do mártir 
tomou o lugar da figura do herói da cultura pagã, e as vidas e legen­
das dos mártires substituíram os mitos heroicos e lendas que eram os 
elementos mais populares e persistentes da antiga cultura . 
É difícil exagerar a importância do ideal e do culto dos mártires 
para a cultura cristã . Cada uma das igrejas importantes tinha seus 
próprios mártires, que eram tomados como intercessores especiais 
e cujo culto fortalecia a solidariedade da comunidade espiritual. 
E havia também personagens muito famosas, cujas histórias eram 
conhecidas por todo o mundo cristão - os "megamártires" , como 
são chamados pelos bizantinos - como São Jorge (275/28 1 -303 ) , 
São Sérgio ( t 3 0 3 ) , São Cosme ( t287 ) e São Damião ( t287 ) , e os 
cultos eram amplamente difundidos, tanto no Oriente quanto no 
Ocidente, da Pérsia à Gália . 
Desde cedo, o culto dos mártires também encontrou expres­
são na arte e arquitetura , assim como na arte das catacumbas e 
na influência do martyrium, ou câmara funerária, no desenvol­
vimento da igrej a de planta centralizada com cúpula . Em Roma, 
sobretudo, a vida da Igrej a centrava-se nos grandes cemitérios 
suburbanos que surgiam em propriedades privadas, fora dos 
7 Orígenes, De Principii, 3,3,2. ln: Jean Daniélou, Origen. New York, Sheed 
and Ward, 1 955, p. 4 1 . 
1 86 l 1 87 
muros da cidade. Aí ficavam os túmulos dos mártires, onde eram 
celebradas as festividades ou aniversários, de modo que a Igrej a 
prestava culto na presença dos mártires . Ademais, esses cemité­rios subterrâneos, por serem estáveis, davam oportunidade para 
o desenvolvimento da arte cristã . Com técnicas e motivos inspi­
rados na arte popular de tradição helenística do período, a arte 
cristã os transformou, segundo os seus propósitos, num sistema 
de simbolismos, em que representações naturalistas de formas 
como a vinha, o peixe, a pomba, a âncora, a coroa etc . adquiriam 
um significado esotérico bastante claro para o fiel , mas comple­
tamente privado de sentido para os não iniciados . Em outros ca­
sos, motivos mitológicos como o de Orfeu ou Hermes Crióforo 
são traduzidos em termos cristãos como a figura do Cristo, o 
bom pastor. A mais comum de todas é a imagem da Orante - uma 
figura feminina de mãos estendidas, que é símbolo, ao mesmo 
tempo, da Igre ja em oração e da alma cristã . Por fim, há pintu­
ras que ilustram nitidamente cenas do Antigo Testamento ou da 
liturgia . Dentre elas, existe uma cena na catacumba de Nápoles 
com três virgens construindo uma torre que é , sem dúvida, uma 
ilustração da visão de Hermas, o l iberto - profeta romano do sé­
culo II -, um exemplo único de cooperação entre a arte cristã pri­
mitiva e a literatura para criar um novo tipo de imagem poética, 8 
8 A pintura encontra-se no teto da catacumba de San Gennaro, em Nápoles. 
É a única representação da obra O Pastor de Hermas, documento quase des­
conhecido atualmente, mas muito conhecido no período da Igreja primitiva . 
A obra conta a história de Hermas, um escravo liberto que tem visões do céu 
e aprende com seu guia espiritual, o pastor, a importância fundamental da 
mudança de coração e da conversão à simplicidade da fé. A pintura traz uma 
torre, que aparece numa das visões de Hermas, e três virgens que parecem 
carregar algumas pedras para construir a torre. As pedras representam os 
vários povos e as diferentes respostas ao chamado da fé. Interessante notar 
que as pedras diferem entre si. As brancas e perfeitas são os líderes da Igre­
ja e os mártires, e as pedras que exigem corte são os fiéis que precisam ser 
aperfeiçoados. (N. T. ) 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 6 
que prenunciava a arte da cultura cristã das eras vindouras . Não 
menos importante que o ideal do martírio era o da virgindade, 
que também remonta a primeira era da Igrej a . Na verdade, os 
dois ideais estavam associados - primeiro, pelo culto das virgens 
mártires, como Santa Inês ( 3 04-3 1 7 ) , bastante popular, e, em se­
gundo lugar, pela ideia de que a virgindade era uma espécie de 
vida de martírio, um testemunho do poder da fé para transcender 
as fraquezas humanas . Assim, o ideal de ascetismo como uma 
luta heroica para superar o mundo e a carne rememora as origens 
e é associada pelos primeiros autores cristãos à ideia de martírio 
e virgindade . Nas palavras de São Cipriano, habet et pax caronas 
suas - a paz também tem seus louros . 
E assim como os confessores e as virgens tinham uma posição -
uma ordo -, na igreja primitiva igualmente tinham os ascetas. Os "fi­
lhos da aliança" - b 'nai qyama -, para quem Santo Afrates (270-345 ) , 
o primeiro mestre siríaco, escreve, não eram monges, mas chegavam 
próximo da vida monástica, já que eram cristãos vivendo uma vida 
ascética e celibatária que os diferenciava dos demais fiéis. Eram, por 
assim dizer, pré-monges, e é fácil entender como tal instituição iria, 
inevitavelmente, evoluir, sob circunstâncias favoráveis, para uma vida 
monástica plena. 
Era um início bem modesto, e dificilmente no século II podemos 
falar de uma cultura cristã, contudo, haviam sido postos os funda­
mentos para um novo modo de vida que não era nem grego nem ju­
deu, mas unia as duas tradições sob a inspiração de um novo espírito . 
Isso é apresentado, de maneira bem intensa, na Carta a Diogneto, 
que é um dos escritos pós-apostólicos mais notáveis. O autor des­
creve como os cristãos estavam dispersos em todos os lugares, tanto 
na Grécia quanto nas cidades bárbaras, vivendo exteriormente como 
quaisquer outros homens, mas de modo totalmente diferente na vida 
íntima. São, diz a carta, "uma terceira raça " , nem judeus ou gregos, 
mas algo novo. De fato, conclui: 
[ . . . ] o que é a alma no corpo, são no mundo os cristãos. Encontra-se 
a alma em todos os membros do corpo, e os cristãos dispersam-se por 
todas a cidades do mundo. [ . . . ] A carne odeia a alma e a combate 
[ . . . ] ; também o mundo odeia os cristãos [ . . . ] mas são eles que sustêm 
o cosmo. [ . . . ] Deus os colocou em tão elevado posto, que não lhes é 
lícito recusar.9 
1 88 l 1 89 
9 A Carta a Diogneto. lntr. e notas Dom Fernando A. Figueiredo, trad. Abadia 
de Santa Maria. Petrópolis, Vozes, 2003, VI, p. 24-25. (N. T. ) 
l 1 9 1 
C a p í t u l o 7 1 O C r i s t i a n i s m o e o M u n d o G r e g o 
Em meados do século II, o grande conflito entre o povo hebreu e 
Roma havia chegado ao fim, e o mundo antigo entrara em um perío­
do de paz e prosperidade sob o governo dos imperadores da dinastia 
Antonina . A esperança de uma grande catástrofe ou da revolução 
mundial que, até aqui, confortara judeus e cristãos de modos dife­
rentes na resistência à perseguição, nesse momento, tinha tornado-se 
mais remota e, portanto, tiveram de começar a se adaptar à nova 
situação. Fizeram-no, contudo, de modos diferentes. Os judeus ten­
deram a se afastar do contato com a civilização grega e a reorganizar 
a vida nacional em torno de novos centros culturais, extremamente 
conservadores, que cresciam na Mesopotâmia em Sura e Pumbedita. 
Não me é possível discutir, como gostaria de fazer, tal evolução 
do judaísmo babilônico no terceiro século. Infelizmente, isso tende a 
ser negligenciado na maioria das histórias do cristianismo primitivo 
e do Império Romano. Foi de grande importância, no entanto, pois 
acarretou o progressivo afastamento dos judeus da cultura helenística 
e ocidental e o estreitamento das relações com o mundo de língua ara­
maica ou siríaca da Babilônia, que esteve, nessa época, primeiro sob 
o governo do Império Parto e, posteriormente, sob comando da nova 
monarquia sassânida, que era a mais terrível inimiga dos impérios 
romano e bizantino. 
Em Sura e Neardeia, e depois em Pumbedita, surgiram as gran­
des escolas judaicas numa sucessão de famosos mestres, de "Rav" ou 
A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 7 
Abba Arika ( 1 75-247) a Rav Ashi ( 352-427) , chefe da Escola de Sura, 
de 372 a 427. Aí foi criado o grande Talmude Babilônico, a base do 
judaísmo medieval e moderno. Sua importância não pode ser exage­
rada. Infelizmente, de todas as religiões clássicas, o judaísmo é a mais 
difícil para o leitor comum assimilar, pois este vê-se confrontado não 
só com a extensão da obra - que nas traduções inglesas modernas 
chegam a 36 grossos volumes, mas, sobretudo, com o estilo e a falta 
de unidade. Como escreve Israel Abrahams ( 1 858- 1 925 ) a respeito 
do Talmude: "Não é um livro, é uma literatura. Contém um código 
legal, um corpo de costumes rituais, poemas, preces, histórias, fatos 
da ciência e da medicina, e fantasias do folclore" . 1 Assim, foi criada 
uma barreira, em vez de uma ponte, entre a cultura judaica e a gen­
tílica, e isso explica um certo grau de isolamento cultural dos judeus 
nos tempos antigos. 
Os cristãos, em contrapartida, travaram relações cada vez mais 
próximas com o mundo helenístico e iniciaram aquele longo diálo­
go com o pensamento grego, continuado pelos primeiros apologis­
tas, depois pela escola cristã de Alexandria e, por fim, pelos Padres 
Gregos dos séculos IV e V, como São Basílio ( 329-379 ) , São Gregó­
rio de Nissa ( 3 30-395 ) , São Gregório Nazianzeno e Teodoreto de 
Ciro ( 3 93 -46 6 ) . 
Por volta d o século II, contudo, o helenismo era algo muito dife­
rente do helenismo da Grécia clássica. Era um verdadeiro mundo de 
cultura universal que abraçava todo o mundo civilizado: de Roma a 
Antioquia e Alexandria, estendendo-se mais ao Oriente até o cora­
ção da Ásia. Inicialmente, fora um fenômenocultural e não nacional . 
Um homem tornava-se heleno não por nascimento, mas por edu­
cação, e quem quer que tivesse passado pela escola ou gymnasions 
gregos era tão heleno quanto aquele que nascera na Ática . Além 
1 Israel Abrahams, Chapters on jewish Literature. Filadélfia, The jewish 
Publication Society of America, 1 899, p. 45. (N. T. ) 
1 92 l 1 93 
dessa importante parcela de genuíno helenismo cultural, o mundo 
helenístico abrangia uma imensa multidão de pessoas que estavam 
submetidas às leis das cidades e dos reinos gregos e que falavam a 
língua grega, apesar de ainda guardarem o contato com as culturas 
mais antigas e não helênicas. Ao longo de todo o período romano, 
essa forma secundária de cultura helenística estava em expansão, em 
especial na Ásia Menor, e as antigas línguas vernáculas eram substi­
tuídas pelo grego, assim como as línguas gaulesa e ibérica estavam 
passando a ser dominadas pelo latim na Gália e na Hispânia . 
A postura religiosa e as necessidades dessas duas formas de socie­
dade helenística eram muito diferentes. Os povos dominados que não 
estavam assimilados, ou estavam imperfeitamente assimilados, per­
maneciam fiéis às religiões e cultos pré-helênicos, e foi por intermédio 
deles que o mundo helenístico se expôs à invasão dos cultos orientais 
e às ideias que ameaçaram-lhe a independência espiritual. 
A própria cultura helenística tinha, quase desde o início, a pró­
pria tradição de sabedoria espiritual, cuja expressão clássica eram 
os diálogos platônicos. Posteriormente, no período helenístico, a tra­
dição foi adaptada às necessidades de uma sociedade cosmopolita 
até se tornar uma religião mundial racional comum a todo o mundo 
helenístico. Foi uma espécie de panteísmo espiritualista, baseado no 
princípio espiritual universal ou lógos, que era, ao mesmo tempo, a 
causa imanente da ordem e da harmonia no cosmo e o princípio da 
ordem moral na vida humana. Em um desdobramento posterior, em 
especial com Epiteto (55-1 35 ) , no início do século II, e com o impe­
rador Marco Aurélio ( 1 2 1 - 1 80 ) , o elemento religioso na filosofia se 
tornou cada vez mais manifesto, de modo que se transformou, apesar 
do panteísmo original, em uma religião monoteísta inspirada pelo 
elevado ideal de perfeição moral. 
Isso era, enfim, apenas um lado da tradição helenista, ainda que 
o lado mais autêntico. No mundo helenístico também existiam tra­
dições provenientes do Oriente e não da Hélade - as tradições dos 
A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 7 
inúmeros povos que experimentaram um processo superficial de he­
lenização e que, ao menos, tinham aprendido a falar grego, mas per­
maneceram, no fundo, fiéis às religiões e crenças do antigo mundo 
oriental . Foi por meio desse elemento imperfeitamente helenizado que 
o mundo helenístico ficou cada vez mais exposto, nos séculos II e III, 
à maré crescente de influências orientais. Os próprios judeo-cristãos 
representavam um elemento nesse movimento, mas uma vez que eram 
não helênicos, representavam a tradição religiosa e nacional diferente 
do povo hebreu. Além desses, no entanto, havia uma multidão anô­
nima e impessoal de povos que perderam suas tradições nacionais 
distintivas e foram absorvidos na sociedade cosmopolita das monar­
quias helenistas, sobretudo, pelo império mundial de Roma. 
Esses povos permaneceram espiritualmente estranhos à civiliza­
ção ocidental dominante. Não partilhavam a postura helenística tí­
pica de reverência religiosa para com o mundo natural, como uma 
manifestação visível de inteligência e ordem. Ao contrário, eram pro­
fundamente pessimistas na postura com relação à vida e a respeito 
de toda a ordem cósmica, que viam como algo sob o domínio de 
potências demoníacas; e buscavam um caminho de salvação que os 
livrasse não só do corpo, mas do mundo e dos males do nascimento 
e da procriação. 
Tal postura finalmente encontrou expressão numa série de mo­
vimentos religiosos e teosóficos que, normalmente, são agrupados 
sob a denominação comum de gnosticismo. Também incluem a nova 
religião mundial do maniqueísmo que perduraria, ao menos, uns mil 
anos, bem como heresias como o marcionismo e seitas como o man­
deísmo, que sobrevive até os dias de hoje. A natureza essencial de to­
dos esses sistemas religiosos pertencem a um mundo totalmente dife­
rente daquele do helenismo ocidental ou mesmo da tradição judaico­
-cristã : por sua vez, frequentemente apresentam uma incrível seme­
lhança com as religiões e filosofias da antiga Índia. Todos são, como 
o budismo e o ja inismo, essencialmente formas de " libertação" -
1 94 l 1 95 
moksha - que ensina o homem como se desembaraçar do mundo e 
da existência corporal . 
Tais sistemas estão de acordo com as filosofias hindus no profun­
do pessimismo, que vê a alma como um exílio, lançado em um mundo 
de trevas: 
Vês, meu filho, quantos corpos nos é necessário atravessar, quantos co­
ros demoníacos, e que sucessão contínua e quais cursos de astros para 
nos lançarmos ao Um-Único?2 
[ . . . ] agora ela [alma] atinge o ponto onde é cercada pelo mal, sabe que 
não tem saída. Enganada, entra em um labirinto. [ . . . ] vagueia na terra 
perseguida pelo mal. [ . . . ] Ela está tentando fugir do caos amargo, e 
não sabe como irá escapar.3 
Dor e aflição sofro neste corpo em forma de veste em que me arreba­
taram e me lançaram. Quantas vezes o puser fora, tantas voltará, devo 
sempre e de novo e amainar minha contenda e não olhar para a vida 
em sua sh 'kima [habitação] .4 
Podemos comparar essas passagens com o trecho que citei do 
Maitrayana Upanishad, no nono capítulo do meu livro Religion and 
Culture5 [Religião e Cultura] , que descreve o mesmo senso de desam­
paro e sede por iluminação e libertação. 
Do mesmo modo, a doutrina gnóstica do Salvador - "O verda­
deiro mensageiro desde o princípio do mundo a alterar suas formas 
2 Hermes Trismegisto, "Discurso Sagrado de Hermes" . ln: Corpus 
Hermeticum. III, § 8. (N. T. ) 
3 Trecho do Salmo Naaseno. A seita gnóstica dos naasenos é mencionada por 
Santo Hipólito de Roma ( 1 70-236) na obra Refutação de Todas as Heresias, 
V. 10 . 2. (N. T. ) 
4 Trecho do Cinza Rba [O Grande Tesouro], livro sagrado dos mandeus, es­
crito originalmente em aramaico. A tradução deste trecho em alemão pode ser 
encontrada em Mark Lidzbarski, Cinza: Der Schatz oder das Crosse Buck der 
Mandiier. Gõttingen, 1 925, p. 46 1 . (N. T. ) 
5 Christopher Dawson, Religion and Culture. Intr. Gerald J. Russello. 
Washington, D.C., The Catholic University of America Press, 20 1 3 . (N. T. ) 
A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 7 
e nomes pelo Éon, até que tenha chegado o seu tempo, e ungido pela 
misericórdia de Deus por sua obra, alcance o descanso eterno"6 -
assemelha-se com a doutrina hindu de sucessivos budas ou jivas que 
levam a mensagem de libertação para sucessivas eras. E tal semelhan­
ça era invocada por Mani (21 6-276 ) , na sua história da revelação: 
De éon a éon os apóstolos de Deus não cessavam de trazer para cá 
sabedoria e obras. Assim, uma das eras de sua vinda foi nas terras 
da Índia pelo apóstolo dito Buda; em outra era foi para a Pérsia por 
Zoroastro; em outra, para as terras do Ocidente por Jesus. Depois 
disso, na última de suas eras, a revelação desceu e essa profecia che­
gou por meu intermédio, Mani, o apóstolo do verdadeiro Deus, na 
terra de Babel. 7 
O paralelo mais extraordinário, no entanto, entre o pensamento 
hindu e o gnóstico é a crença que encontra a mais clara expressão 
no jainismo - de que o mundo é repleto de almas que existem não 
só em homens, mas em animais, vegetais e em todas as partículas da 
matéria, e que o homem iluminado deve abster-se, escrupulosamente, 
de qualquer ato que possa destruir ou danificar essas vidas. Ora, ideia 
semelhante é encontrada nas escrituras maniqueias que relatam como 
a natureza espiritual mais elevada de Jesus, o salvador e mensageiro 
da vida, se dispersou e uniu-se a toda a criação material.Isso, na linguagem maniqueia, é o "Jesus sofredor" que '"pende 
de toda a árvore' , 'é servido, aprisionado, em toda a iguaria' , 'nasce, 
sofre e morre todo o dia', e está disperso por toda a criação" . 8 Des­
se modo, o "eleito" maniqueu, como o asceta j aina, está obrigado 
6 Trecho dos escritos de Pseudo-Clemente, cujo romance religioso diz conter o 
registro dos discursos de São Pedro feito por um Clemente (erroneamente iden­
tificado como o papa Clemente 1 ou como o primo do imperador Domiciano), 
que veio a se tomar companheiro de viagem do apóstolo. Os relatos já eram 
conhecidos pelos ebionitas, e os indícios levam a crer na autoria de um ariano, 
que viveu nas proximidades da Cesareia, por volta do ano de 350. (N. T. ) 
7 Citado por Al-Biruni ( 973- 1048 ) na Cronologia dos Shahpurakan de Mani. 
8 Hans Jonas, The Gnostic Religion. Boston, Beacon, 1 958 , p. 229. 
1 96 l 1 97 
às regras mais estritas de abstinência e não violência . " Convém ao 
homem" , está escrito na Kephalaia de Mani, "olhar para o chão ao 
tomar o seu caminho, para que não pise aos pés da Cruz da Luz e 
destrua as plantas " . Portanto, os medievais maniqueus posteriores, 
como os j ainas, viam como o maior ato de virtude a total abstinên­
cia de todo o tipo de alimento, ainda que isso viesse a acarretar a 
morte voluntária. 
Todas essas semelhanças, é claro, não comprovam uma influência 
direta do pensamento hindu no Ocidente ou no Oriente Médio, no 
entanto, sugerem que o mundo dos povos orientais, que submergira 
pelo avanço vitorioso da cultura helenística e do imperialismo ro­
mano, estava reafirmando sua independência espiritual. Tal evolução 
iria, sem dúvida, ocorrer, caso o cristianismo não tivesse nunca exis­
tido e, não fosse pelo cristianismo, isso poderia muito bem ter con­
quistado e absorvido a religião e a filosofia helenísticas e criado uma 
nova religião mundial sincretista, comparável à forma mahayana do 
budismo, que se espalhava pelo Norte da índia para a Ásia Central e 
China durante o mesmo período. 
Mesmo sendo diferentes entre si, esses vários credos têm uma ca­
racterística comum que os distingue do cristianismo. Todos são dua­
listas e antimaterialistas, ensinando que a criação material é má e que 
Deus não é o criador do mundo: todas concordam em considerar o 
Salvador não um verdadeiro homem, mas uma potência angélica ou 
celestial que se manifestou na aparência humana, e todos ensinam 
que a salvação não deve ser encontrada na fé em uma revelação histó­
rica, mas ela se dá pela iniciação em um conhecimento secreto - uma 
gnosis ou teosofia que contenha os segredos supremos da cosmologia 
e da metafísica. 
Quando esse fluxo de doutrinas estranhas invadiram o mundo 
antigo e tentaram transformar o cristianismo à própria imagem, a 
Igreja se deparou com um novo problema. A Igreja era uma socie­
dade orgânica, viva, consciente de possuir uma tradição sagrada, um 
A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 7 
evangelho divino e um novo modo de vida. Até o momento, contudo, 
não tinha nenhuma ideologia ou gnosis no sentido helenístico. Agora, 
tinha de erigir uma defesa fundamentada do cristianismo como um 
corpo consistente de doutrina capaz de dar uma resposta a todas as 
questões abstrusas suscitadas pelos novos movimentos. O desenvolvi­
mento de uma teologia científica não foi completado até o período dos 
grandes concílios, mas foi nessa época - no final do século II e durante 
a primeira metade do século III - que foram lançados os fundamentos 
por Santo lrineu ( 1 30-202 ) e Tertuliano ( 1 60-220) no Ocidente, e por 
Clemente de Alexandria ( 1 50-2 1 5 ) e Orígenes no Oriente. 
O primeiro deles - Santo Irineu - foi a figura mais representativa, 
já que pertence tanto ao Ocidente quanto ao Oriente e, de modo es­
pecial, é Padre e Doutor da Igreja universal. Foi discípulo de São Po­
licarpo de Esmirna (69- 1 5 5 ) , que fora discípulo dos apóstolos. Irineu 
passou a vida como um missionário no Extremo Ocidente e sucedeu 
o mártir São Potínio ( t l 77) como bispo de Lion (então Lungdunum), 
numa época de perseguição, nos dias do imperador Marco Aurélio. 
A grande obra de Santo lrineu contra os gnósticos é muito mais 
que uma refutação polêmica dos erros dos hereges. É uma defe­
sa original e profunda de todo o plano cristão de salvação - uma 
filosofia cristã da história, uma teologia da criação e da encarnação, 
bem como uma definição da missão da Igreja como a guardiã da 
tradição apostólica e veículo da vida do Espírito . Contra as especu­
lações cosmológicas e teosóficas dos gnósticos, insistia na necessi­
dade de limites ao conhecimento humano ou mesmo da revelação 
cristã, uma vez que esta nunca pretendeu ser uma iniciação nos mis­
térios cósmicos e nas divinas teogonias . É simplesmente a história 
das relações de Deus com a raça humana, a paulatina educação da 
humanidade pelas primeiras dispensações registradas na Escritura 
e a recapitulação do processo na encarnação do Verbo, por quem a 
humanidade, finalmente, alcança seu bem-aventurado objetivo divi­
no. Desse modo, todos os mistérios da fé são referentes às condições 
1 98 l 1 99 
da natureza e do conhecimento humanos. Todos se ocupam de um 
único tema - a doutrina em relação à educação e à regeneração da 
raça humana, que é a razão da criação e do propósito da história . 
E j á que o homem é uma criatura material, esse propósito abraça 
o corpo assim como a alma. O homem não é salvo do corpo, como 
ensinavam os gnósticos, mas no corpo. O dom do Espírito é consu­
mado no corpo, como a obra da Encarnação foi incluída e comple­
tada na Igreja . O plano divino é realizado pelas sucessivas eras de 
existência física do universo em realidades concretas da natureza e 
história humanas. O espírito do realismo histórico é expresso por 
Santo Irineu na sua doutrina da Igreja . O cristianismo, declara, não 
é igual ao gnosticismo, uma ideologia ou uma hipótese; é uma tra­
dição histórica da Igreja histórica que pode ser reconhecida, por 
sucessão direta, desde os fundadores apostólicos. 
Em comparação com outros Padres Gregos, Santo Irineu deve 
muito pouco ou nada à filosofia . Seu pensamento é completamente 
cristão e bíblico, tanto em fonte como em conteúdo, embora fosse um 
homem de considerável cultura literária e um pensador convincente e 
original . Em parte devido a sua posição isolada no Ocidente celta e la­
tino, Irineu não fundou nenhuma escola e nenhuma tradição literária . 
A tendência do progresso teológico grego seguiu um curso diferente, 
determinado pelos líderes da escola catequética de Alexandria - Cle­
mente e Orígenes. 
Esse caminho já fora iniciado pelos apologistas gregos, em espe­
cial São Justino Mártir ( 1 00- 165 ) e Atenágoras de Atenas ( 1 33 - 190 ) , 
pois reconheciam a existência de um conhecimento básico da verdade 
que era comum tanto aos cristãos quanto aos filósofos, e São Justino 
explica isso graças à "razão seminal" ( lógos spermatikós) que levou 
ao mais sábio dos gregos a vislumbrar, até certo ponto, as verdades 
agora manifestas no lógos encarnado. 
A concepção da filosofia grega como preparação para o cris­
tianismo foi muito mais bem desenvolvida por Clemente na escola 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 7 
catequética de Alexandria . Ele vai além de Justino, não só ao afirmar 
a filosofia como uma espécie de "terceira dispensação" a conduzir os 
gregos ao conhecimento de Deus, mas como algo necessário também 
aos cristãos, caso pretendessem entender tudo o que a fé abarcava, de 
modo a progredir da fé para o conhecimento, a gnosis (Clemente não 
temia utilizar tal palavra, apesar das associações heréticas ) . Assim, 
a escola de Alexandria não se satisfazia mais com a teologia estrita­
mente tradicional de Santo Irineu. Audaciosamente aceitou o desafio 
do pensamento helenístico e continuou a mostrar como a revelação 
cristã era a verdadeira resposta para a busca intelectual e moral da 
filosofia helenista . 
Decididamente, o maior representantedessa tendência foi Orí­
genes, que era o mais erudito, não só da escola de Alexandria, mas 
de todos os teólogos e eruditos da Igrej a primitiva. Assim, é inevitá­
vel que ele deva ter exercido uma profunda influência na teologia e 
cultura cristãs . Essa influência, todavia, não foi inconteste e, ao fi­
nal, a ortodoxia grega iria rejeitar sua teologia e condenar as obras. 
Essa foi a penalidade do sucesso, pois a síntese feita por Orígenes 
do pensamento helenista da época - do período dos fundadores do 
neoplatonismo, como Platino - foi demasiado completa para ser 
aceitável aos orientais . 
Esse foi , sobretudo, o caso das arroj adas especulações do seu 
tratado fundamental, De Princiipis , que hoje sobrevive somente 
na tradução, um tanto expurgada, feita por Rufino de Aquileia 
( 340/345-4 1 0 ) . Do mesmo modo que os predecessores, como Jus­
tino, e os sucessores, como os teólogos gregos do século IV, o cen­
tro do pensar é a função criadora do lógos. O mundo de Orígenes, 
como o dos neoplatônicos com quem tinha tanto em comum, é um 
universo hierárquico em que o lógos é o elo intermediário entre o 
Pai, que é o aútothéos - Deus propriamente dito - e os logikói, os 
seres espirituais criados, sej am anjos ou homens, que recebem do 
lógos todo o conhecimento espiritual que possuem, já que veem 
200 1 20 1 
nele a imagem ou o reflexo da divindade suprema . O mundo vi­
sível, por sua vez, deve a beleza e a ordem à criação espiritual 
pela qual é governada . Ao mesmo tempo, contudo, Orígenes tinha 
plena consciência das forças do mal - as potências espirituais, até 
mesmo angélicas, que exerciam profunda influência neste mundo 
material visível . Foi para l ibertar a humanidade e toda a criação 
material dessas forças do mal que o lógos se fez homem e sofreu a 
morte na cruz. Os cristãos continuam a mesma obra de salvação 
quando, por sua vez, derrotam as forças do mal ao testemunhar 
com o próprio sangue o triunfo do lógos sobre a morte . Basica­
mente, Orígenes acreditava que essa obra de redenção cósmica 
seria total e toda a criação, que incluía até mesmo as próprias 
potências do mal, seriam reconduzidas para Deus e restauradas 
na integridade original . 
A ideia de salvação universal - a apocatástase, como a chamava 
Orígenes - foi um dos pontos de sua teologia merecedores de conde­
nação, mais tarde, por teólogos de outras épocas, como também fo­
ram salientadas as ideias de preexistência de todas as almas humanas. 
Na realidade, as doutrinas cosmológica e hierárquica a respeito da 
Trindade é que constituíam um perigo muito maior para a ortodo­
xia católica, já que tinham grande penetração e influência, por vezes 
inconsciente, sobre toda a tradição da especulação teológica grega. 
Não há dúvida de que, apesar de Orígenes ter visto o lógos como 
imagem eterna do Deus invisível, sua doutrina é francamente subor­
dinacionista e vê o lógos como inferior ao Pai na escala da existência, 
da mesma maneira como o restante da criação espiritual é inferior ao 
lógos. Isso está tão de acordo com a tradição filosófica grega, de Fílon 
de Alexandria aos neoplatônicos, que foi prontamente aceita pelos 
cristãos gregos instruídos e contribuiu, enormemente, para o sucesso 
do arianismo e do semiarianismo no século seguinte. Orígenes, entre­
tanto, deve ser tomado como a fonte da principal tradição de altos 
estudos cristãos, tanto bíblicos como teológicos, na Igreja Oriental. 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 7 
A escola de Cesareia, na Palestina, que ele mesmo fundou após ter 
sido forçado a deixar Alexandria no ano de 232, tornou-se um grande 
centro de estudos para cristãos na Palestina e na Ásia Menor, e, num 
período posterior gerou um dos maiores eruditos cristãos, Eusébio de 
Cesareia, o historiador. Ademais, no século IV, os grandes Padres da 
Capadócia, São Basílio e os dois Gregórios, que sempre foram vistos 
como a glória da teologia da Igreja Oriental, sem dúvida deveram a 
inspiração ao pensamento de Orígenes, como vemos na antologia de 
seus escritos compilada por São Basílio e São Gregório Nazianzeno, 
chamada Filocalia. 9 
A helenização de cultura cristã, que atestam a influência de 
Orígenes e a escola de Alexandria, foi um movimento de longo 
alcance que chegou a abranger quase todo o mundo mediterrâneo. 
A própria Igreja de Roma continuou a utilizar a língua grega du­
rante quase todo o século III, e os primeiros teólogos ocidentais, 
como Irineu na Gália e Santo Hipólito de Roma, todos eles escre­
veram em grego . Parece paradoxal que a literatura cristã latina e 
toda a tradição teológica da Igreja Ocidental tenham-se originado 
não na Europa, mas na África, nos países que hoje são conhecidos 
como Tunísia e Argélia . 
Isso não significa, entretanto, que a nova literatura latina fosse 
um pálido reflexo da dominante cultura helenística do Oriente. Lon­
ge disso: era profunda e desconcertantemente original, sem dúvida, 
devido ao fato de que o primeiro escritor latino foi um homem de 
gênio e com um talento natural para a escrita, maior que qualquer 
um de seus contemporâneos gregos. Nessa época, a literatura romana 
clássica tinha praticamente chegado ao fim. 
9 Vale lembrar que há também uma compilação de textos dedicados à mís­
tica e à ascese na Igreja Oriental que traz esse mesmo nome, com textos 
que abrangem desde os Padres do Deserto e da Patrística no século IV até 
as obras de Gregório Palamas ( 1 296- 1 359 ) e outros autores bizantinos do 
século XIV. (N. T. ) 
202 l 203 
Um silêncio estranho recaíra sobre o mundo pagão latino e, em 
meio a tal quietude, uma nova voz de intensidade e convicções apai­
xonadas se fez ouvir. Era a voz de Tertuliano, o fundador da literatura 
cristã latina e uma das influências formativas mais potentes na cultura 
cristã ocidental . Tertuliano, o filho de um oficial romano em Cartago, 
era um escritor e combatente nato, com predileção pela controvérsia 
teológica e possuidor do dom de criar frases de efeito que perfuravam 
a armadura da indiferença e do preconceito, atingindo o cerne da 
questão. Nada poderia ser mais diferente dos grandes contemporâ­
neos alexandrinos - Clemente e Orígenes - em estilo, pensamento e 
temperamento. Estes escreviam como intelectuais gregos para uma 
audiência cosmopolita, helenística . Tertuliano escreveu como romano 
para os romanos, como um cidadão para os cidadãos, como um ju­
risconsulto para os jurisconsultos. Apesar do estilo barroco, estranho 
e difícil sempre ter sido um escândalo para os puristas, o que o levou 
a ser tratado como uma espécie de proscrito pelos letrados historia­
dores convencionais, seu latim era uma língua viva e fez mais que 
qualquer outro escritor para criar a língua da Igreja . 
Além disso, Tertuliano não era menos romano no pensamento e 
nos ideais. Foi o último representante dos grandes moralistas roma­
nos, como Tito Lucrécio ( 99-55 a .C . ) , Décimo Juvenal (t séc. li) e 
Cornélio Tácito (55-120) , e a indignação moral, que fez de Lucrécio 
um ateu e de Juvenal um pessimista, faz de Tertuliano um defensor da 
fé cristã contra a corrupção do mundo pagão. Sem dúvida, isso tam­
bém o tornou um puritano e, por fim, um herege. No entanto, mesmo 
nesse aspecto, foi apenas um representante das últimas evoluções. Di­
ferente dos outros hereges, Tertuliano conservou na Igreja a influência 
teológica e literária de São Cipriano a São Jerônimo, e sempre foi 
reconhecido como o primeiro dos Padres Latinos. 1 0 
1 0 A seita dos tertulianistas foi reconciliada com a Igrej a pelo próprio 
Santo Agostinho, e a basílica deles era um local de culto muito conhecido 
em Cartago. 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 7 
O segundo dos Padres Latinos, São Cipriano de Cartago, tam­
bém partilha da mesma preocupação com as questões morais e uma 
opinião semelhante a respeito dos valores sociais e jurídicos. Embora 
Cipriano fosse intelectualmente um discípulo de Tertuliano, os dois 
não poderiam ser mais diferentes em personalidade. Este, um escritornato, um individualista inflamado, extravagante; aquele, um admi­
nistrador nato, um homem de ordem e moderação, que governou a 
Igreja da África com a autoridade e a prudência de um grande ma­
gistrado romano. Nada em literatura é mais genuinamente romano 
que o heroísmo lacônico do julgamento e martírio de São Cipriano, 
como registrado na Acta Proconsularia Cypriani, 1 1 e é seu episcopado 
e morte que explicam o imenso prestígio da sua memória, tanto no 
Oriente quanto no Ocidente, mais que sua teologia ou obras. 
As cartas de São Cipriano e o tratado sobre a unidade da Igreja 
Católica estão entre os mais importantes documentos da história da 
Igreja do século III que possuímos. Mostra o alto grau de organiza­
ção constitucional e de autoridade canônica que a Igreja viera a ter. 
O mundo romano não podia mais repudiar o cristianismo como ou­
tra daquelas seitas orientais e cultos de mistério que pululavam o sub­
mundo religioso do Mediterrâneo. Era uma força social organizada 
com um sistema próprio e autônomo de governo e jurisdição. Em pro­
víncias como a África, a Ásia ou o Ponto, cada cidade tinha a própria 
igreja, cada igreja o seu bispo, e os bispos e as igrej as eram unidos por 
concílios eclesiásticos dentro das províncias e por um sistema regular 
de correspondência e comunicação. É verdade que tais relações, ainda 
muito afastadas, estavam suscetíveis a interrupções, como vemos no 
conflito entre São Cipriano e Roma sobre certas questões canônicas. 
Não obstante, o caráter ecumênico da organização era tão forte que a 
Igreja já era, potencialmente, da mesma extensão do Império. 
1 1 Cf. Paul Monceaux, Histoire Littéraire de l'Afrique Chrétienne, vol. 2. 
Paris, Leroux, 1 90 1 , p. 1 79-90. 
204 l 205 
Na verdade, no Oriente ela j á tinha começado a transcender as 
fronteiras imperiais nas terras contestáveis entre os Impérios Romano 
e Persa, sobretudo, no norte da Mesopotâmia. Aí a conversão do rei 
Abgar IX de Edessa, 1 2 que reinou de 1 76 a 2 1 4, acarretou a cristiani­
zação do pequeno reino, ou estado satélite, de Osroena, de modo que 
o cristianismo aos poucos se tornava a religião nacional da população 
siríaca da Mesopotâmia, e a porta estava aberta para uma maior ex­
pansão do cristianismo rumo ao coração da África . 
Assim, ao final desse período - no início do século IV - a Igreja 
se tornara uma sociedade internacional e inter-racial, cuja extensão ia 
do Oceano Atlântico ao Golfo Pérsico ou além. Era una na fé, na or­
dem e no culto, entretanto, j á tinha permeado três mundos culturais 
e linguísticos diferentes. Do ponto de vista cultural não havia uma 
cristandade, mas três - a grega, a latina e a siríaca -, e cada uma delas 
já possuía a própria versão das Escrituras, a própria forma litúrgica, 
e a própria tradição literária . A tradição latina ainda era muito menos 
rica que a grega, e a siríaca era mais pobre que as demais. Fato que 
não causa espanto, já que os sírios sempre foram um povo dominado, 
primeiro pelos gregos e partos, depois pelos romanos e persas, e, final­
mente, pelos bizantinos e pelos árabes, de modo que nunca estiveram 
em posição de desenvolver uma cultura nacional independente. Os 
gregos, apesar do espírito cosmopolita, sempre ignoraram as línguas 
e culturas dos povos "bárbaros" , e essa postura foi mantida pelos des­
cendentes ou herdeiros bizantinos. Nessa situação, a vinda do cristia­
nismo trouxe nova esperança aos povos que haviam sido dominados 
por tantos séculos pelo pesado jugo dos conquistadores estrangeiros. 
1 2 Abgar, na verdade, não era um nome próprio, mas o título pelo qual foram 
chamados todos os toparcas de Edessa por vários séculos, assim como os im­
peradores de Roma eram denominados Césares. Ver Rev. A. Roberts D. D. e 
J. Donaldson (eds . ) , The Ante-Nicene Fathers: Translation o( The Writings o( 
the Fathers down to A.D. 325. New York, Charles Scribner's Sons, 1 903, vol. 
VIII, p. 651 , nota 4. (N. T. ) 
A Formação da C ristandade 1 Capítulo 7 
A Igreja, para eles, tornou-se um lar nacional e encontraram nela 
uma cidadania espiritual e uma nova cultura que lhes fora negada em 
todos os demais locais. Os gregos e os latinos sempre estiveram cons­
cientes de uma dupla tradição - a da Igreja e a do passado clássico -, 
e a rejeição ao paganismo não acarretou uma ruptura com a filosofia 
e a literatura do passado. As classes bem educadas adotaram o grego 
como língua literária e não havia mais uma tradição viva de literatura 
aramaica . A renascença da cultura siríaca coincidiu com a conversão, 
e a nova literatura era completamente cristã e predominantemente 
didática e litúrgica . Embora permanecessem dependentes dos gregos 
na teologia, na filosofia e na história, tiveram uma importante influ­
ência na cultura cristã como um todo. Formaram uma ponte entre 
o Oriente e o Ocidente e, por ela, o cristianismo passou do mundo 
de língua grega do Mediterrâneo Oriental para os povos de línguas 
e culturas estrangeiras além das fronteiras do Império - armênios e 
georgianos, persas e árabes e, por fim, povos tão distantes como os da 
Ásia Central e do sul da Índia. 
206 l 207 
C a p í t u l o 8 1 O I m p é r i o C r i s t ã o 
A Igreja infante nasceu numa época em que o maior governo 
que o mundo já viu atingia o pleno desenvolvimento. Todo o mundo 
civilizado a oeste do rio Eufrates estava unido sob uma única pessoa. 
A época de guerra civil, de inquietação social, de exploração dos po­
vos conquistados tinha finalmente acabado. Por todos os lados sur­
giam novas cidades, o comércio florescia e a população aumentava. 
Era a hora do "príncipe deste mundo" , a apoteose do triunfante po­
der material e da riqueza. 
Toda essa esplêndida construção, no entanto, repousava em bases 
nada morais - muitas vezes, se apoiava em simples violência e cruel­
dade. O divino César poderia ser um Calígula ou um Nero, a riqueza 
era um pretexto para a devassidão, e a prosperidade das classes abas­
tadas estava baseada na instituição da escravidão - não a escravidão 
doméstica das civilizações primitivas, mas uma organizada escravi­
dão colonial que não deixava espaço para nenhuma relação humana 
entre escravo e senhor. 
A Igreja primitiva não podia deixar de ter em mente que estava 
separada dessa grande ordem material por um abismo infinito, e que 
não poderia ter parte na prosperidade ou na injustiça . Estava neste 
mundo como semente de uma nova ordem, que subvertia completa­
mente tudo o que construiu o mundo antigo. Embora herdasse o espí­
rito judaico de protesto contra o poder mundial dos gentios, não al­
mejava, contudo, nenhuma mudança temporal, muito menos tentava 
A Formação da C ristandade J Capítulo 8 
suscitar algum tipo de reforma social . O cristão aceitava o domínio 
romano como uma ordem dada por Deus, apropriada para a condi­
ção de um mundo escravizado pelas trevas espirituais, e concentrava 
todas as esperanças no retorno do Cristo e na vitória final da ordem 
sobrenatural. Nesse meio tempo, vivia como um estrangeiro em meio 
a um mundo estranho. 
Assim, os cristãos ficaram apartados tanto dos gentios quanto 
dos judeus, vivendo uma vida oculta que mantinha somente uma liga­
ção externa e acidental com a vida do mundo pagão ao redor. 
Tal afastamento da vida social, a aceitação passiva das coisas exte­
riores como questões sem importância, parecia, à primeira vista, provar 
que o cristianismo não tinha nenhuma influência direta nas condições 
econômicas e sociais. Na verdade, essa postura produziu as consequên­
cias mais revolucionárias. A sociedade antiga e a religião cívica com 
as quais o cristianismo estava relacionado centravam-se numa classe 
privilegiada de cidadãos e, segundo a regra romana de cidadania, isso 
estava diretamente ligado à condição econômica: o que corresponde 
dizer que a posição do homem na própria cidade e no Império era, em 
geral, determinada pela importância tributada à suas propriedades no 
censo. Havia uma competição constante desde o início

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