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Christopher Dawson pode ser descrito como o último exem plar de sua espécie. Altamente erudito e dono de uma visão his tórica monumental, Dawson era um intelectual consciencioso que buscava compreender as ações particulares do processo his tórico e encaixá-las em um contexto mais amplo, traços que lhe renderam a alcunha de historiador filosófico. Ainda que possamos chamá-lo de "gigante", pois permitiu que subissem em seus ombros grandes intelectuais contemporâ neos, como, por exemplo, T. S. Eliot e Russell Kirk, Dawson era um homem franzino, de saúde frágil, com capacidades oratórias e didáticas muito inferiores à sua magnífica prosa. Os anos de Harvard foram os mais produtivos de Dawson desde 1935. Um dos belos frutos do período é A Formação da Cristandade, primeira parte do tríptico que traça o rico processo histórico de constituição da identidade cultural cristã. Neste vo lume, Dawson delineia a formação cultural do cristianismo das raízes na tradição judaico-cristã até a ascenção e decadência da cristandade medieval, com incrível riqueza de detalhes, a par tir de um princípio que chama de "católico". A presente obra complementa e amplia escritos anteriores como The Making of Europe [A Criação da Europa], de 1932; Medieval Religion and Other Essays [Religião Medieval e Outros Ensaios], de 1934; Religion and the Rise of Western Culture [Religião e o Nascimento da Cultura Ocidental], de 1950; e Medieval Essays [Ensaios Medievais], de 1954. Certa vez, uma revista de Boston referiu-se a ele como uma "antítese animadora [ ... ] ao acadêmico encastelado na torre de marfim'' , já que Dawson trazia consigo a marca do verdadeiro intelectual: a humildade. Não obstante, esse homem despreten sioso e frágil teve imensa coragem e excepcional domínio da His tória ao esboçá-la de um ponto de vista absolutamente inovador: a partir de um poder de expressão dinâmico, base de toda a cul tura do homem, a pedra angular que os homens de nosso tempo rejeitaram chamada religião. Márcia Xavier de Brito Vice-Presidente do Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista (CIEEP) . Editora Responsável de COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura Christopher Dawson foi um dos historiadores mais influentes do século XX na Grã-Bretanhq, e nos Estados Unidos. Nasceu no dia 12 de outubro de 1889 em Hay-on -Wye, em Brecknockshire, no País de Gales. Até os dez anos foi educado exclusivamente em casa por tutores. Estu dou no Winchester College e cursou história no Trinity College da Universidade de Oxford. Notabilizou-se pela grande erudição e capaci dade de transitar com rara facilidade e sólida competência por quase todos os domínios das ciências humanas, ao abarcar, nos estudos históricos, pro fundas reflexões dos campos da Literatura, da Antropologia, da Sociologia, da Filosofia e da Teologia. Durante a maior parte da vida foi um pesquisador independente, no entanto, atuou como professor universitário do University College em Exeter (1930-1936), da Universidade de Liverpool (1934), da Uni versidade de Edinburgh (1947-1948) e da Universidade de Harvard (1958-1962). Faleceu no dia 25 de maio de 1970 em Budleigh Salterton, em Devonshire, na Inglaterra. Foi autor de 24 livros publicados originalmente em inglês entre 1928 e 1975. Em língua portuguesa, além do livro A Formação da Cristandade (2014), a É Realizações já lançou Dinâmicas da História do Mundo (2010), Progresso e Religião (2012) e A Divisão da Cristandade (2014). Imagem da capa: © Cindy Pavlinac ( www.sacred-land-photography.com) Impresso no Brasil, setembro de 2014. Título original: The Formation of Christendom Copyright © Julian Philip Scott, Literary Executor of the Sta te of Christopher Dawson, 2010 Os direitos desta edição pertencem a É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. Caixa Postal 45321 - CEP 04010-970 - São Paulo, SP, Brasil Telefax: (5511) 5572-5363 e@erealizacoes.com. br · www.erealizacoes.com. br Editor Edson Manoel de Oliveira Filho Gerente editorial Sonnini Ruiz Produção editorial William C. Cruz e Liliana Cruz Tradução Márcia Xavier de Brito Revisão técnica, preparação de texto e elaboração do índice remissivo Alex Catharino Revisão Cecília Madarás Projeto gráfico Mauricio Nisi Gonçalves/ Estúdio É Capa e diagramação André Cavalcante Gimenez / Estúdio É Pré-impressão e impressão Gráfica Vida & Consciência Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja eletrônica ou mecânica fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução sem permissão expressa do editor. A FORMAÇÃO DA CRISTANDADE Das Origens na Tradição Judaico-Cristã à Ascensão e Queda da Unidade Medieval Christopher Dawson TRADUÇÃO DE MÁRCIA XAVIER DE BRITO APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE MANUEL ROLPH CABECEIRAS PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE BRADLEY J. BIRZER INTRODUÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE DERMOT QUINN POSFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE ALEX CATHARINO Apresentação à Edição Brasileira: Christopher Dawson, Historiografia, Cristianismo e os Desafios de Nosso Tempo S u m á r i o Manuel Rolph Cabeceiras ..................................................................... 7 Prefácio à Edição Brasileira: A Cristandade de Christopher Dawson Bradley ]. Birzer .................................................................................. 31 Introdução à Edição Brasileira: Christopher Dawson e a Ideia Católica de História Dermot Quinn .................................................................................... 43 Nota sobre a Tradução Márcia Xavier de Brito ....................................................................... 7 5 Nota do Autor ......................................................................................... 81 PARTE I - Apresentação Capítulo 1 1 Introdução ao Presente Estudo ............................................. 85 Capítulo 2 1 O Cristianismo e a História da Cultura ............................. 101 Capítulo 3 1 A Natureza da Cultura ...................................................... 115 Capítulo 4 1 O Crescimento e a Difusão da Cultura .............................. 135 PARTE II - Os Primórdios da Cultura Cristã Capítulo 5 1 As Ideias Cristã e Judaica de Revelação ............................. 153 Capítulo 6 1 A Vinda do Reino de Deus ................................................. 171 Capítulo 7 1 O Cristianismo e o Mundo Grego .......................... ............ 191 Capítulo 8 1 O Império Cristão .............................................................. 207 Capítulo 9 1 A Influência da Liturgia e da Teologia no Desenvolvimento da Cultura Bizantina ...................................... .................... 229 Capítulo 1 O 1 A Igreja e a Conversão dos Bárbaros .............................. 249 PARTE III - A Formação da Cristandade Medieval: Ascensão e Declínio Capítulo 11 A Fundação da Europa: Os Monges do Ocidente ........... 261 Capítulo 12 A Era Carolíngia ............... .............................................. 277 Capítulo 13 A Europa Feudal e a Era da Anarquia ............. ................ 291 Capítulo 14 O Papado e a Europa Medieval ...................................... 303 Capítulo 1 5 A Unidade da Cristandade Ocidental... ......... ............... . .. 317 Capítulo 16 Os Feitos do Pensamento Medieval... ........................... ... 335 Capítulo 17 Oriente e Ocidente na Idade Média ................................ 359 Capítulo 18 O Declínio da Unidade Medieval .. ........................... .... . .. 375 Epílogo Capítulo 19 1 A Ideia Católica de Sociedade Espiritual Universal ......... 393 Posfácio à Edição Brasileira: Teologia e História na Reconstrução da Unidade Cristã A/ex Catharino ............................... .................................................. 411 Índice Remissivo .................................................................................... 427 Apr e s e n t a ç ã o à E d i ç ã o B r a s i l e i r a CHRISTOPHER DAWSON, HISTORIOGRAFIA, CRISTIANISMO E OS DESAFIOS DE NOSSO TEMPO MANUEL ROLPH CABECEIRAS 1 7 Natural do País de Gales, Christopher Henry Dawson nasceu em 12 de outubro de 1 8 89, na pequena cidade de Hay-on-Wye (em ga lês "Y Gelli Gandryll " ) , também chamada simplesmente de "Hay" . À época pertencia a Brecknockshire (condado administrativo de Brecknock, extinto em 1 974) , exatamente na fronteira entre este e Herfordshire, no lado inglês. Pacata, transformou-se a partir dos anos 1 980, por conta das lojas de publicações usadas, na "Meca dos bibliófilos" , sendo muitas vezes descrita como "a cidade dos livros" . Embora tenha mudado algumas vezes de residência, a infância de Dawson sempre se passou nesse ambiente rural vitoriano (e ele próprio virá a destacar a importância deste fato em sua formação) , sendo educado exclusivamente por tutores, em casa, até os dez anos, quando passa a frequentar a escola preparatória . Em 1 908 , ingressou no Trinity College da University of Oxford, onde estudou História com o grande helenista Ernest Barker ( 1 874-1 960) . Em 1 909, acompanhado de seu melhor amigo, Edward 1. Watkin ( 1 888-1981 ) , viajou para Roma e lá, nos degraus do Capitólio, no lugar mais sagrado das sete colinas da antiga Roma, para onde levam todas as ruas, sob o impacto da Cidade Eterna, sente-se desafiado a escrever a história da cultura; inspiração que seguirá pelo resto da vida. No mes mo ano, já de volta a Oxford, conheceu a futura esposa, Valery Mills, a caçula de três filhas de uma viúva, com quem, em 19 16, se casou e foi a companheira de toda a vida, sobrevivendo-lhe por mais quatro anos. A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le ira Ao mesmo tempo, por volta dessa época, Dawson trilhava um iti nerário espiritual que veio a culminar na sua conversão de um angli canismo praticante a um catolicismo não menos engajado. Para a to mada de decisão, em 1 9 1 3 , não faltou o apoio do melhor amigo e da namorada, ambos católicos. No dia 5 de j aneiro de 1 9 14, Christopher Henry Dawson foi batizado na igreja, em Oxford. Iniciada a Primeira Guerra, tentou ingressar no serviço militar, mas é rejeitado em razão da saúde ( sempre debilitada ) . Em breve, a s suas pesquisas começaram a dar frutos e sucederam as publicações: The Nature and Destiny of Man e The Passing of Industrialism ( 1 920) , Cycle of Civilizations ( 1 922 ) , The Age of Gods ( 1 928 ) , Progress and Religion ( 1 929) , Christianity and the New Age ( 1 93 1 ) , The Making of Europe e The Modern Dilemma ( 1 932), The Spirit of the Oxford Movement e Enquiries into Religion and Culture ( 1 933 ) , Medieval Religion and Other Essays ( 1 934) , Religion and the Modern State ( 1 935 ) , Beyond Politics ( 1 939 ) , Judgment of the Nations ( 1 942 ) , Religion and Culture ( 1 948 ) , Religion and the Rise of Western Culture ( 1 950) , Medieval Essays ( 1 954), Dynamics of World History ( 1 956) , The Movement of World Revolution ( 1 959) , The Historie Reality of Christian Culture ( 1 960) , The Crisis of Western Education ( 1 96 1 ) , The Dividing of Christendom ( 1 965) , The Formation of Christendom ( 1 967) e, postumamente, The Gods of Revolution ( 1 972 ) e Religion and World History ( 1 975 ) . Para um público como o brasileiro, ao qual Dawson foi apresentado apenas recentemente, a relação visa a dar alguma ideia sobre os temas por ele investigados e o ritmo de produção, sem qualquer pretensão de esgotarmos a totalidade de sua obra. Entre tais títulos, alguns foram aclamados, desde o lançamento, como marcos fundamentais, o que enalteceu a amplitude do conhe cimento e a lucidez de estilo do autor. A repercussão dos trabalhos dawsonianos pode ser medida pela eleição do autor, em 1 943, para membro da British Academy. Apesar de atuar mais fora do ambiente 8 1 9 universitário, chegou a ocupar algumas vezes a cátedra no University College em Exeter ( 1 930-1 936) , na Universidade de Liverpool ( 1 934) e na Universidade de Edimburgo ( 1 947 e 1 948 ) no Reino Unido, bem como na Universidade de Harvard ( 1 958-1 962) nos Estados Unidos. No ambiente protestante da Universidade de Harvard, em Cambridge, Massachusetts, ministrou, como primeiro titular, um curso chamado Roman Catholic Studies [Estudos Católico-Romanos], criado por inicia tiva e a convite do benemérito católico, também convertido, Chauncey Devereux Stillman ( 1 907-1989) . Após a estada norte-americana, retor nou para a sua residência em Budleigh Salterton, Devon, na Inglaterra, cidade às margens do Canal da Mancha, onde passou os últimos anos, vindo a falecer em 25 de maio de 1 970. Seus restos mortais foram depo sitados em Bumsall, Yorkshire, no norte da Inglaterra, próximos aos dos pais, no local em que passou parte da infância. São partes do curso ministrado por Dawson na temporada esta dunidense as palestras transformadas em três livros, então entregues aos cuidados de Watkin, amigo de toda a vida, companheiro da via gem a Roma, e agora seu agente e editor literário. Diferente das outras obras anteriores, a publicação das referidas palestras repercutiu mui to pouco. Era o ocaso de um gênio e de um modo de fazer História . Dos três, o terceiro e último volume The Return to Christian Unity [O Retorno da Unidade Cristã] permanece ainda inédito mesmo em língua inglesa. Quanto aos dois primeiros, os já citados The Formation of Christendom [A Formação da Cristandade] e The Dividing of Christendom [A Divisão da Cristandade] , foram publicados respec tivamente em 1 967 e 1 965, assim mesmo, nessa ordem (para a qual, mais adiante, propomos uma leitura interpretativa dos motivos) . O público de língua portuguesa1 é agora, e m 2014, agraciado no 1 A presente publicação - A Formação da Cristandade - e A Divisão da Cris tandade se somam aos outros livros do autor já traduzidos para o português e também publicados pela editora É Realizações: Dinâmicas da História do Mundo (2010) e Progresso e Religião (2012) . A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Ed ição Brasi le ira Brasil com um lançamento simultâneo dessas duas obras, justamente no ano do centenário da conversão de Dawson ao catolicismo, oca sião em que assistimos a um renovado interesse pelo seu pensamento em meio aos impasses vividos na atualidade. Impasses historiográfi cos e civilizacionais, impasses sobre a presença cristã e, mais particu larmente, católica, em tais contextos. Fiel à inspiração inicial, temos nesse percurso uma vida dedica da ao estudo das culturas históricas, ao papel desempenhado pela religião, nesse caso visto como central, e, em particular, o exame do cristianismo histórico e da cristandade. Eis um historiador da cultura britânico; mas, o que significa ser um historiador da cultura ? Voltando ao público brasileiro, eis uma pergunta pertinente e res ta aqui um importante esclarecimento. Para quem, como nós, está ha bituado a combinar o binômio "História " e " Cultura " , nessa ordem, sob a etiqueta de "história cultural " , o termo "história da cultura " soa como algo estranho, completamente exótico. A história cultural no Brasil, no recorte teórico-metodológico, é suscetível às modas intelectuais. Estas vêm fundamentalmente dos franceses que, com Roger Chartier ( 1 945-) , ao tratar da chamada "nova história cultural "2 sentiu necessidade de fazer dois movimentos para demarcar o terreno: um interno, no bojo da Nouvelle Histoire [História Nova] , cujo objetivo era distingui-la da "história das menta lidades" , sem deixar de apresentar-se como seu herdeiro; e outro ex terno, ao identificar uma "história das ideias" e/ou " intelectual " (vez por outra esses termos se sobrepõemou são pensados como campos distintos ) , assinalando-a como pertencente a um universo bastante diverso da sua proposta de pesquisa. Todavia, do outro lado do Canal da Mancha, apesar dessa história das ideias, independente do nome dado, se fazer hegemônica e usufruir 2 Roger Chartier, A História Cultural entre Práticas e Representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1990. 10 111 de grande fortuna, o quadro guardava uma complexidade maior. Foi preciso esperar por outro prócer da "nova história cultural" , o in glês Peter Burke ( 1 937-) , cuja carreira teve início como professor de Intellectual History [História das Ideias] na Universidade de Sussex, em 1 962, e veio a assumir, em 1 979, a cadeira de História Cultural na Universidade de Cambridge, onde hoje é professor emérito. Pois bem, como parte do desafio do qual se desincumbe no livro O Que É História Cultural?,3 Peter Burke faz de seu eixo de argumen tação um esquema apresentado com o intuito de distinguir essa "nova história cultural" (NHC ou, em inglês, NCH), da "história cultural" que seria praticada nas " fases" anteriores. E, entre elas, a primeira se ria, justamente, mais amiúde chamada de "história da cultura " , apre sentada mais como uma "história de obras-primas" estudadas como expressão de determinada cultura seja nas artes, nas letras ou nas ciências, predominando em suas análises o tom filosófico, estetizante e elitista . Burke, ao identificá-la como a primeira fase da história da história cultural, denomina-a de "clássica" e marca o seu início na Alemanha dos anos 1 780, notando-a vigorosa até 1 950, quando seria suplantada pelo movimento da "história social da arte " . Este último, vindo de 1 930, seria representado, entre outros, por Arnold Hauser ( 1 892-1 978 ) e Ernst Gombrich ( 1 909-200 1 ) , enquanto da fase clás sica, anterior, são destacadas as obras do suíço Jacob Burckhardt ( 1 8 1 8-1 897) e do neerlandês Johan Huizinga ( 1 872- 1 945 ) como as maiores e mais emblemáticas. Segundo Peter Burke, a história da história cultural ainda teria mais duas fases: a terceira, caracterizada pela "descoberta da cultura popu lar" nos anos 1960 e a quarta, justamente a da "nova história cultural" , na qual se insere. Entre os primeiros relaciona E. P. Thompson ( 1924- 1 993) , Eric Hobsbawm ( 1 9 1 7-2012) e Christopher Hill ( 1 912-2003) . 3 Peter Burke, O Que É História Cultural?. Trad. Sérgio Goes de Paula. Rio de janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005. A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Ed ição Bras i le ira Já, para a fase presente, iniciada nos anos 1980, aponta o G-4 das re ferências teóricas do movimento nas obras de Mikhail Bakhtin ( 1 895- 1 975 ) , Norbert Elias ( 1 897-1 990) , Michel Foucault ( 1 926-1 984) e Pier re Bourdieu ( 1 930-2002), distinguindo Chartier como um dos princi pais líderes. Completar-se-ia, então, o que Burke considera, numa visão panorâmica, o alargamento do escopo da história cultural, de restrita em sua fase clássica à alta cultura até a inclusão da cultura cotidiana, abrangendo os costumes, valores e modos de vida, convergindo com a maneira de ver a cultura dos antropólogos. Há sérios problemas nessa classificação, que pelo prestígio de seu autor vem se transformando em cânone, ao menos nas terras brasíli cas, tantas são as reduplicações e citações feitas sem qualquer crítica. Não sendo aqui o lugar para exercê-la sistematicamente, pontuare mos apenas aquilo que diz respeito ao nosso autor. Peter Burke observa existir na anglofonia um importante con traste, nesse terreno, entre os Estados Unidos, marcado por uma tra dição de interesse nos estudos culturais, e a resistência a tal estudo, no lado britânico do Atlântico, mais afeito ao estudo das ideias. As principais e raras exceções listadas são o Christopher Dawson de The Making of Europe ( 1 932) , os doze volumes de A Study of History ( 1 934- 1 96 1 ) escritos por Arnold Toynbee ( 1 8 89-1 975 ) e, o que mais impressiona a Burke, o projeto concebido e planejado, nos anos 1 930, pelo bioquímico Joseph Needham ( 1 900-1 995 ) , cujo resultado foi a publicação, iniciada por ele à frente de um grupo de colaboradores, de Science and Civilisation in China ( 1 954-200 8 ) . Ora, n o afã d e demarcar terrenos, guiados por afeições inte lectuais, muitas vezes a retórica passa a predominar, simplificando posições e, por consequência, aspectos importantes deixam de ser contemplados. Assim, por exemplo, a vitória obtida pelas duas pri meiras gerações dos Annales, revista em torno da qual se desenvol veu a História Nova, com proposições de enorme relevância para a historiografia contemporânea, deu-se acompanhada pelo desprezo 12 l 13 e abandono, por um bom tempo, de setores temáticos como o da política e o da guerra, denunciados no combate pela renovação teórico-metodológica como típicos de uma história acontecimental (événementielle ) , de uma história do tempo breve. No entanto, des de então, quando o tempo acentuou a relevância de tais domínios, surgiram diferentes iniciativas cujo objeto era a recuperação e reno vação dos referidos temas. À semelhança do ocorrido acima, por mais que Peter Burke te nha a delicadeza de afirmar o valor de todas as chamadas quatro fases da história da história cultural e o permanente interesse pelas principais obras de cada tradição (cada fase seria a expressão de uma determinada tradição nos estudos históricos da cultura ) , o resultado também aqui é a valorização daquilo que se revela próximo de suas afinidades intelectuais. Isso se revela na breve menção feita à obra de Christopher Dawson, reduzindo-a a um único título significativo e, apesar de positiva, vem acompanhada de um comentário que resume as investigações de Dawson nesse campo aos seis anos de atuação como conferencista de história da cultura em Exeter, ocasião em que teria produzido aquela mencionada obra. Tudo isso somente revela quão imenso é o desconhecimento de Burke a respeito da obra e do pensamento dawsoniano. O preço pago por tal lacuna mostra ser elevado quando pas samos a observar, nas citações e resenhas da revisão historiográ fica empreendida por Peter Burke, a tendência de transformar as simplificações presentes em seu texto, em algo caricatural . Enfati zando o exercício retórico promovido vemos, entre outras consi derações, a " história da cultura " ser chamada de " história das be las artes " . E bastaria trazer à memória nomes como os de Oswald Spengler ( 1 8 80- 1 93 6 ) e do já citado Arnold Toynbee, autores que o leitor brasileiro de história tem certa familiaridade, e que, ape sar da distância, tiveram várias obras traduzidas para o português (o que permite, pois, que sej am consultados nas boas bibliotecas ) A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le i ra para perceber que esse não é o caso. Aliás, em ambos, Spengler e Toynbee, o nosso leitor pode vir a obter uma imagem pouco mais aproximada do tipo de trabalho empreendido por Christopher Dawson. No entanto, ainda assim, são obras bem distintas, sej a em muitos dos procedimentos, sej a mais ainda nas interpretações e conclusões. O próprio Dawson, ao dialogar com elas, mesmo em face da obra de Toynbee, de quem foi colega de classe, não deixa de criticá-las firmemente, e de indicar os pontos que as considerava deficientes ou contraditórias. Se voltarmos para a fonte das citações e resenhas - o próprio texto de Peter Burke -, um olhar atento torna possível localizar a ra zão do desconhecimento e da pouca afeição pela obra de Christopher Dawson. A perspectiva de Burke ao abordar a cultura é a do viés econômico-social, num horizonte nitidamente marxista . Não há mo mento em que a dimensão religiosa é tratada com a atenção devida nas considerações e abordagem a respeito da cultura . É como se não houvesse lugar para esse campo de pesquisa . E de fato não há.Por não existir, Dawson permanece deslocado. Esse não deveria ser um problema para Burke, visto que intenta contemplar diferentes pontos de vista . Em época como a atual, em que os fenômenos religiosos ganham cada vez maior destaque, torna -se irrecusável a percepção de sua magnitude na realidade social, e um autor como Dawson, que concede primazia a esse plano na dinâ mica das culturas históricas, merece, ao menos, ser lido com um pou co mais de atenção. Isso sem contar que, ao continuarmos afastados de tal retórica de combate, entre a " história cultural " e a "história da cultura" , as propostas teórico-metodológicas subjazem variadas, guardando, cada uma, as suas virtudes. E Burke está certo; frequen tar as diferentes tradições intelectuais no campo da história cultural areja essa esfera de conhecimento e contribui para o desenvolvimento das investigações, refinando-nos o instrumental. E, entre os grandes expoentes, Dawson é um gigante. 14 j 1 5 Um tema, por exemplo, d a "história d a cultura" , não contem plado pela "história cultural " , é o das civilizações, que, pelo caráter compendioso, já foi objeto de estudo de dois dos nomes mais icônicos da História Nova, Fernand Braudel ( 1 902- 1985 ) e Jacques Le Goff ( 1 924-2014 ) . Hoje, contudo, tornou-se marginal, em virtude daquilo que foi denominado de "história em migalhas" ,4 uma tendência que se mantém em razão da imensa e nebulosa pluralidade de novos pro blemas, novas abordagens e novos objetos que, desde os anos 1 970, quando foi inventariada, já era impactante.5 Essa perspectiva não para de crescer, fazendo-nos descrer da capacidade de uma só inteli gência abarcar todo esse universo com um só golpe de vista . Entre civilização e cultura, é costume aproveitar, em relação à pri meira noção, a rota inicialmente traçada pelos franceses e, em relação à segunda, a dada pelos alemães, demonstrando que ambas são oriun das de tradições distintas. A partir de tal operação, muitos se sentem autorizados a descolar da noção de cultura o aspecto de grande sínte se, o qual também lhe era e é próprio, tanto que, para muitos autores e circunstâncias, os vocábulos são intercambiáveis. Assim, deixam de lado a magistral lição de Fernand Braudel que, aproveitando a existên cia dos dois termos, fazia coincidir a ideia de civilização com um tipo específico de cultura, a urbana ( Grammaire des civilisations,6 de 1 987, ao retomar o núcleo de outra obra de sua autoria, datada de 1 963 ) . Não obstante, tal visão larga, abrangente, dotada de altos voos, característica dessa "história da cultura " , já tinha sofrido um grande 4 François Dosse, A História em Migalhas. Trad. Dulce A. Silva Ramos. São Paulo/Campinas, Ensaio/Editora Universidade Estadual de Campinas, 1992. 5 Jacques Le Goff e Pierre Nora (dir. ) , História: Novos Problemas. 4. ed. Trad. Theo Santiago. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995; Idem, História: Novos Objetos. Trad. Teresinha Marinho. 4. ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995; Idem, História: Novas Abordagens. 4. ed. Trad. Henrique Mesquita. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995. 6 Fernand Braudel, Gramática das Civilizações. 3. ed. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo, Martins Fontes, 2004. A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le ira estrago, resultado do combate da História Nova em torno das in terpretações filosóficas do processo histórico ou, mais precisamente, da energia despendida pelos historiadores em adequar os estudos à determinada filosofia da história . A isto, e assim designa o próprio Dawson, chamamos de meta-história . A ideia dos "novos historiado res" era, em troca, apostar no contato com as demais ciências sociais (a interdisciplinaridade) ; na prática da pesquisa problematizada; no desenvolvimento de técnicas mais rigorosas e controladas, no intui to de evitar interpretações impressionistas dos fenômenos históricos. Essa necessidade ingente de inculcar no historiador um refinamento teórico e metodológico testado na pesquisa sistemática das fontes le vava à necessidade de ostracizar a filosofia e, mais particularmente, a filosofia da história da cidadela de Clio, relegando a meta-história a assunto de filósofos . Ora, os resultados pretendidos foram alcançados . Já são quatro as gerações desde os Annales, a revista em torno da qual, desde 1 929, se desenvolveu a Nova História. As críticas dirigidas ao movimento nos anos 1 9 80 e 1 990 evidenciaram os limites da proposta e a ne cessidade de revisão crítica . Cada vez mais a revisão crítica se faz necessária, pois as questões seguem em aberto, a retomada de certos temas e autores esquecidos no fragor do combate, e é preciso dar-lhes nova dimensão. Christopher Dawson é um dos autores, como pode ser antevisto, que muito tem a dizer para aqueles que pertencem aos domínios da História . Estamos a falar de um dos pioneiros no diálogo com as Ciências Sociais, particularmente, com a Antropologia e a Sociologia, muitas décadas antes da História Nova. A virada, por exemplo, que Peter Burke identifica, entre os anos 1 960 a 1 990, da história cultural em direção à Antropologia, em decorrência dos problemas de defini ção daquilo que viria a ser cultura, encontra em Dawson um expe riente precursor, pois, na década de 1 920, inaugurara esse diálogo. De sua meta-história não estão ausentes tais diálogos; evita as excessivas 1 6 l 1 7 simplificações que ele mesmo denuncia em Oswald Spengler e Arnold Toynbee, mas também em Karl Marx ( 1 8 1 8- 1 8 8 3 ) . Aliás, um dos em bates da meta-história dawsoniana é contra as excessivas generaliza ções e o empenho em fixar leis da história, algo por ele descartado justamente graças à enraizada visão cristã e à profunda atenção para com as particularidades sociais. Muitas vezes somos levados a pensar que a meta-história está ausente da prática historiográfica vigente. O sucesso das lutas anna lesistas nos distrai do fato que as teorias sociais de dois dos autores teóricos mais frequentados por quem pratica História no Brasil, o já citado Karl Marx e Max Weber ( 1 864- 1 920) , têm subjacente às suas propostas interpretativas também uma meta-história . Aliás, à medi da que se constata ser crescente o renovado interesse pelas obras de Dawson mundo afora (há um reviva/ dawsoniano) , Weber tem sido reiteradamente comparado a Dawson, e com razão, não quanto à meta-história, mas no diálogo entre a história e outras ciências huma nas, bem como no interesse do papel da religião na cultura ocidental . Retornar à ambição pela síntese, tê-la em mente no horizonte investigativo: é preciso reatar essa conexão que se manteve presente até a terceira geração dos Annales, com Jacques Le Goff, por exem plo, como tivemos ocasião de citar. É preciso recordar às raízes dos Annales, recordar Henri Berr ( 1 863- 1 954 ), para quem, sem tergiver sações, a síntese ocupava papel central . Daí a sua Revue de Synthese Historique ( 1 900, após 1 930, simplesmente, Revue de Synthese) e o Centre International de Synthese ( 1 925 ) , ambos frequentados por Marc Bloch ( 1 8 86-1 944 ) e Lucien Febvre ( 1 878- 1 95 6 ) . A evocação aqui, porém, é a da exigência, esgotado o caminho, de resultar na "História em migalhas" . E aqui também Dawson fornece inestimá vel contribuição. O que sustenta a meta-história de Dawson e qualquer meta-his tória e qualquer análise relevante dos fenômenos sociais e históricos é a imaginação criativa. O caminho da síntese é o da " imaginação A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le ira criativa " , de visões inspiradoras que nos lançam para frente e nos permite contemplar grandes horizontes. Quem a estudou suficiente mente bem no campo das ciências sociais foi Charles Wright Mills ( 1 9 1 6- 1 962 ) , chamando-a de " imaginação sociológica " . 7 A " imagi nação sociológica" é um ato que permite a quem a pratica partir do horizonteimediato, no qual se acham as vivências e constatações pessoais, até as grandes questões públicas, inserindo-se compreen sivamente no contexto maior da própria sociedade. Por ser uma prática criativa, Mills fala de uma qualidade de espírito que permite ao sujeito usar a informação de que dispõe e desenvolver a própria razão de modo a obter maior clareza acerca do que ocorre no mun do e consigo mesmo. Analogamente, em cada campo, podemos encontrar uma feição dessa " imaginação criativa " . Toda grande obra intelectual, científica ou artística é alimentada e sustentada por tal visão. Principia, dentre os procedimentos de conhecimento, muitas vezes em um insight, uma intuição, favorecida por um ambiente, pelo contato com os clássicos, o exercício da fantasia e do jogo, na projeção refletida e vivenciada de nossas ações em um quadro informado por determinada ideologia ou religião. Experiências de construção de sentido. Há, outrossim, uma " imaginação histórica" . Falamos em ideologia e religião como fontes da imaginação cria tiva. Entretanto, não só é fundamental esclarecer o papel desses ele mentos em tal processo, como também é crucial ilustrá-lo na obra historiográfica ou em qualquer interpretação a respeito da realidade. No empenho de apresentar Dawson ao público brasileiro e conceder -lhe o devido e inestimável valor, é preciso que nos acautelemos dian te da leitura fácil e tentadora que pretende encerrá-lo, atendendo a uma perspectiva apologética, em determinado nicho: o do historiador 7 C. Wright Mills, A Imaginação Sociológica. 6. ed. Trad. Waltensir Dutra . Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982. 1 8 l 19 conservador e partidariamente católico, como pretendem alguns da queles que o têm resgatado recentemente. A apologética possui função e valor, mas, para ela, a História interessa apenas de maneira instrumental, pragmática, quando está a serviço de determinada causa ou interesse. Não lhe interessa a His tória na qualidade de um campo de investigação próprio. Assim o é quando muito abrangida pelo que convencionalmente designamos, hoje, de "história pública " , ou sej a, o uso social das investigações históricas. Uma vez restritos a tal gênero de história pública, não de vemos confundir os campos: a história profissional/acadêmica e tal uso instrumental da tarefa do historiador na defesa de determinada fé, seja ideológica ou religiosa . A despeito dos historiadores adotarem ideologias e estas inspi rarem as suas pesquisas, interpretações e análises, as investigações não são, ou ao menos não deveriam ser, direcionadas por esse mesmo ideário particular. Um trabalho profissional de qualidade ultrapassa as ideologias, seguindo regras próprias do ofício. Inspirar significa sugerir o que está na raiz dos dilemas e dos ques tionamentos do historiador, manifestando o quanto estamos imersos e comprometidos na própria época. Significa dizer, igualmente, que as ideologias estão mediadas por nossas teorias sociais, estão no cerne das hipóteses ou das respostas dadas aos dilemas e questionamentos anteriormente propostos. A ideologia tem relação clara com a per cepção da política, no modo como são justificadas e projetadas as ações nesse campo. Já a religião, quando é mais que uma palavra na boca do fiel, extravasa o campo da política e passa a ter um cará ter mais existencial, abarcando a vida em todas as suas dimensões, fornecendo-lhe respostas de maior amplitude, capazes de adequada mente conferir sentindo ao seu viver. Cumpre observar que apenas uma ou outra possui tal condição - não estamos aqui sectarizando. É da própria vida, da reflexão que fazemos a seu respeito que proce dem as questões e hipóteses acerca dessas dimensões. O fundamental A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Ed ição Bras i le i ra aqui é que sejam construídas e testadas conforme os procedimentos de cada disciplina . Ideologias e religiões, cada uma a seu modo, podem alimentar a imaginação criativa do pesquisador do fenômeno humano, o qual, por natureza, é social e histórico. Se Wright Mills nos fala em ima ginação sociológica e igualmente constatamos que não estão des providas de imaginação as grandes obras no campo historiográfico, insistimos que uma e outra são formas da imaginação criativa que alicerçam qualquer investimento sério e sistemático em determinado ramo de pesquisa ou saber. Ora, em toda forma de saber, há regras e procedimentos que devem ser seguidos, a despeito das ideologias e das religiões, e a imaginação criativa expressada nas teorias e hipóte ses é constantemente posta à prova. Desse modo, apenas resultam, so brevivem e se tornam clássicas as teorias e hipóteses que se coadunam em escala significativa com os dados disponíveis. Se a imaginação sociológica é um exercício de construção de sentido social, por via da imaginação histórica opera-se a construção de sentido ao longo do tempo, unindo-nos não só às pessoas, às sociedades e às culturas nas quais vivemos na dimensão temporal mais estrita, como também a outras épocas em perspectivas mais longas. Assim, é empobrecedor reduzir Christopher Dawson, ou qual quer grande autor, ao campo ideológico . Uma boa obra se faz clás sica por ultrapassar tal bairrismo sectário, por iluminar desassom bradamente aspectos fundamentais da realidade humana . O mes mo se pode dizer da religião. Se Dawson é um historiador católico e esta identidade se constitui em chave de sua obra, não o é por atender interesses apologéticos, mas pelo fato de ter tal vivência como ponto de partida das inspirações, dos questionamentos e das hipóteses de um modo que falta, em tempos pós-iluministas, aos intelectuais cristãos em geral , salvo honrosas exceções. Uma delas é a vida, a carreira e a obra de Christopher Dawson que nos trazem riquíssimas lições ! 20 121 Como vimos, o livro que ora temos em mãos, A Formação da Cris tandade ( 1 967) , foi originalmente lançado após, não antes, o volume A Divisão da Cristandade ( 1 965 ) , que aborda os acontecimentos que lhe são posteriores. A narrativa deste último inicia com um olhar de conjunto sobre a época contemplada no volume, examinando, no Oci dente, os impactos culturais da quebra da unidade cristã . A seguir, des creve as manifestações dolorosas de declínio dessa unidade em pleno século XIV até a consumação da Cristandade dividida, passando pela Renascença, pelo Barroco e pelo Iluminismo. O Cisma Protestante, a Reforma e as monarquias nacionais são examinados detalhadamente em seus desdobramentos culturais em um e outro lado do Atlântico. Já n'A Formação da Cristandade, especial importância adqui rem os prolegômenos, de cunho nitidamente teórico, que podem ser divididos em duas partes: uma primeira, histórico-cultural, sobre o cristianismo e a história da cultura, as culturas históricas e sua di nâmica; e outro segmento, teológico, sobre Revelação e o Reino de Deus. A seguir, a narrativa acompanha a Cristandade Medieval em seus primórdios, a ascensão e o declínio, examinando os elementos de integração e de dissolução e as manifestações culturais no Ocidente e no Oriente. Ao fim, após apresentar as primeiras fissuras ( séculos XIII e XIV), expõe uma análise acerca da ideia católica de sociedade espiritual universal (epílogo) . Enfim, The Return to Christian Unity [ O Retorno à Unidade Cristã] , ainda inédito e no aguardo de publicação, completa o per curso ao abranger o final do século XVIII e os séculos XIX e XX. No título, indica mais um desejo, um empenho e um projeto que uma efetiva realização, ao mesmo tempo aponta, também, ao encaminhar às duas obras anteriores, tratar-se de um conjunto único, centrado na ação da unidade cristã : na necessidade de retomada e de iniciativas nessa direção, o que o remete a analisar o modo como se deu tal perda e seus desdobramentos, bem como recorda sua constituição primeva e a manifestação da força dessa unidade. A Formação da C ristandade 1 Apresentaçãoà Edição Brasi le ira Um único argumento, uma única ação a costurar os três volumes, os quais, portanto, fazem parte de um único canto. Assim como a Ilíada narra a ira de Aquiles e a Odisseia, a volta de Odisseu (Ulisses ) a Ítaca, ou seja, ao lar, temos também uma única ação, como nos ensina a poé tica clássica, a presidir a grande epopeia que Dawson nos lega, como a nos deixar um testamento: a grande série de acontecimentos grandio sos da unidade cristã no Ocidente, a Cristandade Europeia. As palestras ministradas entre 1 958 e 1 962, e publicadas em 1 965 e 1 967, ocorrem no contexto do Concílio Vaticano II: eleito pontífice romano o cardeal Angelo Roncalli ( 1 8 8 1 - 1 963 ) em fins de 1 958 (em 28 de outubro, e assumindo o pontificado em 4 de no vembro ) com o nome de João XXIII, o novo papa convoca, com a bula papal Humanae Salutis, o Concílio em 25 de dezembro de 1 96 1 , cujas sessões ocorrem de 1 1 de outubro de 1 962 a 8 de dezembro de 1 965, encerrando já no pontificado de Paulo VI ( 1 897- 1 978 ) . O ecumenismo que sempre estivera no foco das ações de Dawson, e fora promovido por intermédio das mais diversas iniciativas, encon trava em João XXIII largos e decisivos gestos, como a criação, em 1 960, do Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos. As palestras em Harvard, portanto, mostravam-se bem oportunas. À decisão de lançar A Divisão da Cristandade antes de A For mação da Cristandade, provavelmente tomada por Watkin, não deve ter faltado certo senso de dramaticidade, pois visava a introduzir o leitor in media res, no meio dos eventos que acabaram por cindir a cristandade e, por tabela, favorecer culturalmente a cristandade, ganhando espaço para uma modernidade que dela estava ausente, apesar do vigor cultural que ainda demonstrava. Essa publicação foi seguida d' A Formação da Cristandade, como digressão retrospectiva que pretendia exibir o remédio ao mal, cuja visão da unidade perdi da deveria contribuir para o retorno. A fria recepção na ocasião do lançamento dos dois primeiros volumes, e um Dawson cada vez mais doente, somou-se ao acentuado pessimismo de Watkin em face dos 22 l 23 novos tempos: tais ingredientes compuseram o quadro que conduziu à decisão pela não publicação do terceiro volume, deixando-nos ór fãos da obra completa. Até que venha o terceiro livro temos naquilo que foi publicado um tesouro inestimável, em dois volumes que se justificam por si sós e podem ser lidos independentemente ou na sequência, se o leitor assim desejar. Quanto ao ecumenismo, este continua a ser um desafio para os cristãos. Além da urgência da unidade, dado o avanço do secula rismo que alcança no Ocidente uma capilaridade nunca antes vista, a fragmentação da unidade da Igreja revela-se como um espinho à medida que o amor-caridade entre os irmãos não se mostra capaz, dados os limites humanos, de demonstrar, no tempo, sinais mais pa tentes da unidade. A ruptura da união desejada pelo Cristo para a Sua Igreja veio a se constituir num doloroso óbice à atividade missionária e à obra de construção do Reino de Deus. Um escândalo. Como co adunar unidade e diversidade quando as manifestações culturais e as culturas históricas são plurais ? Nas pesquisas, Dawson demonstra como os fatores de ordem cultural tiveram forte atuação nos desentendimentos entre cristãos. Logo, compreender as culturas, as dinâmicas e as histórias passa a ser um empreendimento decisivo e central . Isso não significa fazer dos cristãos, historiadores; mas, o cristianismo nunca deixou de ter uma dimensão efetivamente histórica. Eis a compreensão que Dawson pretende proporcionar, não só aos católicos, mas também aos protestantes, pois não podemos esquecer o ambiente no qual as palestras foram originalmente ministradas. Há no historiador galês um empenho em construir pontes, visando ao entendimento mútuo entre os irmãos em Cristo. A memória sempre foi uma característica decisiva na experiência cristã : Evangelhos, Atos dos Apóstolos, Atas dos Mártires, História Eclesiástica . . . A própria celebração litúrgica é memorial. Distintas em sua dinâmica, memória e história coletivas também se cruzam e tecem A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le i ra relações entre si, nutrindo-se mutuamente. Isso está presente desde o primeiro momento da caminhada do povo cristão. Em diferentes sentidos, o cristianismo é uma religião histórica, e isso pode ser dito de modo mais preciso ao dizer que a todos cabe ter, desta história, algum conhecimento. Na obra de Christopher Dawson, ao falar de História, podemos entendê-la de três modos diferentes. 1 º ) No plano da Fé cristã, a história pode ser vista como uma perspectiva interna à comunidade de crentes, hermenêutica da me mória, na qual, apesar de distinta da memória, não deixa de atuar subsidiariamente, forjando o que podemos chamar de uma "história sagrada" , ou seja, de uma História como alimento da Fé. Neste siste ma, estuda como se dá a intervenção divina na história. É a crônica de um povo e de sua Fé, sem dúvida, mas não apenas isso. Interessa-se, todavia, por constatar a intervenção de Deus na his tória. Em A Formação da Cristandade, há a nota particular da busca de uma base comum. Aí, Dawson relembra o ensinamento de Santo Tomás de Aquino ( 1225-1 274 ) , em que é essencial, ao entabular um diálogo com aqueles de quem guardamos diferenças, principiar re tomando o patrimônio comum, além disso, mostra ser igualmente necessário identificar a ação de sal da Terra . Por outro lado, e aqui se faz também presente algo do interesse de quem não pertence à comunidade cristã : tomar Cristo como "ca minho, verdade e vida" , critério para a ação, alfa e ômega, senhor da História, significa que essa Fé se encarna e se assume como manifes tação cultural, informando e conformando a cultura. Não só tal fé transforma por dentro como cria o novo. Para o cristão isso ocorre em virtude do Criador fazer dele o Seu instrumento. A justificativa dada, porém, não importa : o fato é que mudanças históricas e cultu rais têm registro. Isso é o que melhor nos permite compreender o pa pel da religião nos fenômenos histórico-culturais e, ao mesmo tempo, torna patente ao próprio cristão tais desdobramentos da experiência 24 l 25 cristã . Então, a história cultural passa, também, a revelar um valor sagrado, ressaltando o sentido pouco aprofundado, mas importante, de testemunho de uma fé. 2º) Há o plano do fazer historiográfico, a dimensão prática. Já o vimos exaustivamente, todavia, vale retomar alguns pontos. Ao his toriador católico ou protestante, ao pesquisador cristão em geral, é exigida a feitura de uma " boa" história, rigorosa, como é exigido de qualquer historiador que queira ter o trabalho validado, o que en globa o modo como opera suas generalizações. Conceitos, modelos e problemas, tudo é o resultado de generalizações sistemáticas e cons cientes, as quais são aplicadas a estudos particulares e bem delimita dos. Se assim não fosse, a História não passaria de crônica . As análises e interpretações, por seu turno, bem como, por sua vez, as sínteses, são interdependentes e uma não subsiste adequada mente sem a outra. É fundamental recuperar tal exercício que tam bém faz parte da prática historiográfica. Voltando a Santo Tomás de Aquino, ou à Razão, aquele sabendo-a limitada, faz com que siga autônoma em relação à Fé; caso contrário, não haveria sentido em dela sermos dotados . Assim, da mesma ma neira como a filosofia e a teologia possuem suas autonomias, seguin do cada uma procedimentos próprios, o mesmo também é válido para a História. Claro que não é suficiente para um historiador católico ser um bom historiador no sentido de aplicar correta e rigorosamente os métodos e técnicas próprios desse campo do saber. No entanto, tal condição é necessária e imprescindível. Igualmente aqui, o agostia nismo de Dawson é exemplar ao empregarnão só os instrumentos proporcionados pela historiografia do período, como ao atuar pionei ramente numa perspectiva interdisciplinar. 3º) Há ainda o plano propriamente da razão histórica como pro cedimento interpretativo, vista como um sério empenho de compreen são do processos históricos conforme as regras próprias e autonomias desse tipo de investigação. Acima, no plano do fazer historiográfico A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le ira foram mais considerados os meios; neste campo particular é levado em conta o conteúdo a ser examinado e os resultados obtidos, o co nhecimento alcançado, as teorias formuladas e as propostas interpre tativas. Sem desdizer a importância de qualquer um desses planos, é deste quesito que mais carecemos. E é aqui que a leitura de Dawson, talvez, mais possa nos ajudar. A respeito da razão histórica, o católico e o protestante, o cris tão em geral carece de uma reassunção de áreas do pensamento em que parece ter abdicado do exercício da cidadania. É preciso uma retomada efetiva. Abrimos mão da formulação de teorias sociais e de hipóteses interpretativas próprias com a marca de uma reflexão genuinamente cristã . Não se assume seriamente o desafio do Cristo, alfa e ômega, do Cristo critério de apreensão da realidade. Quando dizemos apreensão da realidade não é somente no julgar, mas também no ver, no modo de entendê-la e interpretá-la. Cedemos terreno diante dos ataques da modernidade iluminista. Sem deixar de reconhecer, na atualidade, o empenho dialogal estabe lecido entre a cristandade e a presente modernidade, não podemos es quecer a virulência dos ataques passados movidos contra a cristandade. E, não obstante a identificação de elementos profundamente humanos em tal perspectiva de modernidade, a esta também são próprios os fa tores que, mesmo hoje, a mantém em rota de colisão com a cristandade. A vitalidade demonstrada, por exemplo, na modernidade barroca parece ter se assustado diante do desencadeamento, a partir de 1 789, dos ventos revolucionários e do furor das guerras que lhes acompa nhavam. A resposta do romantismo em sua vertente católica é tímida e acanhada, está mais preocupada em justificar-se e em lutar pela pró pria defesa e sobrevivência . De certo modo, mesmo não tendo faltado santos e profetas, a cristandade encastelou-se. O campo das ciências humanas, salvo raríssimas exceções, foi de tal modo preterido no exercício intelectual criativo que os pressupos tos e leituras secularistas, materialistas e ateus parecem fazer mais 26 1 27 sentido e parecem mostrar ser os mais adequados. Uma vez que na vertente protestante, para ficarmos em um exemplo, os abusos subje tivistas da teologia liberal resultaram na reação do fundamentalismo; no meio católico, a resposta mais emblemática veio, em 1 864, com o Syllabus Errorum Modernorum [Sílaba dos Erros de Nossa Época] , uma enumeração sumária dos erros modernos apensada à encíclica Quanta Cura, promulgada pelo papa Pio IX ( 1 792-1 878 ) em 8 de dezembro de 1 864. Essas reações costumam ser vilipendiadas ou enaltecidas, num confronto ideológico que nada acrescenta à cristandade, mas é pre ciso compreendê-las em seu contexto. Restringindo-nos ao caso da encíclica e do respectivo anexo, havia tamanha indigência intelectual entre os católicos, que o papa, como diz a linha inicial do documento pontifício, "movido por grande solicitude e zelo pastoral " , não podia omitir-se, oferecendo a orientação possível no momento (D-2890 ) . 8 Era e é preciso sair do castelo. Uma tentativa que se alastrou rapidamente foi a iniciativa do sacerdote belga Josef Cardijn ( 1 8 82- 1 967) , coadjutor em sua paróquia, que começou, em 1 9 1 2, a desen volver um trabalho pastoral entre os jovens operários que acabou por ser o embrião da Ação Católica, fundada por ele em 1 920. Em pouco tempo outros núcleos se disseminaram, chegando ao Brasil em 1 935 . Uma das razões de seu sucesso foi o método de análise da rea lidade incutido em seu seio: o ver-julgar-agir. Este método, apesar de desempenhar um relevante papel na recomposição do diálogo com as ciências humanas, em si traz um vício de origem, revelador da mes ma indigência no meio intelectual católico demonstrada pela encíclica Quanta Cura e o seu Sílabo. Na maneira como o método é aplicado, o ver se remete aos instrumentos de leitura das ciências, ao passo que atribui à Bíblia o julgar. Ou sej a, a Bíblia nada teria a dizer em relação 8 Pio IX, Encíclica Quanta Cura de 8 de dezembro de 1 864. ln: Heinrich Denzinger, Compêndio dos Símbolos, Definições e Declarações de Fé e Moral. São Paulo, Paulinas/Loyola, 2007. A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Ed ição Brasi le ira ao ver, deixando o terreno aberto, nesse particular, para a semeadura de teorias que em muitas situações não guardam nenhuma relação com a experiência cristã, a exemplo das teorias forjadas no horizonte materialista e ateu. É um equívoco imaginar tais respostas como permanentes ou ideais. Em ambos os casos, elas tiveram os seus momentos nos respecti vos anos de 1 864 e 1 9 1 2 (os anos aqui são apenas simbólicos) , e devem ser superadas. Ser católico, como o cristão, em geral, é consequência do seguimento a Cristo e n'Ele nos orientamos, tomando o Evangelho como inspiração ao elaborarmos as nossas teorias e interpretações. Christopher Dawson, como dissemos, é um exemplo de exercí cio vigoroso nesse aspecto. O encontro com a sua obra nos oferece modelos, interpretações e hipóteses, toda uma problemática orgânica e genuinamente cristã, que usufrui de uma tradição de pensar que procede de um período muito anterior. Há temas próprios introdu zidos na reflexão historiográfica e há frutos da experiência cristã . O mestre Étienne Gilson ( 1 8 84-1 978 ) , com extraordinário sucesso, demonstrou algo análogo para a Filosofia: a existência, com foros le gítimos, de uma filosofia caracteristicamente cristã, iluminada por tal experiência. São várias as obras do eminente filósofo nas quais pode mos encontrar uma sistematização a esse respeito, mas em particular cito O Espírito da Filosofia Medieval,9 obra toda dedicada ao tema da natureza da filosofia cristã e de suas características; vemos isso, igualmente, na obra História da Filosofia Cristã, escrita juntamente com Philotheus Boehner ( 1 90 1 - 1 955 ) . 1º Como aqui não é o lugar para um tratado de maior fôlego, ca bem apenas rápidas e modestas anotações de quais seriam alguns 9 Étienne Gilson, O Espírito da Filosofia Medieval. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2006. 10 Philotheus Boehner e Étienne Gilson, História da Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de Cusa. 8. ed. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis, Vozes, 2003 . 28 l 29 dos temas trazidos pela experiência cristã à escrita da História e que, portanto, podem ser encontrados em Dawson: o humanismo ou a dignidade própria do aspecto cultural e a autonomia do reli gioso; a exigência de síntese ou de perspectiva integral (holística ) da realidade; a relação entre espírito e matéria, o u como atuam as condicionantes ( fatores ) materiais e imateriais - como desdobra mento desses temas; a relevância e a efetiva dimensão da liberdade humana na ação histórica; o caráter dramático da síntese apre sentada como a luta entre forças de integração e de dissolução. Nesses contributos, fundamentalmente enraizados numa antropo logia filosófica coerentemente evangélica, pode-se afirmar, indubi tavelmente, haver uma História com uma propriedade dita cristã a irradiar-se para outras historiografias . Não é, pois, menor dizer que, independente da crença (ou mesmo na ausência desta ) , quem quer que se interesse tanto pela história do cristianismo, bem como pela história da cristandade - esta vis ta como expressão cultural daquele -, sairá beneficiado pela leitura d'A Formação da Cristandade: uma obra única, construída em aten çãoàs exigências íntimas de uma humanidade que anseia por reali zação plena, que não abre mão de compreender o seu lugar e se sente chamada à ação. A História de Dawson fala-nos ainda hoje, mais que nunca, não só ao cristão, mas ao homem de boa vontade, afirmando -se como uma obra clássica e de referência para quem quer que se interesse pela dinâmica das culturas históricas - aqui também inde pendente das diferentes filiações teórico-metodológicas que possamos vir a ter nesse campo de estudo. Como se vê, o pensamento e a obra Dawson seguem palpitando de vibrante atualidade. Uma palavra final de agradecimento e louvor ao empenho de Alex Catharino e de Márcia Xavier de Brito, bem como da É Realiza ções Editora, na figura de seu editor Edson Manoel de Oliveira Filho, ao trazer para o Brasil uma obra que não só enriquecerá o leitor como também a nossa cultura, pelo contato mais extenso e intenso com o A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le ira pensamento dawsoniano, em uma edição tão bem cuidada quanto a presente e que o caro leitor, agora, tem o privilégio de ter em mãos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil Na festa dos Santos Mártires Marcelino e Pedro Manuel Rolph Cabeceiras Cursou o bacharelado e a licenciatura em História e o mestrado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) , com a dissertação As Metamorphoses de Ovídio e as Lutas de Representação na Roma Antiga, e o dou torado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com a tese Urbi et Orbi, Nós e os Outros: Romanidade(s), Fronteira Étnica e a História como escrita dos dilemas pátrios. Professor, entre outras instituições, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB, 1 986-1 997) e da UFF (desde 1 997), onde fundou, com ou tros docentes, estudantes e pesquisadores, o Centro de Estudos Interdisciplinares da Antiguidade (CEIA-UFF) . Atua na área de História da Antiguidade Greco-romana e da Alta Idade Média, com ênfase nos seguintes temas: Mediterrâneo, História Cultu ral, Discurso e História, Etnicidade, Mitologias, Tradições Clássicas, História Militar, História das Religiões e Paleocristianismo. Sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC) e membro da Associação Nacional de História (ANPUH) e da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB) . Sócio emérito do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil ( IGHMB), ocupando a cadeira 89, cujo patrono é Olavo Bilac. Editor assistente e membro do Conselho Editorial da edição brasileira de COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura. P r e f á c i o à E d i ç ã o B r a s i l e i r a A CRIS TAN D A D E D E CHRIS TOPH ER D AWSON - POR BRA DLEY J . BIRZER 1 3 1 Como verificamos, a trilogia da cristandade foi a última gran de obra do historiador anglo-galês e l iterato Christopher Dawson ( 1 8 89-1 970 ) . Mais ou menos . A trilogia surgiu, originalmente, das palestras que Dawson ministrara enquanto lecionou na Universidade de Harvard, entre 1 95 8 e 1 962. Desej ava que fizessem parte da trilo gia da cristandade o presente livro, The Formation of Christendom [A Formação da Cristandade] , lançado originalmente em 1 967; The Dividing of Christendom [A Divisão da Cristandade] , publicado em 1 9651 , e The Return to Christian Unity [O Retorno à Unidade Cris tã] . No geral, cada volume representava um dos grandes períodos do mundo cristão: o vínculo entre os períodos antigo e medieval; a Reforma Protestante e a Contrarreforma Católica; e a Igreja na era da democracia, dos nacionalismos e das ideologias. Embora A Formação da Cristandade sej a , tecnicamente, o pri meiro volume da série, a obra surgiu dois anos após o lançamento do segundo volume, A Divisão da Cristandade. A ideia de publi car as conferências como trilogia ocorreu a Dawson em 1 96 3 . Seu editor, Frank Sheed ( 1 8 97-1 9 8 1 ) , prontamente concordou. A úni ca questão era se os publicariam separadamente, como três obras 1 Os dois livros foram relançados em inglês nas respectivas edições: Christo pher Dawson, The Formation of Christendom. San Francisco, lgnatius Press, 2008; Idem, The Dividing of Christendom. Pref. James Hitchcock; intr. David Knowles. San Francisco, lgnatius Press, 2008. A Formação da C ristandade 1 Prefácio à Ed ição Brasi le i ra distintas, ou logo corno urna trilogia . 2 Sheed gostaria de publicá -las o quanto antes, pois esperava que os livros pudessem servir de base para os debates do Concílio Vaticano II, realizado entre 1 962 e 1 96 5 . Não sem razão, Sheed acreditava que Dawson - j unta mente com urna série de outros humanistas cristãos corno Jacques Maritain ( 1 8 82- 1 973 ) e Étienne Gilson ( 1 8 84- 1 97 8 ) - pudesse ser vir corno pedra angular e manancial para as importantes delibe rações e reformas do Concílio. Afinal, figuras importantes, corno Romano Guardini ( 1 8 85 - 1 96 8 ), clamavam por reformas litúrgicas desde a década de 1 920 . 3 Nada, corno de fato aconteceu, poderia estar mais distante da verdade. Corno acreditava a maioria dos teólogos e das editoras ca tólicas nos anos 1 960, o Espírito Santo abolira muito do passado recente, e poucos, afora um pequeno número de fiéis, ainda pensavam que Dawson tinha muito a contribuir para o futuro do catolicismo. O próprio sucesso que obtivera corno pensador católico de 1 928 a 1 962, nesse momento, contava negativamente, e muitos o viam corno urna relíquia da geração passada e um símbolo daquilo que acabara de ser superado. Corno posteriormente explicou o teólogo neocon servador Michael Novak: "É corno se todos aqueles escritos potentes de Dawson, Maritain, Guardini e de tantos outros nunca tivessem realmente criado raízes" . 4 Além disso, Frank Sheed se aposentou em 1 963, saindo quase to talmente do caminho de seus sucessores. Sem Sheed na editora Sheed and Ward, não restava ninguém no mundo editorial que promovesse, 2 Carta de Frank Sheed para Christopher Dawson, de 16 de dezembro de 1 963 . ln: Box 1 , Folder 13 , Sheed and Ward Family Papers, Archives of the University of Notre Dame, Notre Dame, Indiana. 3 Carta de Sheed para Dawson, 10 de dezembro de 1 963 . ln: Box 1, Folder 13 , Sheed and Ward Family Papers, Notre Dame. 4 Michael Novak, "The Political Identity of Catholics" . Commonweal 97, 16 de fevereiro de 1 973, p. 44 1 . 32 l 33 ativa e significativamente, as obras de Dawson. Quando incitado a responder por que a editora Sheed and Ward fez tão pouco para pro mover A Formação da Cristandade, o sucessor de Sheed desculpou-se: "Há, como sabem, uma falta de interesse nesta obra que acho extre mamente lamentável. Ao mesmo tempo, só posso sugerir que, em ge ral, parece existir uma total falta de interesse na História da Igreja " , escreveu numa carta privada o editor-chefe Philip Scharper ( 1 9 1 9- 1 985 ) . Quase ninguém prestou atenção n'A Divisão da Cristandade, observou, e, provavelmente, um número muito menor de pessoas se importariam com A Formação da Cristandade. 5 Infelizmente, fosse ou não autorrealizável a profecia de Scharper, muito poucos se deram conta dessa obra quando foi lançada . A imprensa mainstream norte-americana, como o New York Times e o Wall Street ]ournal, ignorou-a completamente. Somen te duas revistas acadêmicas, a Sociological Analysis e a Catholic Historical Review escreveram resenhas a respeito do livro de 1 967.6 Os resenhistas apresentaram pontos de vista opostos aos de Daw son. Werner Stark ( 1 909- 1 985 ) , da universidade j esuíta Fordham em Nova York, nitidamente queria gostar do livro, ao chamar o autor de "distinto" e ao saudar a intenção de escrever uma história a partir da perspectiva católica como algo admirável e louvável. "A questão é, certamente, quão bem tal programa foi implementado e, a esse respeito, infelizmente, não posso negar certo desapontamen to" , afirmou Stark . As próprias visões datadas deDawson de uma "teoria da história de grandes homens" já estavam morrendo, la mentou o resenhista . O maior problema de Dawson, contudo, vinha de sua incapacidade de explicar o catolicismo e sua profundidade aos protestantes. "A discussão sobre o monaquismo, por exemplo, 5 Carta de Philip Scharper para John Mulloy, de 29 de novembro de 1 967. ln: Box 1 1 3, Folder 44, Sheed and Ward Business Collection, Notre Dame. 6 Ver: Werner Stark, Sociological Analysis 28, Outono, 1 967, p. 1 72-73; Martin R. P. McGuire, Catholic Historical Re11iew 56, Abril, 1 970, p. 2 1 9-20. A Formação da C ristandade 1 Prefácio à Ed ição Brasi le ira deixa de transmitir o que era seu significado mais profundo " , escre veu Stark. "O professor Dawson não disse aos alunos que os pio neiros do monaquismo queriam provar para Deus e para os homens que, na verdade, homens podiam ser divinos e, mesmo decaídos, podiam ser como Adão fora antes do Pecado Original " . 7 O pro fessor da Catholic University of America ( CUA) , Martin McGuire ( 1 897- 1 969 ) , no entanto, não encontrou erros na obra A Formação da Cristandade. Representava o historiador galês "em sua melhor forma " , oferecendo "profundos insights e grande poder de síntese" . O leitor, McGuire entusiasma, "é arrebatado não só pela profundi dade das reflexões, mas pela concretude dos exemplos " . Compará vel à originalidade do pensamento de Dawson, conclui, está o estilo de escrita "cativante" do autor. 8 Devemos notar que, apesar de Sheed ter-se aposentado da editora Sheed and Ward, nunca perdeu a fé em Dawson. Desde o primeiro encontro, os dois iniciaram uma amizade rápida e, por vezes, frus trante. Sheed não só encorajou Dawson profissionalmente, ao editar significativa parcela da obra do amigo, mas também ajudou a dar alguma estabilidade ao maníaco-depressivo Dawson. Se existiu um "renascimento literário católico" no mundo de língua inglesa após a Primeira Guerra Mundial, Sheed o creditou a seis homens: Hilaire Belloc ( 1 870- 1 953 ) , G. K. Chesterton ( 1 874-1 936 ) , C. C. Martindale ( 1 879- 1 963 ) , Ronald Knox ( 1 8 8 8- 1 957) , Christopher Dawson e ao inspirador de todos, o maior teólogo de todos os tempos, Santo Agos tinho de Hipona ( 354-430) . 9 Sheed, no entanto, tinha perdido a fé no renascimento pleno do catolicismo já em 1 958 . A mentalidade cató lica provara, repetidas vezes, a própria genialidade em autores como Dawson, mas nunca se estendeu além das letras para os domínios 7 Werner Stark, Sociological Analysis, p. 1 72-73 . 8 Martin McGuire, Catholic Historical Review, p. 220. 9 Frank Sheed, The Church and I. Garden City, Doubleday, 1 974, p. 107-29. 34 l 35 da arte e da arquitetura, lamentava . Tal limitação levaria, por fim, à implosão do movimento. 10 Igualmente prejudicial a Dawson foi a indicação de seu melhor anú go, E. I. Watkin ( 1 888-1981 ), como seu agente e editor literário. Dawson sofrera uma série de derrames devastadores ao longo da década de 1960, perdendo, por fim, a capacidade de escrever e falar. Certamente precisava indicar alguém para ternúnar a obra. Watkin, entretanto, pernútiu que suas paixões roubassem o que tinha de melhor a oferecer. O Concílio Vatica no II o enfureceu. Rotulou o concílio e suas conclusões de "deformação" . A nova Igreja, preocupava-se Watkin, tinha retornado ao barbarismo e nunca entenderia as nuances de um pensador tão profundo quanto Dawson.1 1 Desencorajado, Watkin editou as últimas duas obras de Da wson, mas com pouco entusiasmo. Em 1969, um ano antes da morte de Dawson, seu melhor anúgo escreveu a respeito dele e das últimas obras. O Vaticano II nunca poderia refutar Dawson, mesmo se tentasse fazê-lo: "Não pode, pois suas interpretações estão seguramente ancoradas no fato histórico. Ele é, simplesmente, descartado" . 12 Apesar de Dawson também crer que o Vaticano II estava repleto de erros, aceitara o concílio e seus ensinamentos por questão de autoridade. Watkin nunca o aceitou. 13 1 0 Idem, "I am a Catholic Publisher" . Westminster Cathedral Chronicle, set./ out. , 1 959, p. 1 37. 1 1 Carta de E. 1. Watkin para Bernard Wall, de 28 de fevereiro de 1 969. ln: Box 1, Folder 24, Bernard Wall Papers, Archives of Georgetown University, Georgetown, Washington, D.C. 1 2 E. 1 . Watkin, "Tribute to Christopher Dawson" , The Tablet, 1 969, p. 974. 1 3 Watkin é uma figura fascinante por si mesma. Escreveu inúmeras obras críti cas sobre arte e cultura na mesma época em que Dawson escrevera suas obras. Frequentaram a mesma escola quando crianças e mantiveram uma amizade muito próxima por toda a vida. Watkin, certa vez, descrevera o relacionamento deles em termos clássicos. Ele era grego e Dawson, romano. Watkin, no entan to, sempre fora um tanto heterodoxo. Manteve um estrito pacifismo e viveu de modo quase bígamo durante a maior parte da vida adulta. A seu respeito só existe uma biografia, escrita pela própria filha. Ver: Magdalen Goffin, The Watkin Path: An Approach to Belie(. Eastbourne, Sussex Academic Press, 2006. A Formação da C ristandade 1 Prefácio à Edição Bras i le i ra Não é de espantar que Watkin também nunca tenha editado o ter ceiro volume, O Retorno à Unidade Cristã. Inédito, o único manuscrito da conclusão da trilogia - que necessita urgentemente de revisão, edição e organização - repousa na Harvard Theological Library. Fragmentos apareceram como artigos em vários periódicos acadêmicos da década de 1 960, mas apenas pequenos trechos. Algum dia, quem sabe, um edi tor possa comprar os direitos autorais e, apropriadamente, lançá-lo. Até que isso aconteça, devemos nos contentar com o que Dawson nos legou. Decerto, deixou-nos uma herança riquíssima ! Dawson, ou, mais provavelmente, Watkin organizou A Formação da Cristandade em quatro partes: Apresentação, Os Primórdios da Cultura Cristã, A Formação da Cristandade Medieval e um Epílogo. Ainda que a história de Dawson seja, é claro, excelente e suas conferên cias bela e cuidadosamente preparadas, a verdadeira importância de A Formação da Cristandade não está em narrar novamente a história da civilização ocidental, mas na teoria que apresenta a respeito da natureza e filosofia da história, o papel fundamental da Igreja em reconciliar o pensamento clássico com o cristianismo e, em especial, no primado da cultura. De fato, muito daquilo que Dawson escreve ao detalhar a história da civilização ocidental pode ser facilmente en contrado em suas obras anteriores, desde meados da Primeira Guerra Mundial. Em vez disso, o que torna A Formação da Cristandade tão fundamental, não somente como uma parte do corpus dawsoniano, mas também como uma das grandes obras de todo o século XX, é a longa seção introdutória. O professor McGuire estava correto. Isso é Christopher Dawson em sua melhor forma em termos de lógica e retórica. A seção introdutória reflete toda a vida de reflexão de uma das maiores mentes de sua época, uma mente católica cheia de vida, no auge da capacidade. "A cultura" , Dawson explicou com falaz simplicidade n' A For mação da Cristandade, "é o modo de vida humano comunicado por uma língua, de modo que a palavra do homem tanto é criadora como 36 l 37 transmissora de cultura" . 1 4 Não interessa quão fáceis possam parecer tais palavras, a profundidade paira em cada fragmento dessa afirmação de Dawson. Ao mesmo tempo que Dawson ministrava essas famosas conferências em Harvard, também tentava fomentar suas interpretações pessoais por vários empreendimentos educacionais. A cultura, afirma va juntamente com o grande estadista irlandês Edmund Burke ( 1 729- 1797) e com o filósofo francês Alexis de Tocqueville ( 1 805-1 859) : é um produto artificial. É como uma cidade laboriosamente construída pela obra de sucessivas gerações, não uma floresta que cresceu espon taneamente pela pressão cega de forças naturais. A essência da cultura que é comunicada e adquirida e, ainda que seja legadade uma geração para outra, é uma herança social e não biológica, uma tradição de aprendizado, um capital de conhecimento acumulado e uma comuni dade de "costumes" em que o indivíduo tem de ser iniciado. Por isso, é evidente que a cultura é inseparável da educação. 15 Como Dawson sempre afirmou, a cultura encontra suas expres sões mais significativas nas coisas mais humanas, em gestos e, espe cialmente, na liturgia religiosa. Desde o primeiro livro, The Age of the Gods16 [A Era dos Deu ses] , publicado em 1 928, Dawson promoveu, incessantemente, uma análise da cultura como o fundamento mais importante de compreen são da sociedade, da família e da pessoa. Nisso, Dawson contrariou a obsessão do século XX com ideologias fanáticas e política. De fato, Dawson acreditava que o desejo de dar primazia à política e ao pen samento político levou, inevitavelmente, na pessoa individual, à perda 1 4 Ver na presente obra o capítulo V (As Ideias Cristã e Judaica de Revelação), p. 153 . 1 5 Christopher Dawson, The Crisis o( Western Education. Steubenville, Franciscan University Press, 1 989, p. 3 . 1 6 Idem, The Age o( the Gods: A Study in the Origins o( Culture in Prehistoric Europe and Ancient Egypt. Intr. Dermot Quinn. Washington, D.C., The Catholic University of America Press, 2012 . A Formação da C ristandade 1 Prefácio à Ed ição Bras i le i ra da imaginação e, nas sociedades humanas, ao empobrecimento do ra ciocínio superior. Sem nuance e sempre, e em todos os lugares, tendo algo de imperial, a política tenta expandir a própria esfera de influên cia em todos os aspectos da vida. Em última análise, porém, a política só pode ser bem-sucedida ao neutralizar a pessoa, rotulando-a como algo inferior do que fora pretendido por Deus ou pela natureza . "Te mos de encarar o fato de que houve um declínio nas ideias" , confiden ciou a um amigo íntimo, Bernard Wall ( 1 894-1 976 ) , "há não só uma falta positiva de novas ideias, mas, também, uma perda subjetiva de interesse nas ideias como tal" . 1 7 Por certo, Marte e Demos apressaram o crescimento do Leviatã, temia Dawson. "Ainda vivemos à sombra da guerra e na incerteza do futuro da Europa ser favorável à obra criativa " , 18 afligia-se. As limitações ideológicas e a propaganda polí tica rapidamente se infiltraram no pensamento, nas artes e na música de várias igrejas cristãs, católicas e protestantes, afirmava Dawson. "Os teólogos modernos, ao deixarem de ser poetas, também deixa ram de ser filósofos." 1 9 Embora Dawson tenha gasto um tempo considerável analisando a política e a ideologia, especialmente entre os anos de 1 93 1 e 1 942, ele sempre se ressentiu desse aspecto de seus escritos, acreditando que eram necessários somente para combater os erros do século XX. De modo algum, temeu e lamentou; argumentos políticos pró ou contra fizeram progredir a causa de Deus, a cristandade ou a pessoa . A política serviu somente como uma distração neste mundo de so frimentos, mas uma distração mortal como provaram ser os campos de concentração e os gulags. Ainda assim, a análise política deve ser feita, mas sempre no sentido de explicar sua insignificância se com parada à cultura . Na última de suas obras declaradamente políticas, 1 7 Carta de Dawson para Bernard Wall de 26 de agosto de 1 946. 1 8 Carta de Dawson para Bernard Wall de 9 de setembro de 1 946. 1 9 Carta de Dawson para Bernard Wall de 28 de julho de 1 946. 38 l 39 The Judgment of the Nations20 [O Julgamento das Nações] , de 1 942, Dawson, de modo surpreendente, dedica a obra "a todos os que não perderam a esperança na república, na comunidade dos povos cris tãos, nesses tempos sombrios" . Apesar do projeto dawsoniano de reforma d o mundo ocidental nunca ter tido êxito, sem dúvida, aj udou a preservar a melhor parte da civilização ocidental . Certamente seria muito difícil exagerar a importância de Dawson ao inspirar vários dos melhores pensado res do século passado. Dentre eles, temos poetas, romancistas, crí ticos culturais e artistas como T. S . Eliot ( 1 8 8 8- 1 965 ) , David Jones ( 1 895-1 974 ) , C . S . Lewis ( 1 898 - 1 963 ) , J. R. R. Tolkien ( 1 8 92- 1 973 ) , Thomas Merton ( 1 9 1 5- 1 9 6 8 ) e Russell Kirk ( 1 9 1 8 - 1 994 ) , e todos, durante suas vidas, adotaram abertamente a posição de Dawson a respeito de cultura . Bastam dois exemplos. No poema Four Quartets [Quatro Quar tetos] de T. S. Eliot, indiscutivelmente, a maior obra de arte do século XX, quase ao final do quarto poema, "Little Gidding" , publicado em 1 94 2, escreveu Eliot: E cada frase Ou sentença de rigor (onde cada palavra se familiariza, Assumindo seu posto para suportar as demais, A palavra sem pompa ou timidez, Um natural intercâmbio do antigo e do novo A palavra corrente, correta, digna, A palavra essencial e exata, mas sem pedanteria, O íntegro consórcio de um bailado unívoco)2 1 20 Christopher Dawson, The ]udgment of the Nations. lntr. Michael J. Kea ting. Washington, D.C., The Catholic University of America Press, 201 1 . 21 No original: And every phrase / And sentence that is right (where every word is at home, / Taking its place to support the others / The word neither diffident nor ostentatious / An easy commerce of the old and the new / The common word exact without vulgarity / The formal word precise but not pedantic / The complete consort dancing together) . (T. S. Eliot, "Little Gidding" . A Formação da C ristandade 1 Prefácio à Edição Brasi le ira De maneira menos poética, mas com palavras igualmente pro fundas, o crítico cultural e historiador norte-americano Russell Kirk escreveu em seu livro sobre liberdade acadêmica de 1 955: O principal sustentáculo da liberdade acadêmica, no mundo antigo, no mundo medieval e na tradição educacional norte-americana foi a convicção, entre estudiosos e professores, de que eram os Portadores da Palavra - homens consagrados, cuja primeira obrigação é com a Verdade, e que a Verdade deriva da apreensão de uma ordem superior à natural ou à material .22 Tanto Eliot quanto Kirk refletiram diretamente um sentimento muito joanino e a argumentação de Dawson. Corno escreveu no iní cio do capítulo II d'A Formação da Cristandade: A história do cristianismo é a história de uma intervenção divina na história, e não podemos estudá-la à parte da história da cultura no sentido mais amplo do termo. A palavra de Deus foi primeiramente revelada ao povo de Israel e se incorporou na lei e na sociedade. De pois, o Verbo de Deus se encarnou em uma determinada pessoa, em um determinado momento da história, e, posteriormente, esse processo da redenção humana perdurou na vida da Igreja, a nova Israel, a comuni dade universal portadora da Revelação divina, e foi o meio pelo qual o homem participou da nova vida do Verbo Encarnado.23 Dawson via cada um corno um pequeno verbo, que traz dentro de si um ícone, urna imagem perfeita daquilo que estamos destinados a ser, segundo Aquele que criou o mundo e o redimiu. Corno nos assegura São João, o lógos é "a verdadeira luz que, vindo ao mundo Four Quartets, seção V, versos 234-41 ) . Utilizamos aqui a versão em português da seguinte edição brasileira: T. S. Eliot, Quatro Quartetos. ln: T. S. Eliot: Obra Completa - Volume 1: Poesia. Trad., intr. e notas Ivan Junqueira. São Paulo, Arx, 2004, p. 385. (N. T. ) 22 Russell Kirk, Academic Freedom: An Essay in Definition. Chicago, Regnery, 1 955, p. 29. 23 Ver na presente obra o capítulo II (0 Cristianismo e a História da Cultura ), p. 1 0 1 . 40 l 4 1 ilumina todo homem" (João 1 ,9 ) . Todo aspecto da imaginação e da razão superior nos é dado por algo exterior a nós mesmos. Ironica mente, aquilo que é menos humano em nós é o que nos torna mais humanos. Dawson acreditava que essa verdade era a mais importante que podemos conhecer em nossa peregrinação por este mundo, ao nos prepararmos para a cidadaniaceleste. A Formação da Cristanda de figura como uma alma que se ergue no mundo para testemunhar o brilhantismo de Christopher Dawson, bem como para encorajar, de modo profundo, nossas vidas a continuarem intelectual e sobrenatu ralmente vivas, ou seja, a permanecerem católicas. Bradley ]. Birzer Professor titular de História da cátedra " Russell Amos Kirk em Estudos Norte-americanos" do Hillsdale College, em Michigan, nos EUA. Cursou o B.A. na University of Notre Dame, o M.A. em História na Utah State University e o PhD em História na Indiana University. É autor dos livros J. R. R. Tolkien 's Sanctifying Myth: Understanding Middle-earth ( ISI Books, 2003 ), Sanctifying the World: The Augustinian Life and Mind of Christopher Dawson (Christendom Press, 2007), American Cicero: The Life of Charles Carrol/ ( ISI Books, 20 10 ) , The Humane Repu blic: The Imagination of Russell Kirk (University Press of Kentucky, 2014) , coautor, com Larry Schweikart, do livro The American West (Wiley, 2002 ) e coeditor, com John Willson, da coletânea de escritos de James Fenimore Cooper The American Democrat and Other Political Writings (Gateway, 200 1 ) . I n t r o d u ç ã o à E d i ç ã o B r a s i l e i r a CHRISTOPHER DAWSON E A I DEIA CAT Ó LI CA DE HIST ÓRIA 1 DERMOT Q UINN l 43 Christopher Dawson ( 1 8 89-1 970) foi o mais eminente historiador católico de língua inglesa do século XX, mas, apesar de toda sua dis tinção, ele permanece um enigma. Examinar a sua obra é dar-se conta de que o paradoxo está em seu cerne, que uma simples frase não pode capturar a totalidade de sua realização. Num elegante ensaio revisio nista, James Hitchcock demonstrou a consistência com que Dawson parece frustrar expectativas. De gostos rústicos, ele foi "o mais cos mopolita dos eruditos" ;2 ardentemente inglês, aceitou uma cadeira na Harvard University, já perto da terceira idade, deixando sua terra na tal; um crítico do industrialismo e individualismo americanos,3 passou a amar os Estados Unidos da América, e continua mais admirado lá do 1 Ensaio publicado pela primeira vez em língua portuguesa com o mesmo título, em tradução de Mareio de Paula S. Hack, no periódico trimestral COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura, vol. XXVII, n. 3 (edição 99) , jul ./set. 2008, p. 697-71 8 . Agradecemos aos editores respon sáveis Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo e Márcia Xavier de Brito, bem como ao gerente editorial Alex Catharino, que gentilmente autorizaram a reprodução do texto na presente edição. Todas as notas do editor (N. E.) no presente ensaio são de autoria de Alex Catharino. A versão aqui publicada foi devidamente revisada, atualizada e acrescida de notas do tradutor (N. T. ) para esta edição por Márcia Xavier de Brito. 2 James Hitchcock, "Christopher Dawson: A Reappraisal " . ln: The American Scholar, vol. 62, 1 993, p. 1 1 1 . 3 Aquela conjunção era, em si, paradoxal, como observou Dawson: industria lismo e individualismo muitas vezes se suprimem mutuamente. A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Ed ição Brasi le i ra que na Inglaterra; distante de companhias intelectuais por grande par te de sua vida, e antimoderno por temperamento, era ousado em ques tões de metodologia histórica; um cristão conservador, reconheceu não obstante o " Reino de Cristo" como um princípio "de importância revolucionária, tanto para a ordem política quanto para a moral " .4 Sua vida variegada, em outras palavras, parece resistir aos contornos definidos das biografias. Suas excentricidades zombam das conven ções; o inesperado não cessa de aparecer. Dawson dá a impressão de ser da melhor espécie de não conformista: aquele que não se conforma sequer com o próprio não conformismo. Essas ambiguidades não esgotam sua complexidade. Chamar Dawson de expressivo dentre os historiadores católicos já é em si enigmático, e parte do enigma tem a ver com uma maneira de pen sar - chame-a "História Católica " - quanto com o próprio homem em questão. Certamente, não há dúvidas quanto à sua distinção. Seu tutor na University of Oxford, Sir Ernest Barker ( 1 874- 1 960), o con siderava inigualável dentre seus pupilos, "um homem e um erudito da mesma espécie de qualidade de Lorde Acton ( 1 834-1 902) e de Friedrich von Hügel ( 1 852-1 925 ) " .5 O padre David Knowles, O.S.B. ( 1 896-1 974 ) afirmava que era "em seu campo, o mais eminente pen sador católico deste século" .6 Mas os testemunhos chamam a atenção apenas para o fato de que Dawson, como historiador, se encontra em grande medida esquecido. Ele está fora de moda. Talvez sua insis tência de que a religião está no centro da cultura pareça redutiva ou confessional . Talvez sua crença na Europa como uma "unidade espi ritual [com um] sistema comum de valores morais" 7 seja eurocêntrica 4 Christopher Dawson, The Sword of the Spirit. London, Sand, 1 942, p. 4. 5 Citado em Christina Scott, A Historian and His World: A Life of Christo pher Dawson 1 889-1 9 70. London, Sheed and Ward, 1 984, p. 1 1 0. 6 Ibidem, p. 2 1 0 . 7 Christopher Dawson, Understanding Europe. New York, Sheed and Ward, 1 960, p. 6 . 44 j 45 demais para a nossa época eurofóbica ou multiculturalista . Mais pro vável, porém, é que ele esteja fora de moda por nunca ter estado nela . De fato, Dawson não parece de modo algum pertencer ao sécu lo XX. A comparação com Lorde Acton é apropriada: ambos foram eruditos reservados que se devotaram aos grandes temas, convencidos de que o estudo da história é uma empreitada profundamente moral. Mas a comparação com Lorde Acton parece investir sobre ele uma gravitas vitoriana, separando-o de seus contemporâneos. Dawson chegou à maturidade após a Grande Guerra, quando a mente acto niana - confiante, liberal, progressiva, racional - havia perecido nas trincheiras. Depois das batalhas de Passchendaele e Somme, o mundo passou a suspeitar do político como pregador, do historiador como homiliasta . Ele continuou a enxergar padrões na história, mesmo de pois que os outros não conseguiam ver nada além do absurdo. E em outro sentido, ele não se encaixa bem entre os historiadores ingleses . Se os escritos de história revelam o estilo nacional, então há nele mais Alemanha do que Inglaterra, mais Theodor Mommsen ( 1 8 1 7- 1 903 ) do que Frederic William Maitland ( 1 850- 1 906 ) , mais Oswald Spen gler ( 1 880- 1 936 ) do que William Stubbs ( 1 825-1 90 1 ) . O miniaturis mo das monografias não o atraía: a paisagem, sim. Suas preocupa ções eram a natureza da cultura e da civilização, do progresso e da religião, os contornos da história mesma: questões metafísicas muito distantes do quo warranto [com que direito] , o reino do rei Stephen de Blois ( 1 096- 1 1 54 ) e a ascensão do feudalismo bastardo. Sua me todologia era sempre empírica: nisto, ao menos, ele era inglês . Mas a "meta-história" tinha muito maior importância para ele do que para os outros. Era, de fato, seu recurso fundamental : O historiador acadêmico está perfeitamente certo ao insistir na impor tância das técnicas da crítica e da pesquisa históricas. Mas o domínio dessas técnicas não produzirá boa história, mais do que o domínio da métrica produz grande poesia. Para isto, algo mais é necessário. A experiência dos grandes historiadores, como Alexis de Tocqueville A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Ed ição Brasi le ira ( 1 805-1859 ) e Leopold von Ranke ( 1 795-1 886) , me leva a crer que uma visão universal meta-histórica [ . . . ] partilhando mais da natureza da contemplação religiosa que da generalização científica, está bem próxima da fonte de seu poder criativo. 8 A defesa pede um exame melhor. "Visão universal meta-histórica " soa como a escola continental nos seus piores momentos de vagueza e indefinição. Mas a melhor arma contra o fogo é o próprio fogo. Dawson sabia do que falava. Pense na sua crítica a Oswald Spengler, cujo continentalismosó não era mais exacerbado do que seu relati vismo.9 A acuidade de Spengler ao descrever civilizações não era ba seada em qualquer crença na "civilização" mesma. Em última análise, ele dissolveu "a unidade da história numa pluralidade ininteligível de processos culturais isolados e estéreis " . 1 0 A insistência de Dawson sobre a meta-história, deste modo, revelou as falhas daquela escola, melhor do que a simples confiança num empirismo que, apesar de toda sua atratividade, j amais poderia provar algo fora de si mesmo. Até aqui, então, alguns enigmas. Dawson foi um galês que es creveu à maneira dos alemães; uma figura do século XIX exilada no século XX; ele era rus in urbe; um revolucionário conservador. Todas estas são ideias úteis. Mas o paradoxo mais revelador ainda está para 8 Idem, "The Problem of Metahistory: The Nature and Meaning of History and the Cause and Significance of Historical Change" . ln: History Today, 1, junho, 1 95 1 , p. 9- 12 . 9 Idem, Progress and Religion: An Historical Enquiry into the Causes and Development of the Idea of Progress and Its Relationship to Religion. New York, Doubleday Image, 1 929, p. 38 . [Ao longo de todo o presente texto subs tituiremos as passagens da versão original em português do artigo publicado em COMM UNIO pelas equivalentes da tradução brasileira da obra, lança da posteriormente, além de indicarmos entre colchetes as páginas do livro em português. A obra foi lançada em português na seguinte edição brasilei ra: Christopher Dawson, Progresso e Religião: Uma Investigação Histórica. Apres. Joseph T. Stuart; pref. Christina Scott; intr. Mary Douglas; trad. Fabio Farias. São Paulo, É Realizações, 2012, p. 86-87. (N. T. ) ] . 1 0 Ibidem, p. 43 [p. 95] . 46 l 47 ser explorado. Dawson era um historiador católico; e o catolicismo está no centro de sua identidade. O que isto significa ? Num certo nível, as implicações parecem claras . "Historiador católico" implica tanto combinação quanto contraposição. É ser católico, é escrever inter alia sobre questões católicas, e fazê-lo com empatia, mas sem abandono da faculdade crítica . Isso parece incontestável, uma com binação sem controvérsia . Mas a contraposição também jaz escon dida . Por que falar de historiador católico senão para sugerir uma identidade dupla, uma lealdade dividida ? O católico segue regras di ferentes e responde a um juiz mais elevado, assim reza o argumento. Ele finge ser um pluralista, mas, no fim das contas, somente a Mãe Igreja importa . É o velho hino agostiniano tornado estridente pelo secularismo. Mas considere suas pressuposições. Se há de fato duas cidades, como Santo Agostinho (354-430) as descreve, perceba como é estranho que seja o secularista a exigir (em nome do pluralismo) que o católico viva em apenas uma delas. Em qualquer lealdade dividida, ele afirma, prerrogativas sagradas devem ser, primeiro, abandonadas, fazendo assim o verdadeiro pluralismo impossível. Mas isto é, eviden temente, arbitrário, acrítico e em si mesmo antipluralista : não uma identidade dupla, mas um padrão duplo. Como disse o historiador Johann Peter Kirsch ( 1 86 1 - 1 94 1 ) : Exigir do historiador eclesiástico uma ausência de todo tipo de compreen sões prévias não é apenas inteiramente irracional, mas uma ofensa à objetividade histórica [ . . . ] . Esta atitude só seria sustentável admitida a hipótese de que o fim da investigação científica não é a descoberta, mas simplesmente a busca da verdade, sem que jamais possamos encontrá-la [ . . . ] . [Uma hipótese] completamente impossível de ser defendida, pois a afirmação de que a verdade sobrenatural, ou sequer a simples verdade objetiva de qualquer espécie, está além do nosso alcance, é em si uma hipótese prévia . 1 1 1 1 Johann Peter Kirsch, "History" . ln: The Catholic Encyclopedia - Volume VII. New York, Robert Appleton Company, 1 9 1 0, p. 367. A Formação da C ristandade 1 Introdução à Ed ição Bras i le i ra Antes que o historiador católico precise se defender contra acusa ções de antipluralismo, em suma, ele tem o direito de exigir uma de fesa semelhante (se não um pedido de desculpas) de seus acusadores. É errôneo, portanto, imaginar a "história católica " como um pleito especial ou uma renúncia ao julgamento crítico. Neste cami nho, encontra-se a história mesquinha. Mais importante, neste ca minho encontra-se também o catolicismo mesquinho. No primeiro exemplo, o historiador acadêmico está "perfeitamente justificado" ao insistir em técnicas de crítica e pesquisa históricas. Sem estas coi sas, ele não é nada. O argumento de Dawson é de que eram insufi cientes, e não de que eram desnecessárias. Evidente, isto não resolve o dilema da lealdade cindida, mas o fortalece, ao deixar implícita a insuficiência de meios puramente históricos de entender a histó ria . Mas não faz mal algum à integridade profissional sugerir que a "verdade" pode estar em algum lugar para além do empirismo. O católico sustenta uma visão de mundo peculiar. Disto não decorre a impossibilidade do pluralismo: logicamente, na verdade, implica a sua necessidade. Sequer é razoável supor - como Charles Kingsley ( 1 8 1 9- 1 8 75 ) famosamente fez com John Henry Newman ( 1 801 - 1 890) - que o católico não se interessa pela verdade como tal. Pelo contrário, o católico revela seu catolicismo dizendo a verdade. Se até isto for posto em dúvida, então devemos concluir que nenhum diálo go é possível entre o que é sagrado e o que é secular. Tudo isto deveria ser óbvio, e se a "história católica " fosse, ape nas, a crônica de um povo e de sua fé, não haveria dificuldade em empregar os métodos convencionais para entendê-la . Estes métodos não são "positivistas" , são apenas aplicações da razão humana aos problemas concretos. Nem deveria a acusação de meta-história ser causa de alarma. Como lembra-nos o teólogo suíço Hans Urs von Balthasar ( 1 905- 1 9 8 8 ) , a busca do historiador é: Captar as coisas mediante uma divisão radical em dois elementos: o fático - que, como tal, é o " individuado" , sensível, concreto e casual - e o necessário e universal - cuja universalidade leva, por mais preparado que seja, o abstrato, essa lei e esse valor que partem do caso singular para regulá-lo superando-o. 1 2 48 l 49 Assim, qualquer afirmação histórica isolada contém uma afirma ção sobre a história mesma: só desta maneira se torna convincente . Do mesmo modo, o historiador que não generalizou, não disse abso lutamente nada. Ele compilou fatos erroneamente crendo que fatos falam por si mesmos. O particular e o universal não existem como elementos separados, mas são intimamente ligados em todos os mo mentos históricos. A questão das leis históricas surge daí. Entre a opi nião radical de que não existem leis históricas e a visão igualmente radical de que toda história é regida por leis, o historiador católico toma o caminho do meio. De um lado, a negação da lei histórica cai por contradição: afirmar que não há leis históricas é em si afirmar uma lei histórica . Mas apenas isto não justifica o historicismo empo lado de, digamos, G. W. F. Hegel ( 1 770- 1 83 1 ) ou Karl Marx ( 1 8 1 8- 1 8 83 ); pois qualquer esquema que tente entender o particular com uma elaborada arquitetura de " leis " ou " forças" comumente nega a própria particularidade que procura explicar. Será este, então, o problema característico da "história católica " ? Não. Explicar a contingência dentro da teleologia não é um problema peculiarmente católico. Mesmo historiadores que negam a finalidade enfrentam este problema: a antiteleologia deles é igualmente esque mática, o contingencialismo radical igualmente uma afirmação sobre a historicidade e, portanto, sobre a história mesma. O problema do historiador católico é, na verdade, o seu providencialismo. Ele deve 12 Hans Urs von Balthasar, A Theology of History. New York, Sheed and Ward, 1 963, p. 5 . [As passagens da obracitadas na versão original em por tuguês do artigo publicado em COMMUNIO serão substituídas no presente texto pelas equivalentes da tradução da obra em português, sendo informa das entra colchetes as páginas da seguinte edição brasileira: Hans Urs von Balthasar, Teologia da História. Trad. Claudio J. A. Rodrigues. São Paulo, Fonte Editorial, 2005, p. 12 . (N. T.) ] A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Ed ição Brasi le ira defender a ideia de criação, e também o propósito divino entrona do nela. Isto é possível, mas a confusão da história, muitas vezes, barra esse caminho. Pense no bispo Jacques Bossuet ( 1 627-1 704 ), cujo grande esquema de história universal "baseado nas Escrituras Sagradas" alcançou a harmonia somente ao preço das particularida des históricas. O resultado foi insatisfatório, não apenas do ponto de vista do historiador, como também do ponto de vista do teólogo. Ao destituir a contingência, da concretude do aqui-e-agora, ele destituiu a própria história, desta forma prejudicando seu próprio esquema incarnacional. Cristo, de fato, se tornou o Senhor da História, mas foi um reinado vazio, uma soberania sem sentido. Bossuet parecia encarar a história como um drama, cujo ato final já era conhecido, e a escrita da História como um ramo da apologética, que não tinha que prestar contas de coisa alguma. Sua teleologia requeria uma sa bedoria que era demasiado otimista e um determinismo que era por demais pessimista . É uma armadilha que ainda em nossos dias amea ça os incautos. Isto não é o mesmo que dizer que a história providencial é impos sível . Pelo contrário, tal leitura apresenta dificuldades precisamente porque é necessária. Sem o reconhecimento de que Cristo é o Senhor da História, de que toda história está resumida e ganha sentido na Encarnação, o historiador católico difere muito pouco do historia dor secular que procura escrever a história universal a partir de uma perspectiva puramente material. Mas se o católico vê a história como revelação de uma economia divina da salvação, então seu projeto se tornou teológico. Crucialmente, porém, isto não aniquila as normas ou métodos históricos. Como lembra-nos Balthasar: Nem se pode tratar de metafísica natural, de ética natural, de direito natural, de ciência histórica natural, como se não fosse Cristo a nor ma concreta do todo; nem tão pouco se pode estabelecer uma "du pla verdade" sem relação, segundo a qual os teólogos e os especialistas profanos investiguem sobre o mesmo objeto, sem que seus respectivos métodos se encontrem nem se cruzem jamais; nem tão pouco, por últi mo, se podem dissolver as ciências do mundo na teologia, como se esta fosse a única competente, porque Cristo é a exclusiva norma concreta . Precisamente porque Cristo é norma absolutamente irrepetível, seu pre sente é incomensurável com relação às normas interiores do mundo. 1 3 50 l 5 1 A tarefa do historiador católico não é, portanto, escrever " boa história" , quer de uma perspectiva católica ou não católica: é, em vez disso, decidir até que ponto seu projeto histórico é mais ou menos aberto às normas teológicas que ele reconhece ao reconhecer a pró pria catolicidade. Talvez o fracasso de Bossuet tenha sido o fracasso em distinguir com propriedade entre ambos, para prejuízo de ambos. Esses, portanto, são os problemas que o historiador galês Christopher Dawson apresenta . Mas para entender Dawson, o his toriador, precisamos entender Dawson, o homem. Os dois não exis tiam separadamente, mas eram integrados num nível profundo de sua personalidade. Mas, ainda assim, ele impõe exigências severas ao biógrafo, que deve compor uma história a partir dos insuficientes entusiasmos de erudição provinciana e de uma razoável obscuridade. A vida de Dawson é um estudo em anonimidade. Juventude passa da entre livros, Oxford, exígua existência em Exeter por um tempo, de volta a Yorkshire como um cavalheiro escritor, Harvard no final: dificilmente material para um Richard Hannay14 ou um Dornford Yates . 1 5 Mas uma vida tão solitária e tão resolutamente intelectual 1 3 Ibidem, p. 14 [p. 1 9] . 1 4 O major Sir Richard Hannay é um fictício agente secreto criado pelo ro mancista, historiador e estadista escocês John Buchan ( 1 8 75-1940) , primeiro barão Tweedsmuir. A inspiração de John Buchan na criação desta persona gem foi, em parte, o marechal Edmund Ironside ( 1 880- 1 959) , primeiro barão Ironside, que atuou como espião durante a segunda guerra dos bôeres, na África do Sul. (N. E. ) 1 5 Dornford Yates é o pseudônimo do romancista inglês Ceei) William Mercer ( 1 885-1 960), cujas estórias curtas e bem-humoradas, publicadas em revistas, se tornaram best-sellers no período entre as duas guerras mundiais. (N. E. ) A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Ed ição Brasi le i ra gera a sua própria evidência. Livros e artigos revelam os contornos de uma sensibilidade e as experiências que a formaram. Os escritos sozinhos proveem a autobiografia. Temos a sorte, também, de Chris tina Scott ( 1 922-200 1 ) ter-nos dado um relato soberbo sobre seu pai. Nele, ela registra as primeiras memórias de Dawson, de Hay-on-Wye e Yorkshire, de paisagens permeadas de história . Quando criança, ele "gostava da liberdade e da ausência de limites nos selvagens pân tanos do interior do país" , como se a imensidão vazia o ligasse ao mundo dos mitos e lendas. Aquele mundo mítico - "metade história e metade poesia" - formava uma paisagem de poderosa atração. Ele parecia enxergar nele: "A velha estrada que nos leva de volta não meramente por séculos, mas por milhares de anos; a estrada pela qual todas as pessoas viajaram e da qual os começos de todas as litera turas surgiram" . 16 Assim foi que ele veio a adquirir um "amor pela história" e um " interesse pelas diferenças entres culturas" . 1 7 Sua ima ginação era primariamente visual. A história não era uma abstração, mas uma coisa a ser vista, em igrejas e túmulos, na própria terra. Isto é certamente revelador. Ele se tornou um historiador visionário, ima ginativamente consciente dos grandes movimentos dos povos e das civilizações, porque começou como um historiador visual . Usando as palavras do poeta Thomas Hardy ( 1 840- 1 928 ) , "era um homem que costumava notar tais coisas" . 1 8 Nenhuma reflexão subsequente erradicou esta experiência da his tória como algo tangível. "O passado não morre" , ele gostava de dizer, citando Santo Agostinho. "Ele se incorpora na humanidade" . 1 9 Aqui estava um sentimento quase místico de que, em oposição às " leis da his tória" , que explicam ou obscurecem o passado, " sempre permanece um 1 6 Christina Scott, A Historian and His World, p. 27. 1 7 Ibidem, p. 1 5 . 1 8 No original: "he was a man who used to notice such things ". Thomas Hardy, Afterwards, verso 4. (N. T. ) 19 Christina Scott, A Historian and His World, p. 99. 52 l 53 irredutível elemento de mistério" .2° Começou no mundo imaginativo da infância e foi ligado a um poderoso intelecto que, ao explorar cone xões entre as paisagens e a história, também intuía uma relação entre tempo e eternidade. A carreira de Dawson em Oxford (praticamente autodidata ) refinou seu intelecto. Também o fez a sua conversão ao ca tolicismo, que deveu muito a um temperamento histórico cativado pelo drama do passado cristão, que se concretizou no presente cristão.2 1 De pois de Oxford, o pendor de sua mente se tornou mais contemplativo. "Eu [o] achei repleto de misticismo e de história" , escreveu seu amigo E. l. Watkin ( 1 888-1 981 ) , "ocupado com um ensaio sobre o significado religioso da história" . 22 Watkin continua afirmando que: "Ele encon tra, na revelação, a chave necessária para a interpretação da história " . Perceba a interação de duas ideias: a revelação por s i como doadora de sentido à história, a história mesma como parte de uma revelação que se desenrola no tempo. Dawsonjamais abandonou estas preocupações: por um lado, a relação entre cultura e religião, por outro lado, o papel da Revelação na história e o da história na Revelação. Desde The Age of the Gods [A Era dos Deuses] ,23 em 1 928, até The Gods of Revolution [Os Deu ses da Revolução] , 24 em 1 972, publicado dois anos após a sua mor te, tais obras constituíram o trabalho de uma vida. juntamente com 2° Christopher Dawson, The Historie Rea/ity of Christian Culture: A Way to the Renewal of Human Lifet. New York, Harper & Bros., 1 960, p. 1 8 . 2 1 Christina Scott, A Historian and His World, p. 63 . "Assim como Newman, sua abordagem do catolicismo era por meio da História. 'Os Padres da Igreja me fizeram católico', escreveu certa vez Newman [ . . . ] e, em outra ocasião, 'Ser profundo em História é deixar de ser protestante' [ . . . ] ou seja, a prova cumu- lativa do passado cristão o levou à plena aceitação do presente católico" . 22 Ibidem, p . 57. 21 Christopher Dawson, The Age of the Gods: A Study in the Origins of Culture in Pre-historic Europe and the Ancient East. London, J. Murray, 1 928 . 2 4 Idem, The Gods of Revolution. Intr. Arnold Toynbee. London, Sidgwick & Jackson, 1 972. A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Edição Brasi le i ra Lorde Acton, ele sustinha que a religião oferecia a chave da história. Nenhum outro princípio - econômico, social, cultural - igualava o seu poder explanatório. "Não importa o quão longe formos na his tória da raça, não podemos j amais encontrar uma época ou um lugar onde o homem não estivesse consciente da alma e de um poder divino do qual sua vida dependia " . 25 Além do mais, a religião era a chave para a cultura: uma cultura decaía na medida em que se secularizava. Dawson evitou a afirmação de que a simples longevidade era pro va de verdades religiosas. Nem sequer fundia a numinosidade - um vago impulso para a espiritualidade - com a religião propriamente dita . Mas a pura escala da experiência religiosa do homem o comovia grandemente; nas palavras de Dawson: " um poder maciço, objeti vo, não questionado, que entrou em tudo e imprimiu sua marca no mundo externo tanto quanto no interno" .26 Isto dava uma espécie de segurança de que, "não importa quão negro seja o panorama '' , há sentido na falta de sentido, ordem no caos. 27 Esta busca por um princípio histórico universal é evidente em tudo o que Dawson fez. Uma ideia - uma palavra - percorre a sua obra, como um leitmotiv: " unidade" . A escrita está banhada com lin guagem de harmonia e consonância, um senso sinfônico da história como uma dança para a música do tempo, requerendo uma melo dia abarcante para salvá-la da cacofonia. Veja Progress and Religion [Progresso e Religião] , de 1 929, seu livro mais importante, no qual escreve sobre tais coisas como: "A nação como uma unidade espi ritual [ . . . ] unidades [como ideias] culturais ditadas por condições materiais " ; "crença religiosa, uma fonte de desunião" após René Descartes ( 1 596- 1 650) ; "a unidade da cultura europeia restabelecida sobre a base da ciência internacional" no século XVIII; "necessidade 25 Idem, Religion and Culture. London, Sheed and Ward, 1 948, p. 4 1 . 26 Citado em Christina Scott, A Historian and His World, p. 15 . 2 7 Christopher Dawson, The Sword of the Spirit, p. 4 . 54 l 55 de unificação social e moral" na Europa contemporânea; " desunião intelectual e espiritual " desde a Reforma; "divórcio entre a religião e a vida social, fatal para a civilização" ; " Cristandade e unidade inter nacional" . Impossível não perceber o tema e suas variações. Por que a preocupação com a unidade ? Ela representava uma busca pelo princípio da integração. Sociedade e civilizações formam um todo integral: fazê-lo é de sua natureza. A história, também, deve ser coerente; de outra forma, o providencialismo é absurdo. E assim, um unificador (e unidades relacionadas ) deve ser encontrado. Quatro "unidades" preocupavam Dawson especialmente: aquelas da socie dade, da cultura, da Europa, e da civilização. Cada uma delas era importante. Juntas, formavam uma quinta unidade: a própria his tória. Como um esquema, isso possuía algo da confiança da grande corrente do Ser, aquela visão de mundo elisabetana onde cada objeto, do menor ao maior, encontrava o seu lugar. O esboço de Dawson era menos grandioso, mas igualmente confiante. Mas qual era o princípio unificador ? Dawson acreditava que a religião o supria : Todas as culturas vivas precisam possuir alguma dinâmica espiritual que forneça a energia necessária para aquele esforço social sustentado que é a civilização . Normalmente essa dinâmica é fornecida por uma religião, mas em circunstâncias excepcionais o impulso religioso pode se disfarçar em formas filosóficas ou políticas.28 Epigramático, erudito e sereno, o insight era típico. Ele provinha de três fontes - conhecimento da religião do mundo, uma habilidade de antropólogo para categorizar tipos e formas, e o reconhecimento da insuficiência de explicações não religiosas para o processo histó rico. Considere essas fontes por um instante. A erudição era extraor dinariamente ampla. Dawson estava à vontade, junto de Juliano, o Apóstata ( 3 3 1 -363 ) e de Santa Juliana de Norwich ( 1 342- 142 1 ) , com o evangelho de São Marcos e com o "evangelho" de Karl Marx. Ele 28 Idem, Progress and Religion, p. viii (p. 48 ] . A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Ed ição Brasi le ira podia ir dos xamãs da Sibéria aos índios Pueblo do Arizona, de Ísis e Osíris a Confúcio (55 1 -479 a .C . ) e Lao-Tsé. Há uma qualidade po límata em sua obra, que delicia tanto quanto desconcerta . Quanto à antropologia, ela era também abalizada. Dawson escreveu sobre to tens e totemismo, sobre cultos e culturas, sobre civilizações elevadas e inferiores, sobre religiões verdadeiras e falsas, com grande esmero. Certamente, ele percebia que as deficiências teóricas da antropologia, particularmente seu darwinismo acrítico e sua indiferença aos pro cessos efetivos de mudança histórica. Citando Maitland, ele pensava que "mais cedo ou mais tarde a antropologia teria que optar entre ser história ou não ser nada " . 29 Mas seus insights sobre a cultura primi tiva muito deviam à antropologia. E ela tinha outra utilidade. Ele via como a antropologia "debilitava suposições do Iluminismo de uma maneira importante - crenças 'primitivas' não podiam meramente ser descartadas como absurdas e irracionais, mas mostrou-se que possuí am um sentido profundo dentro de suas culturas particulares" . 30 Os críticos de Dawson chamavam-no de antirrelativista e até anti -histórico:3 1 considerando essas evidências, vê-se que não é o caso. A religião primitiva era uma censura importante àqueles que nega vam a espiritualidade do homem. Apesar de toda a sua "obscuri dade e aparente falta de lógica " ,32 possuía profundidade e riqueza psicológica, enquanto o racionalismo oferecia somente arrogância e 29 Ibidem, p. 50 [p. 1 02] . 3 0 James Hitchcock, " Christopher Dawson: A Reappraisal " , p. 1 12 . 3 1 Veja, por exemplo, Hayden White, "Religion, Culture and Western Civilization in Christopher Dawson" . English Miscellany, vol . 9, 1 958, p. 247-87. [O texto se encontra disponível, também, na seguinte coletânea de escritos do historiador norte-americano Hayden White, "Religion, Culture and Western Civilization in Christopher Dawson" . ln: The Fiction of Narrative: Essays on History, Literature, and Theory, 1 957-2007. Ed. e intr. Robert Doran. Baltimore, Johns Hopkins University Press, 2010, p. 23-49. (N. E.) ] 32 John J. Mulloy, " Christopher Dawson and a Christian Apologetic" . The Dawson Newsletter, outono, 1 987, p. 3 . 56 l 57 superficialidade: " Quanto mais alto [o racionalista) ergue sua torre de civilização, mais instável ela se torna, pois a natureza dele permanece essencialmente a mesma do homem primitivo" . 33Terei mais a dizer sobre o Iluminismo daqui a pouco. Retorne mos ao tema da unidade, particularmente a das sociedades humanas. Dawson sentia, fortemente, que a estabilidade de qualquer organiza ção humana derivava de sua identidade orgânica . Era um ser vivo. Possuía ritmo e sazonalidade. Crescia devagar. Respeitava as limita ções das geografias humana e física. Veja esta passagem de Progress and Religion, na qual Dawson examina a capacidade das cidades para perder contato econômico e vital com suas regiões: É esse processo de degeneração urbana que se constitui uma das maio res fontes de fraqueza da nossa moderna cultura europeia. Nossa ci vilização está se tornando disforme e moribumda porque perdeu suas raízes e não possui mais ritmo vital e equilíbrio. [ . . . ] Assim como uma civilização mecânica e industrial buscará eliminar todo desperdício dos movimentos no trabalho, de forma a tornar o operador o complemen to perfeito de sua máquina, uma civi lização vital fará que todas as fun ções e todos os atos percam sua graça vital e sua beleza. ( . . . ] Por que um corretor de bolsa é menos bonito do que um guerreiro homérico ou um sacerdote egípcio? Porque e le está menos incorporado à vida; ele não é inevitável, mas acidental, quase parasita. Quando uma cultura conhece suas reais necessidades e organiza suas funções vitais, todos os ofícios ficam bonitos. 34 Muito de Dawson está aqui: amplitude, senso estético, um óbvio antimodernismo, paixão moral. "A perfeição de uma cultura" , defen deu, é "medida por sua correspondência com seu ambiente" . 35 Era por isto, aliás, que a vida industrial urbana parecia tão falsa . " Sem 33 Christopher Dawson, Religion and Culture, p. 28 . Citado, também, em John j. Mulloy, "Christopher Dawson and a Christian Apologetic'' , p. 3 . 3 4 Christopher Dawson, Progress and Religion, p . 68 [p. 1 1 6- 1 7] . 3 5 Ibidem, p . x [p. 5 1 ] . A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Ed ição Brasi le i ra dúvida, o artesão medieval não possuía um alto padrão de vida" , escreveu Dawson, "mas ao menos compartilhava da vida orgânica da cidade. O abismo entre sua existência e aquela vivida pelo mineiro e pelo operário de tecelagem do final do século XVIII é quase tão pro fundo quanto aquele que separa a civilização da barbárie" .36 Isto era unidade no nível simples de uma cultura à vontade consigo mesma. Mas a unidade também tinha relação com continuidade e me mória coletiva, a história compartilhada e consciente de unidade espiri tual pela qual as grandes civilizações são conhecidas. A Europa exibia tal unidade, e Dawson devotou muitos de seus escritos a esse exame. Entender a Europa foi, de fato, a sua realização mais significativa . Mas o que era a Europa ? Mais, é certo, do que uma expressão geográfica: A Europa é uma comunidade de povos que compartilham de uma tra dição espiritual comum, que teve suas origens 3 mil anos atrás, no leste do Mediterrâneo, e que foi transmitida de época em época e de povo para povo até chegar a abarcar o mundo [ . . . ) O que chamamos " Europa " no sentido cultural é, na verdade, somente uma fase deste desenvolvimento cultural. 37 A Europa de Dawson era uma sociedade de povos regionalmente diversos, geograficamente misturados e historicamente variados. Mas não havia nada de frágil nessa diversidade, nem qualquer unidade meramente hipotética, encontrada numa variedade compartilhada. A unidade era algo substancial . Sua base era a igreja cristã . Não é trivialmente que se diz que a Igreja era a Europa e a Europa era a Igre ja . Aqui havia uma confraternidade, transcendendo divisões raciais e 36 Idem, Dynamics o( World History. Ed. John J. Mulloy. New York, Sheed and Ward, 1 957, p. 1 92. [A passagem da versão original em português do ar tigo publicado em COMM UNIO foi substituída por equivalente da tradução brasileira da obra, lançada posteriormente na seguinte edição: Christopher Dawson, Dinâmicas da História do Mundo. Ed., pref. , intr. e posf. John J. Mulloy; intr. Dermot Quinn; pref. e trad. Maurício G. Righi. São Paulo, É Realizações, 2010, p. 292. (N. T. ) ] 37 Idem, Understanding Europe, p. 32. 58 l 59 políticas, oferecendo, mesmo em seu declínio, a memória da unida de, a lembrança de uma cidadania comum. "O que fizemos com esta herança ? " , Dawson costumava perguntar. "Ao menos nós a tivemos. Ela tem sido parte de nossa carne e sangue, e das palavras de nossa própria língua " . 38 Este plangente anseio que os críticos ouviram em Dawson pode ser ouvido aqui, porém não como nostalgia, mas como um chamado à ação. Enquanto escrevia, ele viu ameaças à unidade europeia sob as formas da guerra, do totalitarismo e do materialismo. A redescoberta da identidade espiritual da Europa não era devaneio histórico, mas uma questão de urgente necessidade. O historiador galês prestou os reconhecimentos devidos às raízes gregas da Europa . Sem o platonismo e suas elaborações, a "Euro pa " como um ideal teria sido impossível. Mas, acima de tudo, foi o cristianismo que mudou a Europa, transformando um helenismo filosoficamente finito em uma cultura com extraordinários poderes de adaptação, expansão, autoconhecimento e capacidade para o infinito. A Encarnação foi tudo. A Revelação foi Revolução. Tanto o Orien te quanto o Ocidente foram transformados por esta . O estilo de tal transformação diferia em cada lugar. Sob a influência do neoplatonis mo, no Oriente a Encarnação foi reespiritualizada, fazendo a divin dade perder a carne que brevemente assumira. Influenciado por Santo Agostinho, no Ocidente a ordem espiritual se desenvolveu não como um princípio metafísico estático, mas como "uma força dinâmica mo ral e social" .39 Este insight agostiniano foi profundamente importante para a igreja cristã, e central para a compreensão que Dawson tinha do Ocidente. Através dele, a integridade do cristianismo como encar nacional foi preservada . Através dele, o mundo do Ser Finito podia ser compreendido, não como estático ou ilusório, mas como dinâmico e espiritualmente dirigido. Através dele, uma nova ordem social pôde se 38 Idem, Religion and the Rise of Western Culture: Gifford Lectures, 1 948- 1 949. London, Sheed and Ward, 1 950, p. 273 . 39 Idem, Progress and Religion, p. 1 64 [p. 202) . A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Edição Bras i le i ra erguer, baseada na " única cidadania verdadeira " , "a associação com a Igreja " .40 Santo Agostinho demonstrou, através de seu entendimento da Encarnação como um acontecimento no tempo e além do tempo, que Igreja e sacramento tornavam manifesto, na Terra, um mundo celeste do qual eram ao mesmo tempo antegozo e realização. Dawson acreditava que essa unidade espiritual chegara mais per to de ser atingida na Europa da Idade Média. O medievalismo tem uma importância tão grande em seus escritos - e na crítica deles - que é importante saber qual significado lhe dava. Talvez seja mais simples saber qual significado ele não lhe dava. Não era a perfeição, ou pa raíso na Terra, ou "algum padrão ideal [ . . . ] pelo qual as sociedades existentes possam ser julgadas '' ,41 ou mesmo especialmente agradá vel .42 Foi, no entanto, uma época na qual as implicações da unidade espiritual eram elaboradas e manifestadas na vida de uma socieda de. Na esfera secular, " um novo espírito democrático de irmandade e cooperação social começa a se sentir na Europa nessa época " , 43 junto com um crescimento nas atividades comunais e corporativas. Na esfera eclesiástica, a igreja se tornou responsável pela educação, pela arte, pela literatura, pelo cuidado dos pobres, pelo consolo dos moribundos: não como obrigações institucionais, mas como deveres que os homens sentiam ter para com os outros. Naturalmente, um 40 Ibidem, p. 166 [p. 203-04] . 41 Idem, The Historie Reality of Christian Culture, p. 14. 42 "A Europa medieval não possuía mais uma culturamaterial homogênea [ . . . ] . Era uma federação solta dos mais diversos tipos de raça e de cultura sob a hegemonia de uma tradição comum religiosa e eclesiástica. Isso explica as contradições e a desunião da cultura medieval - o contraste de sua crueldade e de sua caridade, de sua beleza e de sua sordidez, de sua vitalidade espiritual e de seu barbarismo material. Pois o elemento de uma cultura superior não surgiu naturalmente das tradições do organismo social em si, mas veio do exterior como um poder espiritual que teve que remoldar e transformar o material social no qual tentou se incorporar" ( Idem, Progress and Religion, p. 1 66 [p. 204] ) . 4 3 Ibidem, p. 1 67 [p . 205 ) . 60 l 6 1 ideal tão dominante poderia degenerar em teocracia. Mas a espiritua lidade medieval alegremente acolheu o ideal da irmandade cristã: veja os escritos de São Bernardo de Claraval ( 1 090- 1 1 5 3 ) , a vida de São Francisco de Assis ( 1 1 8 1 - 1226 ) . A separação entre fé e vida, ou entre o espiritual e o material, era evitada, " já que os dois mundos [haviam) se fundido na realidade viva da experiência prática " . São Francisco de Assis fez daquela fusão agostiniana, realidade; Santo Tomás de Aquino ( 1 225-1 274 ) lhe deu autoridade filosófica. Foi o Aquinate quem reconheceu a autonomia da razão natural na epistemologia, na ética e na política, precisamente porque ele reconhecia as implicações encarnacionais daquela autonomia . Dawson resumiu os insights do Doutor Angélico com afinidade e de forma sucinta : O homem ocupa uma posição única no universo [ . . . ] . Ele é o ponto no qual o mundo dos espíritos toca o mundo do sentido, e é por meio dele e nele que a criação materia l chega à inteligibilidade e torna-se iluminada e espiritualizada. [ . . . ] Portanto, a Encarnação não destrói nem se sobrepõe à natureza . Ela é análoga e complementar a ela, uma vez que restaura e estende a função natural do homem como elo de união entre os mundos materia l e espiritual .44 Este era o medievalismo que Dawson celebrava: uma época e um povo transformados pelo poder do Evangelho. Aqui, não havia um exercício em mera pietas, nenhum lamento por séculos perdidos. A importância daqueles séculos não "seria encontrada na ordem ex terna que eles criaram ou tentaram criar, mas na mudança interior que realizaram na alma do homem ocidental" . 45 O historiador galês amava o grande poema visionário de William Langland ( 1 332- 1 3 86 ) , Piers Plowman, achando-o "a última [ . . . ) e mais inflexível expres são do ideal medieval da unidade entre religião e cultura " . Perceba a 44 Ibidem, p. 1 75 [p. 2 1 0] . • 5 Idem, Religion and the Rise of Western Culture, p. 274. A Formação da C ristandade 1 Introdução à Edição Bras i le ira conclusão; a cultura não era engolida pela religião, mas, sim, trans formada por ela; a religião não era engolida pela cultura, mas a trans formava e transcendia, de modo que a própria Encarnação começa a ser entendida na e pela cultura, e não separadamente dela : Para Langland, o outro mundo está sempre presente em cada rela cionamento humano, e a vida cotidiana de todos os homens é orga nicamente ligada à vida da Igreja . Desta forma, cada estágio de vida da cristandade é uma vida cristã em sentido pleno - uma extensão da vida de Cristo na Terra . E a ordem sobrenatural da graça está fundada e enraizada na ordem natural e na vida comum da humanidade [ . . . ] Ele percebeu, com mais clareza do que os poetas e mais intensamente do que os filósofos, que a religião não era um modo particular de vida, mas o caminho de toda a vida, e que o amor divino que é "o líder do povo do paraíso de Deus" é também a lei da vida sobre a Terra.46 A eloquência de Langland é ricamente repercutida por seu expositor. Sugeri que há três fundamentos para a ênfase de Dawson na reli gião como a base da cultura. Até agora, examinamos dois: seu conhe cimento das religiões do mundo e sua habilidade em distinguir tipos e formas da crença religiosa ou semirreligiosa . Consideremos agora um terceiro: a insuficiência das explicações não religiosas dos processos históricos, especialmente aquelas propostas pelo pensamento ilumi nista e pós-iluminista . Dawson era um crítico excepcionalmente astuto do Iluminismo, primariamente porque as armas que empregava contra ele - um apelo à razão e à história - eram as do próprio Iluminismo. Sua objeção era a de que, como explicação do homem e de seu mundo, era não persuasiva, e que suplantava uma outra muito mais persua siva . Não seria difícil, na verdade, ver a " idade da razão" como uma época de múltiplas descontinuidades intelectuais. Vejamos algumas delas. Primeiro, veio o divórcio entre mente e corpo promovido por René Descartes, que acarretou uma celebração da razão independente da existência física, e da verdade como independente da experiência 46 Ibidem, p. 270-72. 62 l 63 ou da autoridade.47 Então, veio o divórcio entre indivíduo e "socie dade" , promovido pela teoria do contrato social, que substituiu as comunidades por Estados autoconscientes e criou pessoas reverentes por direitos, apenas, quando percebiam que os possuíam. E assim con tinuou. Thomas Hobbes ( 1 588-1 679) convocou o onipotente Estado para proteger "direitos" , e a proteção foi tão completa que os próprios direitos desapareceram. John Locke ( 1 632- 1 704) separou a pessoa do corpo, e a separação foi tão eficaz que o indivíduo se "possuiu" como a uma propriedade, presumivelmente diminuindo em pessoalidade, quando sofre amputações, perde um dente ou fica careca. Jean-Jacques Rousseau ( 1 712-1 778 ) separou a humanidade dos seres humanos, e o cisma foi tão amplo que a primeira veio a ser adorada, e os últimos, desprezados. Havia algo de radicalmente cindido em tudo isso, como se uma cultura ou uma maneira de pensar tivessem perdido a conexão com sua própria fonte. Dawson capturou brilhantemente este fenôme no. "O ideal abstrato de 'civilização"' , ele sugeriu, "tomou o lugar da tradição histórica da cultura europeia" [ . . . ] . Os "conceitos de razão, verdade e civilização" foram usados "como armas para atacar todas as verdades e para enfraquecer as fundações sobre as quais a [ . . . ] es trutura da cultura europeia se baseava" . 48 A divisão entre a Europa antes e depois do Iluminismo pode ser exagerada, mas um contraste revela a diferença. Considere o tomismo e o cartesianismo. O primeiro oferecia a divindade na contemplação de si mesma. O segundo oferecia a mente na contemplação de nada além de si mesma: uma decadência assustadora. Dawson sustentava, e com bons motivos, que existia somente uma pequena distância entre Descartes e a adoração irracional da racionalidade49 de Maximilien Robespierre ( 1 758-1 794) e o otimismo sombrio de Charles Darwin 47 Idem, Progress and Religion, p. 10 [p. 67-68 ] . 4 8 Idem, Understanding Europe, p. 1 92. 49 Arnold Toynbee, " lntroduction" . ln : Christopher Dawson, The Gods of Revolution, p. x. A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Ed ição Brasi le ira ( 1 809- 1 882 ) . Veja esta passagem memorável, na qual mostrou como o confiante ideal da perfectibilidade encontrava o seu quietus [quita ção] na seleção natural: Mesmo quando eram materialistas, os filósofos do século XVIII coloca vam o homem em uma categoria acima e distinta do resto da natureza, e hipostasiavam a razão humana em um princípio de desenvolvimento mundial. Mas a nova teoria evolucionista colocava o homem de volta à natureza e debitava seu desenvolvimento a uma operação mecânica das mesmas forças cegas que governavam o mundo material. [ . . . ] [ . . . ] Era uma lei do Progresso, porém a de um progresso cego e não ético, em que o sofrimento e a morte desempenhavam um papel maior do que a antevisão ou a cooperação. [ . . . ] [ . . . ] Assim, a razão cartesiana, que tinha entrado tão triunfalmente em suamissão de explicar para si a natureza e o homem por seu próprio poder desassistido, terminou em um tipo de suicídio racional tendo que se justificar.50 Uma frase chocante; e versátil também. O " suicídio racional" do cartesianismo não terminou com a Revolução Francesa ou com o darwinismo, mas se metastizou em novas formas que buscavam tor nar desnecessária a religião ou substituí-la por ideologias semirreli giosas . Uma delas foi o nacionalismo. Outra o liberalismo. Ambas eram perigosas. Quanto à primeira, Dawson viu como poderia ter minar num particularismo "mais dissolvente [da] tradição europeia do que a própria Revolução Francesa " .5 1 Quanto à segunda, pro duziu, em sua versão econômica, extremos de vileza e riqueza; em sua forma política, um incoerente erastianismo,52 que substituía o Estado confessional por um anticonfessional, oferecendo apenas a 5° Christopher Dawson, Progress and Religion, p. 1 8 , 22 [p. 74, 75, 77] . 51 Idem, Understanding Europe, p. 1 93 . 5 2 Referência à doutrina concebida pelo teólogo protestante e médico suí ço Thomas Lüber ( 1 524- 1583 ) , mais conhecido como Erastus. De acordo com Thomas Erastus, o Estado tem ascendência sobre a Igreja em assuntos eclesiásticos, o que justifica o controle governamental sobre a religião. (N. E. ) 64 l 65 moral convencional, porque a própria convenção havia se tornado o código moral. Dawson escreveu a crônica dessas patologias com a sombria inteligência de um homem que vê um acidente prestes a acontecer. Na medida em que abordava o seu próprio século, podia ver o impulso secular, a autoimolação secularista, galopar rumo à insanidade. No totalitarismo, atingiram o seu apogeu, quando os EStados tentaram "erradicar as raízes mesmas da liberdade espiri tual do homem e fazer da sociedade um mecanismo de funciona mento azeitado, planejado e controlado por 'especialistas' em nome da eficiência social " . 53 A alternativa liberal era pouco melhor. "Nós podemos ou permanecer na casa provisória da democracia liberal " , Dawson advertiu, " buscando desesperadamente manter o s mais ele vados padrões de vida econômica, que são a j ustificação principal da nossa cultura secularizada; ou podemos retornar à tradição so bre a qual a Europa foi fundada e nos dedicar à imensa tarefa de restaurar a cultura cristã " .54 Esta foi a sua recomendação final para o seu próprio mundo e para o nosso. Esta exposição da compreensão histórica de Dawson foi breve e talvez pobre também. Deveria nos incitar, porém, algumas refle xões mais amplas, tanto sobre sua visão da história quanto sobre a empreitada histórica católica em geral . Essencial a esta visão - algo já deve estar óbvio - era a religião: "o poder maciço, objetivo, não questionado, que entrou em tudo" e imprimiu sua marca em todas as coisas. Ora, isto é controverso, e os críticos de Dawson não tardaram em dizê-lo. Que forma tomam as críticas, e que poder têm? Deve mos distinguir duas objeções: a primeira resiste a qualquer princípio histórico unificador; a segunda resiste ao princípio particular, a reli gião, que Dawson abraça. A distinção é importante, mas largamente 53 Christopher Dawson, "Newman and the Sword of the Spirit" . ln: The Dawson Newsletter, primavera / verão, 1 9 9 1 , p. 1 3 . 5 4 Christopher Dawson, The Movement of World Revolution. London, Sheed and Ward, 1 959, p. 65 . A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Ed ição B rasi le ira ignorada pelos próprios críticos . Assim, se eles caem na primeira ca tegoria, tendem a renegar a meta-história, mas se traem numa auto contradição, o próprio argumento sendo meta-histórico; ou (caso se enquadrem na segunda ) negam a religião apenas para substituí-la por alguma criptorreligião de seu próprio cunho, mais comumente o humanismo secular. No entanto, examinemos essas críticas gêmeas mais de perto. Vej amos de novo o princípio unificador de Dawson. Todas as cul turas vivas precisam possuir alguma dinâmica espiritual, afirma, normalmente suprida por uma religião. Em circunstâncias excepcio nais, no entanto, o impulso religioso pode se disfarçar sob formas filosóficas ou políticas. Pode haver dois tipos de circularidade aqui. De um lado, se Dawson está de fato embebido na história da reli gião, pode ser o caso que ele exagere a sua importância para a his tória; tudo visto por daquele prisma é, por ele, distorcido. Por outro lado, isso parece habilitá-lo a afirmar que certas ideologias, talvez, sej am religiões bastardas (e abertas a críticas como tais ) , enquanto ao mesmo tempo preserva a religião propriamente dita da acusação de ser uma ideologia bastarda . Essas dificuldades não são triviais: não são, porém, intransponíveis . A primeira se responde a si mesma . Que a especialização sej a prova de uma compreensão desproporcionada é uma ideia estranha e, na verdade, uma ideia circular. Dawson enfatizou a importância da religião, na história, não porque estava imerso nela: ele estava imerso nela porque era importante . A segunda crítica, entretanto, pede um exame mais cuidadoso. Talvez sua versão mais sofistica da tenha sido oferecida em 1 95 8 pelo historiador norte-americano Hayden White . A partir de cinco bases, White contestou todo o pro jeto de Dawson. Primeiramente, o historiador norte-americano afir mou que Dawson estava indisposto a admitir que a dialética históri ca possa continuar para além do ponto alcançado pelo cristianismo num dado estágio do seu desenvolvimento. Como numa primeira 66 l 67 versão de Francis Fukuyama e de sua escola do " fim da história " , Dawson oferecia a Igreja católica medieval como a única portadora de tudo o que havia de genuinamente espiritual no Ocidente : de pois disso, a história "parou " ou entrou em declínio.55 Uma variante disso é o argumento de que a construção de tipos sociológicos de Dawson era falha. " Para ele " , argumenta White, " uma civilização pode ser considerada sadia apenas se e quando se conforma a um tipo que existiu num dado tempo e num dado espaço [ . . . ] Aquelas que não desenvolveram [ . . . ] uma casta sacerdotal, ele as chama pri mitivas; aquelas que rejeitaram a sua, as chama de decadentes" .56 A segunda objeção de White é a de que "a sociologia da cultura de Dawson não o é de forma alguma, mas, sim, uma sociologia da religião " .57 A terceira é a de que o esquema de Dawson (precisamen te, ao que parece, por ser esquemático) fracassa em " fazer j ustiça à multiplicidade da criatividade humana " . 58 A quarta objeção é a de que Dawson nega qualquer valor positivo à cultura secular. Por fim, argumenta que Dawson é, de fato, anti-histórico, defendendo como defende que alguns " insights sobre a cena histórica requerem formas especiais de entendimento" ,59 pelo que ele queria dizer, sim plesmente, que apenas os católicos podiam entender o verdadeiro significado da história europeia. O que concluir disso ? Parece uma avaliação sóbria, escrupulosa tanto no método quanto nas razões. Na verdade, muito dela está erra do, e chega ao ponto do desatino. Parte dessa avaliação, certamente, não deve ser levada muito a sério. Sugerir que a sociologia da cultura de Dawson nada mais é do que uma sociologia da religião parece 55 Hayden White, "Religion, Culture and Western Civilization in Christopher Dawson'' , p. 277. 56 Ibidem, p. 278. 57 Ibidem, p. 278. 58 Ibidem, p. 2 8 1 . 5 9 Ibidem, p . 285. A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Edição Brasi le i ra ser uma interpretação totalmente errada. O mesmo acontece com o argumento de que Dawson fracassa em reconhecer a multiplicidade da criatividade humana ou - no fim das contas é a mesma coisa - ten de a depreciar a cultura secular. Um passar de olhos sobre Progress and Religion, talvez, sugira o contrário. Fundir um esquema histórico unificado com a múltipla diversidade da história é um erro de cate gorização que Dawson não cometeu, e no qual o próprioWhite caiu. Igualmente curiosa é a alegação de que Dawson " fetichizou" o me dievalismo, como se sua obra fosse um longo lamento por um Éden perdido. Mas Cristo foi o Senhor de toda história. Se história e cul tura são, de fato, encarnacionais, então aquele tipo de anseio é uma espécie de desespero. Afinal, a nostalgia é apenas um maniqueísmo choroso. Seu desejo por um mundo perdido é um desprezo pelas coi sas do mundo, uma aversão ao contemporâneo, porque uma aversão à própria temporalidade. O Cristo que entrou na história, entrou em toda ela. "Nós vemos de novo" , escreveu Dawson, "o milagre da cria tividade divina e uma nova colheita espiritual surgindo do velho solo da natureza humana" .60 Ele não era um nostálgico. Condenava o cul to do progresso como uma perversão da perfectibilidade iluminista, porque o via como é na verdade: maniqueísmo sob outro disfarce - desgosto pelo aqui e agora, exprimido como um desejo pelo futuro em vez de pelo passado. Dawson não desejava o passado por des prezar o presente. Imaginar que ele o encarava como um museu que habitamos como forma de fuga do mundo é entender mal a noção que Dawson tinha da história . Mas White cai no desatino, e não só no erro. A pose de neutra lidade acadêmica esconde um desacordo altamente partidário com a obra de Dawson, particularmente pelo seu catolicismo. "É muito di fícil para qualquer pessoa que não sej a católica " , White cita Dawson argumentando, "entender o significado pleno da" história europeia, 6° Christopher Dawson, The Historie Reality of Christian Culture, p. 14. 68 l 69 significado pleno, envolvendo uma verdade que requer, não uma ha bilidade humana ou histórica, mas uma revelação epistemológica es pecial . A lógica é fraca. "Muito difícil " não é o mesmo que " impossí vel " : pelo contrário, implica possibilidade. Além disso, é claro que é White, e não Dawson, quem exige privilégios epistemológicos. Veja a pejoração, uma paródia do cientificismo secular: Se sociedades antigas pareciam melhor aj ustadas ou mais harmo niosas, era porque a Igreja e os Estados agiam conj untamente para destruir a responsabilidade individual, em vez de de encorajá- la . Para o bem ou para o mal, a ciência moderna rompeu com essas antigas coerções e ofereceu ao homem a responsabilidade por tudo o que ele faz. A religião deve oferecer, como a ciência, a filosofia, uma verdade que admite a possibilidade de revisão. [Então] , não terá necessidade de sedativos . 6 1 Mas isso é incoerente . A própria história é absolutizada, ganha uma autoridade que não pode possuir. O julgamento histórico é vis to como de algum modo autoafirmativo, dispensando outros argu mentos ou provas. Da mesma forma que a moralidade convencional fracassa - porque a própria convenção se torna o código moral -, também a compreensão histórica informada apelar por uma "his tória" absolutizada não é compreensão de maneira alguma. Para adotar a terminologia do próprio crítico, torna-se uma verdade que não admite possibilidade de revisão, uma espécie de historicismo se abrindo para um quarto vazio. Cria o passado como sanção ou norma, mas não fornece nenhum fundamento além de si mesmo para fazê-lo. O historicista que defende a invencível "preteridade " do passado torna insignificante qualquer j ulgamento - mesmo aque le julgamento que se dá ao trabalho de fazer sobre o passado mes mo. Se o passado é um país estrangeiro, se eles, realmente, fazem as 6 1 Hayden White, "Religion, Culture and Western Civilization in Christopher Dawson", p. 283. A Formação da C ristandade 1 Introdução à Edição Brasi le i ra coisas de modo diferente por lá,62 o historiador não pode saber ou mesmo saber que não pode saber. A segunda acusação de circularidade assim fracassa da mesma forma que a primeira . Dawson não inventa a religião como chave dos processos históricos, e então descobre a religião bastarda - a ideo logia - como prova da alegação anterior. Pelo contrário, ele é cuida doso na definição de ambas, e nas evidências que delas oferece; mais cuidadoso do que seus críticos. Além disso, a noção de Dawson sobre a religião na História é mais sutil do que a deles. Não é o "elemento que tudo explica" de alguma teleologia determinista - servindo a fun ção para o religioso que a economia (digamos) serve para o marxista ou a libido para o freudiano. Se a história é encarnacional, então é carregada de religião de um modo inteiramente diferente; e noções de passado, presente e futuro são obliteradas na realidade central de Cristo, alfa e ômega, que é Senhor de toda a História . E então nos aproximamos do cerne da questão. Dawson gostava de citar o estadista e escritor irlandês Edmund Burke ( 1729-1797) so bre a vacuidade do historicismo. "Burke escreveu com muita verdade e fineza", disse, "que as assim chamadas leis da história, que tentam subordinar o futuro a alguma espécie de determinismo histórico, são apenas as combinações da mente humana. Sempre resta um elemento irredutível de mistério". 63 O argumento é sólido. Na medida em que os sistemas se expandem, paradoxalmente se contraem: a tentativa 62 Referência à sentença "The past is a foreign country: they do things differently there" [O passado é um país estrangeiro: eles fazem as coisas de modo di ferente por lá} . Esta é a famosa frase inicial do romance The Go-Between [O Mensageiro] do escritor britânico Leslie Poles Hartley ( 1 895-1 972), publi cado, originalmente, em 1 953. O livro foi adaptado por Harold Pinter ( 1 930- 2008) como roteiro do premiado filme homônimo, lançado em 1 971 , com direção de Joseph Losey ( 1 909-1 984) e estrelado, dentre outros, pelos atores Julie Christie, Edward Fox, Alan Bates ( 1 934-2003 ), Margaret Leighton ( 1 922- 1 976 ) e Michael Redgrave ( 1 908- 1 985) . (N. E.) 63 Christopher Dawson, The Historie Reality of Christian Culture, p. 1 8 . 70 l 7 1 de explicar tudo termina por não explicar nada. Mas onde isso dei xa o próprio Dawson? Não se pode objetar à sua própria busca por um princípio unificador? Não inteiramente. O elemento irredutível de mistério que zombava das pretensões dos deterministas - e que, também, se tornou um perigoso gnosticismo para os antideterminis tas - tornou-se para ele uma espécie de epifania: "Para o cristão, o mistério da história não é totalmente obscuro, já que é um véu que esconde, apenas parcialmente, a atividade criativa das forças espiri tuais e a operação das leis espirituais".64 Hans Urs von Balthasar oferece um insight semelhante, ao defen der que qualquer tentativa de interpretar a história como um todo, para não sucumbir ao mito gnóstico, deve "designar como núcleo e norma de toda historicidade" algum sujeito que trabalha em e se reve la capaz de prover normas gerais. Tanto para o teólogo suíço quanto para o historiador galês, aquele sujeito é Cristo, cuja vida "se faz nor ma de toda vida histórica e, com isso, de toda a história em geral " . 65 Assim, começamos a entender mais completamente a visão de Dawson. Era formada por aquele sentimento agostiniano do passado, não morto, mas incorporado no todo da humanidade. Num certo nível, parece um clamor pela meta-história, um simples reconhecimento de que o histo riador católico necessariamente faz as coisas de um modo diferente: Enquanto o historiador secular não está comprometido, de forma algu ma, com as culturas do passado, o católico, e de fato todo cristão, está obrigado a reconhecer a existência de um elemento supratemporal trans cendente que age na história. A Igreja existe na história, mas a transcende de modo que cada uma de suas manifestações temporais possui um valor e um significado sobrenaturais. Para o católico, todas as eras sucessivas da Igreja e todas as formas da cultura cristã formam parte de uma unida de vivente, na qual ainda participamos como de uma realidade vivente.66 64 Ibidem, p. 1 8 . 65 Hans Urs von Balthasar, A Theologyof History, p. 2 1 [p. 24] . 66 Christopher Dawson, The Historie Reality of Christian Culture, p. 58 . A Formação da C ristandade 1 I ntrodução à Edição Brasi le ira Mas há mais nesta transcendência do que se percebe à primeira vista . A noção de que a história não é completa, de que participamos dela e de que somos criativamente transformados por ela, é tão teoló gica quanto é histórica, embora não menos histórica por ser teológi ca. Como diz memoravelmente Balthasar, "os destinos de todos estão entrelaçados; até que haja vivido o último, não está claro definitiva mente qual foi o sentido do primeiro" .67 Para Dawson, também, a "comunhão dos santos" era efetiva, e não abstrata . E enquanto parti cipamos da história, participamos no Cristo que entrou na história e é senhor dela . Mas entenda bem o que isto significa. O Cristo histórico é a norma de toda história não simplesmente porque é Cristo, mas porque ele é histórico. A historicidade - o efetivo, o concreto, o par ticular - não é obliterada, mas ganha Nele um novo sentido, exposto por Balthasar com as seguintes palavras: Ao interpretar o sentido da história, nas duas direções, desde o cum primento, [o Cristo] realiza no meio da história um ato que abarca toda a história: enquanto que o éschaton (extremidade) da história está presente em seu centro, e desvela em um kairós (oportunidade) plenamente histórico o sentido de cada kairós.68 Mas como Dawson nos lembra, " Deus não somente governa a história, Ele intervém na história como um agente " .69 Ele é Senhor da História, mas também senhor na história . Assim, Balthasar res salta que a " plenitude última de sentido da história em Cristo não pode se entender como se os seres naturais prescindissem de um eidos próprio imanente e só o possuíssem em Cristo" , pois de ou tro modo " não se poderia tampouco sustentar que Deus se tivesse tornado verdadeiramente homem e história " . 70 A lógica da história 67 Hans Urs von Balthasar, A Theology of History, p. 73 [p. 60] . 68 Ibidem, p. 86 [p. 67] . 6 9 Christopher Dawson, The Sword of the Spirit, p. 4 . 70 Hans Urs von Balthasar, A Theology of History, p. 1 12 [p. 84] . 72 1 73 não é suspendida pelo Cristo, mas reconhecida no ato mesmo de Ele, por intermédio da Encarnação, tornar-se histórico. Assim terminamos, como começamos, num paradoxo. Mas alguns paradoxos são mais valiosos do que outros. Os enigmas de Christo pher Dawson são, apenas, os enigmas de qualquer vida razoavelmente complexa. Rusticidade e urbanidade, companheirismo e solidão, conti nuidade e mudança, na verdade, formam um todo perfeitamente bom. Dawson, o historiador, oferece desafios mais impressionantes - ao inte lecto, à imaginação, e mesmo à alma. A medida de suas realizações não deve ser procurada no peso de seus livros ou artigos, bem como em sua erudição, por mais formidáveis e duradouramente importantes que se jam. Deve, ao invés, ser encontrada numa escala de tipo diferente. O his toriador galês propôs um paradoxo real, e não trivial, e o explorou com habilidade consumada: que para uma fé histórica o passado é tudo, mas, noutro sentido, não existe de forma alguma, estando ligado ao presente e ao futuro, no mundo que é e no que está por ser. Suas leis são humanas, mas também divinamente inspiradas; seu sentido acessível à razão, mas também irredutivelmente misterioso. Tal era a visão e a fé de Christopher Dawson: tal deve ser a visão de todos os historiadores católicos. Dermot Quinn Professor e diretor do Departamento de História da Seton Hall University, em South Orange, New Jersey, nos EUA; diretor do G. K. Chesterton Institute for Faith and Culture e membro do Conselho Editorial do periódico The Chesterton Review. Cursou B.A. em História no Trinity College, na University of Dublin, na Irlanda, e o PhD em Filosofia na University of Oxford, na Inglaterra. Tem escrito diversos artigos sobre o pensamento social de G. K. Chesterton e de Christopher Dawson para diferen tes periódicos. É autor dos livros Patronage and Piety: Eng/ish Roman Catholics and Politics, 1 850- 1 900 (Stanford University Press, 1 993 ), Understanding Northern Ire land (Baseline Books, 1 993) e The Irish in New Jersey: Four Centuries of American Life (Rutgers University Press, 2004) . Escreveu o estudo introdutório para a nova edição do livro Dynamics of World History ( ISI Books, 2002) de Christopher Dawson, obra lançada no Brasil com o título Dinâmicas da História do Mundo (É Realizações, 2010) . 1 7 5 N o t a s o b r e a Tra d u ç ã o MÁRCIA XAVIER DE BRITO Christopher Dawson foi um dos últimos grandes intelectuais ge neralistas. Dono de uma erudição impressionante, fruto de uma vida dedicada aos estudos, debruçou-se sobre a história da cultura e da civilização ocidental sem as restrições limitantes da vida acadêmica profissional. Poder oferecer ao leitor de língua portuguesa mais uma obra-prima desse grande historiador é uma honra para qualquer tra dutor, mas a missão ganha sabor especial caso o tradutor sej a um apaixonado pela história, como no meu caso. O presente livro, fruto de conferências na Universidade de Harvard, por ser uma coletânea de palestras ministradas em datas di ferentes e tomadas como unidades autônomas, nem sempre apresen ta, em todos os textos, a mesma precisão na grafia de nomes, locais e na referência às fontes das citações. Até onde foi possível, na presente tradução procurei preencher essa lacuna para o leitor. Ao lidar com as inúmeras personagens históricas que surgem ao longo do texto, deparei-me com alguns desafios . Muitas vezes, este era, simplesmente, saber de quem se tratava visto a grafia an glicizada do nome, por ter a personalidade diversos homônimos ( alguns contemporâneos ) , ou por erro de grafia (o que ocorreu por que muitos dos textos foram ditados, posteriormente, por Dawson com base nas notas das palestras, pois já estava doente ao preparar o presente livro ) . Nesta tradução, tomei como padrão grafar as personagens citadas, sempre que aparecem pela primeira vez, pelos A Formação da C ristandade 1 Nota sobre a Tradução nomes completos e da maneira como, em geral, são conhecidas nas obras históricas no Brasil . Também tomei o cuidado de, nessa pri meira citação, fazer constar, entre parênteses, as respectivas datas de nascimento e morte das figuras históricas, uniformizando todos os capítulos do livro e facilitando a compreensão cronológica dos acontecimentos. Graças ao advento da internet e ao privilégio de ter podido rea lizar este trabalho na biblioteca do Russell Kirk Center for Cultural Renewal, em Mecosta, Michigan, nos EUA, tive a possibilidade de re tornar a algumas das fontes de Dawson. Por isso, várias citações que no original em inglês aparecem sem referência, ganharam indicação bibliográfica ao longo do presente texto. Algumas citações parafra seadas por Dawson por motivo de oralidade, visto que inseridas em palestras, foram restauradas à literalidade das fontes, o que confe riu maior precisão acadêmica ao texto. Nesse trabalho de pesquisa, pude acrescentar, quando necessário, observações sobre descobertas históricas e arqueológicas mais recentes, atualizando os dados ou confirmando suspeitas de Dawson, além de indicar, quando existente, as obras disponíveis em português, todas devidamente identificadas com (N. T. ) . Nas citações bíblicas, utilizei como referência a Bíblia de Jerusalém ( São Paulo, Paulus, 1 995 ) . Assim como nos nomes, o problema de erro de grafia também surge nas passagens em que Dawson cita alguma língua estrangeira, como os trechos em latim, francês e italiano. Neste particular, agra deço ao amigo e mestre Carlos Nougué por elaborar as traduções do latim, corrigir o meu francês, bem como pela "supervisão" nas tradu ções poéticas. Igualmente agradeço ao meu brilhante afilhado, Vitor Pimentel Pereira, pela tradução "emergencial" de um trecho legislativo em latim e ao amigo Fábio Wagner por ter esclarecido algumas dúvidas sobre o cristianismo oriental . Pela paciente leitura técnica da tradução e por ter colaborado, com sua vasta erudição, na solução de dúvidas sobre alguns detalhes históricos, filosóficos e teológicos, bem 76 l 77 como pela ajuda na cuidadosa elaboração do índice remissivo, sou muitíssimo grata ao meu "companheiro de viagem" , Alex Catharino. Gostaria de agradecer, também, a Annette Kirk, presidente do Russell Kirk Center for Cultura Renewal pela oportunidade de pesqui sar na Biblioteca do Centro e pelo carinho de apresentar-me a diversos estudiosos de Dawson, com os quais pude manter contato durante a tradução, como o Prof. Dr. Bradley Birzer (autor de uma biografia de Dawson e do prefácio à edição brasileira de A Formação da Cris tandade) e o Prof. Dr. Joseph Stuart (autor de uma tese de doutorado sobre Dawson e da apresentação à edição brasileira de Progresso e Religião) , a quem sou muito grata pela elucidativa e longa conversa sobre Dawson, numa agradável noite em Piety Hill. Não poderia deixar de agradecer ao meu editor, Edson Manoel de Oliveira Filho, pelo belíssimo trabalho de unir, no catálogo de sua editora, cultura, religião e arte, oferecendo, aos leitores de língua por tuguesa, uma visão única do melhor que j á foi produzido nessas áreas do conhecimento humano. Mecosta, MI - Inverno de 2014 Márcia Xavier de Brito Vice-presidente de Relações Institucionais do Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista (CIEEP), editora responsável do periódico COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura, e pesquisadora do Russell Kirk Center for Cultural Renewal. Cursou a Faculdade de Direito na Universidade do Estado do Rio de janeiro (UERJ) e a pós-graduação de Tradução de Inglês na Universida de Gama Filho (UGF). Dentre outros trabalhos como tradutora há mais de quinze anos, destacamos as traduções para a editora É Realizações dos livros A Era de T. S. Eliot: A Imaginação Moral do Século XX e A Política da Prudência, de Russell Kirk, e A Formação da Cristandade e A Divisão da Cristandade, de Christopher Dawson. A FORMAÇÃO DA CRISTANDADE l 8 1 N o t a d o A u t o r Como primeiro ocupante da cátedra Charles Chauncey Stillman de Estudos Católico-romanos em Harvard, de 1 958 a 1 962, escolhi o tema CRISTANDADE. As palestras naturalmente se dividiram em três grupos - a formação da Cristandade, a divisão da Cristandade e o retorno à unidade cristã . O segundo grupo, que cobre o período da Reforma Protestante à Revolução Francesa, foi publicado em 1 965 no livro A Divisão da Cristandade. O presente livro contém todas as palestras do primeiro grupo e trata da formação da cristandade, das origens na tradição judaico-cristã até a ascensão e queda da unidade medieval . PARTE 1 A p r e s e n t a ç ã o l 85 C a p í t u l o 1 1 I n t r o d u ç ã o a o P r e s e n t e E s t u d o Esta cátedra é uma criação recente e, até agora, o estudo do ca tolicismo romano não teve espaço algum no currículo da Harvard Divinity School. É fácil compreender as razões históricas disso. O Harvard College foi uma das primeiras instituições desta nação, assim, desde sua fundação até a independência dos Estados Unidos foi, em essência, uma instituição protestante, intimamente ligada à igreja de Massachusetts e à tradição da teologia puritana e calvinista . Quando a Faculdade de Teologia foi fundada, no início do século XIX, refletia as mudanças religiosas que ocorreram na Nova Inglater ra desde a independência e descobrira expressão intelectual no movi mento unitarista, que teve origem em Boston no final do século XVIII. Este foi, essencialmente, um movimento liberal que buscou ampliar e liberalizar os estudos teológicos, mas, é claro, seu liberalismo não ia tão longe a ponto de alcançar o catolicismo. É verdade que William Ellery Channing ( 1 780-1 842 ) , talvez a principal influência no início da Faculdade de Teologia, foi um defensor do catolicismo, mas a sua concepção de "cristandade católica" (para usar a expressão por ele cunhada ) estava mais distante do catolicismo histórico que mesmo a ortodoxia calvinista contra a qual lutava. Ao longo do século XIX, o vínculo entre a Faculdade de Teolo gia e a igrej a unitarista aos poucos foi diminuindo até se tornar, à época do reitor Charles William Eliot ( 1 834- 1 926 ) , simplesmente, uma faculdade não sectária de estudos históricos e científicos sobre A Formação da C ristandade 1 Capítulo 1 religião. Nesse caso, não havia mais motivos para excluir o estudo daquela forma de cristianismo que ocupa o primeiro lugar em ex tensão, antiguidade e número de membros. Na ocasião, contudo, tal acréscimo era inconcebível. Caso venhamos a ler o discurso do reitor Eliot sobre a religião dos Pais da Pátria, proferido em 1 909, no curso de verão da Faculdade de Teologia, veremos que Eliot ti nha pouquíssimo interesse no cristianismo como realidade históri ca ou como estudo teológico, mas, antes, identificava religião e cul tura com a crescente preocupação ética de progresso social e saúde pública, de modo que o médico e o inspetor sanitário tomariam o lugar do presbítero ou do bispo como portadores e representantes de uma nova ordem. Estou longe de querer depreciar a importância da questão cul tural - é exatamente o assunto que mais me interessa -, mas estou certo de que essa não é a abordagem correta . Caso fosse, a Faculdade de Teologia deveria fechar as portas e todos deveríamos ingressar na faculdade de Medicina ou de Saúde Pública. A teologia deve ser soberana em sua casa. É um campo de estu do autônomo que não pode ser reduzido ao departamento de ética social, da mesma forma que a Igreja não pode ser reduzida a uma instituição filantrópica. Desde os dias de Eliot há um amplo reco nhecimento dessa realidade e um movimento genuíno de retorno à teologia e a uma nova compreensão do significado de Igreja . Esse movimento é comum a protestantes e católicos e, não há dúvidas, é o grande responsável pelo progresso do movimento ecumênico e o crescente interesse no problema da reconciliação cristã : movimento e interesse que estão destinados a se tornarem ainda maiores nos pró ximos anos. É impossível ir muito adiante nessas questões sem algum estudo do catolicismo, pois a existência da Igreja Católica é uma das grandes realidades objetivas da história . Sem ela é impossível escrever a história do cristianismo, e é igualmente impossível compreender a história de nossa civilização, j á que o catolicismo é uma das maiores 86 l 87 forças formadoras da história e deixou sua marca em muitas das ins tituições características da civilização ocidental . Tal predominância cultural é devida, acima de tudo, ao fato de a Igreja Católica ter sido a responsável pela conversão da Europa Setentrional ao cristianismo e foi dessa igreja que os povos do Norte receberam os fundamentos da nova civilização que continuariam a desenvolver, durante séculos, sob influência católica. Por outro lado, contudo, devemos reconhecer que ao longo dos últimos quatro sécu los, desde a Reforma, tem sido cada vez mais difícil perceber os valo res comuns dessa herança cultural . O fato do catolicismo estar pro fundamente imiscuído na história e na cultura europeia do passado se tornou fonte de antagonismo, e não de unidade, já que os protestan tes, em especial, os calvinistas e puritanos da Inglaterra e dos Estados Unidos, vieram a considerar todo o passado cristão de um milênio como uma idade das trevas de superstição religiosa e idolatria, de barbarismo cultural, de onde emergiram as igrejas reformadas. Assim, cresceu um forte antagonismo cultural, bem como uma oposição religiosa entre as duas metades da dividida cristandade. Cada vez mais as diferenças se fundiram com as divisões nacionais e políticas, de modo que católicos e protestantes não falavammais a mesma língua ou pertenciam ao mesmo universo social . Tal tendência de fusões das divisões religiosas e culturais não era um fenômeno novo na história cristã . Os grandes cismas da Igreja antiga tendiam, mais uma vez, a seguir os caminhos da raça, da língua e da naciona lidade. O cisma, por exemplo, entre catolicismo e monofisismo foi parte de uma cisão entre o Oriente e o Ocidente, entre o Império Romano do Oriente e os súditos sírios e egípcios. Do mesmo modo, o cisma entre o Ocidente católico e o Oriente ortodoxo na Idade Média foi o resultado de uma crescente alienação cultural e social entre os súditos do Império Bizantino e os novos povos do Ocidente. Em mudanças religiosas como essas, o elemento de responsabili dade individual é pequeno, às vezes, infinitesimal. Ao admitir tudo o A Formação da C ristandade 1 Capítulo 1 que os Padres da Igreja nos séculos III e IV e tudo o que os teólogos posteriores disseram a respeito do cisma e da heresia como os maiores dos males; ao admitir que em todo o verdadeiro cisma e heresia al guns homens devem ser responsabilizados individualmente, é fato que homens e mulheres comuns, dificilmente, têm alguma parcela dessa culpa. Imperadores, reis e bispos tomaram decisões e os súditos não sabiam nada além de que tal decisão tinha sido tomada . Eram corpo ralmente arrebatados, numa espécie de esmagadora maioria sociorre ligiosa que mudava as relações eclesiásticas com o restante do mundo cristão, sem que eles mudassem as próprias crenças ou tradições. Isso também era verdade, num grau mais elevado do que esta mos dispostos a admitir, para as mudanças que se seguiram à Re forma. O novo mapa eclesiástico da Europa era obra não dos re formadores, mas de políticos e soldados, e o resultado do conflito traçou uma divisão cultural bem nítida entre o Norte protestante e o Sul católico. E foi diante desse cenário de divisão cultural europeia que foram forjados os padrões religiosos predominantes do Novo Mundo. A protestante América do Norte e a católica América do Sul eram dois mundos diferentes que tinham muito pouco em comum. A possibilidade, portanto, de um debate religioso proveitoso entre um professor de Harvard e um professor da Universidade de San Marcos no Peru, no século XVII, era inconcebível, apesar dos siste mas educacionais partilharem inúmeras características comuns. Apenas no século XIX tal estado de separação e de falta de comu nicação chegou ao fim, sobretudo nos Estados Unidos, que numa épo ca de grande imigração se tornou um "crisol de raças" e um ponto de encontro de diversas religiões. Em nenhum outro lugar os resultados foram mais notáveis do que na Nova Inglaterra, pois foi nessa região que a tradição protestante norte-americana mais se desenvolveu, do minando a cultura e as instituições de modo mais intenso. Não obs tante, foi também o local mais exposto à onda de imigração que levou para Boston e para outras cidades marítimas uma nova população 88 l 89 quase toda católica . Como um dos historiadores desse movimento escreve, "por volta de 1 850, a nova Inglaterra era o lar de dois povos, cada qual possuía um modo de vida próprio, bem como padrões de conduta particulares e uma forte hostilidade entre si " . 1 Ao longo do século seguinte esse dualismo cultural foi aos pou cos superado. Os dois povos se tornaram um ao partilhar uma cul tura norte-americana. O processo de assimilação, todavia, recusara cruzar o portal da igreja . A justaposição social dos dois segmentos da população não gerou nenhum contato religioso ou espiritual mais próximo. O abismo permanecia muito grande - maior, talvez, que no Velho Mundo. Tal situação era bastante natural no século XIX, quando a dife rença religiosa correspondia à divisão de classes; a tradição protes tante ainda mantinha o domínio político e social, ao passo que os imi grantes e seus filhos eram vistos como intrusos, ainda não totalmente incorporados ao modo de vida norte-americano. Hoje, no entanto, esse não é mais o caso. A grande imigração do século XIX se tornou parte da história norte-americana, assim como a vinda dos primei ros colonos, e os católicos norte-americanos são parte integrante da nação norte-americana . Tal situação, que surgiu do encontro de di ferentes religiões no âmbito de uma cultura comum, é um fenômeno distintivo dos Estados Unidos. Durante o mesmo período, no entan to, houve outro tipo de confluência - o encontro entre catolicismo e protestantismo ocorrido durante o século XIX, na Inglaterra. Essa foi uma situação que conheci de perto, intimamente, e que teve influência direta na minha vida religiosa . Refiro-me, é claro, ao Movimento de Oxford, que uniu católicos e protestantes, de modo particularmente íntimo, por 120 anos - uma espécie de guerra civil que dividiu ami gos, famílias e escolas de pensamento por gerações, mas que, não 1 Marcus Lee Hansen, The Immigrant in American History. Massachusetts, Peter Smith, 1 942, p. 1 1 0. A Formação da C ristandade 1 Capítulo 1 obstante, sempre esteve acompanhada de uma considerável medida de compreensão pessoal e compaixão. Esse movimento era, no início, nitidamente anglicano. Surgiu no âmago das autoridades constituídas - daquelas corporações clericais intimamente vigiadas que eram as faculdades de Oxford na época que antecedeu a reforma universitária -, e se fortaleceu pela tentativa dos teólogos de Oxford do início do século XIX de estudar e entender a natureza do catolicismo. Assim, enquanto na Nova Inglaterra o en contro de duas tradições religiosas se deveu a uma invasão externa de imigrantes católicos numa população protestante, na Inglaterra foi o resultado de uma mudança interna - uma revolução intelectual dentro da própria tradição protestante. Foi, é claro, um movimento de proporções muito pequenas, que começou na sala comunal de uma faculdade de Oxford e, aos poucos, espalhou-se, chegando a afetar a Universidade e, limitadamente, o clero e os leigos cultos da Igreja da Inglaterra. Apesar disso, teve efeitos de longo alcance na religião inglesa, em ambos os lados da fronteira religiosa . Por um lado, trans formou o espírito da Igreja da Inglaterra, ao introduzir novos ideais litúrgicos e novos padrões teológicos, em especial nos estudos patrís ticos; por outro, influenciou o catolicismo inglês ao produzir uma sucessão contínua de convertidos - cardeal John Henry Newman ( 1 80 1 -900) e Frederick William Faber ( 1 8 14-1 863 ) , William George Ward ( 1 8 12- 1 8 82 ) , cardeal Henry Edward Manning ( 1 808-1 892) e Robert Wilberforce ( 1 802- 1 857) , Lorde George Frederick Samuel Robinson ( 1 827- 1 909 ) , o primeiro marquês de Ripon, Lorde John Crichton-Stuart ( 1 847-1 900 ) , terceiro marquês de Bute, Coventry Patmore ( 1 823- 1 896 ) e Gerard Manley Hopkins S. J. ( 1 844- 1 8 89) , uma torrente que continua a jorrar até os dias atuais, produzindo em nossa época homens como o monsenhor Ronald Knox ( 1 8 8 8- 1 957) . A grande e singular importância desse movimento talvez não deva ser encontrada, em minha opinião, nos feitos intelectuais, embo ra, no caso de Newman, tenha produzido um pensador religioso de 90 l 9 1 extraordinário mérito. Ela está, mais propriamente, no íntimo conta to social que produziu, pela primeira vez, entre católicos e protestan tes desde a Reforma. Isso funcionou de dois modos diferentes. Primeiramente, pela divisão dentro de uma mesma família . Assim, Newman tinha um irmão unitarista, Francis William Newman ( 1 805- 1 8 97 ) , e um cunhado anglicano, Thomas Mozley ( 1 806- 1 893 ) . Os Wilberforces estavam divididos entre o influente bispo anglicano Samuel Wilberforce ( 1 805- 1 873 ) e dois irmãos ca tólicos : o já citado Robert Wilberforce, amigo de Manning, e Henry Wilberforce ( 1 807- 1 8 73 ) , amigo de Newman. A mais surpreenden te de todas foi a divisão na família Stanley, em que o irmão mais velho, Henry Stanley ( 1 82 7-1 903 ) , se tornou maometano, o irmão mais novo, Algernon Stanley ( 1 843- 1 92 8 ) , se tornou bispo católico e a irmã, Katharine Russell ( 1 844- 1 8 74 ) , mãe do filósofo Bertrand Russell ( 1 872- 1 970 ) . O segundo modo e , quiçá, o mais importante, foi a divisão en tre amigos . Manning fora amigo íntimo de William Ewart Gladstone ( 1 809- 1 898 ) . Newman manteve a amizade pessoal com o pastor an glicano John Keble ( 1 792- 1 866 ) , com Edward Bouverie Pusey ( 1 800- 1 8 82 ) e com Richard William Church ( 1 8 1 5- 1 890) , o deão da cate dral de St. Paul. W. G. Ward era amigo de Alfred Tennyson ( 1 809- 1 8 92) , de Arthur Stanley ( 1 8 1 5- 1 8 8 1 ) , o deão de Westminster, e de muitos outros vitorianos célebres. Assim, embora ao longo do século XIX tenha continuado a exis tir na Inglaterra um abismo social entre católicos e protestantes, este já tinha deixado de existir nas altas esferas sociais e intelectuais, de modo que a ponte que fora construída sobre tal abismo nunca foi destruída. Creio - e falo do assunto como parte interessada - que esse movimento marca o momento de virada da história religiosa ociden tal nos últimos 130 anos, e é ainda mais significativo porque foi a obra de uma minoria muito ínfima, cuja influência agiu como fermen to na massa que a cercava. A Formação da C ristandade 1 Capítulo 1 A situação nos Estados Unidos é, por essência, diferente. Resta a questão do impacto recíproco das duas grandes parcelas da popula ção de diferentes tradições religiosas. Não é uma questão de contato intelectual e religioso, pois esses dois grupos ignoram a existência um do outro na esfera religiosa . O resultado, no entanto, tem sido igual ou análogo, pois em ambos os casos ocorre o encontro de religiões há muito separadas dentro de uma mesma cultura: num dos casos pelo processo de descoberta religiosa ou redescoberta, e, no outro, por pura força das circunstâncias que levaram duas populações diferentes a se unir para formar uma nova unidade social. Em ambos os casos, as tradições dominantes da cultura eram protestantes, com muitas coisas em comum, já que partilhavam a mesma tradição linguística e, até certo ponto, a mesma literatura religiosa, em especial, a mesma versão da Bíblia em inglês. No lado católico, contudo, havia dife renças consideráveis entre a Inglaterra e os Estados Unidos. Neste, e particularmente na Nova Inglaterra, a influência predominante sem pre foi irlandesa, e o caso de um convertido como Orestes Brownson ( 1 803-1 876 ) era bastante excepcional. Na Inglaterra, por outro lado, o renascimento católico sempre foi predominantemente inglês e a influência dos imigrantes irlandeses foi secundária, embora estivesse longe de não ter importância. Assim, pode parecer que as expressões norte-americana e inglesa nesse particular são complementares e que podemos aprender, consi deravelmente, de uma com a outra. Em comparação com os Estados Unidos, a gradual evolução inglesa foi uma questão bem menor, mas representa justamente o elemento faltante - o diálogo contínuo por mais de um século entre católicos e protestantes em um patamar cul tural relativamente alto. Do ponto de vista sociológico, no entanto, o desenvolvimento dos Estados Unidos é o mais importante, graças à magnitude das forças envolvidas e ao fato de a cultura em que ope ram ainda ser móvel e amoldável. Desse modo, a coexistência de duas tradições religiosas diferentes dentro de uma sociedade comum se 92 l 93 tornou um dos traços distintivos da moderna cultura norte-america na e deve ser aceito como ponto de partida de nossa pesquisa . Devemos admitir que, do ponto de vista religioso, tal tipo de so ciedade pluralista encerra sérias desvantagens. Ela tende a tornar a religião um assunto de importância secundária. Isso significa que o primeiro dever do homem não é religioso, mas político. Não pergun tamos se um homem é um bom cristão ou um bom católico, mas se é um bom cidadão ou um bom norte-americano. Caso o seja, sua reli gião é assunto que diz respeito somente a ele mesmo - e há o perigo ainda maior de que seja tratada como um passatempo privado, de modo que, o pertencer a uma igreja poderá não significar nada mais que a filiação a um clube de golfe. Por outro lado, uma sociedade pluralista desse tipo traz, retri butivamente, certas vantagens para a religião. Confere um grande valor à responsabilidade espiritual e ao cristão individual. Ele não pode mais dar-se ao luxo de tomar por certa a religião. Caso tenha de permanecer firme nas areias movediças da opinião democrática, deve saber o que defende e o que pretende, e já que está em contato com várias formas de cristianismo, deve saber o que elas também defendem - em que concordam, em que diferem e até onde é possível ou necessário cooperar na defesa do interesse comum e dos valores espirituais comuns. Tudo isso provoca um considerável esforço intelectual e moral, um esforço que nos é difícil, nos dias de hoje, quando há toda uma tendência da educação popular e da opinião pública modernas em concentrar a atenção nos problemas da atual democracia secular e da cultura tecnológica que se impõem à nossa atenção por intermé dio das milhares de línguas despudoradas da publicidade organizada. Não há dúvidas que aqui em Harvard estamos em uma posição extre mamente favorável. Esta faculdade é um oásis de cultura teológica em um mundo secularizado, e possui uma tradição de estudo teológico que remonta ao início da história norte-americana. Não obstante, no A Formação da C ristandade 1 Capítulo 1 passado, tal tradição de estudo, por mais que tenha sido concebida com tolerância, não incluiu o estudo do catolicismo. No passado, era fácil estudar teologia cristã e história do cristianismo com nada mais do que uma breve pincelada na história do catolicismo, que continua va a ser um mundo estranho. Isso não se deu somente aqui, nos Estados Unidos, mas na Eu ropa também, de tal modo que um dos mais cultos dos estudiosos protestantes de minha juventude, Adolf von Harnack ( 1 85 1 - 1 930) , destaca esse como um dos defeitos mais notáveis do sistema de edu cação superior germânico. Ele escreveu: Estou convencido, pela experiência constante, de que os alunos que dei xam nossas escolas têm as ideias mais desconexas e absurdas a respeito da história eclesiástica. Alguns deles sabem alguma coisa sobre gnos ticismo ou outro detalhe curioso, para eles, sem valor. Mas, da Igreja Católica, a maior criação religiosa e política conhecida na história, não sabem absolutamente nada, e perdem-se, sob esse aspecto, em noções completamente triviais, incertas e, muitas vezes, nitidamente sem senti do. Como originaram suas grandes instituições, o que significam na vida da Igreja, quão facilmente podem ser interpretadas de maneira errônea e por que funcionam de modo tão certo e impressivo: tudo, segundo minha experiência, lhes é, com poucas exceções, uma terra incógnita.2 A atual geração tem presenciado uma grande mudança nesse particular, como prova a fundação desta cátedra. Tal fundação teria sido inconcebível há cem ou cinquenta anos. Há apenas 130 anos, um cidadão da Nova Inglaterra escreveu que a instituição de uma Igreja Católica em Boston seria tão assombrosa quanto a criação de uma capela protestante no Vaticano! Mas o resultado de gerações de negligência ainda permanece, e aqueles que se tornarão clérigos devem esperar ainda prevalecer, entre a maioria do laicado, o estado de ignorância que Harnack descreve. 2 Adolf von Harnack, Aus Wissenschaft und Leben, vol. l. Giessen, A. Tõpelmann, 1 9 1 1 , p. 97. 94 l 95 Por isso, ao estudar o catolicismo, creio que devemos abordá -lo, na expressão de Harnack, como terra incognita - um continente espiritual desconhecido que temos de explorar. Pois, o que quer que pensemos a respeito da verdade da doutrina católica ou dos valores espirituais católicos, sem dúvida, o catolicismorepresenta uma por ção considerável da experiência espiritual e histórica. Se ignorarmos isso, não poderemos nos considerar pessoas bem instruídas. Se, no entanto, pretendermos explorar esse continente desconhe cido, precisaremos da ajuda de uma série de disciplinas diferentes. Uma abordagem puramente teológica não é o bastante, embora essa é a que requererá o maior esforço de compreensão. Devemos também estudá-lo como historiadores, já que de todas as espécies de cristianis mo, o catolicismo é uma das formas mais profundamente comprome tidas com a história; por fim e antes de mais nada, devemos estudá-lo como pesquisadores da cultura, buscando compreender um modo de vida religioso nada familiar, pois, quando protestantes e católicos se encontram, a primeira coisa que os impressiona não é o conjunto diferente de dogmas teológicos, mas o padrão diferente de vida reli giosa . Mesmo onde usamos palavras similares (e usamos as mesmas palavras - Igreja e sacramento, fé, graça e redenção) , elas estão funda mentadas numa estrutura de instituições religiosas e práticas diversa, e produzem resultados sociais e intelectuais diferentes. O entendimento mútuo dessas diferenças na cultura entre católi cos e protestantes é uma das tarefas preliminares mais necessárias que tem de ser empreendidas ao prepararmos o caminho para a unidade cristã . Sua busca, no entanto, é o estudo mais difícil porque envolve muitos fatores que não são absolutamente religiosos. Toda cultura é um fenômeno complexo, e é muito fácil confundir o fator político ou material com o religioso ou espiritual . Ao longo de toda a história, somos apresentados ao espetáculo dos conflitos políticos e sociais dis farçados de conflitos religiosos, e é essa confusão de motivos que traz tanta amargura social a muitas das aparentes controvérsias religiosas. A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 1 Seria, no entanto, um grande erro concluir que todas as diferenças religiosas, do ponto de vista religioso, são irrelevantes. A fé religiosa deve produzir algum efeito no comportamento humano, ainda que muito menor do que os religiosos exigem ou esperam. Em alguns ca sos, em especial nos Estados Unidos de hoje, a demanda é, em grande parte, por um padrão de comportamento mais elevado. No passado, contudo, e noutras partes do mundo, a religião fez exigências mais explícitas na vida dos homens - por exemplo, os judeus exigindo que cada detalhe da vida humana devesse ser regulamentado e cercado por leis religiosas. Ora, o catolicismo sempre teve essa espécie de impacto externo na cultura. É uma forma de religião altamente institucionalizada e so cializada e expressa suas crenças e propósitos por intermédio de todos os canais materiais disponíveis . Isso, é claro, é uma das muitas críticas feitas aos católicos no passado, na época da Reforma e ainda mais no século XVIII . Reformadores religiosos e sociais igualmente objetavam que o catolicismo era demasiado excessivo. Eram gastos muitos dias de trabalho para a celebração das festas, investiam, no longo prazo, muito capital em despesas improdutivas.3 Qualquer que seja a visão que tenhamos acerca de tais objeções, não há dúvidas de que a ten dência católica de se expressar exteriormente em instituições e cultura é uma vantagem para o historiador e para o pesquisador da cultura, pois lhes oferece uma grande quantidade de material de estudo. A tendência do catolicismo sempre foi a de se encarnar na cultura . Em todas as épocas e povos encontramos o catolicismo se expressando em novos modos e insituições típicos daquela cultura em particular. À primeira vista, isso parece inconsistente com a disciplina autoritária e a unidade centralizada da Igreja Católica . Contudo, não é este o caso. 3 Ver a análise de C. W. Eliot a respeito das catedrais. (N. T. : Southworth Cathedral, 1 907- 1 909, Box 123, Records of the President of Harvard University, Charles W. Eliot, 1 869-1 930, Archives of the Harvard University, Cambridge, Massachusetts . ) 96 l 97 As formas de cristianismo mais conservadoras e menos sensíveis à mu dança cultural são as menores denominações dissidentes, tais como os Velhos Crentes russos4 ou alguns grupos religiosos encontrados neste país, tais como os Schwenckfeldianos5 ou os Dunkers. 6 No caso do catolicismo, todavia, cada sucessiva era da Igreja ma nifesta um aspecto diferente da catolicidade e, poderíamos dizer, uma forma diferente de cultura católica . Como a vejo, existem seis eras, cada uma com três ou quatro séculos de duração, à exceção da sexta que ainda está ocorrendo. Existem, assim, ( 1 ) o período do cristianis mo primitivo, do início das primeiras comunidades cristãs no século 1 até a paz da Igreja no início do século IV; (2 ) o período patrístico, da conversão do Império Romano no século IV até a ascensão do Islã no início do século VII; ( 3 ) a era que viu a formação da cristandade ocidental e a predominância da cultura bizantina no Oriente, do ano 600 ao ano 1 000; (4 ) a grande era da cultura medieval, que durou do movimento de reforma eclesiástica no século XI até a Renascença e a Reforma Protestante, e ( 5 ) a era da cristandade dividida a partir do século XVI, a época da Contra-Reforma - da cultura barroca do 4 Grupo cismático da Igreja Ortodoxa Russa que se separou em 1 666 por dis cordar das reformas do Patriarca Nikon ( 1 605- 1 68 1 ) ocorridas entre 1 662- 1 666. (N. T. ) 5 Igreja cristã surgida no século XX baseada nos ensinamentos de Caspar Schwenkfeld von Ossig ( 1489- 156 1 ) , cujos seguidores já se encontravam dis persos nos Estados Unidos desde o século XVIII. As ideias de Schwenkfeld pa recem ser um meio-termo entre as reformas de Martinho Lutero ( 1483-1546) , João Calvino ( 1 509-1564), Ulrico Zwinglio ( 1484-153 1 ) e os anabatistas. Em 2009, a igreja contava com cerca de 2.500 membros, divididos em cinco congregações na Filadélfia. (N. T. ) 6 A Igreja "Dunker" foi organizada em 1 827 por Peter Eyman ( 1 762-1 844) em Ohio, como uma das ramificações do Schwarzenau Brethen (Batistas Alemães ) , grupo surgido na Alemanha no final do século XVII como conse quência do movimento pietista radical. Em 1 848, a congregação se dividiu por discordar de algumas práticas e surgiu o grupo dos Novos Dunkers (ou Igreja de Deus) que perdurou até 1 962. (N. T. ) A Formação da C ristandade 1 Capítulo 1 Concílio de Trento até a Revolução Francesa . Finalmente, a era mo derna ( 6 ) que não sabemos a duração ou o fim. Cada uma dessas eras tem uma característica distinta e expressa uma faceta diferente da cultura cristã. No entanto, nenhuma delas é definitiva, de modo que não podemos dizer que um determinado período, como o século IV ou o XIII, é a expressão total do cato licismo. Com menos razão ainda podemos tornar nossa época um padrão de j ulgamento, como se os feitos das eras passadas só fos sem valiosos na medida em que tenham contribuído com algo para o mundo moderno. Como Leopold von Ranke ( 1 795- 1 8 8 6 ) disse, em resposta ao filósofos hegelianos da história, "]eder Epoche ist unmittelbar zu Gott" ,7 ou sej a, " Cada época está imediatamente relacionada a Deus " . Esse é o conhecido problema do relativismo histórico sobre o qual tanto foi escrito nos últimos anos. A posição do católico, no entanto, é diferente daquela do historiador secular, visto que está es piritualmente comprometido com cada uma e com todas as culturas do passado, na proporção em que sejam cristãs, já que acredita na persistência da tradição espiritual que preserva a identidade no curso de todas as mudanças da história e da cultura . Tal visão da multiplicidade da cultura cristã, contudo, não pres supõe, necessariamente, uma teoria evolucionista do progresso reli gioso. O curso dessa evolução deve, antes, ser explicado como descre ve Santo Agostinho de Hipona (354-430) na tese das Duas Cidades, graças ao conflito contínuo entre dois princípiosopostos, o espiritual e o social . Cada época é um período de crise para a Igreja cristã . Em cada era a Igreja deve enfrentar novas situações históricas, cujos problemas não podem ser resolvidos da mesma maneira que foram no passado. A crise somente pode ser enfrentada pela ação espiritual 7 Leopold von Ranke, Über die Epochen der neueren Geschichte: Historisch kritische Ausgabe. München, Theodor Schieder und Helmut Berding, 1971 , p . 60. (N. T. ) 98 l 99 criativa e, ao ter êxito, a Igreja cria um novo modo de vida, já que está comprometida com a determinada situação que enfrentou naquele período em particular. Hoje está bastante claro para todos, católicos e não católicos, cristãos e não cristãos, que vivemos numa época de crise. Talvez seja perigoso tentar definir a natureza dessa crise com muita precisão, uma vez que os assuntos são demasiado complexos e de grande amplitude. Não obstante, creio ser possível dizer que neste país e no presente século chegamos a um ponto decisivo no movimento rumo à unidade cristã . Como tenho dito, durante três séculos, desde a Reforma até o século XIX, o catolicismo e o protestantismo permaneceram em cam pos opostos e hostis, um empenhado na destruição do outro. Cada uma das nações da Europa e os novos povos dos Estados Unidos tomaram uma ou outra posição, e desprezaram qualquer membro de suas sociedades que fizesse uma escolha diferente, de modo que todo católico em um país protestante ou todo protestante em um país ca tólico era visto como potencial traidor e inimigo público. No entanto, hoje, nos Estados Unidos encontramos uma situa ção completamente diferente . Em uma mesma sociedade vivem to das as diferentes formas de religião e a falta de religião coexiste e partilha de uma cultura comum. Não há mais o domínio exclusivo de uma forma de cristianismo, nem mesmo o dualismo exclusivo de católicos e protestantes, mas um espectro em que está representada cada nuance de crença religiosa . Igrejas e ritos que no passado e no Velho Mundo existiam tão isolados que dificilmente tinham cons ciência da existência da alteridade, foram confrontados e colidiram nas ruas da moderna Babilônia. De certa forma, isso nos recorda a situação em Roma e em Alexandria nos primeiros séculos do cristia nismo. A conj untura é dolorosa, visto que expõe plenamente o es cândalo da desunião cristã . Não obstante, ao mesmo tempo, oferece uma oportunidade tal como nunca existiu no mundo anteriormente, para que os cristãos se reúnam e venham a se entender. Sem essa A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 1 compreensão não pode haver esperança de um retorno à unidade cristã . Mas não basta que os cristãos se encontrem num clima de boa vontade. O que é mais necessário é uma compreensão profun da, e isso não pode ser obtido sem um empenho sério e diligente de estudo e pesquisa. C a p í t u l o 2 1 O C r i s t i a n i s m o e a H i s t ó r i a d a C u l t u r a 1 00 1 1 0 1 A história do cristianismo é a história de uma intervenção di vina na história, e não podemos estudá-la à parte da história da cultura no sentido mais amplo do termo. A palavra de Deus foi primeiramente revelada ao povo de Israel e se incorporou na lei e na sociedade. Depois, o Verbo de Deus se encarnou em uma deter minada pessoa, em um determinado momento da história e, poste riormente, esse processo da redenção humana perdurou na vida da Igreja, a nova Israel, a comunidade universal portadora da Revela ção divina e foi o meio pelo qual o homem participou da nova vida do Verbo Encarnado. Assim, o cristianismo entrou na corrente da história e no proces so da cultura . Tornou-se culturalmente criativo, pois mudou a vida humana, e não há nada no pensamento e na ação dos homens que não tenha sido submetido à sua influência, posto que, ao mesmo tem po, experimentou as limitações e vicissitudes inseparáveis da existên cia temporal. Há quem rejeite, todavia, essa mistura de religião e história, ou cristianismo e cultura, já que creem que religião diz respeito a Deus e não ao homem, ao absoluto e eterno, e não ao histórico e transitório. Certamente, precisamos reconhecer quão importante é tal aspecto da religião e como o homem tem um senso natural da transcendência divina . Sabemos, pela história do pensamento religioso, que realmen te encontramos homens religiosos desse tipo - homens que buscam A Formação da C ristandade 1 Capítulo 2 transcender a natureza humana pelo "voo do solitário ao Solitário" , 1 nas palavras do filósofo neoplatonista Plotino (204/205-270) , e que descobrem a essência da religião na contemplação do puro ser ou daquilo que está além do ser. Isso, no entanto, não é cristianismo. Ainda que o cristianismo não negue o valor da contemplação ou da experiência mística, sua natureza essencial é diferente. É a religião da Revelação, Encarnação e Comunhão; uma religião que une o humano e o divino e vê, na his tória, a manifestação do desígnio divino para a raça humana. É impossível compreender o cristianismo sem o estudo da his tória do cristianismo. E isso, como o vejo, encerra muito mais que o estudo da história eclesiástica no sentido tradicional. Inclui o estudo de dois processos diferentes que agem, simultaneamente, na humani dade ao longo do tempo. De um lado, temos o processo de formação e mutação da cultura que é objeto da antropologia, da história e de disciplinas afins; e, de outro, temos o processo da Revelação e da ação da Graça divina, que criou uma sociedade espiritual e uma história sagrada, embora isso só possa ser estudado como parte da teologia e em termos teológicos. Na cultura cristã esses dois processos ocorrem em conjunto, numa unidade orgânica, de modo que seu estudo requer a cooperação íntima da teologia e da história . É óbvio que essa é uma tarefa difícil, mas muito necessária, já que não há outra maneira de estudar o cris tianismo como uma força viva no mundo dos homens e é da essência do cristianismo ser uma força e não uma ideologia abstrata ou um sistema de ideias. Desse modo, a história da cultura cristã difere em natureza da História da Igreja. Esta, por séculos, tem sido um estudo muito especializado, que fica, de certo modo, fora das categorias his tóricas. Há uma percepção de que a Igreja, como conceito teológico, está fora e acima da história . Durante os últimos séculos, contudo, a 1 No original: "qnryfi µÓvou itpoç µÓvov " . Plotino. Enéada. VI, 9, 1 1 . (N. T. ) 1 02 l 1 03 história da Igreja tem sido vista como algo equivalente à história ecle siástica - uma espécie de tópico especial à margem da história políti ca. Desse ponto de vista, a História da Igreja é algo só encontrado em sociedades e períodos em que se distingue, claramente, Igreja e Estado ou que há a distinção entre religião e política. Portanto, isso tende a se tornar um assunto algo arbitrário e artificial, já que a história das Igrejas modernas está condicionada e limitada pela história do Estado ao qual, de certo modo, pertencem. E, onde existe uma total sepa ração de Igreja e Estado, como nos Estados Unidos do século XIX, a história da Igreja se vê esvaziada de conteúdo significativo, como vemos nos doze primeiros volumes da obra, típica do século XIX, The American Church History Series [A Série de História da Igreja nos Estados Unidos da América] . Não há nenhuma unidade científica, de modo que a unidade se dá somente pelas tradições corporativas de uma determinada facção. 2 2 Publicados com o apoio da American Society of Church History, os doze primeiros volumes, na ordem numérica da série, são, respectivamente, os se guintes: H. K. Carroll, The Religious Forces of the United States: Inumerated, Classi fied, and Described on the Basis of the Government Census of 1 890. New York, The Christian Literature, 1 893; A. H. Newman, A History of the Baptist Churches in the United States. New York, The Christian Literature, 1 8 94; WillistonWalker, A History of the Congregational Churches in the United States. New York, The Christian Literature, 1 894; Henry Eyster jacobs, A History of the Evangelical Lutheran Churches in the United States. New York, The Christian Literature, 1 8 97; ]. M. Buckley, A History of the Methodists in the United States. New York, The Christian Literature, 1 896; Robert Ellis Thompson, A History of the Presbyterian Churches in the United States. New York, The Christian Literature, 1 8 95; Charles C. Tiffany, A History of the Protestant Episcopal Churches in the United States. New York, The Christian Literature, 1 895; E. T. Corwin; J. H. Dubbs; T. ]. Hamilton, A History of the Reformed Church, Dutch the Reformed Church, German and the Moravian Church in the United States. New York, The Christian Literature, 1 895; A Formação da C ristandade 1 Capítulo 2 A história da Igreja pode, é claro, ser estudada, cientificamente, de um ângulo sociológico, como o fez Ernst Troeltsch ( 1 865- 1 923 ) em seu famoso livro,3 mas isso leva a dificuldades teológicas. O estudo da cultura cristã, por outro lado, não acarreta tal dua lismo, já que o conceito de cultura é uma unidade que abraça tanto a Igreja quanto o Estado. A cultura é um fenômeno universal que pode ser objeto de estudo científico. Uma vez que toda cultura his tórica tem um aspecto religioso, a cultura cristã não é exceção nesse particular, mas é comparável às demais culturas que estão associa das a uma determinada religião, à cultura da Índia, por exemplo, ou à cultura ou culturas dos povos muçulmanos. Instituição caracterís tica da cultura cristã, uma igreja de natureza independente da so ciedade política é irrelevante para o estudo comparativo e científico das culturas . Thomas O'Gorman, A History of the Roman Catholic Church in the United States. New York, The Christian Literature, 1 8 99; Joseph Henry Allen e Richard Eddy, A History of the Unitarians and the Universalists in the United States. New York, The Christian Literature, 1894; Gross Alexander et ai., A History of the Metodist Church, South, the United Presbyterian Churh, the Cumperland Presbyterian Curch and the Presbyterian Church, South in the United States. New York, The Christian Literature, 1 894; B. B. Tyler et ai., A History of the Disciples of Christ, the Society of Frien· ds, the United Brethren in Christ and the Evangelical Association, and Bibliography of American Church History. New York, The Christian Literature, 1 894. O décimo terceiro e último volume da série, mais geral, é o seguinte: Leonard Woolsey Bacon, A History of American Christianity. New York, The Christian Literature, 1 897. (N. T.) 3 Referência à obra Die Soziallehren der christlichen Kirchen und Gruppen [Os Ensinamentos Sociais das Igrejas e Seitas Cristãs] , publicada originalmen te em 1 9 1 2 pela Verlag von J. C. B. Mohr, em Tübingen. Em língua inglesa, a obra foi publicada em 1 93 1 e, atualmente, se encontra disponível na seguin te reedição: Ernst Troeltsch, The Social Teaching of the Christian Churches. Pref. James Luther Adams; trad. Olive Wyon. Louisville, Westminster John Knox Press, 2009. 2v. (N. T. ) 1 04 l 1 05 Por outro lado, não podemos ignorar as grandes dificuldades que afetam, hoje, o estudo acadêmico da religião e a mudança de clima intelectual que está cada vez mais desfavorável ao estudo das relações entre religião e cultura no mundo atual e nas universidades moder nas. Há muito a teologia perdeu o posto de faculdade dominante na universidade e como parte integral do currículo educacional comum. Continua a existir, por condescendência, apenas como um estudo eclesiástico especializado e destinado ao clero. Consequentemente, o aluno da universidade moderna pode ser to talmente ignorante a respeito de religião, visto que requer um tipo de instrução muito elementar, ao passo que o aluno de teologia não tem necessidade de estudos elementares, já que supõe (ainda que injustifi cadamente) a validade de uma determinada forma de teologia cristã . Esse é um estado de coisas muito inauspicioso, pois cria um hiato entre os estudos universitários e os estudos teológicos ou eclesiásticos que não cabe a ninguém preencher. Há, no modo como vejo a questão, uma terra de ninguém entre a universidade e a faculdade de teologia. É claro que, nessa situação, não há mais nenhuma tradição religio sa comum. Não podemos mais pressupor alguns princípios ou verda des geralmente aceitos. Temos de considerar a existência de quatro ou cinco pontos de vista fundamentalmente diferentes em questões religio sas: o secular e o cristão, o protestante e o católico. E existe uma imensa diferença no campo secular entre os humanistas liberais e os materia listas dogmáticos. Mais uma vez, no caso dos protestantes, existe a divisão entre protestantes liberais, que representam a antiga tradição unitária humanista e os neo-ortodoxos, que buscam reviver as tradi ções dos reformadores e dos teólogos puritanos. O hiato é tão extenso que é difícil encontrar alguma coisa, sobretudo em relação à teologia natural e à natureza da religião, sobre a qual as duas partes concordem. Nessas circunstâncias, a única abordagem comum que resta a to dos os possíveis alunos é a fenomenológica, que tanto é social quanto psicológica . Por um lado, todos concordam que o cristianismo e o A Formação da C ristandade 1 Capítulo 2 catolicismo são fatos sociológicos e históricos significativos que ti veram profunda importância na história humana; ao mesmo tempo que, por outro lado, a religião é um fenômeno psicológico quase uni versal e comum a todas as culturas e períodos, de modo que é impos sível questionar sua importância humana subjetiva. Ademais, apesar da quase infinita diversidade de fenômenos religiosos, existem certos elementos comuns a todos e que podem ser vistos como essencial mente religiosos, tais como a adoração e a prece, ou também o rito do sacrifício. Adorar sugere a existência de algum poder sobre-humano que as pessoas veneram como algo maior do que elas mesmas, do mesmo modo que a prece e o sacrifício significam a existência de uma du pla relação pela qual o homem estabelece certo canal de comunica ção com o poder superior. Esse poder desconhecido que o homem de modo instintivo e natural adora é comumente conhecido como deus ou deuses. De fato, a definição fenomenológica seria: "Deus é aquilo que o homem adora e aquilo que o homem adora é Deus" . Tal noção de adoração pode ser contestada por não dizer nada a respeito da verdadeira natureza do objeto de adoração. Na verdade, sabemos pelo estudo de religião comparada que o homem é capaz de adorar quase tudo, do mais sublime ao mais vil, e a grande tarefa da filosofia tem sido purificar o conceito humano a respeito do divi no e libertar a razão do serviço aos ídolos - da veneração a tudo o que não é Deus. E esse processo, em alguns aspectos, se assemelha à obra da Revelação, que também consiste na purificação dos instintos religiosos naturais do homem pela eliminação dos falsos objetos de adoração e o redirecionamento da razão humana para Deus, a única realidade transcendente suprema e absoluta . Ao homem moderno, a palavra "deus" significa muito mais do que isso, pois chegou até nós enriquecida pelos conteúdos das revela ções judaica e cristã, de modo que adquiriu valores morais e particu lares que se tornaram quase inseparáveis do próprio termo. Além da 1 06 j 1 07 tradição religiosa, todavia, a palavra também adquiriu um significado filosófico e foi enriquecida por séculos de tradição filosófica. Para a religião e a teologia ocidentais tal termo representa a sín tese de duas tradições diferentes, a tradição de revelação religiosa hebraica, representada pela Bíblia, e a tradição helênica de teologia metafísica ou natural, aceita pelos Padres Cristãos da Igreja e teó logos como uma espécie de propedêutica racional ou fundamento para a teologiaem geral. No entanto, de modo algum, essa tradição filosófica carecia de conteúdo religioso; este era dado pela contem plação estética ou mística, uma de suas características. De um lado, a filosofia grega contemplou o universo como uma ordem visível que era o reflexo ou a criação de um princípio espiritual - o lógos di vino; em contrapartida, via o mundo espiritual como uma ordem ascendente ou hierarquia de formas inteligíveis que culminavam no bem absoluto ou na unidade absoluta, de modo que, para o estoico ou neoplatônico, as disciplinas intelectuais da ciência e da filosofia encontravam o fim supremo num ato religioso de contemplação que, para nós, assemelha-se ao místico. A teologia helênica foi rapidamente adotada pelos teólogos cris tãos, como vemos nos primeiros escritos de Santo Agostinho, nos Padres gregos, e nas obras que chegaram até nós como de Pseudo -Dionísio, o Areopagita . Houve uma evolução um tanto similar na teologia filosófica da época moderna nos séculos XVII e XVIII, fruto do deísmo e do racionalismo. Entretanto, esse movimento moderno tendeu a perder o caráter religioso tão logo se separou da tradição cristã, e prontamente deixou de apresentar qualquer traço daquelas tendências contemplativas ou místicas que caracterizaram a tradição helênica mais antiga . Por conseguinte, nos tempos modernos a aliança histórica entre a teologia natural e a teologia da revelação foi rompi da, salvo no caso do tomismo, que estava aferrado na antiga tradição. A moderna teologia protestante, em especial a escola de Karl Barth ( 1 886-1968 ) , rejeitou como completamente falsa e inútil qualquer A Formação da C ristandade 1 Capítulo 2 teologia filosófica ou racional e se recusou, até mesmo, a admitir a existência de qualquer forma de conhecimento religioso autêntico, a não ser o presente na revelação bíblica e apreendido pela fé divina. Se, porém, aceitarmos o princípio barthiano, a total inexistência de qualquer canal natural de compreensão entre Deus e o homem torna difícil ver como o ato de fé pode ser deduzido, a não ser para aqueles que já possuem algum tipo de fé. O Deus que falou a Abraão não era um ser totalmente desconhecido. Era alguém já aceito ou tido como existente, como o Deus dos patriarcas. Não existe, entretanto, nada na teologia natural ou na ideia filo sófica de Deus que contradiga ou exclua a ideia de Revelação. Uma vez admitida a existência de um ser divino transcendente, que é ob jeto de veneração e preces humanas, é concebível que tal ser venha a intervir na vida humana ao manifestar sua vontade ao homem ou ao estabelecer algum canal de comunicação. A dificuldade de crer nisso não repousa em uma possibilidade ou probabilidade abstratas, mas na aparente impossibilidade de o homem compreender o desígnio divino ou seu modo de operação. É óbvio que se o homem tivesse de possuir o poder de influenciar o comportamento dos insetos por meios científicos, o inseto seria incapaz de compreender o que estava acontecendo, e isso só poderia ser explicado a partir da perspectiva humana. Todavia, a diferença entre Deus e o animal racional é muito maior que a existente entre o homem e o mundo dos insetos, e é in concebível que a inteligência humana possa compreender o processo de revelação divina, muito embora o homem seja o receptor. Deus não é somente o doador da Revelação, é também aquele que deve criar o veículo para sua transmissão e a disposição para recebê-la . Os cristãos admitem a ideia de uma Palavra que, de algum modo, é comum a Deus e ao homem, no entanto, isso é uma verdade de fé, inalcançável pela razão humana. Ela contém aquilo que os teólogos gregos denominam "economia " divina - uma adaptação da verdade divina aos meios de compreensão humanos, seja por uma escritura 1 08 l 1 09 inspirada, como no caso dos profetas hebreus, seja por uma dispen sação histórica, como na história do povo eleito, ou, sobretudo, pelo mistério central da Encarnação em que o Verbo de Deus é encarnado numa pessoa histórica humana e divina. Isso marca um novo início na história da raça humana - uma nova criação pela qual a humanidade é elevada a um nível espiritual superior que transcende a vida natural e o conhecimento racional do animal humano. É verdade que o homem pode fazer um estudo racional dessa suprema dispensação e do conteúdo da Revelação - estudo tradicio nalmente conhecido como ciência teológica, mas, a função de pes quisa, nesse estudo, está estritamente limitada, já que os dados nos quais se apoia são verdades de fé que transcendem a esfera da razão. Por sua vez, a extensão da Revelação e a vida do Verbo Encarnado na Igreja cria uma espécie de zona intermediária entre Deus e o ho mem que é " sobrenatural " na linguagem dos teólogos, mas, apesar disso, é tão acessível à experiência e ao estudo racional quanto o restante da história humana . Essa penetração da linguagem divi na no mundo do discurso humano é uma concepção difícil para a moderna inteligência secular compreender ou assimilar, no entanto, é parte essencial da visão cristã de história e, não menos ou dificil mente menos, da visão judaica ou muçulmana. De fato, até certo ponto, é uma característica de todas as grandes religiões; mesmo aquelas, como o hinduísmo, que parecem, à primeira vista, estar baseadas em teorias metafísicas e especulações. Aquelas religiões que estão, ou alegam estar, fundamentadas na pura razão nunca tiveram nenhuma influência profunda na vida es piritual da humanidade ou da história humana. A Religião Natural ou Deísmo dos filósofos do século XVIII, a Religião da Humanida de positivista do século XIX, ou as tentativas mais recentes de cons truir uma religião puramente ética despertam algum interesse pela luz que lançam sobre a cultura contemporânea, mas todas falharam totalmente no campo da religião como tentativas de oferecer um A Formação da C ristandade 1 Capítulo 2 substituto humano para as religiões históricas que requeriam fé e uma Revelação divina. A religião autêntica, mesmo na mais simples e elementar das for mas, penetra mais profundamente que a razão. Alcança os níveis mais profundos da alma e da consciência humanas. Há na natureza huma na uma fome e sede de transcendência e de divino que não podem ser satisfeitas com nada menos que Deus, e já que o conhecimento de Deus excede toda a medida da razão humana, o estudioso de religião é conduzido ao início desse estudo e se vê diante de uma dificuldade fundamental que parece intransponível . Como escreveu Santo Ansel mo ( 1 033- 1 1 09 ) , "Ó luz suprema e inacessível; ó verdade profunda e bem-aventurada, como estás distante de mim, embora eu estej a tão perto de ti ! Quão afastada te encontras do meu olhar, quando eu es tou continuamente presente ao teu ! Tu estás presente, inteira, em toda parte e eu não te vejo ! " . 4 Esse paradoxo foi compreendido e plenamente aceito pelos grandes pensadores cristãos do passado, como Santo Agostinho, por exemplo, São Gregório Nazianzeno (329-3 89 ) ou Santo Anselmo. Na verdade, todas as mentes naturalmente religiosas, mesmo fora da cris tandade ou em qualquer religião revelada, reconhecem o ser divino como um mistério que transcende a inteligência humana e é inaces sível à razão e, ao mesmo tempo, como realidade misteriosamente presente na alma humana - uma realidade que tudo abarca na qual "vivemos, nos movemos e existimos " (Atos dos Apóstolos 1 7,28 ) . Isso não quer dizer, todavia, que o conhecimento d e Deus é pu ramente intuitivo e que a razão é incapaz de afirmar a verdade da existência de Deus. O pensamento humano sempre esteve consciente da necessidade de uma causa primeira ou um princípio absoluto do 4 Santo Anselmo da Cantuária, Proslógio, XVI. Utilizamos a tradução em língua portuguesa da coleção "Os Pensadores" na seguinte edição brasileira: Santo Anselmo da Cantuária, Proslógio. Trad. Angelo Ricci. São Paulo, Abril Cultural, 1 973, p. 11 9 . (N. T. ) 1 1 o 1 1 1 1 ser para explicar a existência do mundo natural ou do ser contin gente . Um mundo de puro vir-a-ser, sem princípio ou fim, sem causa ou fundamento, seria um caos onde a própria razão não poderia existir. Desse modo, o homem está consciente da existência de um princípio de unidade e de ordem no universo, e não pode introduzir tal princípio no mundo da razão, da ciência e da filosofia, caso ele mesmo seja o produto irracional de um mundo desordenado - faís cas lançadas no caos. Essa concepção do universo como uma ordem inteligível inspi rou toda a evolução da ciência ocidental, e de modo semelhante, na Antiguidade Clássica e na Época Moderna; e o período formativo da moderna ciência de Galileu Galilei ( 1 564- 1 642) a Isaac Newton ( 1 643- 1 729) a crença em Deus como causa primeira e criador da or dem da natureza, bem como regente supremo e j uiz do mundo moral, formava uma parte essencial do Weltanschauung. Sem dúvida, tais crenças foram sendo racionalizadas e antropomorfizadas pela vulga rização filosófica do deísmo e as vulgarizações teológicas da teologia cristã, como a de William Paley ( 1 743- 1 805 ) . Não obstante, como observou o professor Alfred North Whitehead ( 1 86 1 - 1 947) na obra Science and the Modern World [A Ciência e o Mundo Moderno]5 de 1 925, os feitos da ciência moderna dificilmente são concebíveis sem essa preparação teológica que estabeleceu uma ligação entre a ordem subjetiva da razão humana e a ordem racional objetiva no universo de onde se origina e, a partir daí, afirma o criador divino. A secularização da ciência moderna e da civilização, em parte, deve sua criação à teologia natural do século XVIII ter sido desacredi tada pela superficialidade, e mais ainda aos efeitos da especialização, que tornou o cientista moderno em tecnólogo, e não em "filósofo na tural " . Uma civilização tecnológica como a nossa tem uma tendência 5 Alfred North Whicehead, A Ciência e o Mundo Moderno. Trad. Hermano Herbert Waczlawskied. São Paulo, Paulus, 2006 . (N. T. ) A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 2 natural ao secularismo, visto que estende os limites do controle social até tornar o homem prisioneiro dentro de um mundo artificial criado por ele mesmo. No passado, especialmente nas culturas agrárias, o homem era imediatamente dependente da natureza e a vida estava intimamente ligada ao ciclo natural das estações, da época do plantio e da co lheita, e essa dependência de poderes que estavam fora do controle familiarizou-o com as concepções de Mistério e de Providência Divi na. Atualmente, o Mistério foi banido do cotidiano do homem. Se as coisas dão errado, ele busca auxílio no governo ou na ciência em vez de buscar em Deus e na religião. Não há dúvida de que isso libertou a humanidade do fardo da superstição e do medo irracional, mas tam bém deixou o homem à mercê das próprias invenções e substituiu o mistério da natureza e o poder de Deus pela onipotência do monstro criado pelos homens: o Estado burocrático e tecnocrático, o novo Leviatã . Quando esses novos poderes são plenamente desenvolvidos pela organização social dos meios de comunicação de massa e pelos métodos científicos de controle psicológico, o Estado secular se torna quase automaticamente totalitário, de modo que não há mais espaço para a liberdade espiritual do homem. Apesar disso, a natureza essencial da situação humana não se modificou com o advento da ciência e da tecnologia. O homem mo derno pode deificar essas coisas e criar uma religião de "Humanismo Científico" que oferece a perspectiva utópica do progresso ilimitado. Mas todas essas construções são inevitavelmente frágeis, já que estão na dependência da vontade e paixões humanas, bem como da inteli gência, e vemos em nossa própria geração quanto o elemento irracio nal na natureza humana pode se mostrar mais forte que a inteligência científica, de modo a perverter todos os recursos da civilização tecno lógica para fins mais vis e destrutivos. A natureza humana sempre conserva na memória o caráter espi ritual - a ligação com o transcendente e o divino. Se tivesse de perder 1 1 2 1 1 1 3 isso, deveria libertar-se e tornar-se serva de forças inferiores, de modo que a civilização secular, como Friedrich Nietzsche ( 1 844-1 900) a viu, conduziria inevitavelmente ao niilismo e à autodestruição. Se olharmos o mundo hoje, isolando-o do passado e do futuro, as forças do secularismo parecem triunfantes. Isso, no entanto, não é senão um momento na vida da humanidade e não possui a promessa de estabi lidade e permanência. A lição da história leva a entender que existem tradições duradouras que podem ser temporariamente obscurecidas, mas guardam sua força implícita e, cedo ou tarde, voltam a se afirmar. Tal ocorre com a tradição da cultura cristã hoje. Ela não desapareceu, mas experimentou uma grande perda de influência e prestígio devido às mudanças sociais nos dois últimos séculos que transformaram os sistemas educacionais, assim como a ordem política e econômica. A diminuição temporária do elemento religioso na cultura aumenta enormemente a dificuldade de nossa tarefa . Torna todo estu do teológico uma tarefa árdua - um nadar contra a corrente de nossa época. Em muitos casos isso significa uma verdadeira ocultação do divino, uma perda daquele senso espontâneo de valores religiosos que era uma parcela normal da experiência humana no passado. É como se Deus voltasse a face contra nossa civilização e deixasse o mundo em trevas espirituais. Sabemos, não somente por nossa fé como cristãos, mas pelo es tudo imparcial da história da cultura humana, que esse é um estado de coisas transitório e excepcional . Cedo ou tarde, certamente, a cor rente mudará e o homem recuperará o sentido dos valores espirituais e o interesse nas realidades supremas. Na verdade, creio que isso já está acontecendo e o presente século está a testemunhar o ressurgi mento da consciência religiosa . Isso é apenas uma opinião privada, pois ninguém é capaz de saber para onde a própria geração está se dirigindo. As grandes mudanças espirituais que alteram o curso da história tem origem abaixo do nível da consciência e não se mani festam plenamente até que o fruto esteja maduro. Veremos ao longo A Formação da C ristandade 1 Capítulo 2 deste estudo quantas vezes foi esse o caso, tanto para o bem quanto para o mal. Ao estudar o processo de expansão e contração da cultura cristã na sucessão das eras históricas, analisamos um processo natural que segue o curso normal de formação e mudança cultural. Estamos, no entanto, estudando também um mistério religioso - a vida de Cristo na história -, a progressiva percepção da humanidade pela ação da revelação divina, a extensão da Encarnação na vida da Igreja . Este é um aspecto da doutrina católica que hoje está sendo mais trabalhado do que nunca por teólogos e é importante que ganhemos uma ideia geral a respeito disso antes de embarcar no estudo da cultura católi ca. Está exposto de modo muito simples e conciso na carta pastoral Essor ou déclin de l'Église6 [Crescimento ou Declínio da Igreja] do finado cardeal Emmanuel-Célestin Suhard ( 1 874- 1 949 ) . E tem sido desenvolvida com mais profundidade por uma série de escritores mo dernos como Karl Adam ( 1 876- 1 966 ) , Henri de Lubac ( 1 896- 1 991 ) e Yves Congar ( 1 904- 1 995 ) , mas os fundamentos teológicos foram ofe recidos por teólogos do renascimento católico do século XIX como J. Adam Moehler ( 1 796-1 8 3 8 ) e Matthias Joseph Scheeben ( 1 835- 18 8 8) . Se estudarmos esta ou uma série dessas ideias, elas nos levarão a mergulhar muito profundamente na teologia, mas ao mesmo tem po, creio, irão lançar novas luzes sobre a cultura cristã e a visão cristã do significado da história . 6 Carta pastoral escrita pelo cardeal Suhard, na ocasião arcebispo de Paris, em fevereiro de 1 947. Apesar de ter sido escrita para adiocese parisiense, o documento ganhou relevância mundial pelo tema . (N. T. ) 1 1 4 1 1 1 5 C a p í t u l o 3 1 A N a t u r e z a d a C u l t u r a O estudo da cultura cristã é de singular importância, primeiro, porque é necessário para a compreensão de nosso passado e de nosso modo tradicional de cultura e, em segundo lugar, por causa da excep cional riqueza de material disponível para estudo. Não só possuímos uma riqueza inigualável de documentos religiosos a respeito da evolu ção do cristianismo por dezenove séculos, como também temos uma tradição histórica contínua pela qual esses documentos podem ser situados no tempo e no espaço num grau que, dificilmente, alcança mos em qualquer das outras grandes culturas. Na Índia, por exemplo, também temos a grande riqueza dos escritos religiosos, mas muitas vezes não temos, no presente, um conhecimento detalhado do passa do histórico das culturas hindus. Em outros casos, temos toda uma tradição histórica, mas há hiatos nos registros · religiosos, de maneira que nosso conhecimento da cultura cristã é mais profundo e amplo que o de outras culturas contemporâneas mundiais. Devido, sobretudo, à progressiva expansão da cultura cristã, ini cialmente, pela conversão dos impérios romano e bizantino, depois pela conversão da Europa Setentrional e Ocidental e em terceiro lugar, pela expansão ao Novo Mundo e sua participação no avanço da exploração mundial e das descobertas científicas, tal cultura adquiriu uma visão de mundo universal como nenhuma outra civilização jamais possuiu. É verdade que o pleno desenvolvimento dessas tendências mundiais fo ram pós-cristãs e não cristãs, mas nenhum dos modernos movimentos A Formação da C ristandade 1 Capítulo 3 ideológicos mundiais: o Iluminismo, o Liberalismo, a Democracia e o Socialismo são compreensíveis sem o conhecimento da cultura cristã que subjaz a todos. É um campo de estudo muito complexo. A cultura histórica da cristandade encontra-se a meio caminho entre a transformação moderna da cultura ocidental em uma cultura mundial, que é o fenômeno característico da presente era, e as primi tivas formas de cultura cristã que surgiram no mundo mediterrâneo e na Europa Ocidental há mais de quinze séculos. Antes, todavia, de tentarmos traçar a história desse ou de outros avanços, primeiro devemos voltar ao início e estudar a natureza da cultura e o processo de mudança e de evolução cultural . Cultura é o nome dado para a herança social do homem - tudo o que o homem aprendeu do passado via processo de imitação, edu cação e aprendizagem e tudo aquilo que passa adiante como cos tume para os descendentes e sucessores. Isso inclui a totalidade do que o homem tem e é. Se fosse possível separar completamente um indivíduo de sua cultura e herança social, seria um sujeito estúpi do, a viver num mundo privativo de sentimentos amorfos, inferior ao das feras, já que não teria mais a orientação dos instintos, base do comportamento animal . Por isso, qualquer sociedade humana, sej a primitiva ou bárbara, é uma cultura, e é o processo cultural ou tradição que cria a sociedade. Mesmo os povos muito simples e pri mitivos podem reconhecer intuitivamente a diversidade das culturas e a importância, para cada povo, de seu modo de vida particular. Ruth Benedict ( 1 8 8 7- 1 949 ) cita um momento memorável de uma conversa que travou com um índio da Califórnia . "No início" , disse ele, "Deus deu para todos os povos uma taça, uma taça de barro, e dessa taça beberam a vida . [ . . . ] Todos a mergulharam na mesma água, mas as taças eram diferentes. Nossa taça agora está quebrada. Ela desa pareceu " . 1 1 Ruth Benedict, Patterns of Culture. Boston, Houghton Mifflin Co., 1934, p. 33. 1 1 6 1 1 1 7 Do mesmo modo, nenhuma sociedade pode tornar-se tão avan çada que transcenda a cultura . A civilização também é uma cultura que segue as mesmas leis de crescimento e evolução da cultura primi tiva, embora possa ter-se tornado incomparavelmente maior e mais complexa . Assim, a distinção entre cultura e civilização é um tanto arbitrária . Eu mesmo sigo a tradição que define civilização como um estágio de cultura mais elevado, associado ao crescimento das cidades e ao uso da escrita - a forma de cultura que surgiu primeiramente na Mesopotâmia e no Egito há uns 5 mil anos e que, aos poucos, se disse minou, até abarcar todo o mundo habitado. Assim, a civilização é um fenômeno comparativamente recente, apesar das enormes mudanças que produziu na vida humana e no meio ambiente. Se nosso conhe cimento do passado continuar a avançar, como ocorreu nos últimos cem anos, pode ser que, por fim, venhamos a ser capazes de escrever a história da civilização como escrevemos, hoje, a história do Estado ou da nação. Cinco ou mesmo 10 mil anos são apenas um momento na vida da natureza. Todo o curso da civilização humana e todas as suas obras, contudo, são apenas uma questão de uns milhares de anos. E esse é um processo contínuo que ainda está a se desenvolver, de modo que, ao estudamos o crescimento da civilização, somos testemunhas vivas da maior de todas as obras criadas. Como chegamos a tal milagre ? Como aconteceu do homem, den tre as inúmeras formas de vida que existiram neste planeta, ter sido capaz de se destacar dos outros animais, mudar o modo de viver e, por fim, transformar o mundo em que vive ? Não sabemos exatamente como e quando o homem veio a existir, mas sabemos que a humani dade é muito mais antiga que a civilização: os primórdios remontam o período geológico e, mesmo nessas eras distantes, a natureza hu mana diferia dos outros animais e já haviam sido lançadas as bases sociais sobre as quais a civilização, por fim, seria erigida. Não basta dizer que o homem é um animal social, pois Aristóteles (3 84-322 a.C. ) , o pai da antropologia, reconhecia outros animais - A Formação da C ristandade 1 Capítulo 3 como as abelhas, por exemplo - também como amma1s sociais. O homem, como diz Aristóteles, diferente dos outros animais, é dota do de fala; e essa faculdade distingue as comunidades humanas de ou tras sociedades animais, comunidades que não são regidas totalmente pelo instinto, mas possuem maiores possibilidades de comunicação, compreensão e cooperação social. "No princípio era o Verbo" (João 1 , 1 ) . A língua é o portal para o mundo humano, que também é um mundo moral, já que, como diz novamente Aristóteles: [ . . . ] a fala tem a finalidade de indicar o conveniente e o nocivo, e portanto, também o justo e o injusto; a característica específica do homem em com paração com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais, e é a co munidade de seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade.2 A língua é mais antiga que a civilização e suas origens se repor tam aos primórdios da cultura humana e, portanto, ao princípio da própria humanidade. Não sabemos, todavia, quando esse aconteci mento deveras importante ocorreu, e a história da linguagem não nos deixa nenhuma pista, pois não há nada como uma língua primitiva e não há nenhuma prova de algum estágio intermediário que prepare o caminho para o surgimento de formas superiores de discurso. A hipó tese dos antigos etnólogos de que quanto mais descemos na escala da cultura, mais empobrecida se torna a língua, e, por isso, os selvagens teriam pouco vocabulário e uma gramática escassa, não foi ratificada pela pesquisa moderna . Ao contrário, as línguas de povos antigos, assim como suas formas de organização social, todas, demonstram impressionante grau de desenvolvimento e complexidade. 2 Aristóteles, A Política. Livro I, 1 253a. Utilizamos a versão da seguinte edição brasileira: Aristóteles, A Política. Int., trad. e notas Mário da Gama Kury. Bra sília, Editora Universidade de Brasília, 1 985 . Vale notar que tanto no texto de São João quanto na passagem citada deAristóteles, o que foi traduzido por "verbo" ou " fala " , respectivamente, é a palavra grega "/ógos" . (N. T. ) 1 1 8 l 1 1 9 Sem dúvida é possível, e mesmo provável, que criaturas humanoi des tenham existido na Terra por muito tempo, antes da evolução da língua. Certamente, diversos antropólogos acreditam que a língua te nha surgido somente nos últimos estágios do Pleistoceno, e que os ar tífices de machadinhas do período Paleolítico Inferior não possuíam a capacidade de falar. Neste caso, no entanto, não eram homens no sentido pleno da palavra, e devemos situar o advento do homo sapiens num período relativamente tardio no registro arqueológico. O fato de ser possível ensinar macacos a andar de bicicleta, mas de ser impossível ensiná-los a falar, sugere que é o uso do idioma, e não o de ferramentas, a característica essencial da humanidade. A fala, e não a lança ou a pá, é a força que cria a cultura humana . A invenção da língua foi o primeiro passo no processo que conduziu à civilização, e nenhuma das invenções humanas subsequentes - a agricultura e a do mesticação dos animais, o uso dos metais e a descoberta da escrita, a construção da cidade e do Estado - ainda que importantes, podem ser comparadas com esse arquétipo e fonte de toda a atividade cultural . Sem o idioma teria sido impossível ao homem libertar-se do domí nio dos instintos que determinam a vida imutável da existência não hu mana. É somente por intermédio da língua que o homem pode transmi tir a memória da experiência passada para as gerações futuras e, desse modo, gerar o acúmulo de conhecimento que é a condição da cultura . A língua é o veículo da tradição e o meio da comunicação social, e esses são dois fatores importantes que tornam possível a cultura humana. A cultura é um modo de vida comum pelo qual o homem se ajus ta ao ambiente natural e às necessidades econômicas. É condicionada pelos mesmos fatores fundamentais que determinaram a evolução das espécies animais - a interrelação entre organismos, meio ambiente e função. No entanto, a mera diferenciação de sociedades por tais fatores não é uma explicação suficiente de cultura. Foi o advento do idioma que acrescentou uma nova dimensão à sociedade e conferiu um novo caráter, especificamente humano, a todos os elementos. A Formação da C ristandade 1 Capítulo 3 A língua amplia a herança física do sangue pela herança espiritual da memória e da tradição, que torna a comunidade consciente da pró pria existência no passado, de sua continuidade e experiência histó ricas, por meio das quais é possível generalizar invenções individuais e transmitir técnicas adquiridas. Por fim, e principalmente, a língua permite ao homem pensar, o faz criar um novo mundo de imaginação e razão. Esse mundo inteligível e psicológico não é menos importante para a cultura que o mundo exterior de atividades sociais e econômi cas. Um influencia o outro, e a cultura representa o todo complexo da vida e do pensamento - modos de comportamento, formas de crença, padrões de valores, técnicas, símbolos e instituições - que constitui a vida da comunidade. Assim, não há motivos para supor que as mais simples e mais primitivas formas de cultura e as mais antigas formas dos idiomas estavam limitadas a finalidades materiais e utilitaristas. Importância e utilidade são conceitos abstratos, e para o homem primitivo uma pre ce ou uma fórmula mágica poderiam ser mais "úteis" e, certamente, mais poderosas do que uma enxada ou uma cabana. Desde as origens, a cultura humana sempre foi útil e dinâmica, no entanto, já que a língua se encontra na raiz da cultura, o dinamismo desta está incorpo rado no poder da palavra, ao menos no trabalho e na guerra . Quanto mais primitivo o nível cultural, maior parece ser a importância que o homem confere aos nomes. Dar e conhecer os nomes parece encerrar, para os povos primitivos, um elemento de poder e controle sobre a coisa nomeada, e são rigorosamente análogos às formas simbólicas de ritual e arte, expressões similares do caráter dinâmico da cultura pri mitiva, como podemos ver com maior clareza nas pinturas rupestres do período Paleolítico Superior, que exprimem o dinamismo da cul tura primitiva com extraordinária força e proximidade. Arte, gestos e língua estão intimamente relacionados como formas de comunicação simbólica, mas desses três a língua é, de longe, a mais importante, visto que interpenetra no todo da cultura e não há nada na cultura 1 20 1 1 2 1 que nela não esteja refletido. Cultura e língua são aspectos insepa ráveis de um mesmo processo, de modo que é impossível admitir a existência de uma sem a outra . Ademais, ambas são parecidas, ao se organizarem em sistemas com determinada unidade formal . A língua não é uma simples compilação de palavras; é, como diz Edward Sapir ( 1 8 84- 1 939 ) , " uma organização simbólica, criativa e autônoma"3 que pode ser comparada a um sistema matemático. Do mesmo modo, a cultura não é uma simples coletânea de "tra ços culturais" - costumes, hábitos, instituições e crenças -, é um sis tema organizado de vida social e comportamento com leis próprias e princípios de desenvolvimento, que são distintos das forças ecológi cas, geográficas e biológicas externas que condicionam sua existência. Desse modo, uma cultura e sua língua, tomadas em conjunto, formam um mundo autônomo de significados e existência que é, realmente, o único mundo de significado e vida, a qual é, na verdade, o único mun do do qual o indivíduo está consciente. É criado pelo homem, visto que é produto da criatividade humana e da capacidade do homem de comunicação simbólica. O indivíduo, todavia, não está ciente disso, já que tanto a cultura quanto a linguagem são processos inconscientes nos quais os homens estão imersos desde a mais tenra infância e que são a base das primeiras atividades sociais e individuais. O homem vive nessa teia multicolorida e repleta de contornos que sua cultura e história criaram, como a abelha na colmeia e o pólipo nos recifes de coral . No entanto, como todas as sociedades de insetos e de animais da mesma espécie são sempre iguais e mantêm as formas inalteradas ao longo de gerações, todas as culturas são di ferentes e possuem forças de expansão e mudança, de adaptação e assimilação, que não existem em outras formas de vida. 3 Edward Sapir, " Conceptual Categories in Primitive Languages " . ln : The Collected Works of Edward Sapir. Berl im, Mouton de Gruyter, 2008, p. 4 9 8 . (N . T. ) A Formação da C ristandade 1 Capítulo 3 Esse novo princípio de mudança dinâmica, característico da cul tura humana, é, por certo, inseparável do dom da linguagem, sem o qual a evolução da cultura seria impossível. Não há dúvida de que ao olharmos para formas de cultura tão inconfundíveis e diferenciadas como as do antigo Egito ou a da China do século XVIII e notarmos como mantiveram as instituições especiais e tradições intactas por milhares de anos, é fácil concluir que são mundos fechados, imunes à mudança e à influência externa. Tal imunidade, entretanto, é sempre relativa . Até a mais estável e estática das culturas está em constante mudança, e quanto mais adiantada se torna, maior é a capacidade de assimilação e receptividade. Uma cultura, diferente de um modo de vida animal, é um sistema aberto - aberto não só para novos co nhecimentos e modos de comportamento, mas também para outras culturas, caso possa ser estabelecida uma ponte de comunicação e contato social entre elas. Isso é possível , sobretudo, pelo fato de o indivíduo não estar atrelado a sua cultura como o animal está confinado ao próprio modo de vida pelo instinto e por hábito inatos. Cultura e idioma são adquiridos via comunicação social, de modo que a cultura do indivíduo não depende do berço, mas da educação, e os indiví duos podem ser transferidos de uma para outra cultura por um processo de reeducação e adaptação social . Mesmo quando umacultura tenta separar-se das demais culturas vizinhas por urna polí tica deliberada de exclusão e isolamento, como o Japão nos séculos XVII e XVIII, ou como hoje e outrora a União Soviética , há sempre indivíduos que, por uma ou outra razão, buscam ou são compe lidos a abrir caminhos, como prisioneiros ou reféns, mercenários ou comerciantes, missionários ou renegados, tornando-se agentes de difusão e mudança. Um prisioneiro escravizado, vítima de um ataque brusco dos bárbaros, como São Patrício, pode tornar-se o ponto de partida de um movimento de mudança religiosa e cultural que transforma toda a cultura. 1 22 l 1 23 Dessa maneira, o mundo dos homens é dividido numa multiplici dade de culturas diferentes e separadas, mas capazes de comunicação. Todas, da civilização mais alta à mais inferior forma de barbarismo, possuem certos elementos em comum: língua, religião e ritual, mora lidade, arte, tecnologia, organização social, leis e costumes, educação ou inculturação e, em muitos casos, esse elemento de paralelismo cul tural é tão nítido que o observador é levado a traduzir as formas de uma cultura estrangeira em termos da cultura que lhe é familiar. Graças a tal semelhança básica, é comparativamente fácil para um povo ou classe de conquistadores unirem diferentes culturas em uma mesma estrutura política comum, tendo por base os impostos ou a servidão, e esse pode ser o ponto de partida de um processo de difu são cultural e de fusão que, em última análise, produz uma nova cul tura . E se essa cultura é suficientemente adiantada para os homens se conscientizarem do processo de mudança, como foi o caso do império mundial da Antiguidade, a ideia de uma civilização comum começa a surgir, isso quer dizer, surge uma norma padrão de cultura que pode ser aplicada a diversas sociedades e que não são necessariamente uni formes, mas possuem certo grau de comunicação cultural . A partir daí estamos apenas a um passo da concepção de "mundo civiliza do" , um mundo que é visto como coextensivo tanto à realidade social quanto à geográfica, o "mundo habitado" ou oecumene da Grécia helenística, o orbis terrarum dos romanos, ou "todas as coisas sob o Céu " dos chineses. Assim, por milhares de anos, o homem no Oriente e no Ocidente tem visto o mundo e a humanidade desse modo uni tário, mas limitado, como um círculo de luz cercado por um halo de trevas, uma ilha de civilização em um mar de barbarismo. No início, contudo, cada povo deveria considerar-se assim, de modo que toda a cultura deve ter parecido ser a única maneira cor reta de vida possível para um homem razoável . Isso é sugerido pela frequência com que nomes tribais ou nacionais correspondem a pa lavra usada para designar "homem", como se qualquer um fora da A Formação da C ristandade 1 Capítulo 3 comunidade de fala e cultura comuns não fosse plenamente huma no. Decerto, a evolução original dos diferentes idiomas supõe certo grau de isolamento cultural, já que nunca poderiam vir a existir, caso os falantes não vivessem em mundos de pensamento e cultura diferentes, sem uma relação regular com outras sociedades. Assim, a comunidade de língua é a mais fundamental das culturas . Como o uso da língua distingue o homem dos outros animais, da mesma forma é a formação e o uso de determinado idioma que distingue uma de outra cultura . Na verdade, esse não é mais o caso quando chegamos às formas elevadas de cultura que chamamos civilização. Aí encontramos exem plos de culturas comuns com diferentes línguas, como o caso do bre tão, do provençal e do basco, que ainda são faladas por minorias que partilham a herança comum da cultura francesa. Não obstante, essas diferenças linguísticas correspondem às antigas divisões culturais e re montam a uma época em que o bretão, o provençal e o basco tinham uma existência cultural separada. Por outro lado, uma mudança lin guística é sempre acompanhada ou precedida por uma mudança cultu ral, de modo que o desaparecimento das antigas línguas nativas do sul da Europa antes do avanço do latim é prova conclusiva da importân cia das mudanças culturais que ocorreram no Império Romano. Do mesmo modo, um fenômeno linguístico menor, como o empréstimo de palavras e nomes, são provas valiosas da influência e difusão cultural; por exemplo, o turco emprestou palavras ao russo ou a presença con siderável do elemento árabe no espanhol moderno. De todos os elementos da cultura, a língua é o mais suscetível ao preciso estudo científico. É muito mais fácil traçar a exata distri buição das línguas e o relacionamento entre elas do que a relação entre instituições ou formas de comportamento social. E, desse modo, enquanto o estudo da cultura ainda está na infância e sujeito a de sordens infantis, o estudo da linguagem há muito já estabeleceu sua posição e metodologia. Na verdade, o estudo da linguagem sempre 1 24 1 1 2 5 foi uma ciência humana padrão e oferece um modelo para as outras ciências soc1a1s mais novas. Em comparação à linguagem, o estudo da antropologia física e o conceito de raça tem, comparativamente, pouca relação com a cultu ra, embora sempre tenha exercido uma influência muito deletéria no seu estudo. Sem dúvida, nas remotas eras pré-históricas, a segregação, condição de diferenciação racial, era igualmente a condição de dife renciação cultural, mas tal período é tão remoto que nada podemos dizer a respeito das características culturais. De qualquer modo, a cultura segue o próprio caminho evolutivo, independente de raça fí sica . Encontramos alguns negros que pertencem à cultura islâmica e outros que partilham a mesma cultura dos anglo-americanos ou dos brasileiros, embora as próprias culturas autóctones da África negra contenham elementos derivados de fontes não negras. É verdade que a consciência de um sangue comum, sej a real ou fictício, tem uma enorme e importante influência na unidade social e cultural, mas esse é, comparativamente, um fator de curto prazo e a unidade resultan te é tribal ou nacional, não racial. Certamente, uma nação de des cendência racial mista pode ter maior consciência de unidade e uma capacidade maior de herança cultural que um grupo relativamente puro, em termos raciais. Infelizmente, nos tempos modernos há uma tendência a exagerar o elemento racial na nacionalidade e a atribuir os elementos de mais alto valor na tradição de uma cultura às características inatas de uma suposta raça superior, e este talvez seja o maior fator isolado de mú tua intolerância e antagonismo entre nações e civilizações. Na reali dade, uma cultura se parece mais com a língua que com a raça . Como a língua é um modo particular de comunicação criado por um grupo de homens para expressar ideias e necessidades comuns, portanto, uma cultura é um modo particular de comportamento desenvolvido por um grupo de homens que os permite ter sucesso na vida, dadas as circunstâncias particulares e o ambiente . A língua, em si, é somente A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 3 uma parte da cultura, mas é o aspecto da cultura que melhor define e se destaca com maior clareza dos elementos não culturais. A cultura, como um todo, é muito mais difícil de compreender, já que encerra vários fatores, de modo que uma cultura altamente desenvolvida é, talvez, o fenômeno mais complexo que podemos estudar. Mesmo no caso de uma cultura imaginável ou da mais simples que conhecemos existem, ao menos, quatro fatores sem os quais ela não pode existir. São eles: ( 1 ) o fator sociológico, ou o princípio da organização social; (2 ) o fator geográfico ou ecológico - a adaptação da cultura ao meio ambiente físico; ( 3 ) o fator econômico - a relação entre o "modo de vida " do homem e a maneira como "ganha seu sustento" ; e (4 ) o fator moral - a regra da vida humana em conformidade com alguns siste mas de valor e padrões de comportamento. O primeiro desses fatores é tão fundamental que muitos antro pólogos trataram-nocomo o objeto único ou predominante de seus estudos, pois, a não ser que compreendamos a estrutura de uma socie dade e a natureza da unidade social, não temos bases concretas para o estudo da cultura. Cultura e sociedade são aspectos interdepen dentes de uma única realidade, e uma não pode existir sem a outra . Sem dúvida é possível conceber sociedades sem cultura : na verdade sabemos que tais sociedades realmente existem, mas são as sociedades de animais ou de insetos, e nenhuma sociedade humana pode existir sem uma forma cultural . O mesmo é verdadeiro para a família, que é a unidade social por excelência. A família biológica existe entre os animais e pode assumir uma forma comparativamente estável, mas a família humana é uma unidade cultural, bem como biológica, já que é o centro de um sistema organizado de relações sociais e a base de uma superestrutura cultural elaborada. Ao longo da história humana, desde as formas mais inferiores de barbarismo primitivo aos tipos mais avançados de civilização, a família manteve sua importância como fundamento da sociedade e veículo de continuidade cultural . Nas sociedades primitivas, sua 1 26 1 1 27 importância é ainda maior que nos tempos modernos, já que os ho mens passavam a vida em pequenos grupos organizados, em maior ou menor extensão, pelo princípio do parentesco. Nessas pequenas sociedades, a família era o centro da ordem social . Ela se resguarda va internamente com um elaborado código de restrições nupciais e regras, ramificando-se, exteriormente, numa sucessão de consangui nidades, até a maior unidade sociopolítica que conheciam - a tribo ou o povo - ser sempre vista como uma espécie de superfamília, cujas origens remontam a um ancestral mítico comum. Assim, algumas das sociedades mais primitivas que conhecemos, em particular os nativos da Austrália Central, possuem um sistema extraordinariamente com plexo de parentesco e organização social . A ênfase na família e no laço de parentesco também é encontrada na religião primitiva. A família, antigamente, não era somente o elo entre o presente e o passado; era também o laço entre o homem e o mundo espiritual. O culto aos mortos e a adoração ou veneração de ancestrais sagrados teve uma enorme e profunda influência na cultura humana. Isso ainda está vivo, hoje, na adoração familiar do hinduís mo ortodoxo e do confucionismo chinês, e reporta-se temporalmente à própria origem da cultura . Nosso conhecimento do homem pré-his tórico é derivado, em grande parte, dos indícios de tumbas e funerais, que possuíam um significado religioso e, em alguns casos, como nos monumentos megalíticos da Europa Ocidental, permanecem como tes temunhas impressivas da força da religião pré-histórica que os criou. Os povos primitivos atuais demonstram preocupação semelhante com o culto aos mortos ou aos divinos ancestrais. Um exemplo ex traordinário é o culto totêmico na Austrália, que está ligado, por um lado, ao modelo de organização social e, por outro, ao mundo sagra do dos divinos ancestrais, de modo que a cultura tradicional austra liana está centrada na consciência de uma comunidade sagrada que envolve o homem e a natureza, o presente e o passado, em modelos atemporais de cerimônias expressos nos ritos e danças tribais. A Formação da C ristandade 1 Capítulo 3 É claro que família e parentesco não são as únicas formas de organização social, mesmo nas sociedades mais primitivas. O fator local ou ambiente físico e o fator trabalho ou função econômica tam bém influenciam a estrutura da sociedade e a forma de cultura desde o início. A forma mais elementar de sociedade que conhecemos, o " bando" de caçadores ou coletores de alimentos, que possivelmente existiram até no período Paleolítico, deve sua unidade não só aos laços de parentesco, mas à unidade do território em que viviam. O ta manho do bando é limitado pelos recursos alimentares do território, e a iniciativa comum da caça ou da busca por alimentos impõe cer ta forma de cooperação e disciplina social. Essas diferenças de meio ambiente e de fontes de abastecimento alimentar e os modos de ex ploração sugerem uma diferenciação de cultura . Não é preciso muito estudo científico para perceber que habitantes das montanhas diferem de habitantes das planícies e o modo de vida de homens que caçam animais nas estepes será muito diferente daqueles que coletam nozes e bananas na floresta tropical. No entanto, somente quando os antropólogos e etnólogos ini ciaram as pesquisas é que foi possível entender quão grandes foram os feitos das culturas primitivas e com que arte e domínio técnico o homem adaptou seu modo de vida às exigências de um meio natural que, muitas vezes, parecia hostil à sobrevivência humana . Nesse par ticular, nenhuma cultura é mais impressionante que a dos esquimós no Ártico, que é incrivelmente antiga e estável, típica e altamente es pecializada. É um exemplo clássico da maneira como um povo pode aprender a se adaptar a um ambiente rigoroso e desfavorável criando modos de vida adaptados às circunstâncias particulares. A cultura esquimó é uma obra de arte - uma arte primitiva de caça e de direção de trenós puxados por cães, de lampiões de óleo de baleia e arpões de osso, caiaques e iglus, mas, mesmo assim, uma obra de arte, já que utiliza os parcos materiais que a natureza oferece com admirável habilidade e artifício para construir um mundo social que 1 28 1 1 29 é o melhor de todos os mundos possíveis para os esquimós - que se denominam innuit, os homens. Esse processo de criação cultural não era simples ou inevitável. Tem uma longa história que antropólogos e arqueólogos estão come çando a descobrir. Há, de fato, várias culturas esquimós e algumas delas seguiram caminhos diferentes, como o "povo das renas" , que basearam seu modo de vida nas renas e não nas focas, ou o dos es quimós de Point Barrow, no Alasca, que aprenderam a caçar baleias. Ao longo da história devem ter tido os próprios inventores, homens de gênio, artistas e poetas, mas as atividades ficaram, inevitavelmen te, restritas ao campo limitado ditado pelos rígidos limites impostos pelas dificuldades do meio ambiente físico, de modo que os feitos do indivíduo beiram à insignificância se comparados às grandes façanhas comunais que os permitiram sobreviver. Aqui vemos o problema da cultura definido no mais simples dos termos, como a adaptação da sociedade humana ao ambiente natural por um modo de vida especial, incorporado na associação de uma série de atividades e técnicas. E a adaptação da cultura esquimó ao ambiente físico, à primeira vista, é tão íntima que o faz parecer ser um produto natural daquele meio ambiente tanto quanto as outras cria turas do Ártico. De fato, a cultura esquimó é uma obra de arte, não da natureza, e é comparável aos procedimentos de equipagem de uma moderna expedição polar, com a diferença de que os esquimós não são exploradores, mas colonos que criaram uma série de técnicas que os tornam aptos a existir, de modo permanente, além das fronteiras da quilo que consideramos mundo habitável. Um processo semelhante de adaptação a um ambiente desfavorável pode ser visto na maioria das culturas primitivas, em geral, evoluções marginais que descobriram um modo de existência, como os bosquímanos do deserto do sul da África ou os pigmeus nas profundezas das florestas tropicais. Ao longo de toda a evolução humana, não conseguimos descobrir nenhuma cultura tão primitiva a ponto de ser totalmente determinada A Formação da C ristandade 1 Capítulo 3 pelas influências naturais do meio ambiente e da função econômica, tampouco tão avançada que não esteja condicionada por tais influên cias. Mesmo hoje, em nossa civilização tecnológica cosmopolita, so ciedades e culturas ainda são influenciadas pelo ambiente natural e pelas economias locais, bem como pelas línguas e formas de organi zação social. Tendemos a considerar globalmente todas asdiferenças sob a representação de um caráter e tradições nacionais. A nacionali dade, no entanto, é simplesmente um rótulo conveniente que simplifi ca a complexidade de realidades culturais de modo a se conformarem ao padrão unitário do Estado moderno, enquanto, ao mesmo tempo, representa a volta a ideias primitivas de grande poder de atração, como as antigas unidades tribais, o mito do sangue e dos ancestrais comuns. A verdadeira unidade da cultura, todavia, não deve ser en contrada no sangue, no território, na classe ou na função econômica. Cada um desses fatores tem importância; no entanto, nenhum deles basta para explicar a natureza íntima de uma cultura . Além de todos esses elementos parciais de uma comunidade, uma cultura é, também e, sobretudo, uma ordem moral e encerra uma comunidade de valores e padrões que oferecem um princípio de unidade interna e moral. É óbvio que os homens não podem viver juntos sem observar regras, e não há base científica para o preconceito tradicional que considerava selvageria e barbarismo como sinônimos de ilegalidade. Ao contrário, parece que as sociedades primitivas precisavam de um padrão mais rigoroso de conformidade dos membros que o das so ciedades civilizadas e que o daquelas sociedades em que a vida do indivíduo é regulada por um intrincado sistema de proibições e re gras de conduta. Tais regras não são nem puramente utilitárias nem exclusivamente morais no sentido que atribuímos a tais palavras. A distinção entre usos, costumes, leis e ritos que, para nós, é clara, não existe na sociedade primitiva . Todos esses conceitos são parte de uma enorme unidade que abraça cada aspecto da vida da tribo e do indivíduo. Tal ordem não se restringe a um só homem, ela se aplica 1 30 1 1 3 1 também à vida da natureza e se relaciona ao sobrenatural ou às forças divinas que regem o universo. Podemos objetar que esse conceito é por demais abstrato e "me tafísico" para a compreensão do homem primitivo. Entretanto, não há nada abstrato na noção de que há uma ligação entre a vida da so ciedade humana e a vida da natureza ou na crença de que são forças sagradas e misteriosas das quais tanto a natureza quanto o homem são dependentes. Tais ideias devem ser encontradas em todas as cul turas primitivas e, em qualquer lugar, o mais alto grau de importância social está relacionado aos ritos e cerimônias sagradas pelas quais pode ser obtida a aj uda das potências superiores e o ordenamento da vida humana pode ser coordenado com o ciclo da natureza. As fa mosas pinturas rupestres da Cantábria, na Espanha, e da Dordonha, na França, são a prova visível da existência de tais ritos no período Paleolítico, e sugerem comparações e semelhanças com as práticas re ligiosas dos caçadores modernos - por exemplo, o culto aos espíritos guardiões dos animais dentre os índios norte-americanos. A cultura dos caçadores do Paleolítico europeu é singular devido à alta qualidade dos feitos artísticos . Em comparação, a cultura de "primitivos" modernos, como os australianos, parece empobrecida. A cultura australiana, no entanto, apresenta uma evolução igualmen te rica em outra direção, a saber: no elaborado sistema de cerimônias e ritos totêmicos que preservam o contato da tribo com o mundo sagrado dos ancestrais divinos dos quais, também, depende a vida da natureza. Desse modo, a cultura primitiva é uma complexa e entrela çada estrutura de ritos e técnicas sagradas, símbolos, mitos, crenças e tradições, padrões morais e normas de comportamento que une as pessoas como uma unidade moral. Dentro dessa unidade o indivíduo passa toda a vida. Isso lhe con fere posição social e função, ensina o que fazer e o porquê de fazer assim, e confere um senso de participação em uma comunidade que transcende a sua experiência pessoal . A Formação da C ristandade 1 Capítulo 3 Decerto, a famosa passagem que Edmund Burke ( 1 729-1 797) es creveu a respeito do contrato social se aplica muito melhor às socie dades primitivas que ao Estado do século XVIII: Não é uma associação com vistas a assegurar a grosseira existência animal de uma natureza efêmera e perecível . [ . . . ] é uma associação que leva em conta toda a ciência, toda arte, toda virtude e toda perfeição, e como os fins de tal associação não são obtidos em muitas gerações, [ . . . ] torna-se uma associação não só entre vivos, mas também entre os que estão mortos e irão nascer.4 A universalidade e perfeição espiritual da cultura primitiva, con tudo, possuí um empecilho, e de natureza fundamental . Uma cultura primitiva é inteligível somente para si mesma. Para o mundo exterior não possui significado ou valor. Quando o primitivo está executando os grandes ritos de renovação mundial que reestabelecem a vida da Terra e evitam a fome e os terremotos, o estrangeiro nada vê além de um grupo de selvagens maltrapilhos que se movem em círculos, fazem gestos estranhos e emitem sons ininteligíveis. Se o estrangeiro é um homem inteligente, pode, por fim, ficar a par do significado de tais ritos e aprender a apreciar o espírito da cultura; mas, antes disso ocorrer, é bastante provável que tal cultura tenha sido destruída e a tribo dispersa pelas forças da mudança . Uma cultura é algo muito frágil e o delicado equilíbrio de sua estrutura social é ar ruinado assim que os limites espirituais são rompidos e os membros, individualmente, perdem a fé na validade e eficiência dessa ordem mo ral. O poder estrangeiro pode ser humano: pode ter o cuidado de res peitar a vida e a propriedade dos nativos, mas à medida que introduz a própria lei, destrói ou desrespeita os valores morais tradicionais do povo, corta as raízes vitais da antiga cultura e mina a vitalidade social. 4 Edmund Burke, Reflexões sobre a Revolução em França. Apres. Connor Cruise O'Brien; trad. Renato de Assumpção Faria, Denis Fontes de Souza Pin to e Carmem Lídia Richter Ribeiro Moura. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1 982, p. 1 1 6 . (N. T. ) 1 32 l 1 33 O mundo de cultura primitiva é um mundo de unidades isola das. Cada cultura é um mundo fechado que pode sobreviver somen te enquanto permanecer como um todo intacto. Se é assim, como surgiram as sociedades altamente civilizadas ? Não podemos ignorar a existência de tais civilizações, pois agora ocupam o mundo, e os remanescentes das culturas primitivas só existem, por assim dizer, em sofrimento. Não obstante, houve um tempo em que esses grandes im périos culturais que chamamos de civilizações não existiam e não ha via nada no mundo senão uma multidão de culturas primitivas, todas pequenas, frágeis e separadas umas das outras por barreiras aparente mente intransponíveis de diversidade linguística e cultural . O fato de a mudança ter realmente acontecido demonstra que há um elemento dinâmico na cultura humana que é capaz de romper as barreiras entre os homens e de criar áreas cada vez maiores de comunicação. A civilização, assim como as unidades culturais mais simples, também encerra um princípio de ordem moral. Vemos isso com ex cepcional clareza no caso da China - melhor dizendo, da China con fuciana, que ficou preservada por mais de 2 mil anos pelo que parecia uma norma imutável, baseada no código de ética e nos padrões de comportamento confucianos. O mesmo é verdade para outras cultu ras mundiais como a Índia e o islã, o budismo tibetano, o judaísmo e, finalmente, o cristianismo no Ocidente. As civilizações mundiais são as grandes estradas muito utiliza das que a humanidade tem viajado ao longo da história e que, em todos os casos, os homens acreditaram seguir o caminho indicado pela divindade. No passado muitos acreditaram e, hoje, acreditam que suas civilizações não são meras formas de organização social que evoluíram ao longo dos séculos, mas são algo que depende de uma ordem divina transcendente revelada nos escritos inspirados dos profetas e dos legisladores que lançaram os fundamentos daquelas culturas . Todas as grandes civilizações foram originalmente, como dizem os muçulmanos, " povos do livro " . Todas possuíam um A Formação da C ristandade 1 Capítulo 3 corpus de escrituras sagradas, cada uma tinha a própria língua sacra e ordem de mestres sagrados, treinados no estudo ou interpretação dos escritos e ritos sagrados. Eruditos confucianos na China, brâma nes na Índia, ulemás no Islã, rabinos j udaicos e presbíteros cristãos. Existe, portanto, uma relação íntima entre as civilizações e religiões mundiais que perdura há um longo período e que devemos estudar, caso desejemos compreender os ideais que inspiraram essas grandes unidades culturais, que em muito transcendem as unidades políticas e nacionais e que tendemos a ver como realidades sociais máximas. Nem o advento de uma sociedade tecnológica mundial mudou tal visão, pois é uma simples ordem exterior. Não traz consigo uma nova ordem moral . No plano moral, portanto, ainda existem as influências das antigas tradições religiosas a modelar os modos de pensar e de agir dos homens. C a p í t u l o 4 1 O C r e s c i m e n t o e a D i f u s ã o d a C u l t u r a 1 34 l 1 3 5 Vimos que aquilo que distingue a cultura humana dos modos de vida das sociedades animais é não ter um modo de comportamento comum a todos os membros da espécie, mas possuir algo que pode ser aprendido e transmitido de homem para homem, de grupo para grupo e de geração em geração. Essa capacidade única do homem de transmissão de tradição e cultura se deve à faculdade da língua e aos processos de raciocínio que lhe são inseparáveis. Na verdade, a língua é, ela mesma, tradição, não uma faculdade inata, e por intermédio dessa tradição linguística é mantida a continuidade da cultura e se torna possível o processo de mudança cultural . Todos os diferentes elementos da cultura possuem essa caracte rística tradicional . A vida econômica e respectivas técnicas são uma tradição aprendida pelo indivíduo e transmitida pela sociedade, de maneira que esta vem a possuir uma riqueza de técnicas acumuladas, originadas em diferentes períodos e preservadas pela tradição da cul tura . Dessa maneira, as formas mais modernas de cultura ainda são dependentes, em grande parte, das conquistas técnicas de um passado remoto. A domesticação do gado, o cultivo dos grãos, o arado e a roda são, todos, elementos integrais da economia moderna que tive ram origem no Período Neolítico. Isso também vale para as formas de organização social que de terminam a estrutura da sociedade. Cada instituição social represen ta uma tradição social estereotipada; tribos, nações e Estados são A Formação da C ristandade 1 Capítulo 4 corporificações de tradições sociais contínuas. Por fim, cada religião humana, da mais simples a mais elevada, é uma tradição espiritual e, por meio dessas tradições espirituais, é que o homem, primeiramente, adquire a consciência da cultura. A ascensão de culturas mais adian tadas no Oriente Próximo, como também na América Central num período muito posterior, está intimamente relacionada ao desenvolvi mento da instituição do templo e do sacerdócio do templo - ou seja, uma classe profissional de especialistas dedicados à manutenção da tradição sagrada de ordem ritual . A invenção da escrita, de inestimá vel importância para a transmissão da cultura, foi obra dessa classe e, assim, a tradição religiosa se tornou a fonte da tradição histórica em sentido estrito. Decerto, não há limite à sobrevivência e influência da tradição cultural quando esta chega a adquirir expressão literária, como vemos no caso da cultura clássica chinesa no Oriente e no das culturas gregas e latinas no Ocidente . As tradições literárias sugerem um aumento imenso na amplitu de e profundidade da memória social e da consciência cultural, mas não são indispensáveis. Cada cultura, mesmo a mais inferior, tem sua tradição, e cada tradição, que depende da língua e não da imitação di reta, sugere a existência de uma memória social. Ademais, mesmo nas culturas não letradas essa memória social pode tornar-se altamente desenvolvida, de modo a tornar a sociedade consciente de seu passa do num sentido estritamente histórico, como no caso das genealogias reais e as histórias de migração e colonização características dos po linésios e de alguns povos da África como os baganda e os iorubás. É, portanto, impossível admitir que a consciência e a tradição históri cas estejam restritas às formas mais elevadas de cultura . Por outro lado, é claro que a tradição cultural transcende a tra dição histórica. As culturas mais adiantadas têm uma riqueza acu mulada de tradição, boa parcela transmitida por povos cujos nomes já foram esquecidos. Conhecemos muito pouco das leis de herança cultural e dos processos pelos quais a tradição é transmitida de uma 1 36 l 1 37 cultura para outra . No entanto, esse é o fator mais importante de todos na manutenção e expansão da cultura . Somos inclinados a ver a "tradição" como uma força negativa, conservadora, inibidora, mas, na realidade, é o principal veículo da mudança. Não que a tradição transforme, automaticamente, por leis internas próprias de evolução, mas por causa do contato cultural ou do encontro de duas tradições culturais diferentes é iniciado o processo de mudança que perdura até produzir uma nova cultura. A antropologia e a arqueÓlogia modernas constantemente tendem a aumentar a importância do fator de difu são externa em comparação com a evolução interna no progresso da cultura; e o principal agente de difusão é a tradição. Realmente, ao falarmos de difusão cultural queremos dizer a expansão ou a comu nicação de uma tradição. A importância do elemento tradicional na mudança cultural, muitas vezes, é ocultada pela terminologia que confina a palavra ao elemento do processo cultural que resiste à mudança . Contudo, se considerarmos um caso típico de mudança cultural nos períodos his tóricos, tais como a reorganização dos Estados russos por Pedro, o Grande ( 1 672- 1 725 ) ou a modernização do Japão na segunda metade do século XIX, veremos que não é somente um caso de subversão da ordem tradicional por uma mudança revolucionária, mas, antes, um conflito entre duas tradições diferentes, uma nativa e outra importa da, de modo que a derrota de uma é a vitória da outra. A importância desse tipo de mudança cultural é particularmente óbvia na Idade Moderna. Durante os últimos quatro séculos, a civili zação do mundo não europeu foi completamente modificada, não por uma evolução interna, mas por um movimento de difusão cultural que teve origem na Europa Ocidental . Em alguns casos, como nas Américas, essa difusão assumiu a forma de uma verdadeira transfe rência de população da Europa, via colonização, acompanhada de um transplante total de instituições sociais e técnicas econômicas. Em outros casos, como na Índia e na Indonésia, esteve associada à A Formação da C ristandade 1 Capítulo 4 conquista europeia e ao controle político, uma vez que em todos os demais lugares, como no Japão do século XIX, houve a aceitação vo luntária, por parte dos povos asiáticos, da tradição cultural europeia para preservar a independência ou para aumentar o poder. Por fim, há inumeráveis exemplos da disseminação da cultura europeia em meio aos povos menos desenvolvidos, de um lado, pelo comércio europeu ou por incursões de missionários, e, de outro, pelo processo espontâ neo de imitação ou apropriação. As formas simples de difusão cultural por colonização, por con quista e por contato sempre foram de primordial importância e se reportam aos tempos pré-históricos. Representam, todavia, somente um lado do processo de mudança cultural. Não explicam o processo de mudança interna da própria tradição, que é a fonte das mudanças mais fundamentais na cultura - a origem da agricultura, da cidade, da escrita, da filosofia grega ou da ciência moderna . Esse é o problema da invenção cultural ou descoberta - o fator mais misterioso e impressionante do talento individual, e não nos surpreende o fato de o homem do passado tender a atribuí-lo a algum deus ou herói divinizado que considerava a suprema fonte de cultura, por exemplo, Atena, a deusa da sabedoria, que emergiu, totalmente armada, da ca beça de Zeus, ou Prometeu, o portador do fogo, que roubou o dom do fogo dos desconfiados deuses. Mesmo nos tempos modernos, em que as origens de uma desco berta podem ser investigadas com maiores detalhes, há semelhante tendência de exaltar a iniciativa inventiva do gênio individual e de tornar a história da ciência ou da pesquisa num cortejo de grandes nomes. Mas, visto que é impossível negar a realidade do talento in dividual e os feitos criativos dos indivíduos, esse é o único lado da história . Um gênio também é um membro da sociedade, portador de uma determinada cultura e um elo na tradição. A não ser que as con dições da cultura do gênio sejam favoráveis, ele não pode agir, e mes mo que o faça, sua descoberta será inútil . As invenções são passos de 1 38 l 1 39 um processo cumulativo. Não surgem do nada, mas aparecem como parte de um processo social de cooperação, de pensamento competi tivo e de debate. Desse modo, por trás de toda invenção individual, temos uma tradição e cultura de engenhosidade. Exemplos de tais tradições criativas devem ser vistas no pensamento e na ciência gregos dos séculos VI a III a .C. , a tradição científica europeia do século XVI em diante, e a tradição tecnológica ocidental desde o século XVIII. É claro que tradições criativas semelhantes existiram num passado remoto, particularmente, no alvorecer da história, na Mesopotâmia, onde muitos dos elementos de civilização superior parecem ter-se ori ginado ao mesmo tempo, ou em íntima associação, por volta do início do terceiro milênio antes de Cristo. A origem de tais tradições criativas é o maior problema da his tória humana, e quanto mais recuamos em direção à Pré-história, torna-se ainda mais misteriosa . Não obstante, no caso das culturas de que temos indícios históricos, é possível apontar determinados fato res gerais que parecem favorecer a excepcional originalidade cultural. A atividade cultural, por exemplo, parece ser maior em regiões onde há mistura de raças, de tradições sociais, e que as oportunidades de contato cultural e de fertilização recíproca são maiores, sobretudo nos casos em que há o encontro e a fusão de duas tradições cultu rais distintas e socialmente conscientes, e surge a uma nova unidade cultural . Outro caso é o da conquista de uma cultura relativamente avançada e antiga por um povo mais " jovem" e vigoroso que adora a cultura conquistada e atua como agente de difusão. Um exemplo notável desse processo foi a adoção do latim carolíngio e da cultura bizantina eslava pelos colonizadores vikings no norte da França e na Rússia Ocidental no século XI, seguida pela extraordinária expan são cultural dos normandos no Ocidente e do Principado de Kiev no Oriente. Há também o caso da expansão não militar e não colonial de uma cultura elevada pela atividade de missionários e conversão religiosa, cujos exemplos são a introdução da cultura latina cristã na A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 4 Irlanda e na Inglaterra nos séculos V e VII, a introdução do budismo hindu na China e do budismo chinês no Japão. Por mais importantes que sejam tais processos de contato cultu ral, contudo, eles sempre são secundários . Não explicam a gênese dos fatores componentes, e não podemos excluir a possibilidade de uma tradição criativa surgir de um solo virgem, sem estímulo externo de contato cultural ou de miscigenação racial . Mas é difícil encontrar exemplos disso, já que os únicos exemplos modernos que podemos estudar de culturas "puras" sem nada dever ao contato cultural ten dem, como sói acontecer, a ser estáticas e sem criatividade. Toda cultura, de fato, tem dois aspectos diferentes. Pode ser vista como uma produção orgânica, como uma árvore cujas raízes estão na terra e produz folhas e frutos por um comando interno da própria natureza específica; ou pode ser vista como um fluxo contínuo de tradição, como um rio que é alimentado por centenas de nascentes e fica mais extenso ou mais profundo conforme o desaguar dos afluen tes ao longo do curso. Assim, quando a estudamos historicamente como evolução de uma tradição, ressaltamos o caráter abrangente e cumulativo - a capacidade de apropriar-se dos elementos de outras culturas, de aceitar e assimilar outras tradições culturais. Ambos os aspectos estão presentes, até certo ponto, em todas as culturas . Todas as culturas são, em determinada medida, sistemas fechados ou regras de vida que resistem à mudança e expulsam o que é estranho às próprias tradições como algo bárbaro ou ímpio. Apesar disso, até a cultura mais conservadora tem história e processos de mudança próprios, e nenhum deles fica totalmente incólume à difusão cultural, a menos que esteja completamente isolado por fatores geo gráficos, como era o caso da Tasmânia antes do século XIX. É verda de que a apropriação de determinados elementos de uma cultura es trangeira pode não produzir nenhum abrandamento da tensão e dos conflitos culturais. A aquisição do cavalo e do mosquete pelos índios das planícies transformou totalmente suas culturas, mas ao mesmo 1 40 l 1 4 1 tempo aumentou a resistência à penetração europeia . Como regra, no entanto, a difusão da cultura material é acompanhada por certa difusão da cultura espiritual. O comerciante e o missionário seguem, um, as pegadas do outro, e o mesmo processo deve ter acontecido na Pré-história, quando a difusão da religião ou culto megalítico abriu caminho para o desenvolvimento do comércio e a difusão da cultura material ao longo do litoral atlântico da Europa Ocidental. No passa do, os antropólogos concentraram a atenção nas formas mais simples de cultura, tais como a dos aborígenes autralianos, dos melanésios e dos índios pele vermelha. Mesmo assim, encontraram tais culturas muito mais elaboradas e ricas em tradição do que j amais imaginaram os missionários e exploradores que os viram pela primeira vez. Entretanto, as culturas mais adiantadas com as quais o historia dor está preocupado são, imensuravelmente, mais complexas, de modo que o historiador acadêmico tendeu, no passado, a limitar-se à simples narração dos acontecimentos e à crítica das fontes literárias em que baseava a própria narrativa. Mas isso nem sempre foi assim. Heródo to (485-420 a .C. ) não foi apenas o "pai da história" , mas também o pai da etnografia e até mesmo de um estudo comparativo de culturas, ao passo que Tucídides (460-400 a .C. ) e Políbio (203-120 a .C. ) não estavam cientes das forças sociológicas que determinaram o curso da história. Também não é assim hoje, pois a história dos tempos moder nos seguramente ampliou o escopo e a profundidade, de modo que não mais se satisfaz com o registro dos eventos, todavia, dedica-se à total compreensão do passado pelo estudo do progresso das instituições, da economia e da religião de uma determinada sociedade. Desse modo, tanto a história como a antropologia culminam no estudo da história da cultura, e uma disciplina não pode dispensar a ajuda da outra . De fato, o progresso da arqueologia científica está tornando a distinção de história e pré-história cada vez mais artificial, e estamos começando a perceber a unidade e continuidade fundamen tal da cultura humana. A Formação da C ristandade 1 Capítulo 4 Isso é visto, com excepcional clareza, no caso do antigo Egito, que representa o exemplo mais perfeito de uma cultura que preser vou a identidade e a individualidade intactas por milhares de anos. Aí vemos o rio da tradição fluindo como a sua matriz, o Nilo, das trevas da barbárie pré-histórica, atravessando o Antigo, o Médio e o Novo Império até, por fim, chegarao Mediterrâneo e à Alexandria, a cidade do mundo helenístico. O estudo dessa grande tradição se tornou uma ciência especial que deve mais à arqueologia que aos indícios literários, e tanto está preocupada com a pré-história pré -dinástica, como se importa com a história dinástica do segundo milênio antes de Cristo. Por outro lado, lançou uma torrente de luz na cultura helenística e romana e nos movimentos religiosos do mundo " antigo" (que do ponto de vista egípcio era, na verdade, um mundo bem moderno) . Durante todo o curso de sua história e remontando aos tempos pré-históricos, o fator que deu ao Egito unidade e coesão internas foi a tradição religiosa altamente original e singular que dominou toda a ordem da vida social e política egípcia, e sem a qual a cultura egípcia é inconcebível . Como escrevi noutra de minhas obras: É de fato um dos espetáculos mais impressionantes na história ver to dos os recursos de uma grande cultura e de um Estado poderoso orga nizados não para guerra e para a conquista, nem para o enriquecimen to de uma classe dominante, mas simplesmente para prover o sepulcro e dotar as capelas e os túmulos-templos dos reis mortos. E a inda assim foi precisamente essa concentração na morte e na pós-vida que deu à civilização egípcia sua notável estabilidade. O sol e o Nilo, Rá e Osíris, a pirâmide e a múmia, enquanto perdurassem, parecia que o Egito devia permanecer, sua vida ligada na interminável roda de preces e de observâncias rituais . Todos os grandes desenvolvimentos da arte egíp cia e de aprendizado cresceram a serviço dessa ideia religiosa central, e quando, na era da decadência final, potências estrangeiras apossaram -se do reino sagrado, líbios e persas, gregos e romanos, todos acha ram necessário " levar presentes a Hórus" e disfarçar seu imperialismo iniciante sob as formas da velha teocracia solar, a fim de que a maqui naria da civilização egípcia pudesse continuar a funcionar. 1 1 42 l 1 43 Quando essa tradição religiosa chegou ao fim, no século IV, com a conversão do Egito ao cristianismo, a revolução cultural que ocorreu foi muito mais fundamental que qualquer outra catástrofe política. E toda a vida foi mudada . O resultado dessa revolução, contudo, não foi aquilo que poderíamos esperar. Apesar de quase mil anos de dominação helenística, o Egito não foi absorvido na cultura ecumênica da cristandade bizantina para a qual parecia pre destinado pelo longo período de influência helenística . Submergiu e foi absorvido pela nova religião do islã, que teve origem na Arábia e disseminou-se rapidamente na Ásia Ocidental e no norte da África, dos rios Oxo e Indo ao Oceano Atlântico e a cordilheira dos Pire neus e, desde então, permaneceu como parte integrante dessa grande unidade cultural "afroasiática " . Esse é um exemplo clássico do tipo de problema que requer uma nova ciência de história cultural ou de mudança cultural para chegar mos à solução, já que transcende o escopo tanto da história como da antropologia e da religião comparada, como foram compreendidas até o momento. É um problema real, todavia, que pode ser elucidado caso as contribuições esparsas de várias especialidades independentes possam ser coordenadas e enfocadas para tal fim. O mesmo é verdadeiro para a própria cultura mundial resultante. Não há nenhuma história verdadeira do islã, nem um conhecimento da teologia islâmica, ainda que profundo, que possa explicar totalmente a cultura islâmica. Não obstante, o islã é uma realidade que é parte do mundo contemporâneo e se estende do Oceano Atlântico ao Pacífico e da Ásia Central a África Central. Ao observador superficial, pode parecer 1 Christopher Dawson, Progresso e Religião. Apres. Joseph T. Stuart; pref. Christina Scott; intr. Mary Douglas; trad. Fabio Faria . São Paulo, É Realiza ções, 201 2, p. 159 . (N. T. ) A Formação da C ristandade 1 Capítulo 4 uma coleção de ruínas de raças e povos - árabes e turcos, hindus e persas, negros e berberes - sem nenhum princípio material ou social de unidade. No entanto, apesar de tudo, o islã ainda está muito vivo e o mesmo po der que rompeu com a unidade do Império Bizantino no século VII foi forte o bastante para romper a unidade da Índia em 1 947. Aí, então, temos o caso de um novo modo de pensar e de vi ver, surgido há uns mil e trezentos anos no coração da Arábia, que se perpetua por uma tradição ininterrupta espalhada pelo Oriente e Ocidente, engolindo os centros da civilização mais elevada no Orien te Próximo e penetrando profundamente na savana africana e na selva malaia. E, onde quer que tenha ido, levou consigo não só a fé e a lei, mas também imprimiu uma marca profunda no gênio e na personalidade humanas, de modo que o negro muçulmano no Sudão Ocidental é de tipo bem diferente do conterrâneo pagão - diferente não só no vestir, falar e gesticular, mas também na forma de pensar e na base de valores . Tal expansão, sem dúvida, é um dos exemplos mais notáveis de difusão cultural que nos é conhecido e teve lugar no mundo histórico, de modo que podemos traçar toda a evolução desde a fonte até o apogeu. Apesar de o islã ter-se destacado de outras formas de cultura mundial pela rapidez com que se desenvolveu e difundiu, é igualmen te impressionante o seu conservadorismo e a capacidade de resistên cia à mudança cultural . Mesmo hoje, a sociedade muçulmana é mais impenetrável às ideias exteriores e está mais firmemente presa ao seu modo de vida tradicional que qualquer outra cultura . Nesse particular, o islã é atípico, j á que seu extraordinário po der de difusão externa não tem relação com nenhum processo de evolução interna ou crescimento . Alcançou o pleno desenvolvimen to no início da própria história e preserva as características origi nais como um estereótipo que se repete imutável, infinitas vezes. Como foi no início, do mesmo modo é hoje e assim deverá ser enquanto existir. 1 44 l 1 45 Isso se deve, sobretudo, ao caráter religioso. O islã não é, como a cristandade, um produto secundário de uma religião mundial, é a própria religião. Islã, por definição, nada mais é que um ato de sub missão à vontade de Deus como revelado pelo profeta . A comunidade do islã é tão-somente uma irmandade de fiéis, e está unida, de manei ra indissolúvel, à experiência única de um homem que imprimiu sua marca no pensamento e na vida de centenas de milhões de pessoas, ao longo de mais de um milênio. Dessa maneira, o sucesso do islã foi devido à própria simplicida de. Criou uma fé e uma comunidade que transcendeu as divisões com plexas da sociedade árabe tribal. Tal fé comum inspirou na comuni dade um dinâmico espírito militante que a ampliou, e cada nova onda de expansão trouxe um influxo de convertidos que, pela aceitação do islã, se tornaram membros de uma nova comunidade. E, visto que a comunidade era abrangente - tanto um Estado como uma religião -, também era a portadora de uma cultura comum, que absorveu e transformou as culturas dos povos conquistados . Até certo ponto, tal cultura, nas primeiras fases, era parasitária, já que dependia de cidadãos não assimilados, não só para obter recursos econômicos, mas também para conseguir técnicos e administradores capazes que ofereciam os serviços ao conquistador. Ademais, a instituição da es cravidão teve um papel maior no islã do que em qualquer das grandes culturas que lhe foram contemporâneas. Particularmente, a institui ção da escravidão militar, característica do islã, resultou na formação de Estados de escravos como o sultanato dos mamelucos do Egito, entre 1250 e 1 5 1 7, e os reis-escravos turcos de Delhi, entre 1206 e 1398 . Talvez esses sejam os exemplos mais impressionantes na histó ria de Estados que existiram sem nenhuma base nacional ou raízes no território. O elemento parasitário no islã, todavia, não foi um sinto ma de decadência. A grande era da cultura islâmica, tanto no Oriente como no Ocidente,foi um período em que esse elemento esteve em evidência e o elemento não muçulmano era mais abundante. Quando A Formação da C ristandade 1 Capítulo 4 o processo de absorção foi completado e toda a sociedade se tor nou muçulmana, a cultura islâmica se tornou estacionária e, até certo ponto, retrógrada e decadente, embora nunca tenha perdido as con vicções religiosas e o poder de resistir às culturas estrangeiras. Vemos isso, em especial, no islã ocidental, em que os brilhantes feitos cultu rais da Idade Média, a época de Averróis ( 1 126-1 1 9 8 ) e lbn Khaldun ( 1 332-1406 ) , terminaram repentinamente com a reconquista cristã da Espanha e foi seguida por um período de estagnação e decadência em que as cidades do norte da África se tornaram centros de Estados predatórios que viviam da pirataria e do tráfico de escravos. Também no século XIX, a única região em que o islã continua va a expandir foi na África negra, onde as condições ainda se pare ciam com a dos tempos primitivos e onde os Estados muçulmanos do Sudão Ocidental e do leste da África ainda podiam continuar uma guerra santa e incorporar novas tribos e povos para o domí nio do islã. Esse também não foi um movimento puramente exte rior de conquista e exploração, incluía o desenvolvimento de uma nova forma de cultura negro-muçulmana, expressa pela criação da língua suaíli, que se tornou uma língua viva em grande parte do leste da África . Assim, apesar da rigidez interna e do conservadorismo, o islã ain da é uma cultura dinâmica que não perdeu a força de difusão. Difere enormemente, entretanto, de outras culturas, em especial do tipo de cultura autóctone simples, tais como vemos no Antigo Egito, à qual dificilmente pode ser comparado. De fato, é uma espécie de super cultura que incorpora um número muito grande de antigas unidades culturais sem absorvê-las totalmente. Veremos que isso não é uma peculiaridade do islã, mas uma situação presente em outras cultu ras mundiais, embora nenhuma delas tenha lidado com tal fenômeno como o islã. Ainda que aceitemos tal situação como normal, devemos sempre lembrar a existência dessas culturas submersas, pois o erro de deixá-las de lado é responsável pela simplificação excessiva que 1 46 l 1 47 arruinou os estudos culturais e perverteu muitos dos "filósofos da história" e as teorias da evolução da civilização no passado. Uma subcultura pode possuir uma riqueza imensa em termos de tradição intelectual e religiosa. Esse foi o caso de muitos povos do minados pelo islã - o dos parsis na Índia Ocidental e, sobretudo, dos judeus, que realizaram a maior de todas as diásporas. Apesar de todo o empenho dos judeus de se manterem afastados dos gentios, e dos gentios de excluírem os judeus da vida social, em todos os lugares os judeus exerceram considerável influência cultural - fosse nos mundos helenístico e romano, no islã ou na Europa Ocidental. E, já que mui tas vezes ocuparam posições-chave nas culturas dominantes, como funcionários públicos, médicos da corte, banqueiros e comerciantes, eruditos e beletristas, a influência deles não é proporcional à quanti dade de judeus no mundo. É difícil exagerar a importância da parcela que cada subcultu ra pode representar na difusão da cultura, especialmente quando, como no caso dos judeus, é comum a duas culturas mundiais e faz a ponte entre o Oriente e o Ocidente. É verdade que a existência de uma cultura especificamente judaica muitas vezes foi negada, e uma das principais autoridades nesse campo de estudo cultural, o profes sor Alfred L. Kroeber ( 1 876-1 960) , descreveu o judaísmo não como uma cultura, mas como "uma quase casta social baseada, originária e primariamente, na religião " .2 Não obstante, os judeus são um povo autêntico com um modo de vida inconfundível e tradição religiosa e social excepcionalmente fortes, e o simples fato de não terem unidade geográfica e, até hoje, pouca autonomia política, não é suficiente para desqualificar sua posição cultural. Uma subcultura desse tipo é uma cultura verdadeira, mesmo que exista em um estado velado e não possa alcançar a total expres são externa, pode ter uma atividade cultural maior que muitas das z Alfred L. Kroeber, Anthropology. New York, Harcourt, 1 948, p. 279. A Formação da C ristandade 1 Capítulo 4 culturas normais, que estão livres para se desenvolver nos próprios ambientes territoriais. De fato, as subculturas, as culturas e as super culturas, todas, desempenham uma parte indispensável no processo total de crescimento e difusão da civilização. É fácil imaginar um mundo em que cada cultura tenha o próprio lugar no tempo e no espaço e trace um percurso, do nascimento à morte, segundo um modelo spengleriano. Esse não é, no entanto, o mundo que conhe cemos: o mundo histórico em que o rio da tradição nunca deixa de fluir e onde o crescimento cultural é inseparável do contato e da difusão culturais. Nele, todo o processo cultural é uma imensa rede intercomunicante de modelos culturais e tradições. Todo um grupo de culturas pode ser introduzido pela influência unificadora de uma supercultura, de modo que pareça que perderam a identidade ou mesmo a existência. No entanto, algumas das tradições desse grupo são incorporadas na cultura dominante e outras vivem sob a super fície, na vida subcultural . Quando os mongóis destruíram a capital do mundo muçulma no em 1258, um representante da subcultura armênia, Kirakos de Gandzak ( 1200-1271 ) louvou sua queda ressaltando as mesmas coisas que alegraram o profeta hebreu na queda de Nínive quase 2 mil anos antes. E a semelhança não é simplesmente o resultado de uma situação parecida; ela se deve à sobrevivência de uma tradição literária e de um posicionamento espiritual que foram passados de uma subcultura para outra, enquanto sucessivos impérios mundiais surgiam e desapa reciam. Dessa maneira, a voz de uma cultura desaparecida sempre se fará ouvir após estar submersa e esquecida por muito tempo. São, entretanto, as culturas das grandes religiões mundiais que moldam o curso da civilização e possuem uma espécie de posição supercultural, ainda que nem sempre num grau tão distinto quanto o islã . Desse modo, no Extremo Oriente temos a tradição confuciana da China que esteve intimamente relacionada coma religião estatal do antigo império chinês e continuou a dominar não só a cultura 1 48 l 1 49 chinesa, mas todas as outras culturas da região até as mudanças revo lucionárias do século XX. Em um segundo momento, na Índia, temos a tradição igualmente antiga do bramanismo, cujas origens remontam o início da cultura ariana na Índia e que continuou a modelar a vida da sociedade hindu até os dias de hoje. Profundamente relacionada a ela está a segun da religião mundial da Índia, o budismo, cuja influência vai desde a Mongólia e o Japão até o Sri Lanka e o Camboja . Essas são as três grandes religiões do Oriente, e, de modo cor respondente, encontramos três grandes religiões no Ocidente: o ju daísmo, o cristianismo e o islamismo, que estão historicamente inter -relacionadas e partilham certas características comuns que as distin guem das demais. Por fim, entre o Oriente e o Ocidente existiu, an teriormente, uma sétima religião mundial, o zoroastrismo, a religião persa que exerceu grande influência na cultura do Oriente Médio no passado, mas hoje quase desapareceu, e é representada apenas pela pequena comunidade Parsi na Índia Ocidental . Essas seis ou sete grandes religiões são o grande fator unificador na civilização do mundo. São, por assim dizer, as estradas espirituais que levam a humanidade ao longo da história, da remota Antiguidade até os tempos modernos. Os caminhos não são equivalentes ou neces sariamente competitivos. As três religiões ocidentais, todas monoteís tas e sujeitas à ideia de uma revelação divina particular, são, sem dúvi da, competitivas e, num certo sentido, são o budismo e o bramanismo que oferecemsoluções alternativas a uma série de problemas comuns. Em geral, contudo, é correto dizer que no caso da Índia, China e Eu ropa, os fatores da separação geográfica e histórica são tão grandes que suas religiões têm-se desenvolvido não como sistemas rivais de pensamento e crença, mas como tradições espirituais de três mundos diferentes que foram unidas pela expansão material e tecnológica da civilização ocidental nos tempos modernos. No passado, todas es sas religiões mundiais, com exceção do judaísmo, formavam o que A Formação da C ristandade 1 Capítulo 4 chamei de superculturas - formas comuns de fé e de ordenamento moral que abarcavam e uniam grande número de culturas anterior mente existentes nas próprias línguas e histórias. O problema hoje é se essas grandes culturas mundiais vão se amalgamar e gerar uma abrangente civilização mundial tendo por base a moderna ciência e tecnologia. Ainda que possamos, no en tanto, tomar isso como algo inevitável, não posso dizer que tal ci vilização mundial exista no presente. Temos as condições materiais para a unidade mundial, mas ainda não existe nenhuma ordem moral comum, sem a qual a verdadeira cultura não pode existir. Todo o mundo moderno usa as mesmas roupas, dirige os mesmos carros, as siste aos mesmos filmes, mas não possui valores éticos comuns ou um senso de comunidade espiritual, ou ainda, crenças religiosas comuns. Temos um longo caminho a percorrer antes que uma comunidade es piritual desse tipo seja concebível, e, enquanto isso, o que chamamos de civilização moderna permanecerá uma área de conflito - um caos de ideologias, instituições e padrões morais conflitantes. PARTE II O s P r i m ó r d i o s d a C u l t u r a C r i s t ã C a p í t u l o 5 1 A I d e i a C r i s t ã e J u d a i c a d e R e v e l a ç ã o l 1 53 Acabamos de ver como todas as grandes civilizações do mun do, no passado, foram associadas ou identificadas com uma tradi ção religiosa, e que essas tradições pressupõem a existência de uma revelação divina incorporada em um cânone de escritura sagrada . Essas tradições religiosas foram, originalmente, consideradas úni cas e exclusivas. Cada uma delas era uma tradição secreta, ciosa mente guardada por uma classe sacerdotal ou casta, e em alguns casos, como na Índia, as penalidades mais severas eram decretadas contra o forasteiro ou o membro de uma casta inferior que tentasse familiarizar-se com os mistérios sagrados. Foi com a chegada dos impérios mundiais que surgiu a ideia de que tais tradições eram modos alternativos de expressar a mesma verdade - em particular no império mongol, onde o grande Khan explicou seu ponto de vista para um missionário ocidental , ao comparar as cinco religiões aos cinco dedos de uma mão. Nesse caso, o motivo, provavelmente, não era teológico ou metafísico, mas político. O império mundial deve fazer com que as diferentes religiões cooperem em um vasto sistema imperial . Seja como for, não deve haver dúvidas de que a ideia de revelação foi desenvolvida de maneira independente dentro de cada uma das grandes culturas, e que em muitos casos, em especial, no caso do ju daísmo, do cristianismo e do islamismo, lhes foi anterior. Há, de fato, uma extraordinária analogia entre a ideia de cultura humana, como A Formação da C ristandade 1 Capítulo 5 desenvolvida pelos antropólogos modernos, e a ideia de revelação, do modo como foi tratada pelos teólogos antigos . A cultura é o modo de vida humano comunicado por uma língua, de modo que a palavra do homem tanto é criadora como transmissora de cultura . No caso da religião, contudo, é a palavra de Deus que é o princípio dinâmico. É comunicada ao homem pelo processo da Revelação, que é um ato criador, já que é o princípio de uma nova sociedade espiritual que transcende a ordem temporal da cultura e coloca o homem em conta to com uma ordem superior de realidade. Não há local em que esta ideia de revelação divina tenha sido expressa de maneira tão forte ou claramente identificada com a tra dição da cultura como no caso de Israel. Aí, todo o modelo social e o destino histórico do povo de Israel fora imposto pela Palavra de Iahweh, que não era simplesmente, como em outros casos, uma tra dição sagrada de conhecimento, mas um modo de vida incorporado numa lei moral e numa história sagrada que os separava de todos os outros povos do mundo antigo. Desde o início, a tradição judaica distinguiu-se por uma firme hostilidade às tradições religiosas dos povos mais civilizados que acercavam os j udeus. Enquanto o restante do mundo antigo estava sendo integrado em uma grande sociedade pela influência da cultura helenística e do governo e da lei romanos, um povo obscuro se recu sava, obstinadamente, a ser assimilado. Quanto mais forte a pressão externa da sociedade mundial, mais intensa era a consciência do sin gular destino do povo hebreu que os afastava das nações. Por mais de mil anos tinham preservado a fé ao longo de sucessivas ondas de conquistas que esmagaram outros povos do Oriente Próximo. Os assírios, os babilônios, os persas e os macedônios surgiram e desa pareceram, mas a esperança de Israel ainda subsistia, e ao longo das tenebrosas eras de conquista e opressão, o remanescente do povo es colhido ainda conservava firmemente a herança sagrada da lei divina, que era o fundamento da vida nacional . 1 54 l 1 55 Essa é uma situação excepcional . As demais religiões mundiais como as da Índia e as da China foram religiões de grandes cultu ras que se consideravam civilizações mundiais; não tinham rivais nos próprios mundos. Israel, todavia, sempre esteve consciente da posição de minoria - como um povo entre muitas nações e como o povo menor e mais fraco entre os impérios históricos que o cer cavam desde o princípio - Egito, Assíria, Babilônia, Pérsia, Ma cedônia e Roma . Para os próprios j udeus e, posteriormente, para os cristãos, essa singularidade era o resultado de uma vocação e eleição divinas . Israel foi escolhido entre as nações para ser teste munha de Deus e portador da Revelação divina. O chamado foi feito num período bem distante da história, em meados da Idade do Bronze, em algum momento na primeira metade do segundo milênio antes de Cristo, quando Iahweh chamou Abrão - o pai de todos os crentes - para deixar seu lar em Harã, j unto do rio Eufrates, e se tornar o fundador de um novo povo, numa nova terra . Isso é descrito não como parte de um movimento tribal de migração ou conquista, mas como o chamado de um indivíduo particular, a quem foi reservado um destino que era incapaz de compreender, mas que aceitou, nas trevas da fé, sob a influência de uma experiência profética, descrita de maneira obscura, porém impressionante, no capítulo 15 do livro do Gênesis . Assim, por trás da vocação nacional do povo hebreu está a ideia de uma vocação pessoal baseada em uma revelação individual exclu siva . Não está bem certo a que povo Abrão pertencia, pois os "he breus" , provavelmente, eram os Habiru ou Apiru que surgem nas inscrições sírias e egípcias e parecem ter sido uma classe, não uma raça. A palavra Apiru parece ser um nome genérico para os guerreiros nômades que serviam como mercenários dos príncipes da Síria, como os "guerreiros Apiru" com quem o rei Idrimi de Alalakh ( séc. XV a.C. ) se refugiou no norte da Palestina durante os sete anos de exílio, aproximadamente em 1420 a .C. A Formação da C ristandade 1 Capítulo 5 Sem dúvida, noutra época os hebreus devem ter sido um povo - "os filhos de Éber" sobre os quais lemos no livro do Gênesis e são reconhecidos pela tradição bíblica entre os descendentes de Sem - jun tamente com Elam, Assur e Arfaxade - todos, povos do Nordeste se comparados com os descendentes de Cam - egípcios, cananeus, árabes e babilônios. Quando, no entanto, vêm à luz, ou melhor, ao lusco -fusco da história, em meados do segundo milênio antes de Cristo, já são um povo despedaçado.Podem ter sido guiados do local de origem pelo grande movimento dos povos para o sul que trouxe os povos hur ritas para a Síria e norte da Mesopotâmia, levando ao estabelecimento do reino do Mitanni e, por fim, à conquista do Egito pelos hicsos. Foi em meio a tal movimento de povos que aconteceu a peregri nação de Abrão de Harã, na região norte da Mesopotâmia, para Ca naã. No capítulo 14 do livro do Génesis, o vemos como um guerreiro hebreu tomando de assalto o vitorioso exército elamita após a bata lha dos nove reis. Não obstante, o papel que desempenhou não foi o de um conquistador. Foi essencialmente um forasteiro, um andarilho em terras estranhas, que "partiu sem saber para onde ia " (Hebreus 1 1 , 8 ) , seguindo o comando divino. Dessa maneira, a tradição religiosa precedeu a tradição nacional, da qual foi a fonte. Quando os descendentes de Abraão foram para o Egito eram, segundo a tradição, uns setenta no total, 1 e no Egito se misturaram aos imigrantes sírios, que foram reduzidos à servidão pe los faraós da XIX dinastia, de 1293 até 1 1 85 a .C. As origens de Israel como nação começaram somente com o êxodo e a aliança no Monte Sinai que consagrou todo o povo, assim como Abraão fora consagra do na primeira aliança. Aqui, mais uma vez, um profeta individual, Moisés, foi apresentado como o salvador do povo para retirá-lo do Egito, como o canal da revelação divina e o doador da lei divina . 1 A versão grega acrescenta outros cinco descendentes, donde o total de 75 ' volta a aparecer na Bíblia cristã em Atos 7, 14 . (N. T. ) 1 56 l 157 Consequentemente, Moisés e a aliança do Monte Sinai são re memorados por toda a tradição judaica como os criadores da única sociedade e cultura teocráticas de Israel - o povo escolhido, o povo da aliança e o povo da lei. Daí em diante, segundo essa tradição, a história de Israel é o registro da fidelidade ou do insucesso no cumpri mento de tal missão divina. Israel permaneceu só, entre os povos do antigo Oriente, como testemunha da lei do Deus Único. Toda cultura é uma ordem moral, mas o ordenamento moral de Israel era idêntico à lei de Iahweh, como revelada a Moisés e elabo rada conforme os ensinamentos dos sacerdotes e profetas . A essência desse ensinamento é, primeiro, a história sagrada da vocação e liber tação de Israel; em segundo lugar, a aliança de Iahweh com Israel como a forma constitutiva de existência; e, em terceiro, os encargos e obrigações morais impostas a Israel pela lei, condição da aliança. Pois tu és um povo consagrado a Iahweh teu Deus; foi a ti que lahweh teu Deus escolheu para que pertenças a ele como seu povo próprio, dentre todos os povos que existem sobre a face da terra. Se Iahweh se afeiçoou a vós e vos escolheu, não é por serdes o mais n umeroso de todos os povos - pelo contrário: sois o menor dentre os povos ! - e sim por amor a vós e para manter a promessa que ele j urou a vossos pais; por isso lahweh vos fez sair com mão forte e te resgatou da casa da es cravidão [ . . . ] Observa, pois, os mandamentos, os estatutos e as normas que eu hoje te ordeno cumprir (Deuteronômio 7,6-8; 1 1 ) . Esse é o tema reiterado ao longo de toda a Escritura - não só nas leis, mas nos profetas e nos salmos, e repetida de forma sumária no início da pregação apostólica de São Pedro ( t67 ) como descrito nos Atos dos Apóstolos ( 3 ,25 ) . Nem mesmo perdeu a importância para os cristãos modernos, pois ainda vemos nisso não só o próprio "mistério de Israel " , mas a preparação indispensável para a Revela ção cristã e a vida da Igreja . A revelação j udaica é de tipo totalmente diferente daquelas revelações da sabedoria esotérica sobre as quais lemos nos Upanishads e na literatura religiosa do Oriente. Foi uma A Formação da C ristandade 1 Capítulo 5 revelação criadora, um processo de educação e treinamento con tínuos pelos quais uma tribo semisselvagem de pastores nômades foi gradualmente refeita, transformando-se num instrumento sin gular para o cumprimento do propósito divino para a humanidade. A aliança ou b 'rith de Iahweh com Israel era mais que um contrato, era uma comunhão viva ou, como os profetas posteriores2 a descre vem, um casamento sagrado. E esse conceito, que inclui a introdu ção de um princípio divino na história - não segundo o estilo pagão de deificação das forças da natureza, mas pela associação do homem com Deus no cumprimento da missão divina - é a chave para toda a revelação judaico-cristã . O princípio se diferenciava da antiquíssima tradição do deus da ci dade que existira na Suméria desde o alvor da civilização, pois Iahweh não era membro de uma sociedade divina ou de um panteão como as divindades da Síria e da Mesopotâmia, nem era um princípio metafí sico como o Brâman ou o Tao. Era uma personalidade, cuja presença sempre esteve diante de Israel, com vontade e poderio continuamente manifestados em todos os j ulgamentos da história de seu povo. Esse conceito já estava implícito na aliança do Monte Sinai, em toda a história do êxodo e da vida de Moisés, mas era difícil conservá -lo após o estabelecimento de Israel na Palestina e da exposição à in fluência de um novo ambiente, uma nova religião e novas tradições culturais dos povos locais. Daí em diante, houve tensão e conflitos con tínuos entre a tradição mosaica e a influência da cultura canaanita . Paradoxalmente, a cultura material mais adiantada estava ligada a uma forma menor de religião, e a religião de Iahweh e da aliança estava associada com a cultura primitiva de uma tribo guerreira e a tradição do deserto. Tal conflito tornou-se particularmente crítico no século IX a.C., quando a consorte fenícia do rei Acabe, a rainha Jezebel, ten tou introduzir o culto a Baal como parte da religião estatal de Israel . 2 Denominação, na Bíblia hebraica, para Isaías, Jeremias e Ezequiel e os doze profetas menores. (N. T. ) 1 58 l 1 59 A história do profeta Elias, sua oposição ao poder real e o conflito com os profetas de Baal nos oferecem um retrato comovente do conflito entre duas religiões e dois ideais espirituais que competiam pela alma de Israel. A ida de Elias ao Monte Horeb simboliza o retorno à tradição mosaica, característica da reforma profética ( 1 Reis 1 8-2 1 ) . A partir daí até a queda do reino de Israel e , posteriormente, de Judá, a tradição mosaica foi preservada e aprofundada pelo teste munho dos profetas que lutavam pela "causa de Iahweh" contra os pecados e infidelidades de Israel . Assim, todo o corpus de escritos proféticos é um diálogo contínuo entre o porta-voz de Iahweh e seu povo, que renova e torna mais forte a relação entre Israel e Iahweh estabelecida no Monte Sinai. Tal associação não foi algo fácil para Israel. " Só a vós eu conhe ci de todas as famílias da terra, por isso vos castigarei por todas as vossas faltas" (Amós 3 ,2 ) . " Caminham duas pessoas juntas sem que antes tenham combinado ? Ruge o leão na floresta sem que tenha uma presa ? " (Amós 3,3-4 ) . "Um leão rugiu: quem não temerá ? O Senhor Iahweh falou: quem não profetizará ? " (Amós 3 , 8 ) . Deste modo, segundo o ensinamento dos profetas dos séculos VIII ao VI a.C., a destruição dos dois reinos foi o julgamento de Iahweh sobre a incapacidade de Israel e da casa de Davi de preservar a aliança. Apesar disso, a aliança e as promessas divinas ficaram inseparavel mente unidas não só à cultura tradicional, mas também à terra da Palestina, à cidade de Jerusalém e à linhagem do rei Davi. E essa incor poração do culto a Iahweh numa determinada história, radicada no espaço e no tempo, e corporificada em instituições ainda guarda sua importância mesmo para os profetas que estavam mais conscientes da missão universal de Israel . Iahweh é senhor e rei, não só de Israel, mas, como declararam os profetas, de toda a Terra e de todas as nações. Ele deveria, contudo, ter o próprio reino - num canto do mundo onde sua autoridade tivesse sidoreconhecida e seu nome santificado. O restante da Terra desistiu e começou a adorar ídolos, mas, nos reinos de Israel A Formação da C ristandade 1 Capítulo 5 e de Judá e na cidade sagrada de Jerusalém, Iahweh reinaria absoluto, sem rival. A destruição de Israel não foi, portanto, derradeira. Ao final, o reino deverá ser restaurado quando as pessoas deixarem de confiar no homem ou no auxílio do "braço da carne"3 e depositarem sua con fiança no poder de Iahweh e na sua salvação. Essa é a mensagem do grande profeta Jeremias no final do século VII a .C. , o homem das dores que teve a amarga missão de anunciar e testemunhar a ruína de seu povo e a futilidade da resistência aos exércitos babilônicos. No entanto, para ele também foi revelado que a antiga observância formal da realeza de Iahweh e a lei não eram suficientes. Deveria existir uma aliança espiritual "escrita no coração" e, individualmente, na consciência de cada fiel (Jr 3 1 ,3 1 -33 ) . Essa esperança n o renascimento espiritual e n a restauração de Is rael teve uma influência transformadora na religião de Israel durante os séculos subsequentes. Aos poucos, a ênfase da religião judaica foi transferida do passado para o futuro e passou a se centrar no futuro Reino de Deus. As sucessivas catástrofes e frustrações da história de Israel nos séculos VII e VI a .C . retiraram as esperanças da esfera política e as tornaram cada vez mais numinosas ou sobrenaturais, completamente dependentes da vontade de Iahweh e de seu julga mento das nações. Da mesma maneira, o centro da comunidade judaica não era mais a nobreza e os governantes, mas passou a ser identificado com um grupo interno de devotos que representavam os escolhidos, os "remanescentes de Israel" . Assim, durante o período do exílio e do pós-exílio, Israel transmudou-se de povo em comunidade religiosa - uma sociedade religiosa unida pela obediência a Iahweh e lealdade à lei . Foi nesses séculos que constataram o caráter universal do Reino de lahweh, com todas as consequências, de modo que a esperada res tauração de Israel foi tida não como um simples retorno dos exilados 3 Expressão retirada do hino Stand Up, Stand Up for Jesus ( 1 858 ) , de autoria do pastor presbiteriano George Duffield ( 1 8 1 8- 1 8 8 8 ) . (N. T. ) 1 60 l 1 6 1 ou o reestabelecimento d a adoração no templo, visto senão como um triunfo cósmico de lahweh, o único verdadeiro Deus, sobre as nações e os falsos deuses. E acontecerá, no fim dos dias, que a montanha da casa de Iahweh estará firme no cume das montanhas e se elevará acima das colinas. Então, povos afluirão a ela, virão numerosas nações e dirão: "Vinde, subamos a montanha de Iahweh, para a Casa do Deus de Jacó. Ele nos ensinará os seus caminhos e caminharemos pelas suas vias. Pois de Sião sairá a Lei, E de Jerusalém a palavra de Iahweh" (Miquéias 4,1-2 ) .4 Todas as glórias desse futuro reino estavam concentradas na pes soa do rei messiânico, "aquele que há de vir" (Mateus 1 1 ,3 ) , que as socia na sua pessoa a herança prometida da antiga linhagem real de Davi e as qualidades sobrenaturais e universais do novo reino divino. Um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento brotará de suas raízes. Sobre ele repousará o espírito de Iahweh, espírito de sabedoria e de inteligência, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de conhecimento e de temor de Iahweh: no temor de Iahweh estará a sua inspiração. Ele não julgará segundo a aparência. Ele não dará sentença apenas por ouvir dizer. Antes, julgará os fracos com justiça, com equidade pronunciará uma sentença em favor dos pobres da terra . Ele ferirá a terra com o bastão da sua boca, e com o sopro dos seus lábios matará o ímpio ( Isaías 1 1 , 1 -4 ) . 4 Ver também: Isaías 2,1-5 . A Formação da C ristandade 1 Capítulo 5 Nas profecias do reino messiânico, sobretudo nos desdobramen tos mais amplos que receberão na segunda parte do livro de Isaías, a esperança de Israel encontra expressão plena e derradeira . Mesmo assim, permanece um dualismo não resolvido entre o universalismo espiritual dessa mensagem e o patriotismo nacional, que também era parte essencial da tradição judaica . Por vários séculos, sob o governo da Pérsia e do Egito ptolomaico, Israel ficou em paz para seguir a lei e o ordenamento ritual da adoração no templo restaurado, mas no século II a .C. surgiu uma nova crise: a tentativa de um rei selêucida incorporar os j udeus à cultura helenística . Novamente, Israel empu nhou a espada contra os gentios e, sob a liderança dos macabeus, tiveram sucesso ao assegurar a independência política e criar o Estado judaico. No entanto, apesar dessa ter sido uma obra dos hassidim, o partido rigorosamente ortodoxo, o resultado não foi o glorioso rei no da profecia . Foi, simplesmente, outro reino dentre os reinos deste mundo - um reino fraco e dependente, forçado a confiar no "braço da carne" e na ajuda de um novo poder mundial gentio - o Império Romano. Essa foi a pior decepção de todas, já que o Reino Macabeu se tornou o Reino de Herodes, o Grande (73-04 a .C. ) , e o Império Romano, um inimigo mais formidável que qualquer outro império mundial gentio do passado. Assim, o problema dos j udeus era : se deveriam esperar o mes sias como um libertador político, um novo e mais grandioso Judas Macabeus, ou se abandonariam todos os sonhos políticos e depo sitariam a fé, exclusivamente, no braço do Senhor e na vinda de um messias que iria destruir o mal do império mundial por um miraculoso ato de poder. Esse é o passo final na revelação judaica, e encontra expressão na literatura apocalíptica característica do período pós-macabeu . Desse modo, na vinda de Cristo, no século 1 da Era Cristã, ha via três escolas de pensamento diferentes entre os judeus. A primeira era a dos saduceus, o partido da aristocracia governante que estava 1 62 l 1 63 pronto para cooperar com os romanos e com a dinastia herodiana. A segunda era a dos zelotas, o partido da resistência atuante que estava determinado a repetir a violência revolucionária da inssurei ção nacional dos macabeus. Em terceiro lugar havia a dos fariseus, os sucessores dos hassidim e antepassados dos judeus rabínicos, que eram o partido da observância estrita, dedicado de corpo e alma à observância da Lei . Além desses, menciona Flavio Josefo ( 3 7- 1 0 1 ) , além dos fari seus e saduceus, havia uma "terceira facção " , os essênios, que for mavam uma espécie de ordem monástica e seguiam uma regra de vida. estritamente ascética. Embora também sejam mencionados por Plínio, o Velho (23-79) e Fílon de Alexandria (25 a .C . -50 d .C . ) , a importância desse grupo sempre foi subestimada no passado, mas, atualmente, a descoberta dos manuscritos do deserto em Wadi Qumran, a oeste do Mar Morto, lançou luzes sobre o movimento e suscitou vivo interesse e controvérsias. Agora está evidente que a seita é idêntica ao partido da Nova Aliança ou zadoquitas, cuja existência foi revelada no final do século XIX, e a publicação, em 1 9 1 0, de dois manuscritos descobertos no Egito e, agora, guardados em Cambridge,5 mostrou que estavam muito mais próximos da tra dição essencial do judaísmo ortodoxo do que se supunha anterior mente . Nesse aspecto, contudo, foram profundamente influenciados por ideias apocalípticas e escatológicas, bem como pela prática do batismo e da refeição comunal, o que demonstrava que tinham afi nidades com o cristianismo primitivo. As ideias messiânicas, no entanto, eram singulares, na medida em que acreditavam na vinda de dois messias - o messias de Israel, que se ria um líder guerreiro na guerra contra as forças do mal, identificadas 5 Hoje os manuscritos da " Genizá do Cairo" estão dispersos e se encontram não só na Universidade de Cambridge como também há uma parte da co leção na Universidade de Manchester e no Jewish Theological Seminary of America . (N. T. ) A Formaçãoda C ristandade 1 Capítu lo 5 com os exércitos romanos, e o messias de Aarão, que representava o poder do sacerdócio e que, por isso, tinha preeminência. Talvez, a característica mais impressionante da comunidade de Khirbet Qumran seja o caráter militar, mais conforme o espírito dos zelotas e dos seguidores de Simão bar Kokhba6 do que o dos primei ros cristãos. Isso pode ser visto mais claramente no notável docu mento conhecido como " Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas" ,7 que esboça um plano de campanha para a condução de uma guerra santa contra os romanos - potência mundial pagã - a quem se referem como "os cetim" . Apesar dessas diferenças, os documentos do Wadi Qumran e a existência dessa "comunidade da Nova Aliança " oferecem uma nova e valiosa fonte de indícios das crenças e práticas do judaísmo na época de Cristo e devem nos for çar a rever muitas teorias em voga no século XIX com relação as influências não judaicas no cristianismo, em especial, talvez, no caso do quarto Evangelho. De qualquer modo, esse novo indício proporciona mais uma pro va da ligação íntima entre cristianismo e judaísmo - entre o antigo Is rael e o novo - que é o tema central da liturgia católica, de modo que os dois testamentos ou alianças são mostrados como parte integral 6 Líder da terceira revolta judaica contra o Império Romano ocorrida entre os anos de 1 32- 135 . (N. T. ) 7 A série de pergaminhos, também denominada "Regra de Guerra '' , "Regula mento de Guerra" , " Rolo de Guerra" ou "Pergaminho de Guerra" , constitui o conjunto mais bem conservado e mais completo dos famosos "Manuscritos do Mar Morto" . Esse documento foi encontrado, no ano de 1 947, numa caverna em Qumran no deserto da Judeia, na margem noroeste do Mar Morto, pelo jo vem beduíno Muhammed edh-Dhib, sendo adquirido pela Hebrew University of Jerusalem. Uma versão do pergaminho editada pelo arqueólogo Eleazar Sukenik ( 1 889-1953) foi publicada na seguinte edição: The Dead Sea Scrolls of the Hebrew University. Jerusalem, Magnes Press I Hebrew University, 1 955. Para análises mais recentes do documento, ver Jean Duhaime, The War Texts: 1 QM and Related Manuscripts. London, T. T. & Clark, 2005; Jim Parker, The War Scroll: Genre & Origin. Memphis, BorderStone Press, 2012. (N. T. ) 1 64 l 1 65 de uma experiência divina. Isso não quer dizer que somente Israel foi, por mais de mil anos, o veículo exclusivo da revelação divina; quer dizer também que, na tradição de Israel, foi estabelecida uma relação ímpar entre Deus, o homem, a sociedade humana e a história, uma re lação que não foi rompida pela deserção de Israel, mas foi continuada e ampliada na igreja cristã e na sua história . O Antigo e o Novo Testamentos ou alianças, portanto, são uma evolução gradual, única e integrada, sem paralelos, entre as religiões do mundo. Como vimos, as grandes religiões históricas do mundo em que se basearam as civilizações do Antigo Oriente, em especial, as da Índia e da China, eram essencialmente religiões naturais - ou seja, representavam uma sanção humana, ou uma cooperação, com os poderes divinos que governavam o mundo. Buscavam manter a harmonia entre a vida humana e o divino ordenamento da natureza que é manifestado na ordem das estações e no curso das estrelas, e, visto que iam além, como as religiões da Índia e da China tentaram fazer, faziam-no por intermédio de um princípio espiritual subjacente à ordem visível e à ordem moral que é, ao mesmo tempo, transcen dente e imanente; é tudo e mais do que todos. A revelação judaica, por outro lado, apresenta uma divinda de diferente e um modo distinto de ação divina - um Deus vivo e pessoal que é, essencialmente, criador -, o criador do mundo, do homem e da história . E esse poder criativo é mostrado não só na quilo que ele fez, mas no que faz e no que está prestes a fazer; prin cipalmente na criação de um novo povo que está destinado a ser o portador, na história, do desígnio divino pelo qual Deus irá mudar a própria natureza e renovar a face da Terra . Logo, a doutrina da nova criação, que ocupa um lugar central nos escritos paulinos e, certamente, no Novo Testamento como um todo, está profunda mente enraizada no Antigo Testamento e na tradição de Israel . A importância do Antigo Testamento para a compreensão do cris tianismo é dupla: por um lado é teológica - a revelação da palavra de A Formação da C ristandade 1 Capltulo 5 Deus como realidade suprema, como Criador e Juiz; e, de outro lado, é histórica, já que mostra como a Palavra de Deus foi a força criativa que moldou e transformou a vida do povo de Deus e o guiou pela vastidão da história, preparando as veredas para a vinda do Reino de Deus. Primeiramente, Iahweh inicia um relacionamento particular com uma determinada comunidade eleita, que recebe a lei de lahweh, a Torá, e torna-se o povo santo. Em segundo lugar, há a palavra dos profetas, pelos quais a aliança de lahweh com Israel e seu governo sobre as nações é reafirmado em novos contornos. Pela voz dos pro fetas, lawveh julga os fracassos de seu povo em manter a aliança, apresenta os inimigos de Israel e os sucessivos impérios mundiais como instrumentos do juízo divino ao executar o desígnio na histó ria . O desígnio divino é visto pelos profetas como a vinda do Reino de Deus. O Reino é o objetivo da história, e toda a história é vista como uma preparação para a vinda do Reino. Tal Reino, entretanto, não está na história, já que os reinos das nações, e mesmo Israel, na obstinada recusa em ouvir a palavra de Deus, estavam num estado de patente rebelião contra o Reino de Deus. Por isso os profetas anun ciaram a vinda do Reino como um evento revolucionário - um juízo sobre o homem e o reino do homem, que era uma obra de destruição, bem como de salvação. Assim sendo, a tradição literária do Antigo Testamento encontra conclusão na nova expressão do espírito pro fético - o Apocalipse ou "Revelação das últimas coisas" -, em que a vinda do Reino está associada ao fim do mundo ou o fim da presente ordem mundial. Cada vez mais as esperanças de Israel foram centra das na vinda pessoal daquele que estava destinado a anunciar esse Reino e introduzir uma nova dispensação. É um registro único e, de certo modo, a fonte de três grandes reli giões mundiais. Ele também mostra, com maior clareza, a função socio lógica da religião e o modo como a lei religiosa e o ordenamento ritual se identificam com a ordem moral e, por fim, com a ordem social, de modo que era a Lei que formava o povo e a política, e não o oposto. 1 66 l 1 67 O Novo Testamento nos mostra quão profundamente o cristia nismo estava enraizado no Antigo Testamento e na tradição judai ca, apesar disso não ser, é claro, totalmente admitido pelos j udeus. 8 A esse respeito devemos lembrar que o j udaísmo, bem como o cristia nismo, passou por grandes mudanças nos primeiros séculos de nossa época. O judaísmo foi reconstruído depois de duas grandes guerras com Roma, e foi o Talmude e o Período Talmúdico que, posterior mente, formaram a mentalidade do judaísmo. Da mesma maneira, o cristianismo, durante os mesmos séculos, foi profundamente influen ciado pelo helenismo; e a tradição judaico-cristã primitiva, aos pou cos, desvaneceu após o primeiro século.9 A Igreja herdou a antiga versão grega do Antigo Testamento - a Septuaginta, que originalmente foi a herança comum de cristãos e ju deus, mas abandonada por esses após a queda de Jerusalém, quando a ruptura entre judeus e cristãos foi total . O Ocidente seguiu a tradição judaica das Escrituras, isto é, o texto massorético - primeiro com São Jerônimo (347-420) e a Vulgata, que se tornou a Bíblia oficial da Igre ja Católica, e depois, com as novas traduções das Escrituras feitas a partir do hebraico após a Reforma Protestante. A Igreja Oriental, no entanto, como era natural, aderiu à tradição da Septuaginta. A influência do Antigo Testamento na Igrejaera extraordinaria mente forte, como podemos ver pela liturgia, em especial, a da Vigília Pascal. Após a Reforma Protestante, tal influência decaiu, devido à ênfase dada pelos reformadores, de modo que essa leitura da Bíblia se tornou a marca do protestantismo, ao menos, no caso do Antigo Testamento. No século XIX, contudo, a situação novamente mudou devido ao desenvolvimento da crítica bíblica no mundo protestante, 8 Essa postura é explicada em um interessante ensaio de Arthur A. Cohen ( 1 928- 1 986), no volume de ensaios editado por Philip Scharper chamado American Catholics: A Protestant-]ewish View (New York, Sheed and Ward, 1 959) . 9 Ver Gregory Dix, ]ew and Greek: A Study on Primitive Church. London, Dacre Press, 1 953 . A Formação da C ristandade 1 Capítulo 5 principalmente na Alemanha, o que levou ao descrédito do valor his tórico da tradição bíblica . No século XX, novamente, isso mudou graças à reação neo-ortodoxa entre protestantes e o desenvolvimento de estudos bíblicos entre os católicos. A tradição protestante extremamente liberal tendeu a diminuir a importância da tradição judaica no cristianismo não só pela críti ca à historicidade das fontes, porém muito mais pela ênfase parcial ao conteúdo ético do ensinamento cristão. Agora, em geral, é reco nhecido por teólogos protestantes bem como pelos católicos que uma interpretação do cristianismo confinada nos ensinamentos morais dos Evangelhos nega as raízes históricas e teológicas do cristianismo. Um cristianismo sem o Antigo Testamento deixa de ser cristianismo e torna-se uma religião bem diferente, como a que os Padres da Igreja encontraram quando condenaram os gnósticos Marcião ( 85-160) e os maniqueus. A continuidade do cristianismo com a tradição do Antigo Testamento e a concepção da Igreja como a nova Israel é parte funda mental da fé cristã. Ao Antigo Testamento devemos toda uma série de tradições re ligiosas características do cristianismo e que não encontram lugar nas interpretações totalmente éticas de Ernest Renan ( 1 823- 1 8 92 ) , David Friedrich Strauss ( 1 8 0 8 - 1 8 74 ) e outros liberais d o século XIX. Não menos importante é a interpretação cristã da história, que foi , de fato, criação dos profetas hebreus, e continuada sem grandes mudanças por São Paulo (5 -67 ) , São João ( 1 0 ? - 1 0 3 ) e San to Agostinho. No Antigo Testamento, particularmente nos Profetas, encontra mos pela primeira vez a ideia de orientação da Divina Providência e da intervenção divina na história - a concepção de que os grandes eventos da história estão todos integrados num plano divino voltado para o j ulgamento de Deus. Há também um dualismo histórico - existem dois princípios em cur so na história. A verdadeira história - a história sagrada - não é a mesma 1 68 l 1 69 coisa que a história aparente ou secular. O sentido e o valor espirituais estão ocultos sob o véu da política visível e da mudança econômica. Existe o papel vital dos indivíduos chamados por Deus, muitas vezes a contragosto ou sem saber, para desempenhar determinada missão. Isso é visto no chamado de Abraão e Moisés, na vocação profética de Elias e nos grandes profetas escritores, sobretudo no caso de Jeremias, que nos mostra, vividamente, o aspecto psicológi co do processo - como o profeta é forçado a aceitar a vocação que o coloca em oposição a todas as forças dominantes de sua época. E, por outro lado, vemos a vocação de uma personagem histórica como Ciro II da Pérsia ( 600/576-530 a .C . ) que está em sintonia com as forças dominantes de seu período, mas, não obstante, torna -se instrumento, inconsciente ou semiconsciente, do desígnio divino ( Isaías 4 1 ; 44, 28 ; 45 , 1 ) . Por fim, h á o tema do julgamento divino - o fim d a história . Cada um dos grandes impérios e civilizações será julgado por Deus e pela história. Sucessivamente fracassam e são rejeitados, mas os propósi tos de Deus para o homem, Israel e a Igreja são realizados em meio à catástrofe histórica e ao colapso temporal. Todos esses temas são repetidos e reinterpretados pelos mestres cristãos ao longo das eras, por São Paulo e São João, por Santo Agos tinho e pelos líderes da reforma eclesiástica no século XI, pelos fran ciscanos, pelos reformadores protestantes e, finalmente, por modernos escritores católicos como Joseph de Maistre ( 1 753- 1 82 1 ) e o cardeal John Henry Newman, cuja pregação inicial, sobretudo nos sermões anglicanos, 1 0 é dedicada, abundantemente, ao desenvolvimento do se gundo e terceiro temas acima descritos, a saber, o dualismo entre his tória externa e interna, entre os processos concorrentes e conflitantes 1 0 A coletânea de 1 9 1 sermões foi publicada pela primeira vez em 1 868 , em oito volumes, com o título de Parochial and Plain Sermons. Todos esses textos podem ser encontrados on-line na seguinte página: http://www.newmanrea der.org/Works/index.html# Anglican_Period. (N. T. ) A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 5 do mundo e da Igreja e ainda, o papel decisivo dos indivíduos - dos poucos que são chamados a testemunhar diante de sua época e, então, mudar o fluxo da história . Não conheço nenhum autor cuja mente tenha sido permeada de modo mais profundo pelas imagens e ideias do Antigo Testamento que John Henry Newman, especialmente no período decisivo de sua carreira . 1 1 1 1 A teoria judaico-cristã da história também teve enorme influência na moder na filosofia da história secular. De fato, o livro que deu início à escola alemã de filosofia da história - Die Erziehung des Menschengeschlechts [A Educação da Humanidade] de Gotthold Ephraim Lessing ( 1 729- 178 1 ) - era simplesmente uma versão generalizada e racionalizada da doutrina tradicional. Ela também exerceu uma influência considerável na ação social, mas nem sempre para o bem. Inspirou judeus a promover duas revoltas violentas e desastrosas contra Roma e também inspirou muitos movimentos milenaristas e utópicos na história cristã. Foi importante, sobretudo, nos Estados Unidos, devido ao biblismo dos puritanos do século XVII - visível, em geral, nos es critos dos próprios puritanos e, também, nos livros do professor Perry Miller ( 1 905-1 963 ) - e, consequentemente, teve um efeito considerável na história norte-americana posterior. 1 70 l 1 7 1 C a p í t u l o 6 1 A V i n d a d o R e i n o d e D e u s Na história de Israel, uma singular tradição religiosa nasceu no mundo da história . Em comparação com todas as demais religiões, essa tradição não era expressão de uma civilização mundial: ao con trário, a cultura - a exclusiva cultura teocrática de Israel - era expres são e encarnação da religião e, à parte da religião, a cultura de Israel era quase inexistente. Assim sendo, o Antigo Testamento, que era o registro da tradição de Israel, também era o registro da revelação di vina na aliança do Sinai, a lei de Deus e a palavra dos profetas; e esta última culminava no anúncio da vinda do Reino de Deus que se rea lizaria pelo advento do messias - ao mesmo tempo rei e salvador - e pelo julgamento das nações. No primeiro século da era cristã tal expectativa messiânica alcan çou o auge: de um lado, no surgimento do cristianismo, e de outro, numa tremenda catástrofe - a revolta do povo hebreu contra o poder mundial dos gentios, que levou à destruição de Jerusalém e a recons trução do judaísmo em novas bases. À primeira vista parece incrível que os judeus, o menor dos povos do mundo antigo, tivessem ousado desafiar o poder mundial de Roma, cujos exércitos subjugaram todo o mundo desde o Oceano Atlântico até o rio Eufrates e o Mar Vermelho. Mesmo assim, por três vezes, no curso de setenta anos, promoveram uma série de revoltas terrí veis - nas épocas de Nero (37-68 ) e Vespasiano (9-79 ) , de 66 a 73; no período do governo de Trajano (53-1 1 7) durante a Guerra Parta, A Formação da C ristandade 1 Capítulo 6 de 1 1 5 a 1 1 7, e finalmente,na época de Adriano (76- 1 3 8 ) , de 1 32 a 135 . Foram superadas somente após anos de amargos combates, que não terminaram até que toda a nação estivesse reduzida quase a um deserto e o povo hebreu quase fosse exterminado. O tratado sobre a guerra entre as forças das trevas e as forças da luz, que é um dos documentos mais interessantes descobertos em Wadi Qumran, ilustra a mentalidade dos homens que lutaram tais guerras e mostra como a resistência deles era intensificada pela crença bastante literal numa súbita intervenção divina que os daria a total vitória no final, após sucessivas derrotas. A vinda de Jesus e a emergência do cristianismo foram quase con temporâneas aos últimos estágios da comunidade de Qumran, duran te o último período da trégua, quando o povo hebreu estava tomando coragem para o grande conflito com Roma. Assim como os homens de Qumran, os discípulos de Jesus viviam na expectativa do advento iminente do Reino, que marcaria o fim de uma era e o início de uma nova ordem mundial. O Reino que Jesus pregou, contudo, não era o reino que os j udeus estavam esperando, nem a trajetória de sua missão como salvador messiânico e filho do homem correspondia à imagem que o povo hebreu tinha nutrido: a de um rei guerreiro triunfante que iria destruir o poder dos gentios e restaurar o poder de Israel. É ver dade que o reino em hebraico, Malchut Shamayin, não é exatamen te o que entendemos pelo termo - é a " realeza " ou a " autoridade real" ( talvez a palavra latina imperium estej a mais próxima que a palavra regnum ) ; mas mesmo assim, passa conotações políticas que estão ausentes no Evangelho. O " Reino " dos Evangelhos está muito mais próximo do Reino dos autores apocalípticos, j á que supõe a ideia de um novo mundo, uma nova dispensação, uma nova ordem mundial . Mesmo aí, existem diferenças vitais, uma vez que o Reino do Evangelho já está presente, "o Reino de Deus está no meio de vós " (Lucas 1 7,2 1 ) ou " O Reino de Deus já chegou a vós" (Lucas 1 72 1 1 73 1 1 ,20; Mateus 12 ,2 8 ) . Aqui o Reino é visto, acima de tudo, como o poder divino manifestado nas obras sobrenaturais de Jesus. Nou tros lugares, e mais comumente, o Reino é mostrado como um novo estado ao qual os homens são chamados, ou uma nova descoberta - é comparado a um banquete nupcial (Mateus 22 ) , a um grão ou semente (Mateus 1 3 ,24; 1 3 ,3 1 ; Marcos 4,26-29 ) , à colheita ( Mar cos 4,26-29; Mateus 1 3 ,24-30 ) , a um tesouro escondido (Mateus 1 3 ,44 ) , a uma pérola de grande valor (Mateus 1 3 ,45 ) . Ao longo da pregação do Reino, a missão de Jesus, o Filho do Homem, como figura central na nova dispensação é reconhecida em vez de afirmada . E quando, finalmente, Pedro confessa que Jesus é "o Messias", "o filho do Deus vivo" (Mateus 16 , 16 ) , isso é imediatamen te seguido não por qualquer declaração de um triunfo futuro, mas pelo anúncio feito por Jesus de sua paixão e morte. A revelação do mistério do Reino é, ao mesmo tempo, a revelação do mistério da cruz. Essa é a novidade suprema do Evangelho de Jesus: a vinda do Reino e a nova aliança espiritual que os profetas vaticinaram são concretizadas somente pela paixão do messias . " Isto é o meu san gue, o sangue da Aliança, que é derramado por muitos" (Mateus 26,28; Marcos 14 ,24 ) , " Este cálice é a Nova Aliança em meu san gue" (Lucas 22, 20 ) . Desse ponto em diante tudo é mudado. A san ção da nova aliança na última ceia é imediatamente seguida pela rejeição de Jesus como messias por parte dos j udeus, de sua con denação e morte nas mãos dos gentios por instigação dos j udeus e, finalmente, por sua ressurreição. Esses acontecimentos, na visão cristã, são a manifestação final da divina missão de Jesus, é o cumprimento histórico da profecia e a porta de entrada para uma nova era . Com eles, o Reino de Deus j á chegou, uma vez que Jesus está agora sentado à direita do Pai com suprema autoridade sobre as forças da Terra e do Céu. E, de ante mão, alude à tal autoridade messiânica ao incumbir os apóstolos após a ressurreição: "Toda autoridade sobre o Céu e sobre a Terra A Formação da C ristandade 1 Capítulo 6 me foi entregue. Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito San to" (Mateus 28 , 1 8 - 1 9 ) . Assim como a antiga Aliança d o Sinai gerou o antigo Israel, ago ra, a nova Aliança no sangue de Cristo cria um novo povo, um se gundo Israel espiritual que receberia a promessa e entraria no novo Reino. Esse Reino seria universal, estendendo-se a todas as coisas no Céu e na Terra, como diz São Paulo: para que, ao nome de Jesus, se dobre todo ;oelho dos seres celestes, dos terrestres e dos que vivem sob a terra, e para a glória de Deus, o Pai, toda língua confesse: Jesus é o Senhor (Filipenses 2, 1 0-1 1 ) . A Igreja constituída pela efusão do Espírito Santo no Pentecos tes, como fora prometido pelo Cristo Ressuscitado, no entanto, era instrumento do Reino em um sentido especial, visto que era o corpo de Cristo, e nela e por ela que Jesus estabelecera seu Reino na Terra . Foi pelo Espírito, que era o espírito de Cristo, procedente do Pai, que a Igreja foi criada e guiada por todo o Novo Testamento. Isso é realçado como marca distintiva da nova sociedade, que não era con cebida como uma sociedade humana, mas, ao contrário, como uma nova criação, renascida em Cristo e destinada a se estender além das fronteiras de Israel até os gentios e toda a raça humana. Essa última verdade, contudo, só foi realizada gradualmente. Para um forasteiro que visitasse a igreja primitiva em Jerusalém, ela deveria parecer ape nas outra seita j udaica, tão característica desse período, como vemos nas descobertas do Mar Morto. Na verdade, a crise messiânica do caminho da cruz foi o ponto crítico na história de Israel e do mundo. O povo hebreu, como um todo, foi irresistivelmente arrastado para o turbilhão da guerra e da destruição que arruinou as pontes entre os mundos dos gentios e dos 1 74 1 1 75 judeus. Os judeus foram forçados a recorrer ao estudo da lei como úl timo refúgio da identidade nacional judaica, ao passo que os cristãos tomaram caminho oposto e começaram, inicialmente por tentativas, a se aproximar cada vez mais do mundo gentio que os rodeava. Devemos recordar, contudo, que mesmo antes do apostolado cris tão dos gentios já havia uma diferença notável entre o judaísmo da Palestina e o judaísmo das cidades helênicas. O judaísmo da Palestina fora formado em resposta aos desafios apresentados pelo império Se lêucida durante o período macabeu, cujo propósito era transformar Jerusalém em uma cidade helênica e substituir o culto a Iahweh pelo de Zeus. O sucesso da revolta macabeia contra os selêucidas deu aos judeus da Palestina a certeza de que Deus estava do lado deles, em ter mos de insurreição militar contra as potências mundiais dos gentios. Ademais, a vinda do Império Romano e a total sujeição da Terra Santa a uma odiosa lei estrangeira aumentou o sentimento de oposição ao paganismo e a resistência na manutenção de relações com o helenismo. Os judeus das cidades helênicas, por outro lado, embora mantives sem a tradição religiosa básica e, de fato, tentassem propagá-la entre os gentios nas cidades onde se localizavam as comunidades, eram mui to mais abertos à influência da cultura helenista - como certamente mostra a tradução da Bíblia que fizeram para o grego, a Septuaginta . Em contrapartida, temos a reação ao helenismo, que incluía uma maior ênfase na pureza da tradição judaica e na separação mais se vera possível dos não judeus; por sua vez, nas comunidades da diás pora, temos a aceitação da língua e da cultura helênica à medida que estas não conflitassem com o monoteísmo, além de ter sido feito um esforço para tornar os gentios cientes da obrigação, também deles, de adorar o único Deus verdadeiro, o Deus de Israel. E, uma vez queos judeus da diáspora somavam mais de 75 % da população judaica total no Império Romano (esta última estimada entre 5 a 8 milhões de pessoas ) , a importância desses judeus como uma ponte entre o j u daísmo e o helenismo pode ser facilmente compreendida . A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 6 Entretanto, como observa Henri Daniel-Rops ( 1 90 1 - 1 965 ) : Este ramo do j udaísmo teve dificuldades e encontrou a lguma re s istência . Os j udeus rigoristas desconfiavam dos convertidos . Além disso, o rito de circuncisão era obrigatório para todo homem que desejasse tornar-se um verdadeiro filho de Iahweh e membro pleno da comunidade j udaica, de modo que um grande número de aspiran tes a prosélitos recuavam a o se deparar com tal fato. Assim, dividi dos entre u m exclusivismo que iria tornar-se cada vez mais violento até o período da catástrofe, conhecido como "a guerra j udaica " , e um universal ismo que, embora admirável, não se atreveu a chegar à conclusão lógica e declarar que não havia mais " circunciso ou incir cuncis o " ( Colossenses 3 , 1 1 ) , a consciência j udaica parecia suspensa num estado de desequilíbrio . 1 Foi o cristianismo, portanto, e não o judaísmo que colheu a sa fra desses primeiros esforços missionários feitos pelas comunidades judaicas das cidades helenísticas. Ademais, após a revolta de 66 a 70 A.D. que resultou na destruição de Jerusalém, e as duas revoltas subsequentes de 1 1 5- 1 1 7 e 1 32-1 35, a comunidade judaica na Pales tina, aos poucos, definiu o modelo também para as comunidades da diáspora, e tal modelo não era de um apostolado missionário, mas de uma revelação cuidadosa da lei e a elaboração de comentários a partir dos preceitos, um crescimento que cada vez mais isolava os ju deus do contato com o mundo dos gentios, muito embora isso possa ter contribuído para fortalecer os laços das comunidades judaicas em face da desintegração ou dissolução. A extensão da pregação apostólica aos gentios e a criação de uma igreja helênica foi obra de São Paulo, que deu o revolucionário passo de insistir no direito dos cristãos gentios de se tornarem mem bros da ecclesia sem a necessidade da circuncisão ou da observância da lei mosaica. Mostrou que a antiga lei foi ah-rogada pelo sangue 1 Henri Daniel-Rops, The Age o( the Apostles and Martyrs, vol. 1. New York, Doubleday-lmage Book, 1 962, p. 43-44. 1 76 l 1 77 de Cristo e substituída pela nova lei, que era a lei da liberdade, e não havia mais espaço para nenhuma distinção entre judeus e gentios: Vós todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo, pois todos vós, que fostes batizados em Cristo, vos vestistes de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus. E se vós sois de Cristo, então sois des cendência de Abrãao, herdeiros segundo a promessa (Gálatas 3 ,26-29) . Foi essa nova pregação que criou a grande rede de igrejas de língua grega ao longo das margens do Mar Mediterrâneo até Antio quia, ao longo da Ásia Menor, da Macedônia, da Grécia e da própria Roma. Eis o tema dos Atos dos Apóstolos, que é uma história verda deira, mas, ao mesmo tempo, é uma espécie de épico cristão. É a Enei da espiritual da Igreja de Jerusalém a Roma, com São Paulo, como a figura heroica, que efetua a missão sagrada por meio de trabalhos sobre-humanos e sofrimentos. Infelizmente, não temos nenhum regis tro comparável de como a Igreja se espalhou em direção ao Oriente e como a cristianismo siríaco da Mesopotâmia surgiu (pois as tradições sobre a fundação da Igreja de Edessa são lendas ) . Mas é provável que o cristianismo siríaco tenha derivado da igreja dos gentios, possivel mente de Antioquia, e não da igreja judaica em Jerusalém. Esta man teve as próprias tradições por todo o cataclisma da Primeira Guerra Judaico-romana e a destruição de Jerusalém, e mesmo durante a cri se, igualmente séria, da Terceira Guerra Judaico-romana, apesar de muita perseguição dos próprios conterrâneos. Aos poucos, todavia, perdeu contato com a igreja dos gentios de modo que, por volta do terceiro século, a vemos imergir na posição de seita heterodoxa - iso lada tanto da igreja dos gentios como da sinagoga judaica e dividida internamente pelo cisma dos ebionitas e pela estranha facção dos el quesaítas, surgidos por volta do ano 1 0 1 . Nesse meio tempo, no entanto, n a igreja dos gentios tornara-se a igreja cristã, a Igreja Católica. Na primeira geração não era, é claro, totalmente composta por gentios, mas muitos dos membros e líderes A Formação da C ristandade 1 Capítulo 6 da igreja da diáspora, como o próprio São Paulo, eram judeo-cristãos. Sobretudo, São Pedro, o príncipe dos apóstolos, que estivera no co mando da igreja de Jerusalém nos primeiros tempos, era bastante ati vo nas igrejas da diáspora, primeiro em Antioquia e depois em Roma, onde, segundo uma tradição antiga e bem atestada, tanto ele quanto São Paulo foram levados à morte na época de Nero. O papel de São Pedro foi de notável importância nesse progredir, porque foram sua autoridade e influência que preservaram a unidade da propaganda revolucionária de São Paulo aos gentios e da tradição judaico-cristã . Além disso, há um bom motivo para acreditar que foi sob influência petrina, e representando a tradição de Pedro, que o Evangelho mais antigo, o de São Marcos, foi escrito em Roma duran te os anos 60, o que confere uma estrutura histórica estável, aceita tanto por j udeo-cristãos como por gentios, como o fundamento da fé. Posteriormente, quando São Lucas ( t84) repetiu essa mesma narrati va evangélica de forma ampliada, combinou-a numa narrativa única e consecutiva com sua história da fundação da Igreja em Jerusalém, sua expansão pela pregação apostólica e, sobretudo, a missão de São Paulo aos gentios. Desse modo, foi criada uma escritura clássica oficial na qual to dos os elementos da tradição cristã - os dizeres de Jesus, a fundação das igrejas, as epístolas paulinas e outras tradições apostólicas pode riam ser incorporadas. Nessa altura, na última metade do primeiro século, o problema judaizante não era mais tão agudo. Para os convertidos oriundos de um ambiente totalmente gentio, o cristianismo não parecia mais uma espécie de judaísmo. Era, para os devidos efeitos, uma nova religião - o Evangelho da Salvação da humanidade em Cristo, o Filho de Deus. Quanto mais estavam desunidos da comunidade judaica, contudo, mais estavam expostos à hostilidade do mundo pagão, já que não tinham mais uma posição social de uma comunidade reconhecida de compatriotas para protegê-los. 1 78 1 1 79 Assim, os primeiros cristãos pareciam viver num vácuo social, pendendo entre os mundos dos j udeus e dos gentios, e esse isolamen to cultural nada mais era senão a expressão social de uma questão espiritual mais profunda, da qual estavam plenamente conscientes. Sentiam que viviam em dois mundos e em duas idades do mundo dife rentes. A vinda do Cristo tinha acabado com a antiga ordem; o antigo mundo estava morto, o antigo Israel tinha perdido seu posto, uma nova ordem nascera, cujos primeiros frutos eram os próprios cristãos. Já possuíam o Reino pela fé e esperança; tinham somente que esperar pela manifestação final e o triunfo. Consequentemente, as condições externas da vida presente não importavam. Estavam apenas viajando pelo que restara de um mundo destroçado rumo a um objetivo de terminado. A Igreja era a sociedade do mundo que há de vir, e eles já possuíam "o penhor do Espírito" (2 Coríntios 1 ,22) e o antegozo da vida no novo mundo. O autor da epístola aos Hebreus expressou esse sentimento de tensão e expectativa numa maravilhosa passagem em que explica a continuidade e a diferença das dispensações judaica e cristã . Vê toda a história do povo eleito como uma peregrinação de fé desde quan do Abraão deixou sua terra em obediência ao chamado divino, sem saber aondeiria, vivendo em tendas numa terra estranha, esperan do todo o tempo a verdadeira pátria cujo arquiteto e construtor era Deus . Do mesmo modo, os descendentes espirituais, "coerdeiros da mesma promessa " (Hebreus 1 1 ,9 ) , viajaram por toda a história, supe rando cada obstáculo e provação pelo poder da fé. "Na fé, todos estes morreram, sem ter obtido a realização da promessa, depois de tê-la visto e saudado de longe, e depois de se reconhecerem estrangeiros e peregrinos nesta terra" (Hebreus 1 1 , 1 3 ) . Os cristãos são os herdeiros dessa grande tradição, mas agora a peregrinação tinha chegado ao fim e a promessa está cumprindo-se - não com tempestade, trevas e fogo ardente no Monte Sinai, onde os homens não suportavam ouvir a terrível voz de Deus . A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 6 Mas vós vos aproximastes do Monte Sião e da Cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial, e de milhões de anjos reunidos em festa, e da assembleia dos primogênitos cujos nomes estão inscritos nos céus, e de Deus, o juiz de todos, e dos espíritos dos justos que chegaram à perfeição, e de Jesus, mediador de uma nova aliança, e do sangue da aspersão mais eloquente que o de Abel (Hebreus 12,22-24 ) . Todas as coisas foram mudadas. Céu e terra serão abalados. So mente o Reino permanecerá firme. Diante desses extraordinários eventos de transformação mundial, todas as diferenças de classe, raça e cultura entre os primeiros cris tãos gentios desapareceram. Punham em prática, com relação a eles mesmos, a parábola de Jesus que falava de um homem que dera um grande jantar e que os convidados tinham se recusado a comparecer, de modo que os lugares foram preenchidos pelos sobejos das ruas - os pobres, os estropiados, os cegos e os coxos (Lucas 14,1 6-24) . A unidade da nova comunidade era essencialmente uma unidade so brenatural, que não dependia de circunstâncias externas, mas da união espiritual dos fiéis entre si, em Cristo. Essa união era realizada, sobre tudo, nos sacramentos que eram os canais para a transmissão da vida do Espírito e o meio pelo qual o fiel era incorporado no organismo divino ou corpo místico do qual Cristo era a cabeça, "cujo Corpo, em sua inteireza, bem ajustado e unido por meio de toda junta e ligadura, com a operação harmoniosa de cada uma de suas partes, realiza o seu crescimento para a sua própria edificação no amor" (Efésios 4, 1 6 ) . A unidade orgânica sobrenatural não está limitada à vida espiri tual interior do cristão - à vida da fé e da caridade -, mas também é um princípio de organização externa e de autoridade hierárquica. As diferentes ocupações ou ministérios na Igreja representam as funções orgânicas de um Corpo e, como os órgãos físicos, têm funções separa das e interdependência mútua e coordenação, da mesma forma ocorre com a vida comunal organizada e a vida hierárquica da Igreja . Desde as primeiras comunidades cristãs, estas não eram vistas como corpos 1 80 l 1 8 1 autônomos independentes. Ainda que estivessem espalhadas pelo mundo romano entre muitas cidades e povos, elas eram uma coisa só, como Cristo era um. Como Cristo fora mandado para o mundo pelo Pai, da mesma maneira os apóstolos foram mandados por Cristo, e os ministros das igrejas locais - presbíteros, epíscopos, diáconos - recebiam a função e a autoridade dos apóstolos. Essa insistência da unidade apostólica na tradição, na doutrina e na autoridade percorre todo o ensinamento da cristandade primitiva, assim como o Novo Testamento e os escritos do período pós-apostólico. No início, a questão da organização era, relativamente, pouco importante. Tudo dependia da autoridade do grupo central dos após tolos, que eram os fundadores e supervisores da nova comunidade, e, em segundo lugar, dos outros representantes do ministério supe rior - profetas, mestres e missionários - cujas atividades não estavam confinadas a nenhum lugar em particular. O ministério local era, na verdade, de importância secundária, como vemos na listagem de São Paulo dos diferentes ministérios ou "carismas" da Igreja - "Em pri meiro lugar, os apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro lugar, doutores . . . Vêm a seguir, os dons dos milagres, das curas, da assistência, do governo e o de falar diversas línguas" ( 1 Coríntios 12,28 ) . A importância dos apóstolos, os pais fundadores das igrejas locais, era irresistível, tanto como fonte e regra da fé, assim como fonte e centro de autoridade, e mesmo as igrejas que não foram dire tamente fundadas por eles buscavam-nos para orientação e aceitavam a autoridade fiscalizadora deles, assim como as demais igrejas. Contudo, quando os apóstolos faleceram, o problema da orga nização eclesiástica se tornou de importância imediata para a Igreja . A insistência na unidade da Igreja e a manutenção da tradição apostóli ca permaneceram tão fortes quanto antes, mas, para ser eficaz tinha de ser intensificada pelo fortalecimento do ministério local e pelo laço da subordinação hierárquica. Temos um indício muito valioso desse perío do de transição na carta escrita por São Clemente I (t99) , o Romano, A Formação da C ristandade 1 Capítulo 6 em nome da Igreja de Roma para a Igreja de Corinto, por volta do ano 97, pois esta havia deposto do ministério seus principais presbíteros. Toda a epístola é dedicada à defesa do princípio da ordem hierárquica e da autoridade como provenientes da tradição dos apóstolos. Os apóstolos foram constituídos pelo Senhor Jesus Cristo pregadores do Evangelho para nós; Jesus Cristo foi enviado por Deus [ . . . ] E assim, enquanto iam pregando, por regiões e cidades, a Boa Nova e batiza vam os que obedeciam ao desígnio de Deus, iam estabelecendo os pri meiros deles [as primícias] - depois de passá-los à prova no espírito - como bispos e diáconos dos que haveriam de crer.2 ( . . . ] Também nossos Apóstolos tiveram conhecimento por Nosso Se nhor Jesus Cristo de que haveria disputa pelo episcopado. Por isso, com perfeito conhecimento do que haveria de acontecer, cons tituíram bispos e diáconos, e depois deram aos sucessores a norma de que, quando morressem, outros homens, postos à prova, os sucederiam no ministério. Esses homens, escolhidos por eles, ou posteriormente, por outros exímios varões, com o consenso de toda a Igreja [ . . . ] .3 Nesse momento vemos que a insistência de São Clemente a res peito do princípio da autoridade e da sucessão apostólica na Igreja é a consequência necessária de sua crença de que os cristãos são um povo à parte - "o povo de Deus" no sentido literal . Conquanto o rompimento com o judaísmo estivesse completado há mais de uma geração, o raciocínio e a linguagem de São Clemente estão enraizados na antiga tradição hebraica de modo tão forte quanto a do autor da epístola aos hebreus. Fala, não como um gentio, mas como um filho espiritual de Israel. Como na primeira epístola de São Pedro, a singular vocação dos cristãos é identificada com a do povo eleito, e 2 1 Clemente (carta Propter Subitas) , §42, 1 ;4. ln: A Fé Católica: Documentos do Magistério da Igreja - Das Origens aos Nossos Dias. Org., intr. e notas de Justo Collantes, S.J.; trad. cotejada com os originais em latim e grego e atua lização com novos documentos de Paulo Rodrigues. Rio de Janeiro/Anápolis, Lumen Christi/Diocese de Anápolis, 2003, p. 570. (N. T.) 3 Idem, §44,1 -2, ibidem. ( N . T. ) 1 82 l 1 83 as palavras da escritura sobre a prerrogativa exclusiva de Israel são aplicadas à Igreja : Quando o Altíssimo dividiu as nações e dispersou os filhos de Adão, estabeleceu os limites das nações conforme o número dos anjos de Deus. O povo de Jacó tornou-se a porção do Senhor e Israel a medida de Sua herança. E, noutra parte, Ele disse: Eis que o Senhor tomou para si uma nação do meio das nações, como um homem apropria-se das primícias de sua eira; e o Santo dos Santos virá adiante dessa nação.4 E como Israel ficara separadodas nações por intricadas obriga ções e restrições da lei, do mesmo modo agora a Igreja era um povo à parte, com leis e modo de vida próprios, fato que o afastava dos judeus e dos gentios, igualmente. À primeira vista parece difícil ver como essa separação pôde ser mantida, já que os cristãos não estavam mais segregados dos de mais, fosse por nacionalidade ou diferenças culturais . No entanto, desde o início, a pressão das hostilidades externas e perseguições era tão grande que produziu uma barreira natural que separou os cristãos do restante do mundo romano. Por dois séculos e meio uma longa guerra foi travada entre a Igrej a e o Império, iniciada na época de Nero e nunca totalmente terminada, apesar de perío dos ocasionais de trégua e descanso, até a conversão do imperador Constantino (272-337 ) . As causas da perseguição não são imediatamente óbvias, visto que o Império Romano normalmente era tolerante em questões religiosas e os cristãos não eram apenas politicamente inofensivos, mas tinham inculcado a obediência ao governo romano como um dever religioso. Devemos, não obstante, lembrar que a segunda metade do século I A.D. e a primeira metade do século II A.D. foram os períodos que 4 1 Clemente, § 29,2-3 . A tradução do presente trecho foi feita a partir da tradução inglesa de J. B. Lightfoot. (N. T. ) A Formação da C ristandade 1 Capítulo 6 testemunharam a luta de vida e morte do povo hebreu contra Roma, e a distinção entre j udeus e cristãos não era tão aparente para as au toridades nesse período quanto, posteriormente, veio a se tornar. Caio Suetônio (69-1 41 ) menciona a perseguição, na época de Domiciano ( 5 1 -96 ) , daqueles "que, dissimulando a origem, j amais haviam paga do os tributos devidos pelo seu povo" . 5 A reação dos próprios cristãos à perseguição, inevitavelmente, foi importante. É no primeiro século, provavelmente no governo de Do miciano, em que os cristãos experimentaram perseguições e sentiram a hostilidade do Império Romano, que encontramos a expressão mais veemente dessa reação nas páginas do Apocalipse. Roma é Babilônia, "a grande mãe das prostitutas, [ . . . ] embriagada com o sangue dos santos e com o sangue das testemunhas de Jesus" (Apocalipse 1 7,5-6 ) , o império do reino da Besta que busca destruir a Igreja, mas que já está destinada à destruição pelo retorno triunfante de Jesus e o esta belecimento do reino dos santos. Essa obra notável, imensamente diferente dos outros escri tos do Novo Testamento e da Carta de Clemente 1, que lhe é quase contemporânea,6 mostra quão intensa se tornara a hostilidade entre a Igreja e o Império, apesar dos cristãos nunca terem se envolvido nas sucessivas revoltas judaicas contra Roma. Não é de surpreender, todavia, que a atitude de passiva hostilidade dos cristãos, a recusa em tomar parte em qualquer das cerimônias públicas e a deliberada separação da vida civil do mundo helenístico-romano devessem ter provocado a suspeita e a hostilidade das autoridades. O Império viu-se na presença de um vasto movimento subterrâ neo que não compreendia, mas que temia e suspeitava . E quando, no 5 Suetônio, A Vida dos Doze Césares, Domiciano § 12 . 6 Segundo a Bíblia de jerusalém, a composição do Livro do Apocalipse, pos sivelmente, deu-se por volta do ano de 95, durante o reinado de Domiciano, mas há quem afirme que algumas partes já estavam escritas desde o tempo de Nero, ou seja, um pouco antes do ano 70. (N. T. ) 1 84 l 1 85 final do século III, o Império esteve envolvido numa série de crises sociais, o cristianismo foi escolhido como o representante mais óbvio das forças subversivas que ameaçavam o modo de vida romano. Da parte dos cristãos, por sua vez, perseguição e martírio eram reconhecidos como condições normais da vida da Igreja . Foram vati cinados nos Evangelhos e tinham como arquétipo supremo o exem plo do próprio Cristo. O mártir seguia os passos de seu mestre, e a morte expressava a identidade entre "a cabeça e os membros" , que era o princípio-chave da teoria paulina de Igreja . Consequentemente, não é de surpreender que a ideia de martírio seja o tema dominante da literatura e do pensamento dos antigos cristãos ao longo de todo o período do Novo Testamento até Eusébio de Cesareia (265-339 ) . Na primeira era da Igreja, o ideal de santidade estava corporificado na figura do mártir - o homem que "testemunhava" com o próprio san gue a fé cristã . O ideal e mesmo a própria palavra remontam o princí pio do cristianismo - de Santo Estêvão ( t34/40 ? ) a Santo Antipas de Pérgamo (t90 ? ) , "minha testemunha fiel, que foi morto junto a vós" (Apocalipse 2,1 3 ) e a referência em São João de três testemunhas: o Espírito, a água (do batismo) e o sangue (do martírio ) ( 1 João 5,7-8 ) . Ao longo de todo o período de perseguição o s mártires desempenham um papel cada vez mais importante na vida da comunidade cristã . A literatura que versa sobre o assunto - as Epístolas de Santo Inácio de Antioquia (35 ?-98/1 07? ) , o Martírio de Policarpo (escrito por volta do ano de 156 ) , a Carta a Diogneto (final do século II ) , a Carta das Igrejas de Lião e Viena às Igrejas da Ásia e da Frígia ( so bre o martírio ocorrido na Gália em 1 77) , as Atas de Santa Perpétua ( 1 8 1 -203 ) e seus companheiros, e as Cartas e Atas de São Cipriano de Cartago (t 25 8 ) - nos dá um conhecimento mais íntimo da men talidade dos primeiros cristãos do que quaisquer outros documentos. Mostram como a expectativa do martírio era um dos fatores perma nentes da vida cristã e como o triunfo dos mártires foi partilhado pe los fiéis como propriedade e glória comuns a todos. Ao escrever numa A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 6 época de relativa paz, Orígenes ( 1 85-25 3 ) recordava as perseguições anteriores como a época de ouro da Igreja : O s dias d a verdadeira fé foram aqueles em que tivemos muitos mártires, nos dias em que costumávamos levar os corpos dos mártires para o cemi tério e voltar diretamente para nos unir à assembleia. Naqueles dias, toda a Igreja estava de luto e as instruções que os catecúmenos recebiam pre tendiam prepará-los para confessar a fé no exato momento da morte, sem vacilar ou falhar na crença no Deus vivo. Havia poucos fiéis nessa ocasião, mas eram verdadeiros; seguiam o caminho estreito que conduz à vida.7 Assim sendo, na cultura dos primeiros cristãos, a figura do mártir tomou o lugar da figura do herói da cultura pagã, e as vidas e legen das dos mártires substituíram os mitos heroicos e lendas que eram os elementos mais populares e persistentes da antiga cultura . É difícil exagerar a importância do ideal e do culto dos mártires para a cultura cristã . Cada uma das igrejas importantes tinha seus próprios mártires, que eram tomados como intercessores especiais e cujo culto fortalecia a solidariedade da comunidade espiritual. E havia também personagens muito famosas, cujas histórias eram conhecidas por todo o mundo cristão - os "megamártires" , como são chamados pelos bizantinos - como São Jorge (275/28 1 -303 ) , São Sérgio ( t 3 0 3 ) , São Cosme ( t287 ) e São Damião ( t287 ) , e os cultos eram amplamente difundidos, tanto no Oriente quanto no Ocidente, da Pérsia à Gália . Desde cedo, o culto dos mártires também encontrou expres são na arte e arquitetura , assim como na arte das catacumbas e na influência do martyrium, ou câmara funerária, no desenvol vimento da igrej a de planta centralizada com cúpula . Em Roma, sobretudo, a vida da Igrej a centrava-se nos grandes cemitérios suburbanos que surgiam em propriedades privadas, fora dos 7 Orígenes, De Principii, 3,3,2. ln: Jean Daniélou, Origen. New York, Sheed and Ward, 1 955, p. 4 1 . 1 86 l 1 87 muros da cidade. Aí ficavam os túmulos dos mártires, onde eram celebradas as festividades ou aniversários, de modo que a Igrej a prestava culto na presença dos mártires . Ademais, esses cemitérios subterrâneos, por serem estáveis, davam oportunidade para o desenvolvimento da arte cristã . Com técnicas e motivos inspi rados na arte popular de tradição helenística do período, a arte cristã os transformou, segundo os seus propósitos, num sistema de simbolismos, em que representações naturalistas de formas como a vinha, o peixe, a pomba, a âncora, a coroa etc . adquiriam um significado esotérico bastante claro para o fiel , mas comple tamente privado de sentido para os não iniciados . Em outros ca sos, motivos mitológicos como o de Orfeu ou Hermes Crióforo são traduzidos em termos cristãos como a figura do Cristo, o bom pastor. A mais comum de todas é a imagem da Orante - uma figura feminina de mãos estendidas, que é símbolo, ao mesmo tempo, da Igre ja em oração e da alma cristã . Por fim, há pintu ras que ilustram nitidamente cenas do Antigo Testamento ou da liturgia . Dentre elas, existe uma cena na catacumba de Nápoles com três virgens construindo uma torre que é , sem dúvida, uma ilustração da visão de Hermas, o l iberto - profeta romano do sé culo II -, um exemplo único de cooperação entre a arte cristã pri mitiva e a literatura para criar um novo tipo de imagem poética, 8 8 A pintura encontra-se no teto da catacumba de San Gennaro, em Nápoles. É a única representação da obra O Pastor de Hermas, documento quase des conhecido atualmente, mas muito conhecido no período da Igreja primitiva . A obra conta a história de Hermas, um escravo liberto que tem visões do céu e aprende com seu guia espiritual, o pastor, a importância fundamental da mudança de coração e da conversão à simplicidade da fé. A pintura traz uma torre, que aparece numa das visões de Hermas, e três virgens que parecem carregar algumas pedras para construir a torre. As pedras representam os vários povos e as diferentes respostas ao chamado da fé. Interessante notar que as pedras diferem entre si. As brancas e perfeitas são os líderes da Igre ja e os mártires, e as pedras que exigem corte são os fiéis que precisam ser aperfeiçoados. (N. T. ) A Formação da C ristandade 1 Capítulo 6 que prenunciava a arte da cultura cristã das eras vindouras . Não menos importante que o ideal do martírio era o da virgindade, que também remonta a primeira era da Igrej a . Na verdade, os dois ideais estavam associados - primeiro, pelo culto das virgens mártires, como Santa Inês ( 3 04-3 1 7 ) , bastante popular, e, em se gundo lugar, pela ideia de que a virgindade era uma espécie de vida de martírio, um testemunho do poder da fé para transcender as fraquezas humanas . Assim, o ideal de ascetismo como uma luta heroica para superar o mundo e a carne rememora as origens e é associada pelos primeiros autores cristãos à ideia de martírio e virgindade . Nas palavras de São Cipriano, habet et pax caronas suas - a paz também tem seus louros . E assim como os confessores e as virgens tinham uma posição - uma ordo -, na igreja primitiva igualmente tinham os ascetas. Os "fi lhos da aliança" - b 'nai qyama -, para quem Santo Afrates (270-345 ) , o primeiro mestre siríaco, escreve, não eram monges, mas chegavam próximo da vida monástica, já que eram cristãos vivendo uma vida ascética e celibatária que os diferenciava dos demais fiéis. Eram, por assim dizer, pré-monges, e é fácil entender como tal instituição iria, inevitavelmente, evoluir, sob circunstâncias favoráveis, para uma vida monástica plena. Era um início bem modesto, e dificilmente no século II podemos falar de uma cultura cristã, contudo, haviam sido postos os funda mentos para um novo modo de vida que não era nem grego nem ju deu, mas unia as duas tradições sob a inspiração de um novo espírito . Isso é apresentado, de maneira bem intensa, na Carta a Diogneto, que é um dos escritos pós-apostólicos mais notáveis. O autor des creve como os cristãos estavam dispersos em todos os lugares, tanto na Grécia quanto nas cidades bárbaras, vivendo exteriormente como quaisquer outros homens, mas de modo totalmente diferente na vida íntima. São, diz a carta, "uma terceira raça " , nem judeus ou gregos, mas algo novo. De fato, conclui: [ . . . ] o que é a alma no corpo, são no mundo os cristãos. Encontra-se a alma em todos os membros do corpo, e os cristãos dispersam-se por todas a cidades do mundo. [ . . . ] A carne odeia a alma e a combate [ . . . ] ; também o mundo odeia os cristãos [ . . . ] mas são eles que sustêm o cosmo. [ . . . ] Deus os colocou em tão elevado posto, que não lhes é lícito recusar.9 1 88 l 1 89 9 A Carta a Diogneto. lntr. e notas Dom Fernando A. Figueiredo, trad. Abadia de Santa Maria. Petrópolis, Vozes, 2003, VI, p. 24-25. (N. T. ) l 1 9 1 C a p í t u l o 7 1 O C r i s t i a n i s m o e o M u n d o G r e g o Em meados do século II, o grande conflito entre o povo hebreu e Roma havia chegado ao fim, e o mundo antigo entrara em um perío do de paz e prosperidade sob o governo dos imperadores da dinastia Antonina . A esperança de uma grande catástrofe ou da revolução mundial que, até aqui, confortara judeus e cristãos de modos dife rentes na resistência à perseguição, nesse momento, tinha tornado-se mais remota e, portanto, tiveram de começar a se adaptar à nova situação. Fizeram-no, contudo, de modos diferentes. Os judeus ten deram a se afastar do contato com a civilização grega e a reorganizar a vida nacional em torno de novos centros culturais, extremamente conservadores, que cresciam na Mesopotâmia em Sura e Pumbedita. Não me é possível discutir, como gostaria de fazer, tal evolução do judaísmo babilônico no terceiro século. Infelizmente, isso tende a ser negligenciado na maioria das histórias do cristianismo primitivo e do Império Romano. Foi de grande importância, no entanto, pois acarretou o progressivo afastamento dos judeus da cultura helenística e ocidental e o estreitamento das relações com o mundo de língua ara maica ou siríaca da Babilônia, que esteve, nessa época, primeiro sob o governo do Império Parto e, posteriormente, sob comando da nova monarquia sassânida, que era a mais terrível inimiga dos impérios romano e bizantino. Em Sura e Neardeia, e depois em Pumbedita, surgiram as gran des escolas judaicas numa sucessão de famosos mestres, de "Rav" ou A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 7 Abba Arika ( 1 75-247) a Rav Ashi ( 352-427) , chefe da Escola de Sura, de 372 a 427. Aí foi criado o grande Talmude Babilônico, a base do judaísmo medieval e moderno. Sua importância não pode ser exage rada. Infelizmente, de todas as religiões clássicas, o judaísmo é a mais difícil para o leitor comum assimilar, pois este vê-se confrontado não só com a extensão da obra - que nas traduções inglesas modernas chegam a 36 grossos volumes, mas, sobretudo, com o estilo e a falta de unidade. Como escreve Israel Abrahams ( 1 858- 1 925 ) a respeito do Talmude: "Não é um livro, é uma literatura. Contém um código legal, um corpo de costumes rituais, poemas, preces, histórias, fatos da ciência e da medicina, e fantasias do folclore" . 1 Assim, foi criada uma barreira, em vez de uma ponte, entre a cultura judaica e a gen tílica, e isso explica um certo grau de isolamento cultural dos judeus nos tempos antigos. Os cristãos, em contrapartida, travaram relações cada vez mais próximas com o mundo helenístico e iniciaram aquele longo diálo go com o pensamento grego, continuado pelos primeiros apologis tas, depois pela escola cristã de Alexandria e, por fim, pelos Padres Gregos dos séculos IV e V, como São Basílio ( 329-379 ) , São Gregó rio de Nissa ( 3 30-395 ) , São Gregório Nazianzeno e Teodoreto de Ciro ( 3 93 -46 6 ) . Por volta d o século II, contudo, o helenismo era algo muito dife rente do helenismo da Grécia clássica. Era um verdadeiro mundo de cultura universal que abraçava todo o mundo civilizado: de Roma a Antioquia e Alexandria, estendendo-se mais ao Oriente até o cora ção da Ásia. Inicialmente, fora um fenômenocultural e não nacional . Um homem tornava-se heleno não por nascimento, mas por edu cação, e quem quer que tivesse passado pela escola ou gymnasions gregos era tão heleno quanto aquele que nascera na Ática . Além 1 Israel Abrahams, Chapters on jewish Literature. Filadélfia, The jewish Publication Society of America, 1 899, p. 45. (N. T. ) 1 92 l 1 93 dessa importante parcela de genuíno helenismo cultural, o mundo helenístico abrangia uma imensa multidão de pessoas que estavam submetidas às leis das cidades e dos reinos gregos e que falavam a língua grega, apesar de ainda guardarem o contato com as culturas mais antigas e não helênicas. Ao longo de todo o período romano, essa forma secundária de cultura helenística estava em expansão, em especial na Ásia Menor, e as antigas línguas vernáculas eram substi tuídas pelo grego, assim como as línguas gaulesa e ibérica estavam passando a ser dominadas pelo latim na Gália e na Hispânia . A postura religiosa e as necessidades dessas duas formas de socie dade helenística eram muito diferentes. Os povos dominados que não estavam assimilados, ou estavam imperfeitamente assimilados, per maneciam fiéis às religiões e cultos pré-helênicos, e foi por intermédio deles que o mundo helenístico se expôs à invasão dos cultos orientais e às ideias que ameaçaram-lhe a independência espiritual. A própria cultura helenística tinha, quase desde o início, a pró pria tradição de sabedoria espiritual, cuja expressão clássica eram os diálogos platônicos. Posteriormente, no período helenístico, a tra dição foi adaptada às necessidades de uma sociedade cosmopolita até se tornar uma religião mundial racional comum a todo o mundo helenístico. Foi uma espécie de panteísmo espiritualista, baseado no princípio espiritual universal ou lógos, que era, ao mesmo tempo, a causa imanente da ordem e da harmonia no cosmo e o princípio da ordem moral na vida humana. Em um desdobramento posterior, em especial com Epiteto (55-1 35 ) , no início do século II, e com o impe rador Marco Aurélio ( 1 2 1 - 1 80 ) , o elemento religioso na filosofia se tornou cada vez mais manifesto, de modo que se transformou, apesar do panteísmo original, em uma religião monoteísta inspirada pelo elevado ideal de perfeição moral. Isso era, enfim, apenas um lado da tradição helenista, ainda que o lado mais autêntico. No mundo helenístico também existiam tra dições provenientes do Oriente e não da Hélade - as tradições dos A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 7 inúmeros povos que experimentaram um processo superficial de he lenização e que, ao menos, tinham aprendido a falar grego, mas per maneceram, no fundo, fiéis às religiões e crenças do antigo mundo oriental . Foi por meio desse elemento imperfeitamente helenizado que o mundo helenístico ficou cada vez mais exposto, nos séculos II e III, à maré crescente de influências orientais. Os próprios judeo-cristãos representavam um elemento nesse movimento, mas uma vez que eram não helênicos, representavam a tradição religiosa e nacional diferente do povo hebreu. Além desses, no entanto, havia uma multidão anô nima e impessoal de povos que perderam suas tradições nacionais distintivas e foram absorvidos na sociedade cosmopolita das monar quias helenistas, sobretudo, pelo império mundial de Roma. Esses povos permaneceram espiritualmente estranhos à civiliza ção ocidental dominante. Não partilhavam a postura helenística tí pica de reverência religiosa para com o mundo natural, como uma manifestação visível de inteligência e ordem. Ao contrário, eram pro fundamente pessimistas na postura com relação à vida e a respeito de toda a ordem cósmica, que viam como algo sob o domínio de potências demoníacas; e buscavam um caminho de salvação que os livrasse não só do corpo, mas do mundo e dos males do nascimento e da procriação. Tal postura finalmente encontrou expressão numa série de mo vimentos religiosos e teosóficos que, normalmente, são agrupados sob a denominação comum de gnosticismo. Também incluem a nova religião mundial do maniqueísmo que perduraria, ao menos, uns mil anos, bem como heresias como o marcionismo e seitas como o man deísmo, que sobrevive até os dias de hoje. A natureza essencial de to dos esses sistemas religiosos pertencem a um mundo totalmente dife rente daquele do helenismo ocidental ou mesmo da tradição judaico -cristã : por sua vez, frequentemente apresentam uma incrível seme lhança com as religiões e filosofias da antiga Índia. Todos são, como o budismo e o ja inismo, essencialmente formas de " libertação" - 1 94 l 1 95 moksha - que ensina o homem como se desembaraçar do mundo e da existência corporal . Tais sistemas estão de acordo com as filosofias hindus no profun do pessimismo, que vê a alma como um exílio, lançado em um mundo de trevas: Vês, meu filho, quantos corpos nos é necessário atravessar, quantos co ros demoníacos, e que sucessão contínua e quais cursos de astros para nos lançarmos ao Um-Único?2 [ . . . ] agora ela [alma] atinge o ponto onde é cercada pelo mal, sabe que não tem saída. Enganada, entra em um labirinto. [ . . . ] vagueia na terra perseguida pelo mal. [ . . . ] Ela está tentando fugir do caos amargo, e não sabe como irá escapar.3 Dor e aflição sofro neste corpo em forma de veste em que me arreba taram e me lançaram. Quantas vezes o puser fora, tantas voltará, devo sempre e de novo e amainar minha contenda e não olhar para a vida em sua sh 'kima [habitação] .4 Podemos comparar essas passagens com o trecho que citei do Maitrayana Upanishad, no nono capítulo do meu livro Religion and Culture5 [Religião e Cultura] , que descreve o mesmo senso de desam paro e sede por iluminação e libertação. Do mesmo modo, a doutrina gnóstica do Salvador - "O verda deiro mensageiro desde o princípio do mundo a alterar suas formas 2 Hermes Trismegisto, "Discurso Sagrado de Hermes" . ln: Corpus Hermeticum. III, § 8. (N. T. ) 3 Trecho do Salmo Naaseno. A seita gnóstica dos naasenos é mencionada por Santo Hipólito de Roma ( 1 70-236) na obra Refutação de Todas as Heresias, V. 10 . 2. (N. T. ) 4 Trecho do Cinza Rba [O Grande Tesouro], livro sagrado dos mandeus, es crito originalmente em aramaico. A tradução deste trecho em alemão pode ser encontrada em Mark Lidzbarski, Cinza: Der Schatz oder das Crosse Buck der Mandiier. Gõttingen, 1 925, p. 46 1 . (N. T. ) 5 Christopher Dawson, Religion and Culture. Intr. Gerald J. Russello. Washington, D.C., The Catholic University of America Press, 20 1 3 . (N. T. ) A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 7 e nomes pelo Éon, até que tenha chegado o seu tempo, e ungido pela misericórdia de Deus por sua obra, alcance o descanso eterno"6 - assemelha-se com a doutrina hindu de sucessivos budas ou jivas que levam a mensagem de libertação para sucessivas eras. E tal semelhan ça era invocada por Mani (21 6-276 ) , na sua história da revelação: De éon a éon os apóstolos de Deus não cessavam de trazer para cá sabedoria e obras. Assim, uma das eras de sua vinda foi nas terras da Índia pelo apóstolo dito Buda; em outra era foi para a Pérsia por Zoroastro; em outra, para as terras do Ocidente por Jesus. Depois disso, na última de suas eras, a revelação desceu e essa profecia che gou por meu intermédio, Mani, o apóstolo do verdadeiro Deus, na terra de Babel. 7 O paralelo mais extraordinário, no entanto, entre o pensamento hindu e o gnóstico é a crença que encontra a mais clara expressão no jainismo - de que o mundo é repleto de almas que existem não só em homens, mas em animais, vegetais e em todas as partículas da matéria, e que o homem iluminado deve abster-se, escrupulosamente, de qualquer ato que possa destruir ou danificar essas vidas. Ora, ideia semelhante é encontrada nas escrituras maniqueias que relatam como a natureza espiritual mais elevada de Jesus, o salvador e mensageiro da vida, se dispersou e uniu-se a toda a criação material.Isso, na linguagem maniqueia, é o "Jesus sofredor" que '"pende de toda a árvore' , 'é servido, aprisionado, em toda a iguaria' , 'nasce, sofre e morre todo o dia', e está disperso por toda a criação" . 8 Des se modo, o "eleito" maniqueu, como o asceta j aina, está obrigado 6 Trecho dos escritos de Pseudo-Clemente, cujo romance religioso diz conter o registro dos discursos de São Pedro feito por um Clemente (erroneamente iden tificado como o papa Clemente 1 ou como o primo do imperador Domiciano), que veio a se tomar companheiro de viagem do apóstolo. Os relatos já eram conhecidos pelos ebionitas, e os indícios levam a crer na autoria de um ariano, que viveu nas proximidades da Cesareia, por volta do ano de 350. (N. T. ) 7 Citado por Al-Biruni ( 973- 1048 ) na Cronologia dos Shahpurakan de Mani. 8 Hans Jonas, The Gnostic Religion. Boston, Beacon, 1 958 , p. 229. 1 96 l 1 97 às regras mais estritas de abstinência e não violência . " Convém ao homem" , está escrito na Kephalaia de Mani, "olhar para o chão ao tomar o seu caminho, para que não pise aos pés da Cruz da Luz e destrua as plantas " . Portanto, os medievais maniqueus posteriores, como os j ainas, viam como o maior ato de virtude a total abstinên cia de todo o tipo de alimento, ainda que isso viesse a acarretar a morte voluntária. Todas essas semelhanças, é claro, não comprovam uma influência direta do pensamento hindu no Ocidente ou no Oriente Médio, no entanto, sugerem que o mundo dos povos orientais, que submergira pelo avanço vitorioso da cultura helenística e do imperialismo ro mano, estava reafirmando sua independência espiritual. Tal evolução iria, sem dúvida, ocorrer, caso o cristianismo não tivesse nunca exis tido e, não fosse pelo cristianismo, isso poderia muito bem ter con quistado e absorvido a religião e a filosofia helenísticas e criado uma nova religião mundial sincretista, comparável à forma mahayana do budismo, que se espalhava pelo Norte da índia para a Ásia Central e China durante o mesmo período. Mesmo sendo diferentes entre si, esses vários credos têm uma ca racterística comum que os distingue do cristianismo. Todos são dua listas e antimaterialistas, ensinando que a criação material é má e que Deus não é o criador do mundo: todas concordam em considerar o Salvador não um verdadeiro homem, mas uma potência angélica ou celestial que se manifestou na aparência humana, e todos ensinam que a salvação não deve ser encontrada na fé em uma revelação histó rica, mas ela se dá pela iniciação em um conhecimento secreto - uma gnosis ou teosofia que contenha os segredos supremos da cosmologia e da metafísica. Quando esse fluxo de doutrinas estranhas invadiram o mundo antigo e tentaram transformar o cristianismo à própria imagem, a Igreja se deparou com um novo problema. A Igreja era uma socie dade orgânica, viva, consciente de possuir uma tradição sagrada, um A Formação da C ristandade 1 Capítu lo 7 evangelho divino e um novo modo de vida. Até o momento, contudo, não tinha nenhuma ideologia ou gnosis no sentido helenístico. Agora, tinha de erigir uma defesa fundamentada do cristianismo como um corpo consistente de doutrina capaz de dar uma resposta a todas as questões abstrusas suscitadas pelos novos movimentos. O desenvolvi mento de uma teologia científica não foi completado até o período dos grandes concílios, mas foi nessa época - no final do século II e durante a primeira metade do século III - que foram lançados os fundamentos por Santo lrineu ( 1 30-202 ) e Tertuliano ( 1 60-220) no Ocidente, e por Clemente de Alexandria ( 1 50-2 1 5 ) e Orígenes no Oriente. O primeiro deles - Santo Irineu - foi a figura mais representativa, já que pertence tanto ao Ocidente quanto ao Oriente e, de modo es pecial, é Padre e Doutor da Igreja universal. Foi discípulo de São Po licarpo de Esmirna (69- 1 5 5 ) , que fora discípulo dos apóstolos. Irineu passou a vida como um missionário no Extremo Ocidente e sucedeu o mártir São Potínio ( t l 77) como bispo de Lion (então Lungdunum), numa época de perseguição, nos dias do imperador Marco Aurélio. A grande obra de Santo lrineu contra os gnósticos é muito mais que uma refutação polêmica dos erros dos hereges. É uma defe sa original e profunda de todo o plano cristão de salvação - uma filosofia cristã da história, uma teologia da criação e da encarnação, bem como uma definição da missão da Igreja como a guardiã da tradição apostólica e veículo da vida do Espírito . Contra as especu lações cosmológicas e teosóficas dos gnósticos, insistia na necessi dade de limites ao conhecimento humano ou mesmo da revelação cristã, uma vez que esta nunca pretendeu ser uma iniciação nos mis térios cósmicos e nas divinas teogonias . É simplesmente a história das relações de Deus com a raça humana, a paulatina educação da humanidade pelas primeiras dispensações registradas na Escritura e a recapitulação do processo na encarnação do Verbo, por quem a humanidade, finalmente, alcança seu bem-aventurado objetivo divi no. Desse modo, todos os mistérios da fé são referentes às condições 1 98 l 1 99 da natureza e do conhecimento humanos. Todos se ocupam de um único tema - a doutrina em relação à educação e à regeneração da raça humana, que é a razão da criação e do propósito da história . E j á que o homem é uma criatura material, esse propósito abraça o corpo assim como a alma. O homem não é salvo do corpo, como ensinavam os gnósticos, mas no corpo. O dom do Espírito é consu mado no corpo, como a obra da Encarnação foi incluída e comple tada na Igreja . O plano divino é realizado pelas sucessivas eras de existência física do universo em realidades concretas da natureza e história humanas. O espírito do realismo histórico é expresso por Santo Irineu na sua doutrina da Igreja . O cristianismo, declara, não é igual ao gnosticismo, uma ideologia ou uma hipótese; é uma tra dição histórica da Igreja histórica que pode ser reconhecida, por sucessão direta, desde os fundadores apostólicos. Em comparação com outros Padres Gregos, Santo Irineu deve muito pouco ou nada à filosofia . Seu pensamento é completamente cristão e bíblico, tanto em fonte como em conteúdo, embora fosse um homem de considerável cultura literária e um pensador convincente e original . Em parte devido a sua posição isolada no Ocidente celta e la tino, Irineu não fundou nenhuma escola e nenhuma tradição literária . A tendência do progresso teológico grego seguiu um curso diferente, determinado pelos líderes da escola catequética de Alexandria - Cle mente e Orígenes. Esse caminho já fora iniciado pelos apologistas gregos, em espe cial São Justino Mártir ( 1 00- 165 ) e Atenágoras de Atenas ( 1 33 - 190 ) , pois reconheciam a existência de um conhecimento básico da verdade que era comum tanto aos cristãos quanto aos filósofos, e São Justino explica isso graças à "razão seminal" ( lógos spermatikós) que levou ao mais sábio dos gregos a vislumbrar, até certo ponto, as verdades agora manifestas no lógos encarnado. A concepção da filosofia grega como preparação para o cris tianismo foi muito mais bem desenvolvida por Clemente na escola A Formação da C ristandade 1 Capítulo 7 catequética de Alexandria . Ele vai além de Justino, não só ao afirmar a filosofia como uma espécie de "terceira dispensação" a conduzir os gregos ao conhecimento de Deus, mas como algo necessário também aos cristãos, caso pretendessem entender tudo o que a fé abarcava, de modo a progredir da fé para o conhecimento, a gnosis (Clemente não temia utilizar tal palavra, apesar das associações heréticas ) . Assim, a escola de Alexandria não se satisfazia mais com a teologia estrita mente tradicional de Santo Irineu. Audaciosamente aceitou o desafio do pensamento helenístico e continuou a mostrar como a revelação cristã era a verdadeira resposta para a busca intelectual e moral da filosofia helenista . Decididamente, o maior representantedessa tendência foi Orí genes, que era o mais erudito, não só da escola de Alexandria, mas de todos os teólogos e eruditos da Igrej a primitiva. Assim, é inevitá vel que ele deva ter exercido uma profunda influência na teologia e cultura cristãs . Essa influência, todavia, não foi inconteste e, ao fi nal, a ortodoxia grega iria rejeitar sua teologia e condenar as obras. Essa foi a penalidade do sucesso, pois a síntese feita por Orígenes do pensamento helenista da época - do período dos fundadores do neoplatonismo, como Platino - foi demasiado completa para ser aceitável aos orientais . Esse foi , sobretudo, o caso das arroj adas especulações do seu tratado fundamental, De Princiipis , que hoje sobrevive somente na tradução, um tanto expurgada, feita por Rufino de Aquileia ( 340/345-4 1 0 ) . Do mesmo modo que os predecessores, como Jus tino, e os sucessores, como os teólogos gregos do século IV, o cen tro do pensar é a função criadora do lógos. O mundo de Orígenes, como o dos neoplatônicos com quem tinha tanto em comum, é um universo hierárquico em que o lógos é o elo intermediário entre o Pai, que é o aútothéos - Deus propriamente dito - e os logikói, os seres espirituais criados, sej am anjos ou homens, que recebem do lógos todo o conhecimento espiritual que possuem, já que veem 200 1 20 1 nele a imagem ou o reflexo da divindade suprema . O mundo vi sível, por sua vez, deve a beleza e a ordem à criação espiritual pela qual é governada . Ao mesmo tempo, contudo, Orígenes tinha plena consciência das forças do mal - as potências espirituais, até mesmo angélicas, que exerciam profunda influência neste mundo material visível . Foi para l ibertar a humanidade e toda a criação material dessas forças do mal que o lógos se fez homem e sofreu a morte na cruz. Os cristãos continuam a mesma obra de salvação quando, por sua vez, derrotam as forças do mal ao testemunhar com o próprio sangue o triunfo do lógos sobre a morte . Basica mente, Orígenes acreditava que essa obra de redenção cósmica seria total e toda a criação, que incluía até mesmo as próprias potências do mal, seriam reconduzidas para Deus e restauradas na integridade original . A ideia de salvação universal - a apocatástase, como a chamava Orígenes - foi um dos pontos de sua teologia merecedores de conde nação, mais tarde, por teólogos de outras épocas, como também fo ram salientadas as ideias de preexistência de todas as almas humanas. Na realidade, as doutrinas cosmológica e hierárquica a respeito da Trindade é que constituíam um perigo muito maior para a ortodo xia católica, já que tinham grande penetração e influência, por vezes inconsciente, sobre toda a tradição da especulação teológica grega. Não há dúvida de que, apesar de Orígenes ter visto o lógos como imagem eterna do Deus invisível, sua doutrina é francamente subor dinacionista e vê o lógos como inferior ao Pai na escala da existência, da mesma maneira como o restante da criação espiritual é inferior ao lógos. Isso está tão de acordo com a tradição filosófica grega, de Fílon de Alexandria aos neoplatônicos, que foi prontamente aceita pelos cristãos gregos instruídos e contribuiu, enormemente, para o sucesso do arianismo e do semiarianismo no século seguinte. Orígenes, entre tanto, deve ser tomado como a fonte da principal tradição de altos estudos cristãos, tanto bíblicos como teológicos, na Igreja Oriental. A Formação da C ristandade 1 Capítulo 7 A escola de Cesareia, na Palestina, que ele mesmo fundou após ter sido forçado a deixar Alexandria no ano de 232, tornou-se um grande centro de estudos para cristãos na Palestina e na Ásia Menor, e, num período posterior gerou um dos maiores eruditos cristãos, Eusébio de Cesareia, o historiador. Ademais, no século IV, os grandes Padres da Capadócia, São Basílio e os dois Gregórios, que sempre foram vistos como a glória da teologia da Igreja Oriental, sem dúvida deveram a inspiração ao pensamento de Orígenes, como vemos na antologia de seus escritos compilada por São Basílio e São Gregório Nazianzeno, chamada Filocalia. 9 A helenização de cultura cristã, que atestam a influência de Orígenes e a escola de Alexandria, foi um movimento de longo alcance que chegou a abranger quase todo o mundo mediterrâneo. A própria Igreja de Roma continuou a utilizar a língua grega du rante quase todo o século III, e os primeiros teólogos ocidentais, como Irineu na Gália e Santo Hipólito de Roma, todos eles escre veram em grego . Parece paradoxal que a literatura cristã latina e toda a tradição teológica da Igreja Ocidental tenham-se originado não na Europa, mas na África, nos países que hoje são conhecidos como Tunísia e Argélia . Isso não significa, entretanto, que a nova literatura latina fosse um pálido reflexo da dominante cultura helenística do Oriente. Lon ge disso: era profunda e desconcertantemente original, sem dúvida, devido ao fato de que o primeiro escritor latino foi um homem de gênio e com um talento natural para a escrita, maior que qualquer um de seus contemporâneos gregos. Nessa época, a literatura romana clássica tinha praticamente chegado ao fim. 9 Vale lembrar que há também uma compilação de textos dedicados à mís tica e à ascese na Igreja Oriental que traz esse mesmo nome, com textos que abrangem desde os Padres do Deserto e da Patrística no século IV até as obras de Gregório Palamas ( 1 296- 1 359 ) e outros autores bizantinos do século XIV. (N. T. ) 202 l 203 Um silêncio estranho recaíra sobre o mundo pagão latino e, em meio a tal quietude, uma nova voz de intensidade e convicções apai xonadas se fez ouvir. Era a voz de Tertuliano, o fundador da literatura cristã latina e uma das influências formativas mais potentes na cultura cristã ocidental . Tertuliano, o filho de um oficial romano em Cartago, era um escritor e combatente nato, com predileção pela controvérsia teológica e possuidor do dom de criar frases de efeito que perfuravam a armadura da indiferença e do preconceito, atingindo o cerne da questão. Nada poderia ser mais diferente dos grandes contemporâ neos alexandrinos - Clemente e Orígenes - em estilo, pensamento e temperamento. Estes escreviam como intelectuais gregos para uma audiência cosmopolita, helenística . Tertuliano escreveu como romano para os romanos, como um cidadão para os cidadãos, como um ju risconsulto para os jurisconsultos. Apesar do estilo barroco, estranho e difícil sempre ter sido um escândalo para os puristas, o que o levou a ser tratado como uma espécie de proscrito pelos letrados historia dores convencionais, seu latim era uma língua viva e fez mais que qualquer outro escritor para criar a língua da Igreja . Além disso, Tertuliano não era menos romano no pensamento e nos ideais. Foi o último representante dos grandes moralistas roma nos, como Tito Lucrécio ( 99-55 a .C . ) , Décimo Juvenal (t séc. li) e Cornélio Tácito (55-120) , e a indignação moral, que fez de Lucrécio um ateu e de Juvenal um pessimista, faz de Tertuliano um defensor da fé cristã contra a corrupção do mundo pagão. Sem dúvida, isso tam bém o tornou um puritano e, por fim, um herege. No entanto, mesmo nesse aspecto, foi apenas um representante das últimas evoluções. Di ferente dos outros hereges, Tertuliano conservou na Igreja a influência teológica e literária de São Cipriano a São Jerônimo, e sempre foi reconhecido como o primeiro dos Padres Latinos. 1 0 1 0 A seita dos tertulianistas foi reconciliada com a Igrej a pelo próprio Santo Agostinho, e a basílica deles era um local de culto muito conhecido em Cartago. A Formação da C ristandade 1 Capítulo 7 O segundo dos Padres Latinos, São Cipriano de Cartago, tam bém partilha da mesma preocupação com as questões morais e uma opinião semelhante a respeito dos valores sociais e jurídicos. Embora Cipriano fosse intelectualmente um discípulo de Tertuliano, os dois não poderiam ser mais diferentes em personalidade. Este, um escritornato, um individualista inflamado, extravagante; aquele, um admi nistrador nato, um homem de ordem e moderação, que governou a Igreja da África com a autoridade e a prudência de um grande ma gistrado romano. Nada em literatura é mais genuinamente romano que o heroísmo lacônico do julgamento e martírio de São Cipriano, como registrado na Acta Proconsularia Cypriani, 1 1 e é seu episcopado e morte que explicam o imenso prestígio da sua memória, tanto no Oriente quanto no Ocidente, mais que sua teologia ou obras. As cartas de São Cipriano e o tratado sobre a unidade da Igreja Católica estão entre os mais importantes documentos da história da Igreja do século III que possuímos. Mostra o alto grau de organiza ção constitucional e de autoridade canônica que a Igreja viera a ter. O mundo romano não podia mais repudiar o cristianismo como ou tra daquelas seitas orientais e cultos de mistério que pululavam o sub mundo religioso do Mediterrâneo. Era uma força social organizada com um sistema próprio e autônomo de governo e jurisdição. Em pro víncias como a África, a Ásia ou o Ponto, cada cidade tinha a própria igreja, cada igreja o seu bispo, e os bispos e as igrej as eram unidos por concílios eclesiásticos dentro das províncias e por um sistema regular de correspondência e comunicação. É verdade que tais relações, ainda muito afastadas, estavam suscetíveis a interrupções, como vemos no conflito entre São Cipriano e Roma sobre certas questões canônicas. Não obstante, o caráter ecumênico da organização era tão forte que a Igreja já era, potencialmente, da mesma extensão do Império. 1 1 Cf. Paul Monceaux, Histoire Littéraire de l'Afrique Chrétienne, vol. 2. Paris, Leroux, 1 90 1 , p. 1 79-90. 204 l 205 Na verdade, no Oriente ela j á tinha começado a transcender as fronteiras imperiais nas terras contestáveis entre os Impérios Romano e Persa, sobretudo, no norte da Mesopotâmia. Aí a conversão do rei Abgar IX de Edessa, 1 2 que reinou de 1 76 a 2 1 4, acarretou a cristiani zação do pequeno reino, ou estado satélite, de Osroena, de modo que o cristianismo aos poucos se tornava a religião nacional da população siríaca da Mesopotâmia, e a porta estava aberta para uma maior ex pansão do cristianismo rumo ao coração da África . Assim, ao final desse período - no início do século IV - a Igreja se tornara uma sociedade internacional e inter-racial, cuja extensão ia do Oceano Atlântico ao Golfo Pérsico ou além. Era una na fé, na or dem e no culto, entretanto, j á tinha permeado três mundos culturais e linguísticos diferentes. Do ponto de vista cultural não havia uma cristandade, mas três - a grega, a latina e a siríaca -, e cada uma delas já possuía a própria versão das Escrituras, a própria forma litúrgica, e a própria tradição literária . A tradição latina ainda era muito menos rica que a grega, e a siríaca era mais pobre que as demais. Fato que não causa espanto, já que os sírios sempre foram um povo dominado, primeiro pelos gregos e partos, depois pelos romanos e persas, e, final mente, pelos bizantinos e pelos árabes, de modo que nunca estiveram em posição de desenvolver uma cultura nacional independente. Os gregos, apesar do espírito cosmopolita, sempre ignoraram as línguas e culturas dos povos "bárbaros" , e essa postura foi mantida pelos des cendentes ou herdeiros bizantinos. Nessa situação, a vinda do cristia nismo trouxe nova esperança aos povos que haviam sido dominados por tantos séculos pelo pesado jugo dos conquistadores estrangeiros. 1 2 Abgar, na verdade, não era um nome próprio, mas o título pelo qual foram chamados todos os toparcas de Edessa por vários séculos, assim como os im peradores de Roma eram denominados Césares. Ver Rev. A. Roberts D. D. e J. Donaldson (eds . ) , The Ante-Nicene Fathers: Translation o( The Writings o( the Fathers down to A.D. 325. New York, Charles Scribner's Sons, 1 903, vol. VIII, p. 651 , nota 4. (N. T. ) A Formação da C ristandade 1 Capítulo 7 A Igreja, para eles, tornou-se um lar nacional e encontraram nela uma cidadania espiritual e uma nova cultura que lhes fora negada em todos os demais locais. Os gregos e os latinos sempre estiveram cons cientes de uma dupla tradição - a da Igreja e a do passado clássico -, e a rejeição ao paganismo não acarretou uma ruptura com a filosofia e a literatura do passado. As classes bem educadas adotaram o grego como língua literária e não havia mais uma tradição viva de literatura aramaica . A renascença da cultura siríaca coincidiu com a conversão, e a nova literatura era completamente cristã e predominantemente didática e litúrgica . Embora permanecessem dependentes dos gregos na teologia, na filosofia e na história, tiveram uma importante influ ência na cultura cristã como um todo. Formaram uma ponte entre o Oriente e o Ocidente e, por ela, o cristianismo passou do mundo de língua grega do Mediterrâneo Oriental para os povos de línguas e culturas estrangeiras além das fronteiras do Império - armênios e georgianos, persas e árabes e, por fim, povos tão distantes como os da Ásia Central e do sul da Índia. 206 l 207 C a p í t u l o 8 1 O I m p é r i o C r i s t ã o A Igreja infante nasceu numa época em que o maior governo que o mundo já viu atingia o pleno desenvolvimento. Todo o mundo civilizado a oeste do rio Eufrates estava unido sob uma única pessoa. A época de guerra civil, de inquietação social, de exploração dos po vos conquistados tinha finalmente acabado. Por todos os lados sur giam novas cidades, o comércio florescia e a população aumentava. Era a hora do "príncipe deste mundo" , a apoteose do triunfante po der material e da riqueza. Toda essa esplêndida construção, no entanto, repousava em bases nada morais - muitas vezes, se apoiava em simples violência e cruel dade. O divino César poderia ser um Calígula ou um Nero, a riqueza era um pretexto para a devassidão, e a prosperidade das classes abas tadas estava baseada na instituição da escravidão - não a escravidão doméstica das civilizações primitivas, mas uma organizada escravi dão colonial que não deixava espaço para nenhuma relação humana entre escravo e senhor. A Igreja primitiva não podia deixar de ter em mente que estava separada dessa grande ordem material por um abismo infinito, e que não poderia ter parte na prosperidade ou na injustiça . Estava neste mundo como semente de uma nova ordem, que subvertia completa mente tudo o que construiu o mundo antigo. Embora herdasse o espí rito judaico de protesto contra o poder mundial dos gentios, não al mejava, contudo, nenhuma mudança temporal, muito menos tentava A Formação da C ristandade J Capítulo 8 suscitar algum tipo de reforma social . O cristão aceitava o domínio romano como uma ordem dada por Deus, apropriada para a condi ção de um mundo escravizado pelas trevas espirituais, e concentrava todas as esperanças no retorno do Cristo e na vitória final da ordem sobrenatural. Nesse meio tempo, vivia como um estrangeiro em meio a um mundo estranho. Assim, os cristãos ficaram apartados tanto dos gentios quanto dos judeus, vivendo uma vida oculta que mantinha somente uma liga ção externa e acidental com a vida do mundo pagão ao redor. Tal afastamento da vida social, a aceitação passiva das coisas exte riores como questões sem importância, parecia, à primeira vista, provar que o cristianismo não tinha nenhuma influência direta nas condições econômicas e sociais. Na verdade, essa postura produziu as consequên cias mais revolucionárias. A sociedade antiga e a religião cívica com as quais o cristianismo estava relacionado centravam-se numa classe privilegiada de cidadãos e, segundo a regra romana de cidadania, isso estava diretamente ligado à condição econômica: o que corresponde dizer que a posição do homem na própria cidade e no Império era, em geral, determinada pela importância tributada à suas propriedades no censo. Havia uma competição constante desde o início