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1 1 INTRODUÇÃO Com o avanço tecnológico dos meios de comunicação e a velocidade das trocas de informação, o culto às celebridades tornou-se realidade constante no cenário midiático. Essa exaltação ao célebre contribui para a construção das identificações e desejos de uma sociedade, criando padrões a serem seguidos e condensando valores de uma sociedade. No universo esportivo, tornar-se um personagem relevante é um patamar que poucos alcançam, mas aqueles que conseguem a atenção do público passam a se tornar referências, podendo representar ídolos e até mesmo heróis para grande parte da população. Assim, é comum encontrar esportistas a percorrer o caminho dos astros, aparecendo em campanhas publicitárias, festas, clipes musicais, eventos, dentre outros. Para compreender esta imagem do futebolista na sociedade brasileira contemporânea é necessário saber o próprio papel do esporte e a importância que o desempenha no contexto social. Mais que um esporte, a atividade que coloca 11 homens de cada lado de um campo, correndo atrás de uma única bola e se esforçando ao máximo para driblar o goleiro adversário durante 90 minutos, possibilitou ao Brasil uma construção de identidade e o título de país do futebol. O presente trabalho propõe-se a analisar de que forma a mídia configura o jogador Neymar como uma celebridade. Para isso, traçamos um panorama teórico dividido em 3 partes. Na primeira, são estabelecidas as linhas teóricas no âmbito de como a mídia contribui para a construção da sociedade atual, e como são estabelecidos os termos de construção da figura pública do jogador com as linhas de raciocínio de Edgar Morin (1997) junto às definições de olimpianos modernos como semideuses da sociedade contemporânea, modelos de felicidade projetados pelas celebridades, além de utilizar a abordagem de Ronaldo Helal (2001) sobre a distinção entre ídolos e heróis. 2 Em seguida, foi traçado um panorama através contextualização da imagem do jogador de futebol na sociedade brasileira, a construção do chamado estilo brasileiro de futebol e as influências do esporte na construção da identidade da sociedade brasileira. Para isto foram utilizadas as análises de Soares e Lovisolo (2003), Melo (2000) e Giglio (2007), autores que colaboraram na definição dos conceitos utilizados. Na terceira parte, buscamos entender os caminhos percorridos pelo atleta Neymar da Silva Santos Júnior para alcançar a fama, suas raízes, sua construção como jogador, bem como sua ascensão como celebridade e alguns momentos de destaque de sua vida pessoal. Na análise, buscamos compreender o conteúdo das matérias publicadas no ano de 2011, em três das principais revistas semanais do país - Época, Veja e IstoÉ – que veicularam o jogador na capa. O objetivo foi analisar a forma de abordagem das características do jogador e estabelecer paralelos com os conceitos anteriormente estudados, a fim de perceber de que forma ele foi configurado por estes veículos como uma celebridade. Como poderemos perceber ao longo deste trabalho, a construção da imagem de uma celebridade vai muito além de suas particularidades aparentes. Suas vitórias, sua vida pessoal, as aparições midiáticas e a opinião do público colaboram para defini-lo como personalidade do universo social contemporâneo. A narrativa biográfica de um ídolo do futebol dialoga com as interações sociais do contexto mais amplo no qual ela se insere. 3 2 MÍDIA E SOCIEDADE: INFLUÊNCIAS MÚTUAS As sociedades contemporâneas encontram-se fortemente marcadas pela presença dos diversos meios de comunicação. Alguns autores têm sublinhado essa onipresença da mídia no mundo atual e, mais especificamente, no cotidiano de1 homens e mulheres, que consomem, ao longo de suas vidas, reportagens em jornais e revistas, filmes, telenovelas, reality shows, músicas nos rádios, vídeos na internet... “A mídia é uma instituição onipresente na vida social contemporânea, sendo possível pensá-la como constituinte da e constituída pela sociedade em que se inscreve” (SIMÕES, 2009, p.68). Kellner (2006) também chama a atenção para essa dimensão essencial da mídia na nossa experiência. “É impossível escapar à presença, à representação da mídia. Passamos a depender da mídia, tanto impressa como eletrônica, para fins de entretenimento e informação, de conforto e segurança, para ver algum sentido nas continuidades da experiência e também, de quando em quando, parra as intensidades da experiência.” (KELLNER, 2006, p. 12). Silverstone (2002, p.20) compartilha dessa ideia ao dizer que “a mídia é, se nada mais, cotidiana, uma presença constante em nossa vida diária”. Para o autor, é no “mundo mundano” que a mídia atua com mais intensidade, no dia-a-dia das pessoas, nas suas ações corriqueiras. Ela filtra e molda realidades cotidianas, por meio de suas representações singulares e múltiplas, fornecendo critérios, referências para a condução da vida diária, para a produção e a manutenção do senso comum. (...) A mídia nos deu palavras para dizer, as ideias para exprimir, não como uma força desencarnada operando contra nós enquanto nos ocupamos com nossos afazeres diários, mas como parte de uma realidade de que participamos, que dividimos e que sustentamos diariamente por meio de nossa fala diária, de nossas interações diárias (SILVERSTONE, 2002, p.20-21). A mídia é capaz de fomentar na sociedade fantasias e sonhos, colaborando para a construção de identidades e ajudando a configurar o ambiente cultural contemporâneo por meio de seu conteúdo. Para Kellner (2006), os indivíduos reelaboram a concepção do mundo à sua volta incluindo suas percepções sobre a 1 Segundo Gastaldo (2008, p.354), “o termo “mídia” deriva de um aportuguesamento da pronúncia em inglês do termo latino media que é a forma plural de medium, ‘meio’.”. 4 realidade cultural e social. A cultura de mídia ajuda a modelar a visão prevalecente de mundo e os valores mais profundos: define o que é considerado bom ou mau, positivo ou negativo, moral ou imoral. As narrativas e as imagens veiculadas pela mídia fornecem os símbolos, os mitos e os recursos que ajudam a constituir uma cultura comum para a maioria dos indivíduos em muitas regiões do mundo de hoje. A cultura veiculada pela mídia fornece o material que cria as identidades pelas quais os indivíduos se inserem nas sociedades tecnocapitalistas contemporâneas, produzindo uma nova forma de cultura global. (KELLNER, 2001, p11) Segundo Silverstone (2002, p.33), a mídia se estende para além do encontro emissor-receptor: ela envolve uma atividade mais ou menos contínua de engajamento e desengajamento, com significados que têm sua fonte ou seu foco na circulação de significado. Essa crítica de Silverstone encontra eco nas limitações apontadas por França no chamado “paradigma clássico” da comunicação, que durante anos prevaleceu nos estudos sobre os meios de comunicação, no qual a “relação é tomada como unilateral, preestabelecida e fixa” (FRANÇA, 1998, p. 38). Para a autora, esse modelo deixa ignorados os envolvidos na relação e a própria relação cujas mensagens são tomadas de forma estanque (FRANÇA, 1998). A mensagem, cortada/extraída do contexto da relação, se transforma em uma materialidade rígida. O processo de significação se reduz às funções (mecânicas) de codificação e decodificação, em um universo de equivalência. Fazendo isso, o modelo ignora a criatividade linguística, o sentido construído no contexto da relação e na situação de troca (FRANÇA, 1998, p. 38). Em sentido contrário a esse “paradigma clássico”, Silverstone sugere compreender a mídia como processo, “uma coisa em curso e uma coisa feita” (SILVERSTONE, 2002, p.16). Para o autor, isso significa dizer que todo processo é social e que, portanto, a mídia deve ser entendida como “historicamente específica”, ou seja, “está mudando, já mudou, radicalmente’”. (SILVERSTONE, 2002, p.17). O autor, de fato, está sublinhando a relevância de se considerar o contexto social quando se analisamos produtos da mídia. Também Thompson (1998, p. 41) destaca “a importância de pensar nos meios de comunicação em relação aos contextos sociais práticos nos quais os indivíduos produzem e recebem as formas simbólicas 5 mediadas”. Por sua vez, ao estudar a produção jornalística, França (1998) enfatiza: Se é bem verdade que não podemos estudar o jornal sem dar à informação um relevo particular, não podemos também lhe atribuir a onipotência de tudo conter ou tudo anular: os interlocutores, suas relações reais, o contexto da relação, sua inserção na esfera do social (FRANÇA, 1998, p. 42). Uma das consequências do “paradigma clássico” da comunicação foi o desenvolvimento de pesquisas e estudos que tomaram os receptores dos produtos midiáticos como passivos, submissos a meios de comunicações todo-poderosos .2 Thompson aponta ainda que houve, nesses estudos, um equívoco, a recepção, de acordo com o autor, tem de ser examinada de outra forma. “Deveria ser vista como uma atividade: não como algo passivo, mas o tipo de prática pelas quais os indivíduos percebem e trabalham o material simbólico que recebem” (THOMPSON, 1998, p. 42) (grifo do autor). O autor, também ao falar da recepção, resgata a importância do contexto. a recepção é uma atividade situada: os produtos da mídia são recebidos por indivíduos que estão sempre situados em específicos contextos sócio históricos. (...) ela é também uma atividade que permite aos indivíduos se distanciarem dos contextos práticos de suas vidas cotidianas” (THOMPSON, 1998, p. 42-43) (grifo do autor). O que os autores aqui estudados reforçam é a relevância de não retirar os produtos da mídia dos contextos específicos nos quais se inserem e perpassam - sob pena de ignorarmos as complexas relações que esses produtos estabelecem com as sociedades e, mais especificamente, com as pessoas em suas práticas diárias, que envolvem também outras pessoas. Como lembra França (1998), A noção é circular: a palavra nos envia às relações; as relações, à palavra. (...) A comunicação é um refinamento da possibilidade de estar com o outro; ela inscreve a convergência e o conflito entre o interior e o exterior, a partilha e o recolhimento, o eu e o outro. Ela conjuga distância e proximidade, diferença e identidade, conflito e cumplicidade. (FRANÇA, 1998, p. 45). Estudar uma celebridade e suas relações com a mídia requer, por conseguinte, 2 Estudos de diferentes correntes ideológicas tomam este caminho desde a Teoria da Agulha Hipodérmica até a marxista Teoria Crítica, da Escola de Frankfurt com seu conceito de Indústria Cultural. 6 investigar também os contextos social e cultural no qual se dão essas relações. Na atualidade, a emergência das celebridades encontra-se interligada ao modo de funcionamento da mídia. Esse ponto será explorado na seção a seguir. 7 2.1CELEBRIDADES As celebridades permeiam o universo midiático contemporâneo. De acordo com Kellner (2006, p. 126), “as celebridades são as divindades fabricadas e administradas. São ícones midiáticos, deuses e deusas da vida cotidiana”. Essa relação das celebridades com a mídia é sintetizada por Herschmann e Pereira (2005) quando afirmam que a mídia contemporânea mobiliza seu público de uma maneira forte, incorporando elementos do dia a dia e narrativas biográficas, sobre as trajetórias dos ídolos e celebridades. Para Pimentel (2005), “a palavra celebridade virou termo corrente para indicar aqueles indivíduos que se transformam em alvo privilegiado das mídias”. Algumas celebridades surgem e pouco tempo depois desaparecem, outras já possuem uma presença mais duradoura. O tempo em que ela se manterá nesta posição está relacionado ao seu posicionamento diante dos meios. O sociólogo Rojek (2008 apud PRIMO, 2009) afirma existir três tipos de celebridade: conferida,3 adquirida e atribuída. A celebridade conferida decorre de linhagem, como a família real inglesa. Já a celebridade adquirida é derivada de realizações individuais, como a conquista de um título no universo esportivo, por exemplo. Por fim, a celebridade atribuída é aquela que ainda sem um grande talento ou habilidade consegue se destacar e adquirir atenção do público, através de intermédios culturais .4 A discussão sobre as celebridades não é nova, ela vem sendo feita por alguns autores há várias décadas. Edgar Morin (1997) foi um dos primeiros a falar destas figuras de uma forma bem próxima do que elas são nos dias de hoje. Em suas discussões, essas celebridades são chamadas de olimpianos . Os olimpianos5 5A expressão Olimpianos é proveniente daqueles que habitam o Monte Olimpo, montanha mais alta 4 Pertencente a esta última classe, Rojek (2009) cria ainda uma subcategoria denominada celetóide, que seria a forma mais efêmera de celebridade, com fama passageira - aqueles que possuem os famosos "quinze minutos de fama". 3 ROJEK, Chris. Celebrity. London: Reaktion Books, 2001. 8 modernos são as grandes estrelas da mídia, com um estilo de vida invejável. “Esses olimpianos não são apenas astros de cinema, mas também os campeões, príncipes, reis, playboys, exploradores, artistas célebres, etc.” (MORIN, 1997, p. 105). Segundo o autor, a informação realiza a transformação dos olimpianos em vedetes, elevando fatos destituídos de qualquer significação política, como casamentos, divórcios brigas e nascimentos ao nível de fatos históricos. Existe uma junção de vida profissional e pessoal numa esfera de visibilidade e influências. Morin (1997, p.107) ainda analisa que “conjugando a vida cotidiana e a vida olimpiana, os olimpianos se tornam modelos de cultura no sentido etnográfico do termo, isto é, modelos de vida. São heróis modelos. Encarnam os mitos de autorrealização da vida privada” (grifo do autor). Isto significa que os olimpianos possuem o poder de influenciar as outras pessoas, que almejam ser reconhecidas e que, por isso, espelham-se nessas figuras. Para Pena (2002), A espetacularização da vida toma o lugar das tradicionais formas de entretenimento. Cada momento da biografia de um indivíduo é superdimensionado, transformado em capítulo e consumido como um filme. Mas a valorização do biográfico é diretamente proporcional à capacidade desse indivíduo em roubar a cena, ou seja, em tornar-se uma celebridade. Aliás, as celebridades tornaram-se o pólo de identificação do consumidor-ator-espectador do espetáculo contemporâneo. São elas que catalisam a atenção e preenchem o imaginário coletivo. (PENA, 2002, p. 49) Morin (1997) defende que a cultura de massa possibilita a criação destes ícones midiáticos que possuem grande destaque . Segundo o autor, as estrelas são6 modelos de vida e um apelo das massas na busca da salvação individual, que é sintetizada na relação entre o real e o imaginário. Essas pessoas podem se tornar referência devido ao papel que desempenham que muitas vezes é atrelado ao seu 6 Morin (1997, p. 17) entende a cultura de massa como uma cultura e não mero instrumento de manipulação das classes dominantes, pois “ela constitui um corpo de símbolos, mitos e imagens concernentes à vida prática e à vida imaginária, um sistema de projeções e de identificações específicas. Ela se acrescenta à cultura nacional, à cultura humanista, à cultura religiosa, e entra em concorrência com estas culturas”. da Grécia, conhecida na mitologia grega como a morada dos deuses. 9 talento ligado às produções culturais e esportes ou até mesmo por algum episódio inusitado em suas vidas. Para Morin (1997), o olimpismo de uns nasce do imaginário, isto é, de papéis encarnados nos filmes (astros), o de outros nasce de sua função sagrada (realeza, presidência), de seus trabalhos heroicos (campeões, exploradores) ou eróticos (playboys). Estas celebridades tornam-se referência para os demais à medida que se destacam, passam a figurar modelos de conduta, na busca da tão sonhada felicidade e do sucesso. Essa capacidade dos olimpianos de representar um modelo de vida de forma a causar sentimentos de admiração e buscaprojetada pelo público mexendo com seu imaginário também é discutida por Morin ao afirmar que “os olimpianos, por meio de sua dupla natureza, divina e humana, efetuam a circulação permanente entre o mundo da projeção e o mundo da identificação” (MORIN, 1997, p. 107). Ao mesmo tempo em que existe uma exaltação das características dessas estrelas, elevando-as a divindades e associando-as ao extraordinário, a cultura de massa procura humanizá-las a fim de que o público se identifique com elas. É explorada a exposição de fatos cotidianos como humanos comuns e em outros momentos, aquilo que as torna especiais. Segundo o autor; Os novos olimpianos são, simultaneamente, magnetizados no imaginário e no real, simultaneamente, ideais inimitáveis e modelos imitáveis; sua dupla natureza é análoga à dupla natureza teológica do herói-deus da religião cristã: olimpianas e olimpianos são sobre humanos no papel que eles encarnam, humanos na existência privada que eles levam. A imprensa de massa, ao mesmo tempo em que investe os olimpianos de um papel mitológico, mergulha em suas vidas privadas a fim de extrair delas a substância humana que permite a identificação. (MORIN, 1969, p. 112-113) (grifo nosso). Para Morin (1997, p. 82), alguns fatores são mais propícios para desenvolver a identificação. Pode haver um equilíbrio entre realismo e idealização; uma veracidade que estabeleça a ligação com a realidade cotidiana; personagens que tenham relação com o dia a dia, mas, ao mesmo tempo, uma vida mais intensa, diferenciando-os dos "cidadãos comuns"; necessidades e ambições dos receptores; personagens dotados de qualidades simpáticas, agradáveis ao público. Isto permite que o público faça uma idealização destes semideuses, admirando-os pelo que os simples mortais não podem fazer e, ao mesmo tempo, buscando características que os aproxime do real, do ser humano 10 que possui falhas como qualquer outro, promovendo a identificação à medida que estas características são expostas. A mídia é a plataforma para que isso aconteça, ela possibilita a propagação dessas informações e possui presença marcante na vida dos indivíduos. Para Kellner (2004, p.176), “a cultura da mídia não aborda apenas os grandes momentos da vida comum, mas proporciona também material ainda mais farto para as fantasias e sonhos, modelando o pensamento, o comportamento e as identidades.” Sendo assim, o comportamento e os valores dos indivíduos acabam recebendo influência desses ícones midiáticos. Quando se fala em celebridades, outros dois termos são relacionados a este conceito, que os diferenciam e os revestem de uma aura especial, são eles: ídolos e heróis. Apesar de estarem relacionados, os termos não têm o mesmo significado. Sobre a definição de herói Helal e Murad (1995, p. 65) afirmam que: o herói é quem conseguiu, lutando, ultrapassar os limites possíveis das condições históricas e pessoais de uma forma extraordinária, contendo nessa façanha uma necessária dose de ‘redenção’ e ‘glória’ de um povo. Mas para que sua trajetória heroica alcance este status é necessário que as pessoas acreditem na verdade que as façanhas do herói afirmam. Logo, o mito do herói faz parte de uma relação com os seguidores, os fãs, aqueles que o idolatram. Sem esta relação, este ‘acordo’, o herói não é herói, o que nos leva a concluir, então, que na figura do herói se encontram agrupadas várias representações distintas da coletividade. (HELAL; MURAD, 1995, p. 65). Sendo assim, pode-se considerar que o herói representa uma figura forte, pois é como se ele vivesse em função da sociedade, desempenhando seu papel de uma forma especial, agindo em função do coletivo e é fundamental que o público seguidor acredite nele. A saga clássica do herói fala de um ser que parte do mundo cotidiano e se aventura a enfrentar obstáculos considerados intransponíveis, os vence e retorna a casa, trazendo benefícios aos seus semelhantes (CAMPBELL, 1995, p. 36). A figura relacionada ao 11 heroísmo é retratada por muitos autores como o ser que possui uma missão e tem grande valor diante dos outros, que acreditam que ele possa desempenhar um papel importante, na busca da vitória que é concretizada como um ganho para todas as pessoas. Segundo Pena; O herói acredita que tem uma missão a cumprir. Ele deve domar o cotidiano e viver na esfera do extraordinário. Deve entregar-se ao seu propósito maior e ao seu destino glorificado, que será construído única e exclusivamente por ele mesmo, já que ele é senhor de seus atos. (PENA, 2004, p.34). O herói é colocado por grande parte dos autores como um personagem forte que busca sua glória através de sua missão, diferente do ídolo. Já o ídolo constrói sua imagem através do tempo, com ações humanas que, de alguma forma, são admiradas pelo público. Para Giglio (2007), “o ídolo seria uma pessoa conhecida e reconhecida, ou seja, famoso, porém, incapaz de redimir a sociedade.” Segundo o autor, o ídolo possui uma postura mais individualista, voltada à realização de seus feitos pessoais. Segundo O’ Sullivan et al. (2005 apud Monteiro 2007), os ídolos são7 ícones tipicamente modernos, que personificam uma série de ideais e valores em consequência de sua projeção midiática e, portanto, assumem um papel simbólico de incontestável relevância na sociedade contemporânea. A palavra ídolo tem origem grega, eidôlon, e significa imagem. Essa imagem reflete a importância de seus feitos. Para Helal (2003), os êxitos dos ídolos despertam a nossa curiosidade. Suas trajetórias rumo à fama são “editadas” na mídia, enfatizando certos aspectos, relegando outros a um plano secundário e até mesmo omitindo algumas passagens. No Brasil, as narrativas das trajetórias de vida dos ídolos enfatizam a genialidade e o improviso como características marcantes e fundamentais para se alcançar o sucesso. Alguns tipos de celebridades podem conseguir o título de heróis mais facilmente que outras, dependendo de sua postura e do papel desempenhado 7 O’ SULLIVAN T. et al. Key concepts in communication and cultural studies. New York: Routledge, 2002. 12 na mídia. Os campeões das olimpíadas, por exemplo, são frequentemente exaltados ao heroísmo, principalmente se esses possuírem alguma limitação. Já as celebridades da música ou dramaturgia dificilmente conseguem este efeito, pois sua trajetória caminha rumo a auto-realização. Helal (2003) afirma que as narrativas das trajetórias de vida dos ídolos esportivos frequentemente focalizam características que os transformam em heróis, enquanto as dos ídolos da música ou dramaturgia, por exemplo, raramente salientam estas qualidades. A explicação para este fato reside no aspecto agonístico, de luta, que permeia o universo do esporte. A competição é inerente ao próprio espetáculo. Ambos, ídolos do esporte e da música se transformam em celebridades, porém, os primeiros são mais facilmente considerados “heróis” (HELAL, 2003, p. 19). O próximo item deste trabalho busca compreender um pouco mais as especificidades das celebridades nos esportes, mais especificamente no futebol. Para tanto, foi fundamental abordar, ainda que brevemente, o que esse esporte significa no imaginário do povo brasileiro. 2.2 Celebridades no esporte Já se tornou senso comum dizer que o futebol no Brasil é uma paixão popular. Com uma porção cada vez maior de admiradores, o esporte tem elevado um número crescente de atletas ao posto de celebridades nacionais e mesmo mundiais. É possível encontrá-los em programas televisivos de entrevistas ou apresentando programas de esporte, capas de revistas de fofocas, mas também revistas informativas, em ações beneficentes amplamente divulgadas ou dando dicas de moda, saúde ou beleza. O público fica sabendo, com grande interesse, sobre as quantias milionárias dos contratos, os namoros, casamentos e divórcios, os casos polêmicos, os gostos, hábitos e costumes dessas celebridades esportivas. Para Giglio (2007, p.22), a grande maioria dos brasileiros vê o futebol comoum 13 momento de lazer, no qual nele encontram motivos para reunir a família, encontrar os amigos, ter assuntos para conversar, assim, mobilizando milhares de pessoas com um objetivo comum. “Portanto, o futebol possui um grande significado para o povo brasileiro. Um dos pilares que sustenta esse significado são seus ídolos e heróis.” (GIGLIO, 2007, p.22). Helal defende que “um fenômeno de massa não se sustenta sem a presença de ‘estrelas’. São elas que atraem as pessoas aos eventos e transformam-se em um referencial para os fãs.” (HELAL, 1999, p. 01). Por sua vez, Rosa (2008) afirma que as pessoas necessitam ter alguém para admirar. “As pessoas gostam e precisam idolatrar alguém que conseguiu vencer, quebrar recordes e saltar obstáculos pela vida toda até tornar-se um ídolo” (ROSA, 2008, p.25). De acordo com Helal (1999, p.01), os jogadores possuem características que os transformam em heróis, isso devido à paixão da massa por lutas e superação de obstáculos, muito presentes em torneios de futebol, nos quais o jogador precisa derrotar o time oponente para sair vitorioso. “O herói tem que cumprir sua missão: conceder dádivas aos seus semelhantes.” (HELAL; SOARES; LOVISOLO, 2001, p. 154). De fato, um fenômeno de massa não consegue se sustentar por muito tempo sem a presença de “heróis”, “estrelas” e “ídolos”. São eles que levam as pessoas a se identificarem com aquele evento. Eles representam a nossa comunidade, frequentemente sobrepujando obstáculos aparentemente intransponíveis. (HELAL; SOARES; LOVISOLO, 2001, p. 154) De acordo com Helal, Soares e Lovisolo, (2001, p. 150), os feitos de ídolos e heróis despertam a curiosidade do povo brasileiro. Sua infância, como ingressaram no futebol, o decorrer da carreira e como chegaram à fama são constantemente narrados pela mídia, caindo nas graças dos admiradores. No Brasil, a rotina de preparação dos jogadores é constantemente destacada, pois, ao contrário dos ídolos da música, por exemplo, que não precisam de muito treino, os jogadores de futebol devem estar em forma, ter presteza e improviso como características 14 principais. (HELAL; SOARES; LOVISOLO, 2001, p. 150). Cabe ressaltar que nem todos os jogadores conseguem ser considerados atletas de sucesso, virarem uma celebridade, tornarem-se olimpianos no panteão brasileiro. Aqui, emerge com força a noção de dom, usada, muitas vezes, para explicar o destaque de um atleta. “Algumas qualidades dos jogadores são identificadas a partir da ideia de dom e aquele que possui o dom é considerado craque.” (GIGLIO, 2007, p.88). O dom é visto como um diferencial . (GIGLIO, 2007).8 Esse empenho de alguns para tornar um “craque”, treinando com muito esforço, enquanto outro, que possuiria o “dom”, já nasceria com grande habilidade. Desse modo, por mais que outros jogadores se esforçassem, jamais conseguiriam alcançar o mesmo nível daquele que tem o “dom” (GIGLIO, 2007, p.89-91). Para Helal (2003), dizer que um jogador de futebol é “esforçado” chega a ser uma crítica contundente. “Esta é uma maneira de se dizer que o sujeito não tem talento, porém se esforça. A forma oposta seria o talento puro, genuíno, inato” (HELAL, 2003, p.21). No entanto, Giglio (2007) pondera que, para possuir um dom, é preciso trabalhar com afinco e determinação. Portanto, se essas qualidades são importantes para conquistar seus objetivos, será que possuir ou não o dom é um determinante para ser um profissional, qualquer que seja a sua área? O sucesso no futebol não acontecerá “naturalmente” somente pelo fato dos jogadores possuírem o dom, por isso, para chegar ao status de ídolo, é preciso trabalhar duro. (GIGLIO, 2007, p. 92) De toda forma, Rosa (2008, p. 25) afirma que só chega ao topo o jogador que possui habilidades fora do comum, àquele que faz coisas que os demais jogadores não conseguem. “O jogador precisa ser diferenciado para ter a atenção da mídia, num país como o Brasil onde existem milhares de jogadores e a paixão pelo futebol é imensa, essa não é uma tarefa muito fácil” (ROSA, 2008, p.25). Segundo Giglio (2007), essa crença no dom faz com que no Brasil surjam cada vez 8 Giglio (2007, p.82) define dom como uma dádiva de Deus ou talento, encarando como qualidade futebolística do jogador brasileiro que, por si só, já nasceria com o talento. 15 mais garotos aptos a se tornarem grandes jogadores de futebol. “O senso comum considera que a representatividade mundial que o Brasil conquistou no futebol é a combinação de uma qualidade genética e de uma prontidão do brasileiro para a prática” (GIGLIO, 2007, p.92). Grande parte da eficácia nos campos, como a conquista de muitos títulos pela Seleção Brasileira, passa a ser concebida a partir de um talento “natural” do brasileiro para esse esporte, algo hereditário que os jogadores trariam. O futebol passa a ser uma atividade que diz da própria identidade do “ser brasileiro”. Pelo fato do vínculo entre o futebol e o homem brasileiro ser tão grande, acaba-se por naturalizar as suas opções pela prática do futebol. A paixão pelo futebol também é naturalizada, afinal, como dizem, está no sangue, é hereditário. Há um discurso de que o brasileiro possua uma prontidão para jogar futebol e, por isso, teríamos conquistado tantas glórias nos gramados. (GIGLIO, 2007, p.92) O futebol tornou-se um fenômeno no esporte no qual é possível descobrir os desejos, anseios e expectativas da população (GIGLIO, 2007). É comum, portanto, que grande parte dos ídolos e heróis brasileiros seja composta por jogadores de futebol. “A sociedade valoriza o vencedor, a vitória, a ascensão, impondo um padrão de comportamento que reconhece o mais forte e o mais habilidoso”. (GIGLIO, 2007, p.119). Giglio (2007, p.119) ainda ressalta que, no Brasil, o futebol é um esporte que atinge todas as classes sociais, fazendo com que uma quantidade crescente de jogadores seja exemplo para muitos brasileiros .9 Giglio (2007, p.119) afirma que se tornar jogador de futebol, sair do anonimato e ter um salário milionário é o sonho de grande parte dos meninos brasileiros, mas a parcela dos que conseguem alcançar tal façanha é pequena. “Portanto, os famosos, os ídolos e heróis constituem uma exceção da exceção.” (GIGLIO, 2007, p.119). Essa característica do ídolo e herói acaba por transformar o universo do futebol em um terreno extremamente fértil para a produção de 9 Mais à frente neste trabalho será discutido que nem sempre o futebol foi praticado por toda a população. De fato, ele chega ao Brasil como um esporte da elite, do qual negros e brancos pobres não participavam. 16 mitos e ritos relevantes para a comunidade. Dotados de talento e carisma, o que os singulariza e os diferencia dos demais, estes “heróis” são paradigmas dos anseios sociais e através das narrativas de suas trajetórias de vida, uma cultura se expressa e se revela. (HELAL; SOARES; LOVISOLO, 2001, p. 154). Ser um jogador de futebol profissional não é apenas aproveitar do status de ídolo e herói, mas também ter de viver em constante angústia e preocupação, pois a qualquer momento o jogador pode ser dispensado. (GIGLIO, 2007). Helal (1999) retoma o caso da derrota do Brasil na Copa de 1998, durante a qual, contava-se com o desempenho do jogador Ronaldo Fenômeno – atuação que decepcionou as expectativas do povo brasileiro. Observamos que na “derrocada” do ídolo, os fãs “descobrem” que o mito é um “mortal”, um “homem como outro qualquer”, que tem suas fraquezas, passa mal, dorme abraçado ao pai nos momentos difíceis, sofre de solidão, sente-se aprisionado e ainda, de forma emblemática, trata-se apenas de “um menino”. Assim, na “queda” do ídolo, presenciamos a sua “humanização”. Ao invés do super-homem Ronaldinho, “descobrimos” Ronaldo, o homem, o mortal. Os fãs se familiarizam com ele e muitos querem lhe dar colo. (HELAL, 1999, p.4). Além disso, Marques (2005, p. 10) revela que os ídolos do esporte acabam por serem vistos como “seres sobrenaturais” - exemplo de comportamento para as pessoas.“Os recordes alcançados pelos atletas, os títulos e as vitórias (e, mais do que isso, sua vontade e obsessão pelas conquistas) os tornam também genitores de uma criação” (MARQUES, 2005, p. 10). Segundo Marques (2005, p. 03), a mídia sempre foi o principal veículo para a realização do “fenômeno da idolatria” (MARQUES, 2005, p.03). Por meio da mídia, o aspirante a ídolo se promove e consegue manter seu nome constantemente em destaque. Assim tanto o jogador quanto os veículos midiáticos obtém resultados positivos, pois para a mídia, tal parceria auxilia o aumento da produção de entretenimento para o público (MARQUES, 2005, p. 03). Rosa (2008, p.24) considera que, através da mídia, o jogador também consegue grandes patrocínios e contatos em grandes clubes, isto é, estar na mídia traz sucesso, fama, dinheiro e 17 status. “Também para a mídia o sucesso dos atletas é importante, pois, se eles são ídolos, seus fãs irão consumir a mídia para ficar sabendo de tudo o que acontece com eles” (ROSA, 2008, p.24). Embora ídolos e heróis sejam, ao fim, celebridades, é importante para esta monografia ressaltar que os conceitos trazem diferenças. De fato, verifica-se que a mídia, os próprios jogadores e a população em geral utilizam as palavras como sinônimos. Não é o caso neste trabalho. Giglio (2007) esclarece a diferença entre os termos: O ídolo é o protagonista do espetáculo esportivo, sua presença torna-se imprescindível, afinal, sem ele o jogo “perde a graça”. O herói, para assumir a condição de protagonista, necessita de uma situação mítica que o coloque em evidência. Como o herói está vinculado a um evento mítico, seus feitos são perpetuados, imortalizados e relembrados por muito tempo. O ídolo se relacionará com os seus torcedores/fãs e construirá essa condição no cotidiano e pode atingir a condição de herói caso seu time participe de um evento capaz de demarcar muito bem a identidade do clube, tal como fazer um gol em uma final de campeonato. (GIGLIO, 2007, p.123) Como descreve Giglio (2007), o ídolo adquire tal status em consequência de sua história com o clube, assim será lembrado por tudo o que fez pelo time, seus títulos conquistados, pelos gols, torcida, jogos considerados clássicos, etc. Já o herói surge de uma situação mítica, um momento ímpar, imortalizado no imaginário daquela população como uma ação excepcional, por exemplo, fazer um gol em uma final da Copa do Mundo. Assim que o ídolo não puder mais sustentar a sua posição, será substituído por outro jogador apto a ocupar o seu lugar, enquanto o herói será definido pelo evento mítico capaz de transformá-lo em herói. Portanto, a cada evento capaz de mitificar um atleta, um novo herói poderá surgir. (GIGLIO, 2007, p.123) Ídolos ou heróis, os jogadores de futebol brasileiro encarnam de alguma forma, valores da sociedade brasileira e acabam por dizer também sobre como os brasileiros se veem. Enfim, estudar a representação desses jogadores na mídia lança luz sobre aspectos da própria sociedade. O próximo tópico desta monografia 18 enfoca a discussão sobre o valor da felicidade nas sociedades contemporâneas e como as celebridades, por vezes, materializam esse ideal. 2.3 Felicidade sob os holofotes O entendimento do que significa ser feliz varia de acordo com as civilizações e, para a cultura de massa, o tema tornou-se central (MORIN, 1997). O autor analisa que a felicidade na cultura de massa assume contornos próprios e complexos em que a figura das celebridades ocupa papel de destaque: “Os olimpianos, em sua intensidade de vida afetiva, sua liberdade de movimento, suas paixões e seus lazeres, são como os grandes modelos projetivos e identificativos da felicidade moderna”. (MORIN, 1997, p. 130). De fato, também essa felicidade se configura por meio de processo de projeção e identificação. A cultura de massa delineia uma figura particular e complexa da felicidade: projetiva e identificativa simultaneamente. A felicidade é mito, isto é, projeção imaginária de arquétipos de felicidade, mas é ao mesmo tempo ideia-força, busca vivida por milhões de adeptos. Esses dois aspectos estão em parte, radicalmente dissociados, em parte, radicalmente associados. (MORIN, 1997, p. 125) Assim o papel das celebridades é evidenciado, elas encaram, dão vida a esses arquétipos de felicidade, não apenas como forma de escapar de nossas angústias, mas servindo de referência (FRANÇA, 2010, p. 225). Elas podem indicar um Norte (ou possíveis nortes) frente a uma realidade cada vez mais complexa. Mais do que a vida do outro, é a nossa, de alguma maneira, que está em jogo na relação que estabelecemos com nossos ídolos. Não se trata aí apenas de um mecanismo psicológico de compensação ou escape; é possível ver também uma dinâmica da cultura, uma invenção necessária para lidar com a insegurança, buscar referências e operar ajustes em nossa própria frágil e sofrida inserção na realidade contemporânea. Nesse sentido, a natureza passageira das celebridades de nossos dias se mostra bastante adequada; de alguma maneira, espelham a felicidade que estamos buscando e o caminho dessa busca. (FRANÇA, 2010, p. 225). Morin (1997) explica que as celebridades fornecem à vida privada os modelos e as 19 imagens condutoras de suas aspirações. Assim, emergem impulsos do campo imaginário em direção ao real e vice versa, esses movimentos tendem a propor uma ideologia e receitas práticas condutoras – justamente dos temas que a sociedade almeja – da felicidade, do amor, do lazer, e dos mitos de auto-realização e heróis modelos. A felicidade passa a se incorporar à ideia de viver: as estrelas, em suas vidas de lazer, de jogo, de espetáculo, de amor, de luxo e na sua busca incessante de felicidade simbolizam os tipos ideais da cultura de massa. Heróis e heroínas da vida privada, os astros e estrelas são a ala ativa da grande corte dos olimpianos, que animam a imagem da verdadeira vida. (MORIN, 1997, p. 108) Segundo a concepção de Morin (1997) na contemporaneidade ao mesmo tempo em que a felicidade é um mito, ou seja, fruto da idealização dos modelos de felicidade; é também um ideal pretendido por todos. Atualmente a felicidade é buscada tanto nos bens materiais, como nos valores afetivos, o que podemos compreender como a prevalência do “ser” e do “ter” simultaneamente. Nessa dinâmica, descreve Morin (1997), a felicidade se apresenta como felicidade do indivíduo privado, ou seja, é sobretudo uma felicidade pessoal , ligada ao presente.10 A felicidade moderna é partilhada pela alternativa entre a prioridade dos valores afetivos e a prioridade dos valores materiais, a prioridade de ser e a prioridade do ter e ao mesmo tempo força para superá-la, para conciliar o ser e o ter. A concepção de felicidade, que é a da cultura de massa, não pode ser reduzida ao hedonismo do bem-estar, pois, pelo contrário, leva alimentos para as grandes fomes da alma, mas pode ser considerada consumidora, no sentido mais amplo do termo, isto é, que incita não só a consumir os produtos, mas a consumir a própria vida (MORIN, 1997, p. 127). Morin (1997) afirma ainda que, desde os heróis imaginários até os cartazes publicitários, a cultura de massas carrega uma infinidade de incitações que desenvolvem ou criam a imagem da vida desejável, o modelo de um estilo de vida. O autor ressalta que, através do imaginário, da informação romanceada ou 10 Para o autor, “os conflitos tradicionais entre o interesse pessoal e o interesse público, o amor e o dever persistem, mas esses conflitos são consideravelmente reduzidos em relação ao antigo imaginário, e encontram, na maior parte dos casos, uma solução feliz na qual a realização privada não é sacrificada. (MORIN, 1997, p. 126). 20 vedetizada, por meio dos contatos, dos conselhos e da publicidade, instaura-se o impulso dos temas fundamentais que tendem a se encarnar na vida vivida. O primeiro capítulo desta monografia teve como objetivo esclarecer conceitos fundamentais para a análise de como o jogador Neymar dosSantos Júnior aparece nas páginas das revistas Veja, Época e IstoÉ. O próximo capítulo fará uma discussão mais aprofundada da história do futebol no mundo e no Brasil, focando em alguns jogadores que marcaram essa atividade no país. O objetivo é mostrar, com mais clareza, como o futebol, que começou como uma prática da elite no país transformou-se no esporte símbolo do país numa trajetória entrelaçada à vida social, política e cultural do Brasil. 21 3 FUTEBOL O futebol é um dos exemplos mais significativos dentre todas as modalidades esportivas que se fazem presentes na sociedade atual. Considerando o futebol uma manifestação social complexa, vários estudos, a partir da década de 1970, legitimam o futebol como objeto válido para as ciências sociais (LOVISOLO; SOARES, 2003). Mascarenhas (2004) ressalta que “os esportes, enquanto fenômeno social, se realizam a partir de determinadas condições históricas e geográficas”. O esporte de forma constante e gradativa tem ocupado espaço significativo na vida do ser humano. Nesse contexto podemos compreender o esporte como uma atividade humana, ou mesmo como um patrimônio cultural da humanidade, cuja prática poderá apresentar-se com diferentes funções. (PAES, 2000, p. 33) Manifestação cultural, o futebol deve ser compreendido também como atividade altamente lucrativa, com notável impacto na economia da sociedade global. Hobsbawn (2007) afirma que, graças à televisão global, esse esporte universalmente popular transformou-se em um complexo industrial capitalista de categoria mundial. Hoje ele é o esporte mais popular de todo o planeta como explica Zubieta (2002): Nos últimos anos, o futebol converteu-se em algo inevitável. Não está somente nos estádios, mas invadiu todos os terrenos. É a estrela dos meios de comunicação, o centro das conversações cotidianas, a obsessão de alguns, a razão de viver de muitos e um autêntico pesadelo para os poucos que não entendem deste esporte [...] O futebol entrou sem chamar na nossa vida cotidiana. De um tempo para cá deixou de ser algo extraordinário dos domingos à tarde para converter-se no pão-nosso de cada dia. (ZUBIETA, 2002, p.44.): De fato, também o futebol se tornou globalizado, de acordo com Szymanski e Kuypers (1999), ele é um produto fornecido por trabalhadores (jogadores e comissão técnica) usando terra (campos), construções (estádios) e equipamento (bolas, chuteiras, etc.) numa competição e por meio de cooperação com os rivais. Esse sentido do futebol como produto evidencia o esporte como maior centro da indústria 22 do entretenimento e um dos principais motes de campanhas publicitárias, já que por sua versatilidade possibilita a venda de uma enorme gama de produtos, Alvito (2006) destaca que: a plasticidade da mercadoria futebol permite que ele seja vendido ou comercializado sob diversas formas: na TV, no telemóvel (novo e promissor mercado), jogos eletrônicos de diversos tipos (inclusive aqueles que simulam a “administração” da parte financeira dos times), revistas especializadas, álbuns de figurinhas, em sites com conteúdo exclusivo (partidas, gols, melhores momentos). Isto sem falar na enorme variedade de produtos que usam os clubes — agora transformados em marcas — e seus distintivos. Dentro desta lógica de transformação dos grandes clubes do mundo em “marcas globais” é que se entende o propósito das excursões de clubes europeus ao Oriente de olho no mercado asiático, sem falar na contratação de jogadores locais com o mesmo objetivo. (ALVITO 2006, p.6) A compreensão do futebol e sua complexidade como fenômeno mundial exigem que se resgatem a origem e a história deste esporte e seu desenvolvimento até os dias atuais. Os próximos tópicos desta monografia têm como objetivo desenhar esse quadro histórico tanto no mundo como no Brasil. 23 3.1 Origem e história Siqueira (2011, p.67-79) informa que “o jogo moderno criado com regras na Inglaterra em 1863, com a formação do Football Association é a base dos eventos esportivos na atualidade”. Mas sobre as origens mais remotas do futebol no mundo há muitas afirmações. Melo (2000) e Unzelt (2002) defendem que não existem registros consensuais sobre os primeiros vestígios dos jogos com bola que precederam a prática do futebol. Aquino (2002) cita um levantamento feito por historiadores e arqueólogos que indica que o Egito e a Babilônia foram os pioneiros a desenvolver algo que lembrava o futebol praticado por nós brasileiros. Porém, as informações mais precisas se referem aos países asiáticos como precursores do esporte. Na China, por exemplo, houve um jogo chamado tsutchu (golpe na bola com o pé), que era praticado por volta de dois mil e trezentos anos atrás, no período da dinastia Han . No Japão Antigo, foi criado um esporte muito11 parecido com o futebol atual chamado kemari (ke = chutar, mari = bola), aplicado primeiramente como treinamento militar (por fortalecer os membros inferiores) e esporte da nobreza . Historiadores do futebol encontraram relatos que confirmam o12 acontecimento de jogos entre equipes chinesas e japonesas na Antiguidade (MELO, 2000). Os gregos criaram um jogo por volta do século I A.C chamado Episkiros. Neste jogo, soldados gregos dividiam-se em duas equipes de nove jogadores em um terreno de formato retangular. Quando os romanos dominaram a Grécia, entraram em contato com a cultura grega e acabaram assimilando o Episkiros, porém o jogo tomou uma conotação muito mais violenta (MELO, 2000). Ainda segundo Melo (2000, p.10) na Itália Medieval surgiu um jogo chamado gioco 12 A bola era feita de fibras de bambu e entre as regras, o contato físico era proibido entre os 16 jogadores (8 para cada equipe) (MELO, 2000). 11 Segundo Melo (2000), o jogo na verdade era um treino militar em que se formavam duas equipes com oito jogadores e o objetivo era passar a bola de pé em pé sem deixar cair no chão, levando-a para dentro de duas estacas fincadas no campo. Estas estacas eram ligadas por um fio de cera. 24 del calcio. Praticado em praças, contava com 27 jogadores em cada equipe, que tinham como objetivo levar a bola até dois postes localizados nos cantos extremos da praça. A violência era muito comum, pois o jogo funcionava como uma válvula de escape para os problemas provenientes das questões sociais típicas da época. O barulho, a desorganização e a violência eram tão grandes que o rei Eduardo II decretou uma lei proibindo a prática do jogo, condenando à prisão os praticantes .13 No ano de 1848, em Cambridge, na Inglaterra, estabeleceu-se um único código de regras para o futebol. Em 1863, foi criado o Football Association (MELO, 2000), mais tarde, em 1871, constituiu-se a figura do guarda-redes (goleiro), o único com autorização para colocar as mãos na bola e que deveria ficar próximo ao gol para evitar a entrada dela. No ano de 1875, foi criada a regra do tempo de 90 minutos e, em 1891, o pênalti para punir faltas dentro da área. Somente em 1907, foi estabelecida a regra do impedimento (MELO, 2000). De acordo com Carrano (2000, p. 15), o esporte fora introduzido voltado para os jovens como forma de preparar os futuros líderes do Império Britânico, propagando valores, como cavalheirismo, boa conduta e honestidade. A chegada do futebol à Europa se deu simultaneamente ao seu processo de profissionalização. Esta expansão disseminou a constituição do jogo, sua linguagem, forma de organização, costumes, vestimentas e, também, o hábito de terem adeptos assistindo aos jogos, aqueles que, nos dias de hoje, conhecemos como espectadores ou torcedores. Há registros, de que na última década do século XIX, havia clubes que cobravam ingressos para se assistir aos jogos. É com esse formato, como espetáculo, que o futebol se dissemina por praticamente todo o mundo (MELO, 2000). 3.2 O futebol no Brasil 13 Os integrantes da nobreza, então, desenvolveram uma nova versão do jogo que ganhou regras diferentes e foi organizado e sistematizado. O campo deveria medir 120 por 180 metrose nas duas pontas seriam instalados dois arcos retangulares chamados de gol. A bola era de couro e enchida com ar (MELO, 2000). 25 O futebol chega ao Brasil como um esporte de elite. De acordo com Voser, Guimarães e Ribeiro (2006, p.17), em 1894, foi Charles W. Miller (brasileiro de origem escocesa e inglesa) quem apresentou o futebol ao Brasil. O sucesso do14 novo esporte foi imediato e logo começaram a surgir grupos para jogar o futebol. Segundo Voser, Guimarães e Ribeiro (2006, p.17). “O primeiro círculo que cultivou o esporte de forma organizada foi formado por sócios do São Paulo Atletic Club.” e assim, seus participantes tiveram a oportunidade de treinar e ensinar o futebol aos demais colegas de trabalho que se interessassem. De início, caracterizou-se por um esporte elitizado, pois apenas os jovens da classe alta, que representavam a elite da sociedade da época tinham oportunidade de aprender. (VOSER; GUIMARÃES;15 RIBEIRO, 2006, p.17). Há de destacar-se, que boa parte da trajetória inicial do futebol no Brasil possui um caráter elitista, pois os ingleses (primeiros praticantes do futebol no Brasil) faziam parte da elite da sociedade paulista e carioca, e além deles somente os brasileiros ricos tinham acesso à prática do futebol. É preciso levar em consideração que quase todo material necessário para a prática do futebol era importado e muito caro, não sendo acessível a qualquer pessoa aficionada por futebol. (VOSER, GUIMARÃES; RIBEIRO, 2006, p. 18,). De acordo com Giglio (2007, p.40), o futebol foi incorporado ao processo de formação das metrópoles e, consequentemente, a um novo estilo de vida. O esporte popularizou-se num momento de expansão urbana. Novos centros surgiam e gradativamente o futebol passou a fazer parte do cotidiano do povo brasileiro em 15 O grupo foi criado por sócios do São Paulo Atletic Club, que reunia funcionários ingleses da companhia de gás, do Banco de Londres e da São Paulo Railway. Seu primeiro jogo aconteceu em 14 ou 15 de abril de 1895 e foi disputado pelos funcionários da Companhia de Gás x Cia. Ferroviária São Paulo Railway. O placar final foi: Funcionários da Companhia de Gás 2 x 4 Cia. Ferroviária São Paulo Railway. (VOSER, GUIMARÃES; RIBEIRO, 2006, p.17) 14 Aos nove anos, Charles Miller seguiu para a Inglaterra com a finalidade de estudar. Lá, aprendeu a jogar futebol. Após dez anos, retornou ao Brasil para trabalhar na São Paulo Railway (posteriormente Estrada de Ferro Santos-Jundiaí) e se surpreendeu ao descobrir que ninguém praticava o futebol em sua terra natal. Havia trazido duas bolas, uma agulha, uma bomba de ar, dois uniformes e um livro de regras sobre o esporte chamado football, o que foi de grande ajuda quando decidiu ensinar seus companheiros de trabalho. Sua reação foi imediata: iria ensinar os ingleses que viviam em São Paulo e se entregou a essa atividade (VOSER; GUIMARÃES; RIBEIRO, 2006, p.17). 26 seu tempo livre. Assim, o esporte configurou-se como um elemento adequado às novas demandas sociais que se formavam, especialmente no eixo Rio - São Paulo (SOARES, 2001). Segundo Voser, Guimarães e Ribeiro (2006, p.18), Hans Nobiling, alemão que veio para o Brasil em 1897, foi o principal divulgador do futebol. “Nobiling motivou e colaborou com Miller, na divulgação e organização de diversas competições de futebol.” (VOSER; GUIMARÃES; RIBEIRO, 2006 p.18). Caldas (1990) afirma que essas competições eram realizadas no campo de rúgbi do São Paulo Athletic Club e no Velódromo, lugares frequentados pela alta sociedade, o que impossibilitava o acesso de pessoas de baixa classe social. De acordo com Vogel (1982, p.99), foram nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, cidades que eram consideradas as maiores metrópoles brasileiras da época, que houve os principais acontecimentos futebolísticos do país .16 A maioria das unidades da federação não estava em condições de contribuir com jogadores de alto nível técnico para selecionados. Assim, o que acabou predominando foi a presença dos atletas dos grandes clubes do Rio e São Paulo. Este fato, no entanto, não deixava de refletir certas condições objetivas do desenvolvimento da sociedade brasileira, polarizada em torno dos grandes centros urbanos do país, que se encontravam no Sudeste. (VOGEL, p.99, 1982) Daolio (2000, p.03) relata que, inicialmente, a implementação desta nova modalidade esportiva no Brasil trouxe consigo uma discriminação evidente às pessoas de pele negra e a pessoas de pele branca que eram pobres, por se tratar de um esporte apenas praticado pela elite, classe de maior influência. Em meados de 1923, segundo Lemos e Guedes (2008, p.36), o esporte, pela pouca exigência para sua prática, alcançou adeptos de classes menos favorecidas. Tamanho era o interesse dos negros pelo futebol que alguns tentavam disfarçar a cor e engomavam o cabelo. Daolio (2000, p. 02) relata que, após o Vasco17 17 Carlos Alberto, no Campeonato Carioca de 1914, por conta própria, chegou a cobrir-se com pó-de-arroz para que parecesse branco. Contudo, com o decorrer da partida, o suor cobriu a 16 Mas foi no Rio Grande do Sul que surgiu o primeiro time de futebol brasileiro. O time Rio Grande do Sul foi fundado em 19 de julho de 1900 e é o clube de futebol mais antigo do Brasil (VOGEL, 1982, p. 99). 27 conquistar o título carioca em 1923, com um time composto por negros e brancos pobres e analfabetos, a situação começou a mudar: mesmo com a insatisfação daqueles que queriam manter o futebol como um esporte de elite, foi necessário repensar a proibição dos negros no futebol. Melo (2009) esclarece que, a partir dessa inserção, o futebol passou a ser o esporte mais procurado no país. Considerado o mais divertido pelas camadas populares, tornou-se o esporte mais importante e principal passatempo, dessa maneira, propiciando a participação direta do povo (MELO, 2000). O futebol não era mais jogado somente nos clubes de elite, passou a ser praticado nas ruas, nos clubes de subúrbio que se formaram, nas várzeas, nas praias, enfim, era jogado em muitos outros espaços. (GIGLIO, 2007, p.41). Segundo Elias e Dunning (1992, p.65), o fascínio criado por esse esporte passou a fazer parte do cotidiano do povo brasileiro e tornou-o a modalidade favorita da nação. A formação das Ligas de clubes para a disputa de um campeonato criou um importante elo entre o esporte e a sociedade. A formação de clubes foi fundamental, pois, a partir dela, as pessoas encontraram um novo meio de se divertirem, uma vez que naquela época, momentos de lazer eram aproveitados apenas com atividades de caça e outros jogos de bola. Uma nova atividade para recreação foi criada e as pessoas puderam desfrutar a nova atividade esportiva, arriscando-se a jogar ou se divertindo assistindo aos jogos. (ELIAS;DUNNING, 1992, p. 65). Segundo Antunes (1994, p.109), com a popularização do futebol, as possibilidades de profissionalizar os operários-jogadores se ampliaram e se estreitaram as relações entre patrões e funcionários. Uma vez que os donos logo perceberam o sucesso das equipes que levavam o nome das empresas, o esporte servia como um ótimo meio de divulgação do nome das fábricas e seus produtos. Ao se popularizar, o futebol ganhou novos significados simbólicos, maquiagem. A torcida do América, que o conhecia, começou a persegui-lo e a gritar "pó-de-arroz", apelido que acabou sendo absorvido pela torcida do Fluminense, que passou a jogar pó-de-arroz e talco à entrada de seu time em campo. (LOVISOLO, 2001, p.38) 28 ideológicos, socioeconômicos. Transformou-se em fenômeno social de grande importância, envolvendo uma complexa rede de relações sociais e de interesses, às vezes mais, às vezes menos divergentes. (ANTUNES, 1994, p. 109) Segundo Rinaldi (2000, p.168), o futebol tem se identificado com a cultura brasileira, principalmente no que se refere à subjetividade de suas relações, no que acontece dentro do campo, como as transgressões das regras, da ordem e desordem, e da aproximação queo futebol faz dos torcedores com a realidade festiva do prazer e do lazer, que representa momentos de paixão e alegria. Para Paz, (2006, p.61), não existe no mundo uma nação que se identifique mais com o futebol que o Brasil. Franco Junior (2007, p.73) relata que a seleção Brasileira de Futebol teve sua criação em 1914 e contou com atletas que jogavam em times paulistas e cariocas para enfrentar o Exeter City, da Inglaterra, no Rio de Janeiro. Com a desorganização e falta de profissionalismo da Confederação Brasileira de Desportos, que havia se filiado à FIFA, o time participou da primeira Copa do Mundo em 1930, contando apenas com jogadores cariocas, devido a um desentendimento com os paulistas. A seleção também participou do campeonato mundial de 1934 e 1938, porém não obtendo sucesso. Foi assim que a Seleção Brasileira se iniciou nos campeonatos mundiais. (FRANCO JUNIOR, 2007, p.73) 3.3 Os títulos: surge a nação do futebol Da Matta (1982) refuta a visão utilitarista do futebol como "ópio do povo", que, no seu ponto de vista, separa o futebol da sociedade, entendendo-o como prejudicial a outras questões sociais relevantes. Embora reconheça que determinadas circunstâncias levam o esporte a servir como instrumento de alienação das massas, o autor propõe um novo olhar: sugere compreender. o futebol como "veículo para uma série de dramatizações da sociedade brasileira, constituindo-se num modo especifico de expressão desta". (DA MATTA, 1982, p. 21). Partindo deste pressuposto, é possível afirmar, baseando-se em Gastaldo (2006), 29 que, para o Brasil, vencer uma copa do mundo é como reforçar a identidade do país. “Uma copa do Mundo é muito mais do que um mero torneio de futebol: ela é uma chance de se colocar a própria nação em perspectiva comparada com o resto do mundo” (GASTALDO, 2006, p.3). Para Daolio (2005), o futebol é o esporte mais importante para o Brasil: “seu estilo de jogo é referência mundial e os principais jogadores brasileiros são ídolos em todas as partes do planeta. [...] o Brasil é o único país participante de todas as Copas do Mundo”, (DAOLIO, 2005, p. 2). Este item da monografia traz um breve resumo das vitórias da Seleção Brasileira nas Copas do Mundo com o intuito de mostra como, ao longo do século XX, o país se transforma para o mundo e para os próprios brasileiros na “nação do futebol”. Em 1950, após 12 anos sem acontecer o campeonato mundial , o Brasil conseguiu18 sediar a IV Copa do mundo. Voser, Guimarães e Ribeiro (2006, p.39) contam que após a guerra, nenhum país europeu quis sediar a Copa do mundo. O Brasil, único candidato ser a sede do campeonato, ganhou o direito. Ainda seguindo Voser, Guimarães e Ribeiro (2006, p.40) a seleção brasileira, era considerada a favorita do campeonato mundial, mas foi derrotado pela Seleção Uruguaia de Futebol em pleno Maracanã. Com isso, a identidade da Seleção Brasileira foi ferida profundamente. Pela primeira vez a seleção usou o uniforme verde e amarelo, no campeonato mundial de 1954, deixando de lado o uniforme antigo (camisa branca e calção azul usado desde 1919), pois era considerado azarado (VOSER; GUIMARÃES; RIBEIRO, 2006, p. 43). O primeiro título aconteceu no Campeonato Mundial de 1958, quando a Seleção pode se recuperar do fracasso da Copa do Mundo de 1954. Voser, Guimarães e Ribeiro (2006, p.47-48) afirmam que, durante a Copa de 1958, a Seleção Brasileira era uma das favoritas a ganhar o torneio. A Seleção contou com os grandes nomes 18 Após o Campeonato de 1938, a Copa do Mundo foi cancelada devido à Segunda Guerra Mundial e só retornou em 1950. (VOSER; GUIMARÃES; RIBEIRO, 2006, p.37) 30 do futebol, Garrincha e Pelé, que venceram a Suécia, país-sede do evento. O Brasil se tornou a primeira nação a ganhar um titulo fora de seu próprio continente. (VOSER; GUIMARÃES; RIBEIRO, 2006, p.47-48). Segundo Barros (1990, p.17), “em meados de 1962 começou-se a ter uma evolução maior no aspecto científico do treinamento pela atualização e estudo de nossos profissionais na Europa.” Assim teve início a fase cientifica de treinamento de futebol no Brasil, contribuindo para a Seleção Brasileira conseguir futuros títulos. (BARROS, 1990, p.17) O segundo título da seleção foi conquistado em 1962 e foi fundamental para que o Brasil fosse considerado o país do futebol. Segundo Soares (1994, p.99), a característica brasileira do futebol ficou em evidência. A partir dessa vitória, o país passa a adquirir uma identidade própria nos campos, o que chamou a atenção das outras seleções. O “Brasil do futebol”, nessa trajetória vitoriosa, apesar de toda a sua precariedade econômica e social, passa a ser o paradigma do esporte, por ter sido Campeão do Mundo em 1958 e 1962. Os brasileiros passam a possuir uma identidade e uma autonomia em relação aos demais países, no futebol, possuindo seu próprio estilo de jogar. Esta “autonomia” no futebol proporcionou a ratificação de uma identidade fundada nos modelos nacionais, que se generalizou de forma epopéica para outras esferas de atuação. (SOARES, 1994, p.99) Já o terceiro título mundial veio em 1970. Segundo Barros (1990, p.17), mesmo com tantos problemas, a Seleção Brasileira realizou um grande preparo físico e organização antes da Copa e voltou para casa vitoriosa. De fato, a ditadura militar então em vigor no país acabou por fazer uso político da Seleção Brasileira. A CBD recebeu todo o respaldo governista para que o time fosse comparado com o próprio país, ficando a imagem de que se o Brasil desse certo no futebol, também daria certo no regime proposto pelos militares até então, mostrando que a ditadura não era tão ruim quanto se mostrava (na visão da propaganda militar) (RODRIGUES, 2009). 19 19 Disponível em: <http://www.universidadedofutebol.com.br/Noticia/11140/A%2bSELECAO%2bBRASILEIRA%2bDA%2 31 Rodrigues (2009) afirma que o Brasil foi o primeiro país a conseguir o Tricampeonato Mundial de Futebol. A vitória transformou-se em propaganda política do governo que, na época, promovia forte repressão às pessoas e grupos que lhe faziam oposição. a proposta imposta pelo braço de ferro dos militares brasileiros, de certa forma, penduraria por mais algum tempo, precisamente mais 14 anos, onde muitos brasileiros e o país, como um todo, pagaram muito caro, colhendo, até hoje, o fruto das sequelas deixadas pelos militares e pensamentos como: "O Brasil só dá certo no futebol” (RODRIGUES, 2009). O quarto título mundial foi adquirido na Copa mundial em 1994 nos Estados Unidos. Após um período de vinte e quatro anos sem vencer o Campeonato Mundial, a disputa esteve acirrada. Segundo Gastaldo (2006, p.3), “a conquista do tetracampeonato mundial de futebol, isolando o Brasil de seus concorrentes direto no número de títulos conquistados (Alemanha e Itália têm três títulos cada), representou uma espécie de ‘salvaguarda’ contra a derrota”. Os jogadores Romário e Bebeto foram peças fundamentais para a conquista do título que trouxe uma “alegria carnavalesca”, nas palavras de Franco Junior (2007, p.177). Por fim, o quinto título mundial foi conquistado em 2002, na Copa da Coréia do Sul/Japão. O Brasil estava desacreditado devido à dificuldade na qual se classificou para o evento e muitos achavam que não conseguiria o pentacampeonato (NOGUEIRA, 2002, p. 28). Segundo Gastaldo (2006, p.3), “se o Brasil houvesse perdido, hoje teríamos dois tetracampeões no mundo; vencendo, o Brasil isolou-se de seus oponentes por dois títulos, vantagem que pode perdurar por décadas”. Nogueira (2002, p.28) afirma que com um futebol de atitude e buscando o resultado, o Brasil superou as expectativas. A Seleção de Rivaldo, Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho obteve uma campanha numericamente perfeita: sete vitórias em sete jogos. Ronaldo marca dois gols na final, contra a Alemanha, e afasta a fase ruim de quatro bCOPA%2bDE%2b1970%2bE%2bA%2bDITADURA%2bMILITAR> Acesso em: 13 dez. 2012. 32 anos atrás (NOGUEIRA 2002, p.28). Após essa trajetória, pode-se concluirque "hoje já é possível falar do futebol como uma expressão cultural brasileira, assim como são o carnaval, o samba, o candomblé e outras práticas" (DAOLIO, 1997, p.127). Segundo Soares e Lovisolo (2003) as imagens vinculadas àquilo que conhecemos como “estilo brasileiro de futebol” são as da alegria, da improvisação, dos floreios, dos dribles, do toque de calcanhar, enfim, das firulas. É comum a utilização de palavras como “malandragem” e “ginga” para definir traços dos futebolistas do país. Conforme pode ser observado pelos autores (2003, p.131): Na definição do estilo brasileiro são enfatizadas as habilidades individuais, tornando a disciplina e o jogo de equipe secundários. São ressaltadas, na definição do estilo, as capacidades de improvisação e de arranjo de última hora que produziriam jogadas inesperadas, criativas. Os jogadores preferidos, os craques, possuiriam um dom ou talento que combina habilidade, astúcia, sagacidade, capacidade de simulação, improvisação e criatividade. (SOARES; LOVISOLO 2003, p. 131). Esse jeito único de jogar futebol do brasileiro passou por um longo caminho até se tornar marca da identidade nacional. O crescimento do futebol a partir da década de 20 proporcionou a participação na definição do estilo esportivo no país. Como afirmam Soares e Lovisolo, O estilo marcado pela virtuose individual começou a ser louvado como autêntico e singular, um processo de recriação do modelo anglo-saxão. A corrente de valorização da singularidade de nosso futebol parece tornar-se hegemônica, talvez pela qualidade empírica de nosso futebol, ou ainda pela maximização do imaginário culturalista e nacionalista nos anos de 1930. (SOARES; LOVISOLO, 2003,p. 135) As vitórias conquistadas pela Seleção Brasileira, ao longo do século XX, fizeram surgir na mídia nacional a figura de uma nova celebridade no Olimpo: o jogador de futebol. Nesse panteão, um atleta reina absoluto: Edson Arantes do Nascimento. 33 3.4 O Brasil ganha um rei Maior jogador de todos os tempos do esporte mais popular do mundo, e futebolista mais querido pelos brasileiros, Pelé é considerado o Rei do Futebol. Ainda é requisitado em eventos esportivos e campanhas publicitárias, mesmo trinta anos após aposentar as chuteiras. Segundo Castello, (2004, p.24) aos quinze anos, Pelé foi chamado para jogar no Santos Futebol Clube e, dois anos depois, foi convocado pelo então técnico da Seleção Brasileira, Sylvio Pirilo para jogar na equipe. Já no ano seguinte, participou da Copa do Mundo de 1958. Ainda com 17 anos, Pelé não se deixou levar pelos comentários com relação a sua pouca experiência e impressionou com sua habilidade e confiança. Sua fama cresceu e ele ficou conhecido nos quatro cantos da terra. Paz (2006) conta que, em um jogo na Colômbia, Pelé foi expulso, mas com a revolta da torcida que protestou, exigindo sua volta, a autoridade local entrou em campo e exigiu que o árbitro voltasse na sua decisão, assim Pelé voltou ao jogo. Acontecimentos como este, espalharam a fama de Rei do Futebol, que Pelé assumiu com maestria (PAZ, 2006, p.48) Segundo Foster (2002, p.16), Pelé estava sendo sondado por grandes times que queriam contratá-lo. “Pelé havia se tornado o jogador mais desejado do mundo dos esportes. Clubes como Real Madrid, Juventus e Internazionale de Milão ofereceram somas astronômicas pelo seu passe.” Porém o jogador recusou todas as ofertas, firmando se futuro no Santos Futebol Clube. (FOSTER, 2006, p.16) A Copa do Mundo de 1962 foi muito rápida para Pelé. O Rei era a “peça chave” para o Brasil nessa edição campeonato mundial. Porém, no segundo jogo, em partida contra a Tchecoslováquia, logo aos 28 minutos de jogo, Pelé se machucou e não pode mais participar daquela edição da Copa. (CASTELLO, 2004, p.67) Foster afirma que (2002), na copa de 1966, Pelé foi perseguido em campo diversas vezes e apesar de estar clara a armação em cima do time, os árbitros nada fizeram. 34 A seleção permaneceu pouco tempo, sendo eliminada já na primeira fase. O campeão dos dois mundiais anteriores, o Brasil, e seu meio-campista principal, Pelé, literalmente foram arremessados a patadas para fora do torneio. Brutalmente maltratado pelos búlgaros contra Portugal, Pelé foi submetido a um violento frenesi de chutes desleais cada vez que pegava a bola, sob os olhos tolerantes do árbitro inglês. Quando Pelé se retirou mancando do campo, foi seguido por seus companheiros, que foram eliminados do torneio antes das quartas de final. (FOSTER, 2002, p.15) Segundo Castello (2004, p.77-78), ao findar a copa de 1966, Pelé estava desacreditado para o futebol, mas obstinado, o jogador soube se superar e jogou brilhantemente na copa de 1970. Para Castello (2004, p.77-78), a posição de Rei voltou à tona no México. Ali Pelé conquistava sua soberania definitiva e despedia-se com classe do Campeonato Mundial de futebol. Mauricio (2002, p. 16) relembra na biografia de Pelé a dificuldade em despedir-se de uma carreira tão bem sucedida, “Vou ter que me preparar psicologicamente para viver como Edson, pois não creio que as pessoas esqueçam Pelé.” (MAURICIO, 2002, p.68) A Seleção Brasileira de Pelé foi a que mais marcou gols em todas as copas do mundo. (CASTELLO, 2004, p. 63). No texto “O jogo bonito: futebol na Inglaterra e no Brasil nos anos 50 e 60”, Foster (2002,apud LEVINE, 1980), afirma que Pelé foi “o primeiro brasileiro não branco celebrado como símbolo e fonte de orgulho nacional, não apenas pela cor de sua pele, mas por seus próprios méritos” (FOSTER, 2002, apud LEVINE, 1980). De acordo com Foster (2002, p.16) um exemplo de jogar, Pelé trabalhou muito bem em equipe, respeitava a autoridade e era patriótico. Sua vida tanto na esfera profissional quanto privada, como jogador de futebol e cidadão brasileiro, encarnava os valores do “trabalho em equipe e as virtudes da hierarquia”, tão caros aos chefes militares que governaram o país nos anos 60/70 (FOSTER, 2002, p.16). Paz (2006) informa que, em 1995, aos 65 anos e quase 30 anos depois de se despedir dos gramados, Pelé foi nomeado Ministro Especial dos Esportes. O jogador 35 também foi nomeado pela imprensa internacional o “Atleta do Século”, “título significativo, considerando-se que o futebol é um esporte coletivo, bem diferente do atletismo, do boxe ou do tênis” (PAZ, 2006, p.50). 3.5 Estrelas no firmamento: os jogadores e a mídia Os jogadores de futebol brasileiros de grande destaque sublinha Helal (2003, p. 20). têm suas trajetórias rumo ao estrelato influenciadas pela maneira como a mídia os retrata, algumas vezes, dando ênfase a certos aspectos, em outras, omitindo certas passagens de suas vidas. O autor percebe a tendência de que “no Brasil, as narrativas das trajetórias de vida dos ídolos enfatizam sobremaneira a genialidade e o improviso como características marcantes e fundamentais para se alcançar o sucesso” (HELAL, 2003, p. 20). Mas, de fato, não há uma representação única da figura do jogador de futebol brasileiro pela mídia nacional. Este tópico da monografia tenta mostra as múltiplas relações que se estabelecem entre a mídia e alguns dos principais jogadores que entraram para a história do futebol no país. Segundo Helal (2003, p.20), Zico foi o jogador que obteve mais destaque nas décadas de 70 e 80, tornando-se dono de grande admiração de fãs do Brasil e do mundo. “Figura muitas vezes contestada quando saía do universo clubístico, sua biografia fala da vitória através do trabalho e de uma sucessão de obstáculos e provações que ele teve que superar.” (HELAL, 2003, p. 20). Analisando duas biografias a respeito do jogador (uma escrita pelo próprio atleta), Helal (2003, p.21) cita como é resgatada sua infância pobre e sofrida - o que facilita a identificação com o povo brasileiro e o talento genuíno, sem explicações de como tal talento surgiu, assim sendo visualizado como um ser singular. Em contraposição, Helal (2003, p.21) comenta a passagem em uma biografia do jogador que deixa claroque esforço e determinação são essenciais para se obter sucesso - o que pode destruir a imaginação do brasileiro que crê fielmente no talento genuíno dos jogadores, assim não precisando de tanta dedicação e esforço. Zico teve muitos obstáculos no caminhar de sua carreira, começando pelo corpo de 36 aparência frágil que quase o impediu de fazer um teste no Flamengo. Graças a isso, submeteu-se a diversos tratamentos para reforçar a musculatura. Ao contrário dos demais jogadores de grande destaque, sua biografia enfatiza primeiramente a renúncia e não as dificuldades financeiras. Este tratamento a que se submeteu ainda bem jovem fez com que Zico ficasse conhecido no início da carreira como “craque de laboratório”. Ou seja, de um planejamento “científico”, com a ajuda de médicos, nutricionistas e modernas técnicas e aparelhos de educação física, surgiu uma grande estrela do futebol. Era o racional, o objetivo e o matemático unindo-se ao lúdico, ao talento e à improvisação. É interessante notar, no entanto, que apesar das biografias enfatizarem positivamente a dedicação de Zico a este trabalho “científico”, à época a alcunha “craque de laboratório” era utilizada, muitas vezes, de forma pejorativa, significando um craque não genuíno, fugindo das características “artísticas”, “espontâneas” e “criativas” do nosso futebol. (HELAL, 2003, p.23) Segundo Helal (2003), Zico possui características em sua personalidade que passam uma superioridade fora do comum e isso se torna claro na forma com que o jogador enfrentava os obstáculos da vida com perseverança, honestidade, força de vontade, luta e etc, para se manter no posto a qual lhe foi dado, de herói. (HELAL, 2003, p.23). De acordo com Helal (2003, p.24), Zico reforça o título de herói ao enfrentar com determinação as provocações a qual sofria. Depois do problema do corpo franzino, Zico sofreu uma grande decepção ao não ser convocado para as Olimpíadas de 1972. Seguindo o conselho do próprio técnico da Seleção Olímpica, Zico, que em 1971 já começara a jogar entre os profissionais, voltou para os juvenis a fim de ser convocado para as Olimpíadas que se realizariam no ano seguinte. A convocação não veio e ele, a princípio, reagiu de forma “ordinária”, com sentimento de revolta, decepção e muito abatimento [...] (HELAL, 2003, p.24). No entanto, Helal (2003, p. 24) afirma que isso serviu de motivação para que o jogador treinasse cada vez mais, transformando esse sentimento de revolta em estimulo para ser melhor. “O que se verifica na biografia de Zico é a construção de uma narrativa na qual uma série de obstáculos, perdas e fracassos são sempre acompanhados de uma história de muito trabalho, determinação e profissionalismo” (HELAL, 2003, p. 25) 37 Assim, a biografia de Zico ao enfatizar, de forma peremptória, o sucesso através do esforço e do trabalho, junta-se aos modelos de heróis mais próximos das sociedades anglo-saxônicas, permeadas por uma ética única do trabalho e do indivíduo. Este modelo é antagônico ao padrão predominante na construção da idolatria (HELAL, 2003, P.25-26). Zico se destacou por vitórias conquistadas, dessa maneira se tornando “um modelo mais próximo do herói clássico. Estávamos diante de uma narrativa que enfatiza a superação constante de vários obstáculos e a vitória conquistada primordialmente com muito trabalho e disciplina.” (HELAL, 2003, p.26). É interessante perceber que a representação de Zico, embora tenha pontos em comum, difere do tratamento que a mídia reservou ao jogador Romário. Para avaliar esse tratamento e descobrir como o atleta conseguiu o posto de herói, Helal observou dois períodos importantes para o jogador: “a) partida entre Brasil e Uruguai nas eliminatórias para a Copa de 1994 (uma semana antes da partida e uma semana após); e b) Copa do Mundo" de 1994 (uma semana antes do início da Copa até duas semanas após a conquista)”. (HELAL, 2003, p. 26) O jogador Romário, mesmo criticado diversas vezes durante sua carreira, foi “o atleta de futebol mais festejado pela mídia e torcida brasileira.” (HELAL, 2003, p.26). Nas eliminatórias do Campeonato Mundial de 1994, o Brasil precisava vencer o Uruguai para conseguir sua vaga no campeonato. Por problemas disciplinares, o jogador Romário tinha sido afastado da seleção, porém, com a pressão da mídia e dos torcedores, o então técnico da Seleção, Carlos Alberto Parreira, resolveu convocá-lo para a partida contra o Uruguai (HELAL, 2003, p.27). Romário retorna, desta feita, com a missão de salvar a seleção de uma possível eliminação. Monta-se, assim, o palco para uma trajetória pontuada por lances que nos remetem, por um lado, à saga clássica do herói e, por outro, ao “tipo ideal” de herói brasileiro. (HELAL, 2003, p.27) 38 Segundo Helal (2003, p 27), os cadernos de esportes dos jornais brasileiros passam a falar do talento genuíno de Romário, assim como sua indisciplina e seus atos irresponsáveis - sempre ressaltando os gols que marcara na ocasião. Com isso, Romário, nada modesto e muito confiante, se vangloriava com o sucesso. “Este excesso de confiança e individualismo que costuma ser interpretado como arrogância e egoísmo, é amenizado em uma nota que destaca os atos altruístas de Romário, como por exemplo, a preocupação de ajudar parentes e amigos” (HELAL, 2003, p. 27). A partir daí, Helal (2003, p.29) relata que Romário constantemente saía nas páginas de esporte. “No texto da matéria, uma menção do pai de Romário reforça o estereótipo de ‘marrento’ como algo nato, que já nasceu com o jogador” (HELAL, 2003, p.28) Tais características ilustravam sua personalidade arredia e seu temperamento difícil. Os recursos acionados pela mídia nesta construção vão formando um personagem singular, “irreverente”, de “temperamento difícil”, mas amadurecido, sabendo dosar o lado “marrento”. Ou seja, sabendo ser “malandro”, não confrontando-se mais de frente com as forças do sistema, mas caminhando na fronteira entre a ordem e a desordem. (HELAL, 2003, p.29) Com tanto destaque, as críticas ao seu temperamento sempre estavam em evidência, porém sempre seguidas de elogios sobre sua forma de jogar, seu talento nato, sua habilidade. Quando em campo, Romário apresenta inicialmente uma certa má vontade no aquecimento, porém na hora do jogo, com sua malícia e destreza, dava um show. “Comentava-se que estava faltando “alegria”, “picardia”, enfim “malandragem” na seleção – o retorno de Romário tornava a seleção mais “brasileira”” (HELAL, 2003, p. 29) (grifo nosso). Dessa maneira, Romário trazia de volta a brasilidade há muito não percebida na Seleção (HELAL, 2003, p.29). Helal (2003, p. 31) observa que, conforme ficava claro que Romário havia trazido de volta a brasilidade para a Seleção, a pressão sobre o jogador aumentava. Ele não só tinha a missão de trazer para o Brasil a taça do campeonato, mas também fazer a 39 seleção jogar o futebol brasileiro “de raça”. Ou seja, o povo brasileiro confiava em Romário e o jogador aproveitava seu espaço na mídia para afirmar que iria ganhar a Copa para o Brasil (HELAL, 2003, p. 31). Assim, segundo Helal (2003, p.32) Romário, com seu jeito “marrento”, indisciplinado, somado a origem humilde e seu jeito peculiar de falar, sempre utilizando gírias, concedem a característica brasileira ao herói. Romário, como o principal responsável por conquistar o tetracampeonato, reforça o título de herói por se aproximar do brasileiro comum no jeito de ser “relaxado”, indisciplinado e com um talento especial para o futebol que só o brasileiro tem (HELAL, 2003, p.32). Helal (2003, p. 32-33) enfatiza que as representações que vêm à tona na mídia das figuras de Zico e Romário são construídas, reelaboradas, editadas pela própria mídia e acabam por influenciar a maneira dos mesmos jogadores se posicionarem no contexto da sociedade brasileira. A eficácia da edição ancora-se, no entanto, nos discursos e ações dos próprios atletas em questão. E como ambos são consumidores da mídia e enquanto sujeitos