Prévia do material em texto
1 ÉTICA E CIDADANIA ENRIQUE CARLOS NATALINO EDUCAÇÃO A DISTÂNCIAFACULDADE ÚNICA 1 ÉTICA E CIDADANIA ENRIQUE CARLOS NATALINO 1 Enrique Carlos Natalino Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (2020). Tem doutorado-sanduíche no German Institute of Global and Area Studies (Alema- nha). Possui Mestrado em Administração Pública pela Escola de Governo da Fun- dação João Pinheiro (2011). É graduado em Direito na Faculdade de Direito da Uni- versidade de São Paulo (USP) (2006). Tem experiência docente como professor nos cursos de Direito, Administração, Economia e Relações Internacionais da Pontíficia Uni- versidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e da Faculdade de Direito Novos Horizontes. 2 ÉTICA E CIDADANIA 1° edição Ipatinga, MG Faculdade Única 2021 3 FACULDADE ÚNICA EDITORIAL Diretor Geral: Diretor Executivo: Ger. do Núcleo de Educação à Distância: Coord. Pedag. da Equipe Multidisciplinar: Revisão Gramatical e Ortográfica: Revisão/Diagramação/Estruturação: Design: Valdir Henrique Valério William José Ferreira Cristiane Lelis dos Santos Gilvânia Barcelos Dias Teixeira Izabel Cristina da Costa Bruna Luíza mendes Leite Carla Jordânia G. de Souza Rubens Henrique L. de Oliveira Aline de Paiva Alves Bárbara Carla Amorim O. Silva Élen Cristina Teixeira Oliveira Maria Luiza Filgueiras Taisser Gustavo Soares Duarte NEaD – Núcleo de Educação as Distancia FACULDADE ÚNICA Rua Salermo, 299 Anexo 03 – Bairro Bethânia – CEP: 35164-779 – Ipatinga/MG Tel (31) 2109 -2300 – 0800 724 2300 www.faculdadeunica.com.br © 2021, Faculdade Única. Este livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer meio sem Autorização escrita do Editor. 4 LEGENDA DE Ícones Trata-se dos conceitos, definições e informações importantes nas quais você precisa ficar atento. Com o intuito de facilitar o seu estudo e uma melhor compreensão do conteúdo aplicado ao longo do livro didático, você irá encontrar ícones ao lado dos textos. Eles são para chamar a sua atenção para determinado trecho do conteúdo, cada um com uma função específica, mostradas a seguir: São opções de links de vídeos, artigos, sites ou livros da biblioteca virtual, relacionados ao conteúdo apresentado no livro. Espaço para reflexão sobre questões citadas em cada unidade, associando-os a suas ações. Atividades de multipla escolha para ajudar na fixação dos conteúdos abordados no livro. Apresentação dos significados de um determinado termo ou palavras mostradas no decorrer do livro. FIQUE ATENTO BUSQUE POR MAIS VAMOS PENSAR? FIXANDO O CONTEÚDO GLOSSÁRIO 5 SUMÁRIO 1.1 O que é ética e moral?.....................................................................................................................................8 1.2 Evolução histórica dos conceitos............................................................................................................9 1.3 A relação entre ética e moral.....................................................................................................................9 1.4 Influência da cultura organizacional no comportamento dos colaboradores.....10 1.5 A cultura organizacional enquanto recurso estratégico......................................................12 2.1 Ética, moral e direito......................................................................................................................................18 2.2 Ética na política..............................................................................................................................................20 2.3 Ética das convicções e ética da responsabilidade....................................................................21 3.1 O conceito de cidadania e sua evolução histórica...................................................................29 3.2 Cidadania e direitos fundamentais....................................................................................................32 3.3 A cidadania no mundo globalizado..................................................................................................34 UNIDADE 1 UNIDADE 2 UNIDADE 3 ÉTICA E MORAL: CONCEITOS E EVOLUÇÃO HISTÓRICA ÉTICAS E MORAL NAS RELAÇÕES SOCIAIS 4.1 Afirmação da ideia de cidadania no Brasil...................................................................................44 4.2 A cidadania no império.............................................................................................................................46 4.3 Cidadania na república..............................................................................................................................47 4.4 Cidadania na redemocratização.........................................................................................................49 UNIDADE 4 ÉTICA, MORAL E POLÍTICA: A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA CIDADANIA NO BRASIL UNIDADE 5 DESAFIOS DO EXERCÍCIO DA CIDADANIA NO BRASIL 5.1 A consolidação da democracia após 1988.....................................................................................57 5.2 Os desafios para o exercício pleno da cidadania.....................................................................59 5.3 Cidadania e as desigualdades sociais..............................................................................................60 UNIDADE 6 ÉTICA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO: O CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL 6.1 Ética, mercado e instituições..................................................................................................................67 6.2 A responsabilidade social nas organizações...............................................................................68 6.3 Ética nas burocracias públicas e privadas....................................................................................70 6.4 O código de ética profissional................................................................................................................71 6.5 Ética e cidadania nas relações de trabalho..................................................................................74 6 UNIDADE 1 A Unidade 1 aborda a definição dos conceitos de Moral e de Ética à luz do contexto histórico. Os conceitos de Moral e de Ética , como serão vistos, se referem a objetos distintos, mas, guardam relações estreitas entre si. UNIDADE 2 A Unidade 2 trata da aplicação dos conceitos de Ética e de Moral nas relações sociais. Direito e Política, dois campos das relações sociais, dialogam diretamente com a Moral e com a Ética. Esta unidade aborda ainda a diferença entre Ética das Convicções e Ética da Responsabilidade, dois conceito essenciais para a compreensão da ética no contexto social. UNIDADE 3 A Unidade 3 aborda a temática da Ética, da Moral e da Política na construção do sentimento de cidadania. Aborda ainda a relação entre cidadania e a afirmação histórica dos direitos fundamentais, base da democracia. A unidade finaliza com a análise do fenômeno da cidadania em contexto de globalização. UNIDADE 4 A Unidade 4 analisa como se deu a construção do pensamento sobre cidadania no Brasil, da Colônia até a República, à luz das conquistas democráticas. Será visto de que modo a Constituição de 1988 pavimentou o caminho para o exercício da democracia em um contexto de liberdades, de separação de Poderes e de maior autonomia para as instituições. UNIDADE 5 A Unidade 5 trata do desenvolvimento da cidadania no Brasil após a promulgação da Constituição de 1988. Dessa forma, analisa como os cidadãos podem exercer seus direitos e quais os limites de atuação no Estado na salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais. Por fim, aborda a problemática do patrimonialismo e como afeta o Estado de Direito. UNIDADE 6 A Unidade 6 analisa as questões éticas à luz das relações de trabalho. Compreenderá uma discussão sobre a ética no mercado, nas instituições e na burocracia, a responsabilidade social das organizações e a ética nas burocracias.Por fim, analisa o fenômeno da normatização de comportamentos éticos, o Código de Ética Profissional e a importância da ética e da cidadania no mundo do trabalho. C O N FI R A N O L IV R O 7 ÉTICA E MORAL: CONCEITOS E EVOLUÇÃO HISTÓRICA UNIDADE 01 8 1.1 O QUE É ÉTICA E MORAL? “A razão vos é dada para discernir o bem e o mal” Dante Alighieri, poeta italiano Ética e moral são conceitos distintos, mas que guardam estreita relação entre si. A ética é a tradução etimológica do termo ethos (hábito, habitualidade, comportamento rei- terado). O hábito revela a personalidade. A questão da ética é essencialmente prática e en- volve pensar sobre aquilo que o sujeito faz enquanto ser que faz escolhas e toma decisões (agente) ou que é impacto pelas escolhas ou pelas decisões de outras pessoas (reagente). Em outras palavras, a ética é a liberdade interior de cada indivíduo, isto é, aquilo que cada um considera ser bom ou ruim, vicioso ou virtuoso para si mesmo. O conceito de moral, por sua vez, diz respeito aos grandes paradigmas e valores de um determinado grupo social em um dado tempo. Trata-se de um consenso coletivo para o comportamento dos indiví- duos e a condução da vida em comunidade. Há um convívio dialético entre ética (do indivíduo) e moral (do grupo). A decisão éti- ca não é simples fruto da cultura, mas também da história pessoal do indivíduo. Sócrates, um dos maiores filósofos da Humanidade, questionava os valores da sociedade da Grécia Antiga. Acusado de corromper o juízo da sociedade atensiense, Sócrates perguntava, entre outras questões, o que era o bem e o que era o mal, algo sem resposta até os dias de hoje. O ato socrático de questionar a moral estabelecida em sua época era visto como algo sub- versivo e desestabilizador, pois colocava em dúvida as verdades estabelecias. A Antropologia, ao estudar o homem como produtor de cultura, tem grande con- tribuição a dar ao estudo da ética. A Psicologia, por seu turno, discute como o indivíduo toma suas decisões pessoais. Por que tomou essa decisão? Do mesmo modo, a História e a Sociologia são ciências que ajudam a iluminar o entendimento da moral e da ética. Não podemos confundir: a moral é o conjunto coletivo de valores e paradigmas, ou seja, as regras convencionadas por um grupo social. Já a ética é liberdade individual para considerar o que bom ou ruim para si e por si mesmo. FIQUE ATENTO A Ética, entretanto, não é uma ciência. Seu objetivo não é produzir respostas absolu- tas para os problemas humanos. O que a Ética busca é refletir acerca da ação humana e so- bre os seus valores fundamentais. Os valores não são permanentes, imutáveis ou aplicáveis a todas as situações. Sempre temos que decidir e fazer escolhas. Os indivíduos podem de- cidir de acordo com a moral do grupo ou contra a essa moral. Será que tudo o que é lícito é moral? Será que tudo o que é legal é ético? Os valores são relativos e as decisões humanas são tomadas no calor das circunstâncias. A cada momento temos que decidir o que é bom ou ruim, o que fazer e o que não fazer, com base em nossa condição de indivíduo. 9 1.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS CONCEITOS O objeto da reflexão ética é o comportamento humano. É impossível sustentar uma comunidade imensa de pessoas vivendo sob uma única ética. Da mesma forma, é tarefa difícil estabelecer o limite entre o ético e o antiético. Isso se traduz em uma sensação de não se identificar com clareza a barreira entre o que se pode e o que não se pode fazer. A principal característica das sociedades contemporâneas é a insegurança. Isso se traduz em uma sensação permanente de desorientação social, confusão e incerteza. Exis- te um padrão de comportamento? E um valor universal? Qual é o valor absoluto? Não há respostas fixas para estas perguntas. Se por um lado a flexibilização dos valores universais traz uma sensação inédita de liberdade, por outro a ausência de paradigmas de compor- tamentos dificulta enormemente a decisão. A multiplicidade de escolhas e de oportuni- dades passa a ser um instrumento opressor da liberdade. As dúvidas e as inseguranças passam a ser frequentes. Como resposta a este cenário de incertezas, ocorre a chamada “tribalização” da so- ciedade: as pessoas não se comportam segundo valores universais aplicáveis a todos, mas dentro dos valores do seu grupo (MAFFESOLI, 1997). Essa instabilidade traz grandes im- pactos nos campos político, jurídico, social, cultural e religioso. Um comportamento que os indivíduos buscam na tentativa de lidar com a insegurança é a busca do passado ou de padrões tradicionais assentados em valores religiosos e familiares. Os grandes paradigmas da vida moderna passam por uma revisão profunda. Isso produz uma série de transformações sociais. A crescente individualização das responsabi- lidades sociais leva à desagregação dos instrumentos sociais de decisão consensual, como a política. O Estado e o Direito também parecem não ser mais instrumentos eficazes para balizar os comportamentos humanos. Ademais, existe a mentalidade que supervaloriza o homem capitalista em face da dimensão do social, do coletivo ou do político. Diante da sensação de desgoverno das fun- ções estatais, da incapacidade de atender às necessidades fundamentais e da sensação de insegurança generalizada, as categorias universais são substituídas por valores individuais. A falta de parâmetros morais leva à insegurança nas decisões. Cada um passa a valer pelo que produz e pelo que consome. É mais importante ter do que ser. O mercado deter- mina o que é a essência. E quem está fora do mercado? E quem não tem poder de troca? Neste contexto, a dignidade da pessoa humana acaba perdendo sentido e as pessoas que estão fora da relação de consumo são desconsideradas enquanto sujeitos. Nessa linha, a pergunta fundamental da ética (como agir) encontra uma resposta retórica nas questões relativas à exclusão social. Os povos antigos não conheceram a diferença entre o mundo da ação política, o mundo do direito e o mundo do exercício do pensamento. Na Antiguidade, há uma certa integralidade dos pensamentos. Eles não tratavam as coisas de modo cartesiano, departa- mentalizando o saber humano. Os antigos lidavam com o mundo de modo muito integra- do; não havia a separação entre direito e a moral. As sociedades medievais também não faziam essa distinção: havia um princípio geral que regia todas as áreas. O direito natural era a razão de tudo. A modernidade construiu a diferença entre direito e moral, principalmente, a partir do pensamento do filósofo alemão Immanuel Kant. A filosofia de Kant diferenciou o uni- verso da norma moral e o universo da norma jurídica. Kant influenciou o jurista austríaco 10 1.3 A RELAÇÃO ENTRE ÉTICA E MORAL Hans Kelsen na construção da sua teoria pura do direito. Kelsen separou direito e moral para distanciá-los; ele queria determinar a autonomia do Direito. Para Kelsen, direito é o conjunto de normas postas pelo Estado (KELSEN, 1998). A tarefa do jurista não era avaliar a justiça do sistema, mas compreender os critérios de validade das normas de acordo com a hierarquia. Para Kelsen (1998), a questão da justi- ça não pertencia ao direito. Dessa forma, criou um abismo entre direito (decidir de acordo com o ordenamento) e moral (discutir os valores). O estudo da Ética busca entender todas as formas de mentalidade e estar a par de que um ethos dominante não existe sem que haja uma camada social dominante que o proclame. Toda vez que se definem normas de comportamento consideradas adequadas, passa a haver um aparato para proteger essas normas. Nesse sentido, ao estudarmos a ética devemos também nos preocupar em pensar a diversidade das alternativas de comportamento possíveis. Importante enfatizar, nesse sentido, a relação entre ética, arbítrio e pluralidade. A universalização de qualquer tipo de verdade ética nos leva à definição de patamares rígidos. Torna-se a moral de uma classe dominante sobre a moral das classesdominadas. O que está em questão é a construção do compartilhamento dos valores. Dessa for- ma, todo sistema ético busca, em primeiro lugar, proteger os valores que consagra. Muitos grupos sociais constroem sistemas de dominação com base na política, na religião ou em outros sistemas que formam a consciência de um grupo. Dessa maneira, a ética busca eliminar as diferenças e estabelecer regras de padrões de comportamento. No entanto, os valores não são tão absolutos que não possam dialogar com valores opostos. Um sistema ético, apesar de defender as suas verdades, deve praticar a tolerância, pois a moral de uns não pode se impor à moral de outros. Valores morais são passíveis de ajuste e de confronte com outros. Os grupos cultu- rais opostos podem construir instrumentos para a abertura recíproca de valores. Como é possível construir uma ética global em um contexto de diferenças entre os povos, naciona- lismo exacerbado, contingentes humanos excluídos e oposição entre culturas? O filósofo alemão Juergen Habermas defende que só existe verdade enquanto expe- riência intersubjetiva. O autor se posiciona em confronto direto com a verdade fundada na reflexão individual. Para Habermas, a verdade se constrói a partir do diálogo entre sujeitos que pensam diferentes. Ou seja, a chave para a busca da verdade é a aceitação da diver- gência como algo legítimo e natural. Somente por meio da comunicação se pode alcançar a colaboração, o entendimento e o consenso. A moral é algo que avalia o outro para julgá-lo como pertencente ou não pertencen- te a uma comunidade. O próprio direito vem associado a uma moral. A linguagem trans- passa valores por meio de certos termos e de palavras que expressam visões de mundo. E elas se expressam por meio de cláusulas gerais: bom, ruim, justo, injusto etc. A linguagem recebe uma grande bagagem da moral. Ela também é transmissora desses valores. Todas as práticas discursivas são transmissivas de valores. O indivíduo que se vale da linguagem pratica juízos, requalificando-os o tempo todo. A ética, portanto, significa esfera da ação individual. Está contida dentro de um cir- cuito de liberdade que lhe pertence. A moral é a grande instituição social que acaba sendo 11 O sufixo latino –oso indica a ideia de “muito”, de “abundante” nas palavras da língua por- tuguesa. Um objeto provido de muito brilho é chamado de brilhoso, um sujeito que mente muito ou continuamente é chamado de mentiroso. A palavra ética origina-se no termo grego éthos, que pode ser traduzido como “hábito”, ou seja, aquilo que se faz constantemen- te. Para avaliar a personalidade de um indivíduo é preciso observar seus hábitos, já que um ato isolado não é o suficiente para dizer muito sobre ele. Há um ditado conhecido que diz: “o hábito faz o monge”. Neste provérbio, a palavra hábito refere-se tanto ao vestuário quan- to aos costumes do religioso. Levando em conta as reflexões acima, pensemos na seguinte situação: um cidadão que nunca cometeu um crime em sua vida, pela primeira vez comete um ato que fere as leis do país. Seria justo, do ponto de vista da ética, chamá-lo de crimino- so? Basta cometer um crime para que carregue este estigma? Ou seria preciso uma lista de crimes habituais em sua ficha para receber este adjetivo? VAMOS PENSAR? o arcabouço de sustentação de certas atitudes individuais respaldadas em conceitos pree- xistentes. A moral, por outro lado, procura moldar o indivíduo a modelos sociais convenien- tes, não necessariamente bons. Configura, dessa forma, uma instituição social que produz mecanismos de controle e determinam a execução de seus preceitos. Escolas e normas jurídicas são exemplos de instituições que contribuem para a ho- mogeneização dos indivíduos. Instituições trazem estabilidade para o grupo e para a so- ciedade. A moral é um mecanismo de pasteurização dos comportamentos. Ela permite julgar o que é conforme e o que é desconforme. Ela promove a agregação ou a segregação do outro. Nas relações morais é preciso verificar a relação de poder para determinar quais são os comportamentos adequados. A moral pode ser o principal instrumento ideológico de exercício do poder. A moral disfarça, suaviza e amortece a prática de poder. Ou seja, é um instrumento de adequação das identidades individuais. A moral fornece abrigo para a estrutura de poder. Ela pratica uma espécie de controle conveniente em um certo con- texto. Exemplificando, na Idade Média, era clara a associação entre poder e moral. A moral imposta era a da Igreja Católica, que detinha o poder. A relação entre moral e poder pertence à própria dinâmica das relações sociais. Nes- se sentido, é preciso observar com cautela os valores morais. Um curso de ética não é um curso de moral. A filosofia ética é uma prática aberta de reflexão. É necessário dimensio- nar e ponderar os valores, para avaliar se o valor é realmente válido. A moral do meio é a prática do exercício de dominação? Nessa direção, a ética se vale da capacidade de resistência que o indivíduo tem em face das pressões externas do meio. É a sua capacidade de ponderar entre os conflitos in- ternos e os valores das instituições sociais. Já a moral se baseia em um conjunto das sutis e não explícitas manifestações de poder sobre os indivíduos. A moral está inserida num contexto sócio-histórico. Não devemos incorporar a moral sem questioná-la, sob pena de nos transformarmos em meros reprodutores dos conceitos morais do nosso tempo. O comportamento ético pressupõe, dessa forma, o questionamento da moral antes de absorvê-la. A moral defende o passado, o que foi consagrado e nos convida a reproduzir esses valores. A ética flerta com o novo. O comportamento ético permite requalificar os valores. Isso dá abertura ao processo de alteração dos valores. Os indivíduos podem resistir aos valores morais por meio da capacidade de reflexão. Não existem leis morais eternas. Em outras palavras, a moral nos convida ao conforto e 12 • No campo da filosofia, a ética também é uma ciência que estuda o comportamento hu- mano em sociedade. Você pode aprender mais um pouco lendo o livro “Ética e Cidadania”. Neste obra organizada por Lopez Filho e colaboradores (2018) tem-se uma coletânea de di- versos artigos que tratam da relação entre Ética e Cidadania no mundo contemporâneo. Em suas quatro unidades, o livro abarca a interface dos conceitos de ética e de cidadania com a desigualdade social, com as questões étnicas, políticas e religiosas e com o mundo do traba- lho. Por fim, analisa a problemática da ética e da cidadania à luz dos direitos humanos, dos movimentos sociais e da cultura. Disponível em: https://bit.ly/3sEsLEa. Acesso em: 07 jan. 2021. • Você também pode ler o livro “Ética: conceitos-chave em filosofia” (2007) de Dwight Fur- row. Nesta obra, o autor analisa o conceito de Ética à luz da história da Civilização Ocidental. É um livro introdutório e didático que abarca alguns dos conceitos centrais para entender a evolução do pensamento filosófico. À luz dos escritos de Platão, Aristóteles, Kant e outros filósofos é possível entender como a ideia de ética permeou o estudo da Filosofia. Disponível em: https://bit.ly/3uNOhIo. Acesso em: 07 de jan. de 2021. BUSQUE POR MAIS à segurança. A ética nos convida ao exercício responsável e refletido para nos tornarmos agentes e arquitetos de nossa própria existência. 13 FIXANDO O CONTEÚDO 1. (Enem 2010, 2ª aplicação) “A ética exige um governo que amplie a igualdade entre os cidadãos. Essa é a base da pátria. Sem ela, muitos indivíduos não se sentem “em casa”, ex- perimentam-se como estrangeiros em seu próprio lugar de nascimento. “ SILVA, R. R. Ética, defesa nacional, cooperação dos povos. OLIVEIRA, E. R (Org.) Segurança & defesa nacional: da competição à coopera- ção regional. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 2007 (adaptado). Os pressupostos éticos são essenciais para a estruturação política e integração de indivídu- os em uma sociedade. Deacordo com o texto, a ética corresponde a: a) Valores e costumes partilhados pela maioria da sociedade. b) Preceitos normativos impostos pela coação das leis jurídicas. c) Normas determinadas pelo governo, diferentes das leis estrangeiras. d) Transferência dos valores praticados em casa para a esfera social. e) Proibição da interferência de estrangeiros em nossa pátria. 2. (ENEM 2011, adaptado) O brasileiro tem noção clara dos comportamentos éticos e morais adequados, mas vive sob o espectro da corrupção, revela pesquisa. Se o país fosse resulta- do dos padrões morais que as pessoas dizem aprovar, pareceria mais com a Escandinávia do que com Bruzundanga (corrompida nação fictícia de Lima Barreto). O distanciamento entre “reconhecer” e “cumprir” efetivamente o que é moral constitui uma ambiguidade inerente ao humano, porque as normas morais são: a) Decorrentes da vontade divina e, por esse motivo, utópicas. b) Parâmetros idealizados, cujo cumprimento é destituído de obrigação. c) Amplas e vão além da capacidade de o indivíduo conseguir cumpri-las integralmente. d) Criadas pelo homem, que concede a si mesmo a lei à qual deve se submeter. e) Mais vinculantes do que as normas jurídica. 3. (UNICAMP 2016, adaptada) Por que a ética voltou a ser um dos temas mais trabalhados do pensamento filosófico contemporâneo? Nos anos 1960, a política ocupava esse lugar e muitos cometeram o exagero de afirmar que tudo era político. José Arthur Gianotti, “Moralidade Pública e Moralidade Privada”, em Adauto Novaes, Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 239. A partir desse fragmento sobre a ética e o pensamento filosófico, é correto afirmar que: a) O tema foi relevante no passado e apenas recentemente voltou a ocupar um espaço central na produção filosófica. b) Os impasses morais e éticos das sociedades contemporâneas reposicionaram o tema da ética como um dos campos mais relevantes para a filosofia. c) O pensamento filosófico abandonou sua postura política após o desencanto com os sis- temas ideológicos que eram vigentes nos anos 1960. d) Na atualidade, a ética é uma pauta conservadora, pois nas sociedades atuais, não há demandas éticas rígidas. 14 e) A ética foi incorporada pelas outras ciências, deixando de ser estudada nas últimas dé- cadas. 4. (UNISC 2012) – Apresentados os enunciados abaixo, qual deles melhor caracteriza o tema da ética filosófica? a) A ética filosófica estuda a maneira como as pessoas agem dentro de uma determinada sociedade. b) A ética filosófica consiste em um conjunto de normas relativas à vida sexual das pessoas. c) A ética filosófica é o estudo das normas que regem o exercício de uma determinada profissão. d) A ética filosófica é um discurso racional e argumentativo cujo objetivo é fundamentar critérios para avaliar as ações humanas, seja para louvá-las ou para censurá-las. e) A ética filosófica consiste na explicação das normas de comportamento que se encon- tram na Bíblia. 5. (Leopoldino Rocha) O sujeito ético-moral é somente aquele que preencher os seguintes requisitos: a) Ser consciente de si, mas não precisa reconhecer a existência dos outros como sujeitos éticos iguais a si. b) Saber o que faz, conhecer as causas e os fins de sua ação, o significado de suas intenções e de suas atitudes e a essência dos valores morais. c) Não precisa controlar interiormente seus impulsos, suas inclinações e suas paixões, dei- xando-as fluir livremente. d) Dizer o que as coisas são, como são e por que são. Enunciar, pois, juízos de fato. e) Ser responsável, mas não precisa reconhecer-se como autor da sua própria ação nem avaliar os efeitos e as consequências dela sobre si e sobre os outros. 6. (Unesp 2019) – Então, todos os alemães dessa época são culpados? – Esta pergunta surgiu depois da guerra e permanece até hoje. Nenhum povo é coletiva- mente culpado. Os alemães contrários ao nazismo foram perseguidos, presos em campos de concentração, forçados ao exílio. A Alemanha estava, como muitos outros países da Eu- ropa, impregnada de antissemitismo, ainda que os antissemitas ativos, assassinos, fossem apenas uma minoria. Estima-se hoje que cerca de 100 000 alemães participaram de forma ativa do genocídio. Mas o que dizer dos outros, os que viram seus vizinhos judeus serem presos ou os que os levaram para os trens de deportação? (Annette Wieviorka. Auschwitz explicado à minha filha, 2000. Adaptado.) Ao tratar da atitude dos alemães frente à perseguição nazista aos judeus, o texto defende a ideia de que: a) Os alemães comportaram-se de forma diversa perante o genocídio, mas muitos mostra- ram-se tolerantes diante do que acontecia no país. b) Esse tema continua presente no debate político alemão, pois inexistem fontes docu- mentais que comprovem a ocorrência do genocídio. c) Esse tema foi bastante discutido no período do pós-guerra, mas é inadequado abordá-lo 15 hoje, pois acentua as divergências políticas no país. d) Os alemães foram coletivamente responsáveis pelo genocídio judaico, pois a maioria da população teve participação direta na ação. e) Os alemães defendem hoje a participação de seus ancestrais no genocídio, pois consi- deram que tal atitude foi uma estratégia de sobrevivência. 7. (Unesp 2018). Os homens, diz antigo ditado grego, atormentam-se com a ideia que têm das coisas e não com as coisas em si. Seria grande passo, em alívio da nossa miserável con- dição, se se provasse que isso é uma verdade absoluta. Pois se o mal só tem acesso em nós porque julgamos que o seja, parece que estaria em nosso poder não o levarmos a sério ou o colocarmos a nosso serviço. Por que atribuir à doença, à indigência, ao desprezo um gosto ácido e mau se o pode¬mos modificar? Pois o destino apenas suscita o incidente; a nós é que cabe determinar a qualidade de seus efeitos. (Michel de Montaigne. Ensaios, 2000. Adaptado.) De acordo com o filósofo, a diferença entre o bem e o mal: a) Representa uma oposição de natureza metafísica, que não está sujeita a relativismos existenciais. b) Relaciona-se com uma esfera sagrada cujo conhecimento é autorizado somente a sa- cerdotes religiosos. c) Resulta da queda humana de um estado original de bem-aventurança e harmonia geral do Universo. d) Depende do conhecimento do mundo como realidade em si mesma, independente dos julgamentos humanos. e) Depende sobretudo da qualidade valorativa estabelecida por cada indivíduo diante de sua vida. 8. (Enem PPL 2016) 16 A figura do inquilino ao qual a personagem da tirinha se refere é o(a): a) Constrangimento por olhares de reprovação. b) Costume importo aos filhos por coação. c) Consciência da obrigação moral. d) Pessoa habitante da mesma casa. e) Temor de possível castigo. 17 Figura 9: Estrutura das bases nitrogenadas que compõem os ácidos nucleicos Fonte: Nelson e Cox (2019, p. 283) ÉTICAS E MORAL NAS RELAÇÕES SOCIAIS UNIDADE 02 18 2.1 ÉTICA, MORAL E DIREITO “A astúcia do Direito consiste em valer-se do veneno da força para evitar que ela triunfe“ Miguel Reale, jurista brasileiro Conforme visto no capítulo anterior, a Ética diz respeito ao conjunto dos valores que norteiam a vida em sociedade e a convivência entre os indivíduos num determinado tem- po. O Direito é uma ordem social estabelecida em torno de um sistema sancionatório para garantir a aplicação da Justiça. Essa ordem busca estabelecer regras para o funcionamen- to da sociedade e prevê meios para exigir o seu cumprimento, as sanções. Ele se vale da força para evitar que o mundo seja governado apenas por ela. Corresponde, na visão do jurista Jeremy Bentham, ao “mínimo ético” ou a um conjunto de normas morais conside- radas relevantes por cada sociedade. A Moral, por sua vez, se caracteriza por ser um tipo de preceito acerca do comportamento desprovido de mecanismos de coação (MORRIS, 2002). O Direito prevê uma convivência social ordenada, na qual inexiste a possibilidade de desordem ou anarquia. É um mecanismo de dominaçãoque se vale de normas, institui- ções e decisões para controlar o comportamento das sociedades. As regras jurídicas são obrigatórias e coercitivas, pois emanam de uma fonte jurídica válida e de uma autoridade competente. Seu fim último é a realização da justiça do bem comum. Nesse sentido, diferentemente da Moral, que lida com preceitos sobre o comporta- mento humano despidos de mecanismos de coerção, o Direito é uma ordenação ética com capacidade de impor comportamentos pelo uso legitimado da força. A Moral se baseia em mecanismos de sanção individual (ressentimento, remorso e culpa) ou coletiva (discrimi- nação, repulsa, exclusão e indignação), ao passo que o Direito se assenta em sanções co- ercitivas que se valem da imposição da força. O Direito não se vale de qualquer violência indiscriminada, mas da força organizada e aplicada segundo regras institucionalizadas. O Direito lida com o problema ancestral da busca da verdade e da justiça no exercí- cio do poder. Seu fundamento filosófico variou ao longo da Histórica, sendo considerada pelos gregos como uma técnica e pelos romanos como uma arte (a busca do bem e da equidade). Assim como as instituições são regras que estabelecem padrões de comporta- mento e geram previsibilidade, o Direito é um elemento de fidelização e conexão entre o passado e o futuro. Nesse sentido, o Direito não é neutro, mas um conjunto de práticas que visa realizar determinados valores fundamentais. O mais importante desses valores é a justiça, ou seja, dar a cada um aquilo que lhe é direito. A justiça é parte da moral e se baseia no senso de equilíbrio na distribuição de bens entre os homens. Sem validade, eficácia e justiça, não há sistema jurídico legítimo. O jurista austríaco Hans Kelsen, em “Teoria Pura do Direito”, afirma que a Justiça é um valor decorrente da Moral. No entanto, diferentemente das normas sociais (Moral e Éti- ca), o Direito é uma norma jurídica cuja legitimidade não se baseia apenas em valores, mas em critérios de validade. Ou seja, a norma jurídica é uma proposição hipotética dada por um poder institucionalizado (Estado) para estabelecer normas de conduta (KELSEN, 1998). A Moral lida com as concepções de um indivíduo ou de um conjunto de indivíduos acerca do que é lícito e justo. As regras de conduta morais são tão plurais quanto a sociedade e 19 balizam o convívio social. E buscam, essencialmente, o aperfeiçoamento de um indivíduo em relação à sua consciência ou a de seu grupo. Sua origem é a autoridade religiosa, a ra- zão e a tradição. O Direito, por outro lado, é uma técnica de regulação do convívio social que se baseia em uma norma. E que prevê sanções ao descumprimento destas regras. A fonte do Direito é o Estado. Somente são válidas as normas jurídicas produzidas por quem tem competên- cia para tal. As sanções jurídicas, por sua vez, são obrigatórias. Embora adote princípios mo- rais como fundamento de sua aplicação, o Direito pode conter também normais normas amorais. A Moral, por seu turno, influencia diretamente o Direito. Os legisladores são guiados por valores e ideias difusos na sociedade para produzir normas jurídicas. As normas jurídi- cas, nesse sentido, expressam regras morais que devem ser obrigatoriamente cumpridas. As sociedades antigas, como visto, eram caracterizadas pela coincidência entre manda- mentos jurídicos e morais. Já na Idade Média, as regras jurídicas constituíam um “mínimo ético”, ou seja, o núcleo duro das regras morais. Com a positivação do Direito (prevalência de normas escritas em códigos e leis), nos séculos XVIII e XIX, as regras jurídicas tornaram-se autônomas em relação à moral. Dada a pluralidade de sistemas morais existentes (religião, família, trabalho etc), as autoridades competentes do Estado se limitaram a impor normas segundo critérios de validade. A relação entre o direito e a moral: • O Direito é uma ordem social estabelecida em torno de um sistema sanciona- tório para garantir a aplicação da Justiça. • A Moral, por sua vez, se caracteriza por ser um tipo de preceito comportamen- to desprovido de mecanismos de coação. • A Moral se baseia em mecanismos de sanção individual (ressentimento, re- morso e culpa) ou coletiva (discriminação, repulsa, exclusão e indignação), ao passo que o Direito se assenta em sanções coercitivas que se valem da imposi- ção da força. FIQUE ATENTO Os positivistas defendem que os indivíduos são livres para obedecer ou não às nor- mas vigentes, de acordo com os seus valores morais e interesses. O custo do descumpri- mento dessas normas é a aplicação de sanções jurídicas. Os moralistas, por sua vez, sus- tentam que os operadores do Direito precisam buscar sempre a coe-rência entre normais normas jurídicas e preceitos morais, sob pena de esvaziamento valorativo do Direito. Para eles, seria impossível estabelecer uma distinção entre Direito e Moral, pois ambos cami- nham lado a lado. Portanto, é importante distinguir norma moral e norma jurídica. A normal moral de- corre da experiência histórica da sociedade. Já a norma jurídica pode ser imposta pela autoridade mesmo que não corresponda à experiência da sociedade. A norma moral fala a linguagem da interioridade e da intencionalidade. É preciso haver correspondência entre a vontade interior e a exteriorização. Na norma jurídica, isso é irrelevante em diversas situ- ações. Na norma jurídica, são necessários atos exteriores; a intencionalidade é um aspecto 20 2.2 ÉTICA NA POLÍTICA secundário. A norma moral não possui sanção (punição); já a norma jurídica possui sanção. A norma moral possui, entretanto, um grau de coercibilidade (possibilidade de punição) que muitas vezes é muito mais forte que a sanção jurídica, como a vergonha, o constrangi- mento e o arrependimento. Direito e moral não podem se separar. Como avaliar a legitimi- dade de um sistema jurídico? Essa avaliação não pode ser pautada unicamente sob o as- pecto da moral. Após a Segunda Guerra Mundial, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, foram definidas as diretrizes estruturantes do comportamento univer- sal, de modo que os direitos humanos constituem o mínimo ético de um sistema jurídico. A relação entre ética, moral e política é tão ancestral quanto a Humanidade. Desde os filósofos da Antiguidade até os cientistas políticos, juristas e escritores contemporâneos, o tema já foi abordado de maneira múltipla. O assunto desperta as atenções do ser huma- no desde os primórdios da civilização. Tratados, ensaios, romances e peças teatrais já foram escritas sobre essa questão, sem uma solução definitiva ou uma resposta correta para a problemática da moralidade nas relações sociais. Sendo o homem um ser essencialmente político – isto é, que vive na polis (cidade) – sempre se pergunta sobre o que é agir moralmente. Da mesma forma que existe uma ética profissional, uma ética do trabalho, uma ética familiar e uma ética religiosa, a ética política trata da distinção entre o que é moralmente lícito e ilícito. A aceitação de que a moral política se distingue do senso comum é um dos fun- damentos da modernidade. Maquiavel afirmou, em “O Príncipe”, que a moral dos gover- nantes não é a mesma dos governados. Nesse sentido, para obter êxito em sua missão de dominar os povos e governar as nações, antes de serem amados, os príncipes deveriam buscar serem temidos (MAQUIAVEL, 2010). Enquanto em outras atividades humanas o que se busca, essencialmente, é adequar os comportamentos às regras de conduta moral consensuais e estabelecidas, na relação entre política e moral, o debate é mais complexo. Ao contrário da ética médica, da ética esportiva ou da ética do trabalho, não existe um consenso sobre quais seriam os preceitos éticos da política. O que existe, fundamentalmente, é a noção de que a moral política se reporta às ações de um indivíduo no que toca aos seus deveres para com os outros, e não consigo mesmo. Dessa forma, o foco do estudo da moral política não é a compreensão daquiloque é considerado lícito ou ilícito. Na perspectiva do filósofo e jurista italiano Norberto Bobbio, o que se busca compreender é “[...] se tem sentido colocar-se em termos morais o problema do admissível e do inadmissível no caso das ações políticas” (BOBBIO, 2003, p. 161). Dessa forma, utilizando-se uma categoria de Maquiavel, é possível, por exemplo, dis- tinguir os políticos do tipo “leão” e os do tipo “raposa”. Os primeiros baseariam seu poder no uso da força; os segundos, no domínio da astúcia. Thomas Hobbes, em sua obra “O Leviatã”, assegurava que nenhuma moral estava acima da política. No estado de natureza, argumentava o filósofo inglês, a política não tinha nenhum conteúdo moral, baseando-se pura e simplesmente no exercício da força (MORRIS, 2002). A moral do mais forte sempre prevalecia e a sobrevivência era a única moral existen- te. No estado civil impera a moral do soberano, isto é, daquele indivíduo escolhido pelos demais como aquele que distingue o justo do injusto. Portanto, a vontade do rei deveria ser 21 a única e exclusiva fonte moral a ser obedecida. A noção de razão de Estado, que floresceu com o Estado moderno, aceita que em circunstâncias específicas e determinadas, o sobe- rano possa infringir os códigos morais prevalecentes para salvaguardar o seu poder. Assim, a ação política imporia ao seu praticante “[...] ações moralmente reprováveis, porém necessárias por causa da natureza e da finalidade da própria atividade” (BOBBIO, 2003, p. 168). Da mesma forma que o político teria uma moral própria, certas categorias profissionais, ao longo da História, também advogam a existência de um direito particu- lar e de uma moral específica. Se existe uma ética inerente à política, existiria, do mesmo modo, uma ética aplicável a profissões determinadas, como a dos médicos, dos padres e dos advogados. A ética na política Ao contrário da ética médica, da ética esportiva ou da ética do trabalho, não existe um con- senso sobre quais seriam os preceitos éticos da política. O que existe, fundamentalmente, é a noção de que a moral política se reporta às ações de um indivíduo no que toca aos seus deve- res para com os outros, e não consigo mesmo. FIQUE ATENTO 2.3 ÉTICA DAS CONVICÇÕES E ÉTICA DA RESPONSABILIDADE Quando refletimos sobre a importância da moral e da ética na vida pública, é impor- tante entender como os valores morais e éticos guiam os homens públicos em suas ações. Em seu clássico artigo “Política como Vocação”, o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) distingue três qualidades para a formação de um homem público (WEBER, 1965). Em pri- meiro lugar, a paixão à causa; e segundo lugar, o senso de responsabilidade; em terceiro lugar, o senso de proporção, isto é, a capacidade de manter distância dos fatos e dos ho- mens, de modo a refletir com mais propriedade sobre os acontecimentos. Segundo Weber (1965), os homens precisam ainda superar a vaidade, pois o desejo de poder pode desvirtu- ar tanto a sua paixão, quanto o seu senso de proporção. Ou seja, a vaidade poder tornar-se um fim em si mesmo, uma busca exclusiva pela exaltação do próprio ego. Existe uma ética própria para o mundo político? Para Weber (1965), na política have- ria dois pecados mortais. Primeiro, não defender nenhuma causa, o que conduz o político à paralisia e à busca do brilho efêmero. Segundo, não possuir nenhum senso de responsabi- lidade, o que o leva a abusar do poder como um fim em si mesmo, sem qualquer propósito maior. As causas que justificam o alcance do poder dependeriam das visões de mundo e convicções íntimas de cada político. Tais motivações podem ser humanistas, nacionalistas, sociais, religiosas e éticas. Nesse sentido, cabe indagar se existiria um “mínimo ético” na política que compati- bilizasse as diversas causas que levam os políticos a almejar o poder. Seria a ética da polí- tica a mesma ética da religião? Segundo Weber (1965), a ética religiosa, contida nos Evan- gelhos, implica em comportamentos rígidos e que não admitem meio-termo: é o “tudo ou 22 nada”. A ética dos Evangelhos persegue verdades absolutas e incontestáveis, baseadas na convicção e na consciência individual. De acordo com Weber (1965), as condutas podem ser orientadas segundo duas ló- gicas: a ética da ética da convicção e a ética da responsabilidade. Isto não significa que a ética da convicção esteja desconectada de qualquer responsabilidade. O ponto central da ética da responsabilidade é a noção das consequências do ato humano e o reconheci- mento do papel da vontade, da ação ou da omissão na produção de resultados. Quando se observa apenas ética da convicção, atribui-se qualquer consequência dos atos humanos à vontade divina. Dessa forma, os homens isentam-se de qualquer compromisso, obrigação e prudência no dia a dia, pois seu destino estaria traçado. A questão mais sensível da ética da responsabilidade é o fato de que, para alcançar fins considerados nobres, os homens às vezes precisam recorrer a expedi-entes considera- dos desagradáveis, desonestos ou perigosos. Assim, o ato de mentir, segundo a ética das convicções, é moralmente condenável. Já segundo a ética da responsabilidade, a mentira, muitas vezes, pode ser uma forma de se evitar um mal maior. Segundo Weber (1965), no entanto, nenhuma ética conseguiu até hoje definir o que seria uma finalidade considerada “eticamente boa” que justificasse o uso de métodos considerados moralmente perigosos, como o uso da força. As duas lógicas weberianas que conduzem a vida política: a Ética das Convicções e Ética da Responsabilidade: • Ética da responsabilidade é a noção das consequências do ato humano e o reconhecimento do papel da vontade, da ação ou da omissão na produção de resultados. • Ética da convicção é a atribuição de qualquer consequência dos atos humanos à vontade divina. Dessa forma, os homens isentam-se de qualquer compromisso, obrigação e prudência no dia a dia, pois seu destino estaria traçado. FIQUE ATENTO Em que circunstâncias se justifica o uso da força para o alcance de fins considerados justos? No caso de uma guerra ou de uma revolução, por exemplo, seria legítimo o recur- so à violência para alcançar fins considerados justos? Os partidários da ética da convic- ção são unânimes ao afirmar que matar um outro ser humano é considerado um pecado mortal, sem qualquer exceção. Já sob o ponto de vista da ética da responsabilidade, em casos excepcionais, como o de uma ameaça à sobrevivência do Estado ou da nação, seria moralmente justo o emprego da força e da violência armada para repelir uma invasão ao território nacional. Essa tensão entre meios e fins caracteriza a ética da responsabilidade. Nesse sentido, a violência poderia ser admitida como um meio do alcance de fins políticos considerados nobres ou justos, como a sobrevivência nacional. Da mesma forma, o debate entre a con- tinuidade de uma revolução ou de uma guerra e a realização da paz depende, sobretudo, das condições em que os termos da paz são assinados. Se forem injustos, os partidários da ética da responsabilidade admitem a legitimidade da continuidade da revolução ou da guerra. 23 Os partidários da ética da convicção acreditam que quaisquer atos humanos geram conse- quências, inclusive na política. Já para os adeptos da ética da responsabilidade, a política, diferentemente da religião, exige que os homens tenham senso de proporção. Sendo assim, convidamos você a refletir sobre a seguinte situação: • Um determinado país sofre um ataque externo e precisa tomar atitudes de defesa e ata- que. No entanto, sua população não tem total conhecimento sobre os desdobramentos dessa situação. Revelar tudo o que está acontecendo pode gerar pânico geral e piorar ain- da mais o quadro, até mesmo dificultando as ações de defesa. Para a ética da convicção, a verdade deve estar acima de tudo. Contudo, preservar em sigilo determinadas informações ou até mesmo mentir sobre elas pode promover a segurança nacional. Para os adeptosda ética da responsabilidade é preciso lançar mão do senso de proporção. Em que medida um chefe de Estado deve pender para uma das duas lógicas? VAMOS PENSAR? Para Weber (1965), é impossível conciliar a ética da convicção e a ética da responsa- bilidade, pois a primeira não admite concessões à segunda. A ética da convicção defende que os meios são mais importantes que os fins. Isto é, o mal só pode trazer o mal. A ética da responsabilidade, por sua vez, admite que os fins justifiquem os meios. Ou seja, o mal, quando praticado com fins nobres, também pode produzir o bem. Todas as crenças reli- giosas enfrentam o problema da ética na política. A questão mais sensível são as circuns- tâncias em que se admite e se legitima o uso da violência. Os políticos ao praticarem a violência com a busca de um fim nobre devem não apenas justificar o recurso à força, mas buscar seguidores que compartilhem de seus objetivos. Em síntese, Max Weber afirma que a política não pode abrir mão das questões éticas. Os homens que se dedicam à política, na visão do autor, devem estar cientes das consequ- ências e impactos de seus atos. A salvação das almas, de um indivíduo e de seu grupo não deve ser buscada por meio da política, mas da religião. O caminho da política, por sua vez, pressupõe o uso de algum tipo de violência para alcançar os objetivos pretendidos. Nesse sentido, é preciso esclarecer aos partidários da ética da convicção que quaisquer atos hu- manos geram consequências. A política, diferentemente da religião, exige que os homens tenham senso de proporção. Sendo assim, a política seria a arte do possível. Ao fim desta unidade caro aluno sugerimos a leitura do livro de Ferraz Jr. “Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação” (2019). Nesta obra o autor analisa as di- versas teorias e concepções do mundo jurídico. É um livro que propõe uma reflexão acerca do fenômeno do Direito no contexto das questões éticas do mundo contemporâneo. O au- tor se põe a refletir, de modo crítico, sobre as relações entre Direito, Ética e a sociedade de consumo em que estamos inseridos. Disponível em: https://bit.ly/2Ocaijw. Acesso em: 12 de jan. de 2021. BUSQUE POR MAIS 24 FIXANDO O CONTEÚDO 1. (Enem 2010, 2ª aplicação) No século XX, o transporte rodoviário e a aviação civil acelera- ram o intercâmbio de pessoas e mercadorias, fazendo com que as distâncias e a percepção subjetiva das mesmas se reduzissem constantemente. É possível apontar uma tendência de universalização em vários campos, por exemplo, na globalização da economia, no arma- mentismo nuclear, na manipulação genética, entre outros. HABERMAS, J. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. São Paulo: Littera Mundi, 2001 (adaptado). Os impactos e efeitos dessa universalização, conforme descrito no texto, podem ser ana- lisados do ponto de vista moral, o que leva à defesa da criação de normas universais que estejam de acordo com: a) Os valores culturais praticados pelos diferentes povos em suas tradições e costumes lo- cais. b) Os pactos assinados pelos grandes líderes políticos, os quais dispõem de condições para tomar decisões. c) Os sentimentos de respeito e fé no cumprimento de valores religiosos relativos à justiça divina. d) Os sistemas políticos e seus processos consensuais e democráticos de formação de nor- mas gerais. e) Os imperativos técnico-científicos, que determinam com exatidão o grau de justiça das normas. 2. (Enem 2010) A ética precisa ser compreendida como um empreendimento coletivo a ser constantemente retomado e rediscutido, porque é produto da relação social se organi- ze sentindo-se responsável por todos e que crie condições para o exercício de um pensar e agir autônomos. A relação entre ética e política é também uma questão de educação e luta pela soberania dos povos. É necessária uma ética renovada, que se construa a partir da natureza dos valores sociais para organizar também uma nova prática política. CORDI et al. Para filosofar. São Paulo: Scipione, 2007 (adaptado). O Século XX teve de repensar a ética para enfrentar novos problemas oriundos de diferen- tes crises sociais, conflitos ideológicos e contradições da realidade. Sob esse enfoque e a partir do texto, a ética pode ser: a) Compreendida como instrumento de garantia da cidadania, porque através de¬la os cidadãos passam a pensar e agir de acordo com valores coletivos. b) Mecanismo de criação de direitos humanos, porque é da natureza do homem ser ético e virtuoso. c) Meio para resolver os conflitos sociais no cenário da globalização, pois a partir do enten- dimento do que é efetivamente a ética, a política internacional se realiza. d) Parâmetro para assegurar o exercício político primando pelos interesses e ação privada dos cidadãos. e) Aceitação de valores universais implícitos numa sociedade que busca dimensionar sua 25 vinculação à outras sociedades. 3. (Enem 2010) Na ética contemporânea, o sujeito não é mais um sujeito substancial, sobe- rano e absolutamente livre, nem um sujeito empírico puramente natural. Ele é simultane- amente os dois, na medida em que é um sujeito histórico-social. Assim, a ética adquire um dimensionamento político, uma vez que a ação do sujeito não pode mais ser vista e avalia- da fora da relação social coletiva. Desse modo, a ética se entrelaça, necessariamente, com a política, entendida esta como a área de avaliação dos valores que atravessam as relações sociais e que interliga os indivíduos entre si. SEVERINO. A. J. Filosofia O texto, ao evocar a dimensão histórica do processo deformação da ética na sociedade contemporânea, ressalta: a) Os conteúdos éticos decorrentes das ideologias político-partidárias. b) O valor da ação humana derivada de preceitos metafísicos. c) A sistematização de valores desassociados da cultura. d) O sentido coletivo e político das ações humanas individuais. e) O julgamento da ação ética pelos políticos eleitos democraticamente 4. (Enem 2009) Na década de 30 do século XIX, Tocqueville escreveu as seguintes linhas a respeito da moralidade nos EUA: “A opinião pública norte-americana é particularmente dura com a falta de moral, pois esta desvia a atenção frente à busca do bem-estar e pre- judica a harmonia doméstica, que é tão essencial ao sucesso dos negócios. Nesse sentido, pode-se dizer que ser casto é uma questão de honra”. TOCQUEVILLE, A. Democracy in America. Chicago: Encyclopædia Britannica, Inc., Great Books 44, 1990 (adaptado). Do trecho, infere-se que, para Tocqueville, os norte-americanos do seu tempo: a) Buscavam o êxito, descurando as virtudes cívicas. b) Tinham na vida moral uma garantia de enriquecimento rápido. c) Valorizavam um conceito de honra dissociado do comportamento ético. d) Relacionavam a conduta moral dos indivíduos com o progresso econômico. e) Acreditavam que o comportamento casto perturbava a harmonia doméstica. 5. (Enem 2017) “Uma pessoa vê-se forçada pela necessidade a pedir dinheiro emprestado. Sabe muito bem que não poderá pagar, mas vê também que não lhe emprestarão nada se não prometer firmemente pagar em prazo determinado. Sente a tentação de fazer a pro- messa; mas tem ainda consciência bastante para perguntar a si mesma: não é proibido e contrário ao dever livrar-se de apuros desta maneira? Admitindo que se decida a fazê-lo, a sua máxima de ação seria: quando julgo estar em apuros de dinheiro, vou pedi-lo empres- tado e prometo pagá-lo, embora saiba que tal nunca sucederá”. KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril Cultural, 1980. De acordo com a moral kantiana, a “falsa promessa de pagamento” representada no texto: a) Assegura que a ação seja aceita por todos a partir da livre discussão participativa. 26 b) Garante que os efeitos das ações não destruam a possibilidade da vida futura na terra. c) Opõe-se ao princípio de que toda ação do homem possa valer como norma universal. d) Materializa-se no entendimento de que os fins da ação humana podem justificar os meios. e) Permiteque a ação individual produza a mais ampla felicidade para as pessoas envolvi- das. 6. (Enem 2017) A moralidade, Bentham exortava, não é uma questão de agradar a Deus, muito menos de fidelidade a regras abstratas. A moralidade é a tentativa de criar a maior quantidade de felicidade possível neste mundo. Ao decidir o que fazer, deveríamos, por- tanto, perguntar qual curso de conduta promoveria a maior quantidade de felicidade para todos aqueles que serão afetados. RACHELS, J. Os elementos da filosofia moral. Barueri-SP: Manole, 2006. Os parâmetros da ação indicados no texto estão em conformidade com uma: a) Fundamentação científica de viés positivista. b) Convenção social de orientação normativa. c) Transgressão comportamental religiosa. d) Racionalidade de caráter pragmático. e) Inclinação de natureza passional. 7. (Enem 2017) “Se, pois, para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo e tudo o mais é desejado no interesse desse fim; evidentemente tal fim será o bem, ou antes, o sumo bem. Mas não terá o conhecimento, porventura, grande influência sobre essa vida? Se assim é, esforcemo-nos por determinar, ainda que em linhas gerais apenas, o que seja ele e de qual das ciências ou faculdades constitui o objeto. Ninguém duvidará de que o seu estudo pertença à arte mais prestigiosa e que mais verdadeiramen- te se pode chamar a arte mestra. Ora, a política mostra ser dessa natureza, pois é ela que determina quais as ciências que devem ser estudadas num Estado, quais são as que cada cidadão deve aprender, e até que ponto; e vemos que até as faculdades tidas em maior apreço, como a estratégia, a economia e a retórica, estão sujeitas a ela. Ora, como a polí- tica utiliza as demais ciências e, por outro lado, legisla sobre o que devemos e o que não devemos fazer, a finalidade dessa ciência deve abranger as das outras, de modo que essa finalidade será o bem humano. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. In: Pensadores. São Pauto: Nova Cultural, 1991 (adaptado). Para Aristóteles, a relação entre o sumo bem e a organização da pólis pressupõe que: a) O bem dos indivíduos consiste em cada um perseguir seus interesses. b) O sumo bem é dado pela fé de que os deuses são os portadores da verdade. c) A política é a ciência que precede todas as demais na organização da cidade. d) A educação visa formar a consciência de cada pessoa para agir corretamente. e) A democracia protege as atividades políticas necessárias para o bem comum. 8. (Enem/2013) “Nasce daqui uma questão: se vale mais ser amado que temido ou temido que amado. Responde-se que ambas as coisas seriam de desejar; mas porque é difícil jun- 27 tá-las, é muito mais seguro ser temido que amado, quando haja de faltar uma das duas. Porque dos homens que se pode dizer, duma maneira geral, que são ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ávidos de lucro, e enquanto lhes fazes bem são inteiramente teus, oferecem-te o sangue, os bens, a vida e os filhos, quando, como acima disse, o perigo está longe; mas quando ele chega, revoltam-se.” MAQUIAVEL, N. O Príncipe. Rio de Janeiro: Bertrand, 1991. A partir da análise histórica do comportamento humano em suas relações sociais e políti- cas, Maquiavel define o homem como um ser: a) Munido de virtude, com disposição nata a praticar o bem a si e aos outros. b) Possuidor de fortuna, valendo-se de riquezas para alcançar êxito na política. c) Guiado por interesses, de modo que suas ações são imprevisíveis e inconstantes. d) Naturalmente racional, vivendo em um estado pré-social e portando seus direitos natu- rais. e) Sociável por natureza, mantendo relações pacíficas com seus pares. 28 ÉTICA, MORAL E POLÍTICA: A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA UNIDADE 03 29 3.1 O CONCEITO DE CIDADANIA E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA Cidadania é um laço que une um indivíduo a um determinado Estado-Nação. Esse vínculo de subordinação a uma ordem jurídica nacional torna o indivíduo sujeito a direitos e obrigações, tornando-o parte integrante de um povo. O povo é o elemento humano que habita o território do Estado e que se mantém unido graças aos valores e aos objetivos comuns que compartilham. A cidadania é o vínculo estabelecido entre o Estado e o povo. O vínculo de cidadania se prolonga por toda a vida e é definidor da identidade pessoal de um indivíduo. No entender de Bonavides (2006), a cidadania implica em deveres básicos em relação a uma coletividade, como a fidelidade à Nação e a observância das normas do Estado. Jorge Miranda afirma que os cidadãos são os membros do Estado, sujeitos de Direito e súditos da ordem política juridicamente organizada. Cidadania, portanto, define a quali- dade do sujeito que se subordina a uma coletividade política. O autor distingue a cidada- nia da nacionalidade. A primeira é o vínculo direto de um indivíduo a um Estado, enquanto a segunda é a relação entre um indivíduo e uma Nação. A aquisição e a perda de cidadania é definida pelas regras internas do Estado que as concede. Há dois meios fundamentais de aquisição da cidadania: pela filiação (jus sanguinis) ou pelo local de nascimento (jus soli). A cidadania implica na participação da vida política de um Estado, como o direito de votar e de ser votado (MIRANDA, 2002). O conceito de cidadania em sua versão moderna nutriu-se das ideias surgidas na Itália, Inglaterra, França e Estados Unidos a partir da Idade Moderna. De Nicolau Maquiavel a Thomas Hobbes e de Jean Jacques Rousseau aos Federalistas norte-americanos, a base do pensamento político moderno compreendido como um conjunto de teorias e de ideias relacionadas à busca da institucionalização dos conflitos forjou-se numa pluralidade de correntes e de tradições envoltas na formação da linguagem e da prática política europeia nos séculos XVI a XVIII. Da matriz italiana, o republicanismo absorveu as lições de Maquiavel acerca da for- mação do humanismo cívico num contexto de reposicionamento do homem no centro do pensamento. Responsável por uma ruptura no pensamento ocidental e fundador da Ciência Política, o autor resgata o pensamento greco-latino para embasar as suas reflexões acerca das temáticas políticas de seu tempo. O pensamento de Maquiavel se tornou clássico por duas razões centrais: a ampla difusão no Ocidente e abrangência de largas temporalidades. Maquiavel aborda as cons- tantes disputas de poder entre as cidades-Estado da península itálica, mostrando como a instabilidade e a imprevisibilidade eram inerentes à realidade contemporânea. Para Maquiavel, política e história também deveriam ser analisadas em conjunto, já que o poder organizava historicamente as relações econômicas e sociais entre os indivídu- os, via exercício da dominação e a busca do consenso. O autor desenvolve, nas duas obras, a ideia de que o corpo político se divide ante o desejo de dominação e de ser dominado, o que se nota, por exemplo, no relato dos conflitos entre as potências europeias da época e as cidades do norte italiano. Finalmente, demonstra que a política se desenrola na dicoto- “Que estranho desejo é ambicionar o poder e perder a liberdade” Francis Bacon, filósofo inglês 30 mia essência versus aparência, mostrando como a política possui uma importante dimen- são simbólica na construção de narrativas. A noção de cidadania desenvolvida por Maquiavel seria transformada na França, dois séculos depois. Jean Jacques Rousseau foi o mais notável dos filósofos do período Ilu- minista e o principal representante do republicanismo de matriz francesa. Em “O Espírito das Leis”, Rousseau ataca a Igreja e a instituição monárquica pelas desigualdades e pela miséria. Para conter a proliferação de uma sociedade profundamente desigual, prega um ideal democrático, rejeitando o estado histórico, construído desde tempos imemoriais, ao qual atribui a culpa pela desigualdade dos homens. Disseminador de ideais de coletividade e de cooperação, Rousseau propõe a com- posição de um novo Estado, não-tirano, opressor e fonte de desigualdades, masde um organismo protetor, socialmente justo, sem privilégios e que tenha no povo a fonte de todo e qualquer poder. No fundo, a função deste novo Estado, pautado pela justiça e pelos direitos de todos os homens, era alcançar algo próximo da perfeição e da igualdade. Rousseau conecta, portanto, a formação da liberdade do cidadão à soberania po- pular. Há, portanto, uma possível aproximação entre o pensamento de Rousseau e o de Maquiavel, na medida em que ambos procuram afirmar a necessidade de legitimação do poder. Na visão de Rousseau, o homem não é um ser naturalmente sociável, mas socializá- vel pelas circunstâncias e pela luta para sobreviver. Em “Discurso da origem da desigualdade entre os homens”, o autor argumenta que os direitos se formam a partir de um contrato de submissão dos homens a um poder. Nes- sa linha, ataca a noção de direitos naturais precedente, afirmando a necessidade de pac- tuação do corpo político para a afirmação das liberdades. Nesse sentido, sua obra trata da problemática do “contrato social”, associada à ideia de república e de igualdade entre os homens. Para Rousseau, a cidadania pressupõe a existência de simetria e de uma “vontade geral” entre os cidadãos, valorizando, dessa forma, o controle democrático e a prestação de contas. A noção contemporânea de cidadania, em um contexto democrático, se valeu do debate de ideias durante a formação histórica das instituições republicanas dos Estados Unidos da América. Texto clássico da Ciência Política, ‘O Federalista” (1788) consagrou-se como um conjunto de artigos escritos por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, três dos Pais Fundadores da recém independente nação norte-americana. Além de consagrados partícipes do processo de emancipação política do país, Ha- milton, Madison e Jay tiveram atuação destacada no processo de elaboração do texto constitucional dos Estados Unidos, no bojo da conclusão da Guerra da Independência e dos arranjos para a estabilização política interna. O objetivo da publicação desses artigos foi explicitar e debater os temas centrais discutidos no processo constituinte, em especial a centralização, a coordenação e o controle do poder. James Madison, em “O Federalista”, aborda a temática do controle do poder político e da contenção das ambições humanas. Advoga, nessa direção, a necessidade de instituir mecanismos capazes de afastar as tiranias e assegurar a existência das liberdades dentro do Estado, tornando-se um dos principais teóricos da existência de “checks and balances” (freios e contrapesos) entre as diversas instâncias e poderes. A teoria liberal da cidadania nutriu-se das lições de Montes-quieu e da seiva madisoniana para consolidar o entendi- mento que consagrou a moderna tripartição de poderes do Estado. Em breves palavras, somente o poder poderia ser contido por outro poder, numa sucessão de mecanismos capazes de refrear o ímpeto autoritário dos governantes. Madi- son dialoga com a teoria do “governo misto”, existente na Inglaterra liberal do século XVIII, em que as funções governativas eram compartilhadas pelos três principais grupos sociais, 31 favorecendo a harmonia, a convivência civil e a liberdade. Fruto de uma rebelião de cidadãos armados contra uma monarquia, nos Estados Unidos estavam ausentes as condições para a existência desse modelo de organização social e política. Madison argumentava que o elemento inspirador da nova nação também não deveria ser a “virtude” das experiências republicanas da Antiguidade Clássica. Contra- riamente ao “governo misto” e à “virtude” dos clássicos da Grécia, ancorava-se na teoria da “tripartição de poderes” de Montesquieu, que defendia uma divisão das atribuições do poder de maneira horizontal entre três braços independentes e autônomos de governo: o Legislativo, responsável pela edição de normas; o Executivo, responsável pela sua aplica- ção; e o Judiciário, responsável por dirimir conflitos. A separação de poderes garantiria a autonomia, o equilíbrio e a liberdade, dissol- vendo o poder absoluto em várias mãos. Madison preconizava a necessidade de se conter o mal das facções através do seu controle, não da sua eliminação. Compreendendo a sua natureza e risco, o autor buscava alguma forma de lidar com as diferentes forças sociais e políticas nascidas da diversidade de ideias, crenças, opiniões e interesses, mas que pode- riam ameaçar a estabilidade política dos governos e a existência dos regimes. Madison entendia que a eliminação das facções era algo incompatível com um siste- ma de liberdades, cuja missão principal do governo era salvaguardar. Um ponto central da visão madisoniana, nesse sentido, era a necessidade de equacionar a vontade da maioria com os direitos das facções minoritárias, evitando que a primeira esmagasse as segundas. A existência de mecanismos de proteção das minorias do abuso de poder era essencial para evitar a tirania. James Madison rompe com a tradição dos governos populares da Antiguidade ao defender o modelo de democracia representativa, em que as facções estariam represen- tadas por um corpo político de cidadãos preparados para governar. A ampliação da base territorial de governo também seria importante. Por outro lado, a existência de governos representativos não eliminaria o mal das facções, tendo em vista a existência do risco de degeneração do poder em armadilhas faccionárias capazes de levar à captura do governo por interesses contrários à vontade geral. Desta forma, o remédio proposto não é a eliminação das facções, mas a sua multipli- cação, de modo a pulverizar o poder num grande número de forças facciosas de alcance local e limitado, cada uma delas incapaz de ameaçar a existência da liberdade. O objetivo é a neutralização das facções entre si, numa fórmula semelhante à teoria dos “checks and balances”. O interesse geral, resume Madison, se alcançaria através da coordenação dos interesses em conflito pelos poderes que interagem entre si, filtrando os excessos e com- patibilizando a vontade da maioria com os direitos das minorias. A atualidade dos textos dos autores norte-americanos repousa em sua capacidade de pensar temas fundamentais da sociedade política moderna. 32 3.2 CIDADANIA E DIREITOS FUNDAMENTAIS É bom termos em mente como se formou o conceito de cidadania tal qual conhecemos hoje. Um esquema mnemônico é uma excelente ferramenta para visualizarmos como esta ideia se formou. Tomemos nota das coordenadas: • Itália - Maquiavel: essência versus aparência. • França - Jean Jacques Rousseau: ideais democráticos e de cooperação. • Estados Unidos - Alexander Hamilton, James Madison e John Jay: suprimir tirania e garantir liberdades dentro do Estado. • Atualmente, o conceito de cidadania passa pela ideia da representatividade. O direito con- temporâneo adota essa visão. • Para um futuro próximo, já existem rumores de uma cidadania mundial. “Cidadania, hoje, tem um sentido ético-filosófico de acesso à dignidade da pessoa humana”. Entenda mais sobre a relação entre política e cidadania assistindo ao vídeo “Política e Cida- dania com Mario Sergio Cortella”. Disponível em: https://bit.ly/382nxKC. Acesso em: 07 de fev. de 2021. FIQUE ATENTO O conceito de cidadania não teve difusão uniforme no Ocidente. No ideário iluminis- ta, ser cidadão significava ter a posse de direitos políticos uniformes e iguais. A ideia era a de que todos eram iguais perante a lei. Na concepção do universalismo moderno, existe a ideia de igualdade como um ponto de partida. O papel do Estado é reduzido; ele confere a cidadania e define os direitos em abstrato. A Revolução Francesa trouxe como conquista a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. Nessa concepção, o Estado não atrapalha as relações entre os particulares. O Estado reconhece os direitos individuais, mas adota um papel de definir o que é o espaço da liberdade. O Estado reconhece o direito e se abstém de interferir nisso. Atribui direitos ao indivíduo e isso tem impactossobre a concepção de cidadania. No discurso li- beral há uma igualdade formal. Por exemplo, o voto de cada cidadão tem o mesmo valor, independentemente de sua condição social ou financeira. Na concepção liberal de cidadania está presente a ideia da representatividade. O in- divíduo pertence a uma ordem soberana e é esta ordem que o reconhece como cidadão. Essa concepção é orientada por critérios político-jurídicos constitucionalizados. No Direito contemporâneo encontraremos concepções que afirmam essa ideia, que é moderna. Nesse sentido, cidadão é aquele que é capaz de votar ou que está habilitado para receber votos. Votar e ser votado é o que define a condição de cidadão. No entanto, será que essa concepção é suficiente para a realização do ideário democrático? Será que é su- ficiente para atender às demandas sociais? A concepção moderna de cidadania se baseia em valores do ideário iluminista. Em primeiro lugar, não considera as diferenças concretas entre as pessoas. Assim, seria sufi- ciente o afastamento do Estado para que sejam realizados os valores sociais. Em segundo lugar, não considera as oposições existentes dentro da própria sociedade. Bastaria a igual- 33 dade de fato, sem considerações sobre as desigualdades de fato que existem nas ruas. Na concepção tradicional de cidadania, o Estado concentra em si o poder da violên- cia legitimada. Os indivíduos, por sua vez, têm uma participação política periférica. Onde está presente o Estado, não haveria espaço para o indivíduo. A participação política, nessa concepção liberal, seria restrita a ocasiões determinadas nas quais o cidadão é chamado a votar. A realização da cidadania, portanto, dependeria de formalismos e burocracias e há um espaço muito pequeno para participação. Do mesmo modo, é o Estado quem definiria os direitos do cidadão, numa relação hierárquica entre quem dita as regras e quem obede- ce. Essa visão vem sendo solapada por uma série de ineficácias e déficits de atuação do Estado de Direito. Em seu lugar, tem-se construído uma nova concepção de cidadania, com atuação proativa na construção dos espaços sociais. A cidadania, nessa concepção, pertenceria à sociedade civil e seria exercida como atividade realizadora de mecanismos que permitissem o acesso a direitos fundamentais. Há a ideia de efetividade de poucos bens ao invés da universalidade de muitos direitos. O que se valoriza é a experiência prag- mática de justiça, provida não apenas pelo Estado, mas por organizações do Terceiro Setor. Diante da incapacidade do Estado de atendar às necessidades sociais, os atores so- ciais exerceriam papel auxiliar no provimento de bens públicos. A nova ideia social rompe o verticalismo do poder. Há um horizontalismo no qual a sociedade assume o papel do Estado nas políticas sociais. A noção de cidadania não se baseia mais em parâmetros formais da teoria tradi- cional. Cidadania, hoje, tem um sentido ético-filosófico de acesso à dignidade da pessoa humana. O Estado não é suficiente como agente produtor de justiça e como promotor do bem-estar social. Em um contexto de esvaziamento do papel agregador do estado, são necessários outros agentes na afirmação da cidadania e na garantia de acesso a condições dignas de vida. Apesar dos padrões cada vez mais individualistas de comportamento moral, respon- sável por certa apatia global diante das injustiças, da miséria e da guerra, há reações im- portantes em curso no sentido de ampliar o engajamento e a participação da sociedade na vida pública. A democracia é o espaço privilegiado de exercício da cidadania. Administra os inte- resses gerais da coletividade e aperfeiçoa a racionalidade pública. Essa problemática cons- titui fonte de preocupação para filósofos, antropólogos, cientistas políticos, sociólogos e estudantes de todas as áreas. O atual estágio de evolução humana consegue avançar, pela emergente engenha- ria genética, até mesmo na manipulação dos caracteres hereditários da constituição da espécie. Há enorme risco de que se introduzam na natureza humana, modificações que suprimam ou significativamente reduzam as suas características transcendentes, criando condições para que se perpetue esse intransitivo consumismo tecnológico de um novo tipo humano, cuja descartabilidade passe a fazer parte de sua natureza. 34 3.3 A CIDADANIA NO MUNDO GLOBALIZADO A ideia de cooperação norteia a nova sociedade global. A busca da resolução de problemas comuns da humanidade induz às nações a ampliar o compartilhamento de informações e a procurar caminhos para a superação de flagelos comuns como a fome, as guerras, a pobreza e a miséria. Essa interdependência entre Estados nacionais também trouxe novos desafios para a sociedade civil em âmbito internacional. Com a diluição da soberania e a interconexão entre as economias, os Estados perderam o monopólio do seu poder de balizar a vida polí- tica e econômica. Nesse sentido, amplia-se, cada vez mais, o espaço de ação dos cidadãos na esfera pública para expressar suas ideias e seus interesses, intercambiando informa- ções e buscando alcançar objetivos comuns. O crescimento das Organizações Não Governamentais, em escala mundial, é uma expressão dessa abertura do espaço público para novos atores não estatais. Cada vez mais, eles desempenham papéis relevantes nas sociedades, interferindo na política e na econo- mia de diversas formas. A globalização econômica e a revolução tecnológica fortaleceram o papel dessas instituições nas mais variadas searas da vida das nações. O contato cada vez mais estreito entre cidadãos de várias nacionalidades e a coin- cidência de interesses entre povos que vivem em espaços políticos distintos, pavimenta o caminho para o surgimento de uma verdadeira sociedade global e de uma autêntica cida- dania mundial. Portanto, hoje já se pode falar no surgimento de um sentimento cidadão em escala planetária, alavancado pelas novas tecnologias, pelas ferramentas de comuni- cação, pelas redes sociais e pelo poder cada vez maior das organizações não governamen- tais. O surgimento de uma governança global também impacta na formação do sen- timento de cidadania. Organizações não governamentais, mais do que os Estados e as empresas, conseguem mobilizar os cidadãos em defesa dos interesses de certas pautas políticas, econômicas e sociais: o meio ambiente, os direitos humanos, o desarmamento, o comércio justo, o respeito aos animais, a defesa de minorias etc. Essas organizações influenciam não apenas as pautas políticas nacionais, mas tam- bém na agenda das organizações internacionais. Um exemplo dessa participação da so- ciedade civil tem sido observado nas conferências internacionais sobre ambiente e susten- tabilidade, como a Rio-92, a Rio +20 e a Conferência de Paris, nas quais o envolvimento de grupos de ambientalistas, empresários, trabalhadores, acadêmicos e cientistas tem sido cada vez maior. Pautas como meio ambiente e direitos humanos atravessam as fronteiras e aproximam os cidadãos. São temas que possuem uma dimensão local, mas também global, gerando a mobilização da cidadania. Como lidar com os desafios da cidadania global sem instituições adequadas para balizá-los? A cidadania nasceu como um conceito inerente à ordem interna dos Estados, mas se torna cada vez mais atrelado a uma perspectiva global. A formação de uma opinião pública mundial interconectada com os desafios do presente traz grandes dilemas para a democracia e para a governabilidade contemporâneas. A fraqueza dos mecanismos decisórios e a ausência de espaços para a atuação da sociedade civil organizada é um problema. Inexiste, por exemplo, um parlamento mundial que vocalize as vozes dos cidadãos do mundo. Da mesma forma, não há um poder mun- 35 dial capaz de implementar decisões coletivas de forma coesa e organizada no espaço ter- restre. A diluição da soberania dos Estados e o enfraquecimento do poder das instituições nacionais, ao mesmo tempo em que abre espaço para a atuação da sociedadecivil, não traz soluções para os novos paradigmas da sociedade internacional. Nesse sentido, surge a necessidade de institucionalização da cidadania e de buscar soluções políticas para lidar com os desafios da globalização econômica e da revolução tecnológica. O sistema de governança global se torna cada vez mais complexo: Estados nacionais, organizações governamentais, empresas transnacionais, organizações não go- vernamentais, imprensa, indivíduos etc. Há uma pluralidade de instituições que interagem em escala planetária e que interferem na formação de uma cidadania mundial. Buscando superar os paradigmas tradicionais de funcionamento dos Estados nacio- nais, as organizações supranacionais desenvolveram mecanismos institucionais de gover- nança regional, como parlamentos e tribunais, de modo a abrigar a vontade dos cidadãos numa escala territorial maior. O problema central da governabilidade em escala mundial é o da legitimidade das instituições. A ideia de legitimidade se relaciona com a noção de representação do poder, de defesa dos direitos fundamentais e de segurança jurídica. Em outras palavras, a justi- ficação do poder se baseava na capacidade do Estado de assegurar segurança, justiça, ordem, paz e liberdade para que os cidadãos buscassem viver suas vidas. O conceito de cidadania vem sendo elaborado e aprimorado ao longo dos anos. Atualmen- te, com o advento da globalização, favorecido pelo avanço e pelo acesso da tecnologia de in- formação, percebemos que a distância entre países foi encurtada. Com algumas exceções, a maioria das pessoas do mundo inteiro sabe o que se passa ao redor do globo. Com isso, uma nova faceta se apresenta: a cidadania mundial. Esta nova versão surge com a movimen- tação e interação cada vez maior de setores do governa mundial, como os chefes de Esta- do, as Organizações Não Governamentais, os empresários, os proprietários dos veículos de comunicação e os próprios cidadãos. A ideia de governabilidade mundial passa pelo proble- ma da legitimação das instituições internacionais e pelos conflitos da soberania nacional. Situações delicadas podem surgir nesse contexto. Um tribunal ou um parlamento mundial poderia interferir em questões, por exemplo, políticas de um determinado país? Como ficaria a soberania nacional? Tais instâncias governamentais internacionais poderiam num futuro próximo estabelecer uma nova configuração de cidadania que contemple todos os habitan- tes do planeta de forma igualitária? VAMOS PENSAR? Em um mundo cada vez mais marcado pela produção de riqueza em escala gigan- tesca e de intensos fluxos financeiros, os Estados nacionais perderam a capacidade de as- segurar desenvolvimento econômico, reduzir as desigualdades sociais e promover o bem- -estar coletivo. A intensificação da globalização deu ênfase aos processos de integração econômica e política, mas não avançou adequadamente no que diz respeito à ampliação dos espaços de participação democrática em escala mundial. Os Estados nacionais, portanto, não são mais capazes de assegurar a cidadania em escala global. Com a globalização e o aumento da interdependência, o cumprimento de suas funções tradicionais - garantir a paz, a segurança, a liberdade e o bem-estar – tem sido cada vez mais delegada e compartilhada por instituições intergovernamentais e suprana- cionais. Com a ampliação das assimetrias entre as nações desenvolvidas e em desenvol- 36 vimento, é preciso cada vez mais pensar em mecanismos de redução das desigualdades socioeconômicas, base do exercício da cidadania. A globalização trouxe prosperidade, mas não oportunidades iguais para todos. Am- pliou a escala dos avanços tecnológicos, da integração regional e da produção de bens e serviços, mas não equalizou o acesso a eles. A ideia da democratização dos espaços globais de poder permanece ainda muito distante. Somente os Estados nacionais foram capazes, até hoje, de colocar em prática sistemas de governança democráticos. Embora busquem ampliar os espaços de poder para a sociedade civil global, as ins- tituições internacionais ainda não conseguiram reproduzir, em escala global, os procedi- mentos institucionalizados que os Estados nacionais forjaram ao longo da História. Dessa forma, mesmo diante de um processo de globalização da cidadania, os Estados ainda per- manecem como instâncias de intermediação entre o interno e o externo, entre o nacional e o internacional. Não se pode desprezar, ademais, o seu papel de conferir legitimidade aos meca- nismos de governabilidade global. Como são responsáveis por administrar o território e a população dos Estados, suas funções clássicas ainda permanecem. Nessa direção, aos Estados cabe assegurar que a pluralidade, a diversidade e a responsabilidade estejam pre- sentes na governança global. A cidadania não se limita mais aos Estados, mas ainda depende deles. Somente a legitimidade e a representatividade conferida por suas instituições garantem que os ci- dadãos possam participar ativamente da esfera pública. Os Estados, quando dotados de mecanismos de governança democrática, ampliam as possibilidades de controle das so- ciedades sobre o seu destino. Eles são, portanto, expressões políticas ainda relevantes para a viabilização do exercí- cio da cidadania. Sem Estado não há garantia de direitos. E sem direitos não há capacidade de exercício da cidadania. Não existe no horizonte histórico do século XXI a possibilidade de se pensar em mundo sem Estados e no qual os cidadãos possam exercer uma cidadania global independente das lealdades nacionais. A ascensão dos indivíduos como atores globais e no exercício de uma cidadania glo- bal é um fenômeno novo. Os indivíduos, contudo, não existem por si mesmos, indepen- dentes de uma comunidade política mundial ou de várias comunidades políticas nacio- nais. Em última instância, os Estados só existem como instituições políticas, para proteger os indivíduos que nele habitam. Portanto, são eles a base da autoridade estatal. A própria ampliação das salvaguardas aos direitos fundamentais dos indivíduos cria as bases para a erosão posterior da autoridade do Estado. Aos indivíduos caberia, assim, não apenas exercer seus direitos e deveres no âmbito interno, mas fiscalizar os Estados em suas relações exteriores. A cidadania, nesse sentido, é o espaço por excelência do exercício do poder do indivíduo em face do Estado ou dos Estados. A existência de uma comunidade internacional reforça a ideia de uma cidadania glo- bal. Comunidades pressupõem não apenas uma coletividade, mas o compartilhamento de ideias e de valores acerca do funcionamento da sociedade. A comunidade se baseia na busca de uma identidade comum e da coincidência de visões de mundo sobre a organiza- ção do espaço global. O ideal de uma sociedade cosmopolita, na qual os Estados perdem a sua razão de ser permanece utópica e distante. Embora os direitos humanos tenham se tornado um tema cada vez mais central para a comunidade internacional de Estados, ainda há muito o que caminhar para que haja o reconhecimento do ser humano como o começo e o fim de todas as ações políticas nacionais e internacionais. Ou seja, a busca da salvaguarda da vida humana, em todas as 37 suas esferas e dos meios de defender a liberdade, a igualdade e a fraternidade dos indiví- duos permanece como um objetivo ideal de uma cidadania planetária. Matias (2014) argumenta que a comunidade global permanece como um objetivo possível no mundo contemporâneo, graças à globalização, à revolução tecnológica e aos fenômenos da integração econômica e política. A existência de ameaças globais à huma- nidade, como as mudanças climáticas, o terrorismo, as doenças e a miséria também cons- tituem, na visão do autor, um poderoso instrumento de coesão mundial para turbinar uma cidadania planetária. A viabilidade dessa cidadania, no entanto, depende da existência de instituições e de espaços de poder compartilhados. A criação de uma sociedade civil global, nesse contex-to, fortalece esse ideal comunitário e direciona a humanidade para o reconhecimento das ameaças e dos interesses comuns (MATIAS, 2014). Quanto mais fortes, organizadas e legí- timas forem essas instituições, mais força elas terão no mundo contemporâneo. A forma mais adequada de balizar expectativas e de encontrar soluções comuns para os problemas da humanidade é tornar a cidadania cada vez mais forte e institucionalizada. Diante da ausência de instituições, verdadeiramente, representativas e democráti- cas em âmbito mundial, os Estados ainda são chamados a atuar como pontes entre o local e o global no exercício de uma cidadania global. Na visão de Matias, “[...] se uma comunida- de global vier um dia existir, ela deve ser acompanhada de instituições democráticas e do respeito à pluralidade, para assegurar a legitimidade de seu poder” (MATIAS, 2014, p. 519). Dessa forma, somente quando as instituições globais forem capazes de assegurar, com a mesma eficiência dos Estados, os direitos e as garantias fundamentais dos indivíduos, é que se poderá pensar numa esfera cidadã verdadeiramente global, legítima, plural, repre- sentativa e democrática. Para aprofundar seus conhecimentos acerca do conteúdo abordado nesta unidade, sugeri- mos a leitura da coletânea de textos “Cidadania: O novo conceito jurídico e a sua relação com os direitos fundamentais individuais e coletivos” coordenada por Alexandre de Mo- raes e Richard Pae Kim (2013). Nesta obra coletiva os autores abordam as diversas faces da cidadania no mundo contemporâneo. Em consonância com a afirmação do Estado Demo- crático de Direito e das liberdades fundamentais, conforme estudamos nesta unidade, o livro permite um aprofundamento nos temas dos modos de aquisição e de perda da cidadania, da relação entre cidadania e nacionalidade e da conexão entre democracia e direitos hu- manos. O livro permite ainda explorar os problemas globais para a afirmação da cidadania, seja dentro dos Estados ou em experiências de integração supranacional, caso da União Europeia. l. Disponível em: https://bit.ly/3e1kAh2. Acesso em: 12 de jan. de 2021. BUSQUE POR MAIS 38 Dicotomia: divisão em dois termos. Processo constituinte: redação de uma constituição. Tirania: governo em que a força prevalece sobre o direito. Salvaguardar: garantir, proteger, afastar o perigo. Degeneração: piora do estado inicial, perda das características e propriedades. Faccionárias: está ligado às facções, ou seja, aos grupos de indivíduos unidos por uma mesma causa ou luta. Formalismo: rigoroso, metódico, regrado. Caracteres: modo de cada indivíduo agir e reagir; personalidade, aspecto indivi- dual. Hereditários: recepção e doação por sucessão. Intransitivo: aquilo que não pode ser transmitido ou repassado para o outro. Interconexão: relação entre várias coisas, vários sistemas ou várias ideias. Balizar: guiar, orientar. Governança: ato de governo, governar. Decisórios: tomada de decisões. GLOSSÁRIO 39 FIXANDO O CONTEÚDO 1. (Enem/2017) O conceito de democracia, no pensamento de Habermas, é construído a partir de uma dimensão procedimental, calcada no discurso e na deliberação. A legitimi- dade democrática exige que o processo de tomada de decisões políticas ocorra a partir de uma ampla discussão pública, para somente então decidir. Assim, o caráter deliberativo corresponde a um processo coletivo de ponderação e análise, permeado pelo discurso, que antecede a decisão. VITALE, D. Jürgen Habermas, modernidade e democracia deliberativa. Cadernos do CRH (UFBA), v. 19, 2006 (adaptado). O conceito de democracia proposto por Jürgen Habermas pode favorecer processos de inclusão social. De acordo com o texto, é uma condição para que isso aconteça o(a): a) Participação direta periódica do cidadão. b) Debate livre e racional entre cidadãos e Estado. c) Interlocução entre os poderes governamentais. d) Eleição de lideranças políticas com mandatos temporários. e) Controle do poder político por cidadãos mais esclarecidos. 2. (Enem/2016) A democracia deliberativa afirma que as partes do Conflito político devem deliberar entre si e, por meio de argumentação razoável, tentar chegar a um acordo sobre as políticas que seja satisfatório para todos. A democracia ativista desconfia das exortações à deliberação por acreditar que, no mundo real da política, onde as desigualdades estrutu- rais influenciam procedimentos e resultados, processos democráticos que parecem cum- prir as normas de deliberação geralmente tendem a beneficiar os agentes mais poderosos. Ela recomenda, portanto, que aqueles que se preocupam com a promoção de mais justiça devem realizar principalmente a atividade de oposição crítica, em vez de tentar chegar a um acordo com quem sustenta estruturas de poder existentes ou delas se beneficia. YOUNG, I. M. Desafios ativistas à democracia deliberativa. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 13, jan-abr. 2014. As concepções de democracia deliberativa e de democracia ativista apresentadas no texto tratam como imprescindíveis, respectivamente: a) A decisão da maioria e a uniformização de direitos. b) A organização de eleições e o movimento anarquista. c) A obtenção do consenso e a mobilização das minorias. d) A fragmentação da participação e a desobediência civil. e) A imposição de resistência e o monitoramento da liberdade. 3. (Enem/2018). A tribo não possui um rei, mas um chefe que não é chefe de Estado. O que significa isso? Simplesmente que o chefe não dispõe de nenhuma autoridade, de nenhum poder de coerção, de nenhum meio de dar uma ordem. O chefe não é um comandante, as pessoas da tribo não têm nenhum dever de obediência. O espaço da chefia não é o lugar do poder. Essencialmente encarregado de eliminar conflitos que podem surgir entre in- divíduos, famílias e linhagens, o chefe só dispõe, para restabelecer a ordem e a concórdia, 40 do prestígio que lhe reconhece a sociedade. Mas evidentemente prestígio não significa poder, e os meios que o chefe detém para realizar sua tarefa de pacificador limitam-se ao uso exclusivo da palavra. CLASTRES, P. A sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro. Francisco Alves, 1982 (adaptado). O modelo político das sociedades discutidas no texto contrasta com o do Estado liberal burguês porque se baseia em: a) Imposição ideológica e normas hierárquicas. b) Determinação divina e soberania monárquica. c) Intervenção consensual e autonomia comunitária. d) Mediação jurídica e regras contratualistas. e) Gestão coletiva e obrigações tributárias. 4. (Enem/2016). Quanto mais complicada se tornou a produção industrial, mais numero- sos passaram a ser os elementos da indústria que exigiam garantia de fornecimento. Três deles eram de importância fundamental: o trabalho, a terra e o dinheiro. Numa sociedade comercial, esse fornecimento só poderia ser organizado de uma forma: tornando-os dispo- níveis à compra. Agora eles tinham que ser organizados para a venda no mercado. Isso es- tava de acordo com a exigência de um sistema de mercado. Sabemos que em um sistema como esse, os lucros só podem ser assegurados se garante a autorregulação por meios de mercados competitivos interdependentes. POLANYI, K. A grande transformação: As origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000 (Adaptado). A consequência do processo de transformação socioeconômica abordada no texto é a: a) Expansão das terras comunais. b) Limitação do mercado como meio de especulação. c) Consolidação da força de trabalho como mercadoria. d) Diminuição do comércio como efeito da industrialização. e) Adequação do dinheiro como elemento padrão das transações. 5. (Enem/2016). Hoje, a indústria cultural assumiu a herança civilizatória da democracia de pioneiros e empresários, que tampouco desenvolvera uma fineza de sentido para os des- vios espirituais. Todos são livres para dançar e para se divertir, do mesmo modo que, desde a neutralização histórica da religião, são livres para entrar em qualquer uma das inúmeras seitas. Mas a liberdade de escolhada ideologia, que reflete sempre a coerção econômica, revela-se em todos os setores como a liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa. ADORNO, T HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. A liberdade de escolha na civilização ocidental, de acordo com a análise do texto, é um(a): a) Legado social. b) Patrimônio político. c) Produto da moralidade. d) Conquista da humanidade. e) Ilusão da contemporaneidade. 41 6. (FCC, 2018, adaptada). No que concerne à relação entre Direito e Estado, tal como a te- matiza Hans Kelsen, é correto afirmar que o Estado: a) É uma ordem jurídica relativamente centralizada. b) É uma entidade metajurídica que precede a criação do Direito. c) Considerado democrático e somente este é legítimo para produzir normas jurídicas, pois reflete a justiça. d) É um grupo de pessoas unidas para a consecução de interesses comuns e o Direito é um corpo normativo que reflete a moral do povo. e) E Direito são duas coisas completamente distintas e não necessariamente relacionadas. 7. (ENEM/2019) TEXTO I Os segredos da natureza se revelam mais sob a tortura dos experimentos do que no seu curso natural. BACON, F. Novum Organum, 1620. In: HADOT, P. O véu de Ísis: ensaio sobre a história da ideia de natureza. São Paulo: Loyola, 2006. TEXTO II O ser humano, totalmente desintegrado do todo, não percebe mais as relações de equi- líbrio da natureza. Age de forma totalmente desarmônica sobre o ambiente, causando grandes desequilíbrios ambientais. GUIMARÃES, M. A dimensão ambiental na educação. Campinas: Papirus, 1995. Os textos indicam uma relação da sociedade diante da natureza caracterizada pela: a) Objetificação do espaço físico. b) Retomada do modelo criacionista. c) Recuperação do legado ancestral. d) Infalibilidade do método científico. e) Formação da cosmovisão holística. 8. (ENEM/2019) O cristianismo incorporou antigas práticas relativas ao fogo para criar uma festa sincrética. A igreja retomou a distância de seis meses entre os nascimentos de Jesus Cristo e João Batista e instituiu a data de comemoração a este último de tal maneira que as festas do solstício de verão europeu com suas tradicionais fogueiras se tornaram “fogueiras de São João”. A festa do fogo e da luz no entanto não foi imediatamente associada a São João Batista. Na Baixa Idade Média, algumas práticas tradicionais da festa (como banhos, danças e cantos) foram perseguidas por monges e bispos. A partir do Concílio de Trento (1545-1563), a Igreja resolveu adotar celebrações em torno do fogo e associá-las à doutrina cristã. CHIANCA, L. Devoção e diversão: expressões contemporâneas de festas e santos católicos. Revista Anthropológica, n. 18, 2007 (adaptado). Com o objetivo de se fortalecer, a instituição mencionada no texto adotou as práticas des- critas, que consistem em: a) Promoção de atos ecumênicos. 42 b) Fomento de orientações bíblicas. c) Apropriação de cerimônias seculares. d) Retomada de ensinamentos apostólicos. e) Ressignificação de rituais fundamentalistas. 43 CIDADANIA NO BRASIL UNIDADE04 44 4.1 AFIRMAÇÃO DA IDEIA DE CIDADANIA NO BRASIL “Um povo que não conhece seu passado não enxerga o futuro” Edmund Burke A história da cidadania no Brasil é indissociável da sua formação social e política. Por um longo período, as elites brasileiras pensaram o Brasil como um “país sem povo”, ideia que remonta à colonização, entre os séculos XVI e XVIII, e perpassa os processos de independência e de construção do Estado, no século XIX. Após três séculos de colonização (XVI, XVII e XVIII), quase setenta anos de período monárquico e meio século de um sistema político controlado pelas elites agrárias, o Estado nacional começou a se transformar, na esteira da industrialização, da modernização e da urbanização do país. Tendo em vista o atraso de Portugal na absorção das ideias modernizantes euro- peias, a ressonância do debate entre a secularização da política e as tradições medievais re- ligiosas também chegou tardiamente ao Brasil. O pensador italiano Maquiavel (1469-1527) elabora a ideia do Estado como um ente político permanente e autônomo, independente da pessoa do monarca. O fato de sua obra “O Príncipe”, publicada orginalmente em 1532, só ter sido traduzida para a Língua Portuguesa no século XVIII, durante o período em que o Marquês de Pombal (1699-1792) esteve à frente do governo português, demonstra uma tardia inserção portuguesa no pensamento ocidental moderno. Ao passo que nas colônias de povoamento inglesas na América do Norte receberam as influências do pensamento político moderno, gênese das reflexões que levaram à fun- dação da democracia norte-americana, a realidade política da América ibérica se moldou ao embate tardio entre o medievalismo e a modernidade que transcorria nas respectivas metrópoles (WEFFORT, 2011: 297-98). Fruto desse contencioso entre as tradições e a mo- dernidade em Portugal ao longo de três séculos, o Brasil-Colônia permaneceu distante do Iluminismo europeu até as últimas décadas século XVIII. É interessante ressaltar que a im- portação de obras da cultura erudita francesa e inglesa por membros da elite intelectual e religiosa ajudou a disseminar as ideias e os valores liberais na sociedade colonial, impulsio- nando episódios como a Inconfidência Mineira e a Conjuração Baiana. 45 Para entender a base da formação do pensamento de cidadania no Brasil O que pode ser chamado de pensamento moderno? Países modernos avançavam na cons- trução do conceito de cidadania, iniciado na Itália por Maquiável, que propunha entre tan- tas inovações, a separação entre o Estado e a Igreja. Assim como a Espanha, Portugal, no entanto, não acompanhou essa evolução no tempo em que ela ocorria. A obra “O Príncipe”, do escritor Maquiavel, que trata da forma como os governantes devem exercer o poder para conservá-lo, foi escrita no século XVI e traduzida para o português somente no século XVIII, pelo Marquês de Pombal. Duzentos anos de distância entre o surgimento da ideia de secula- rização do poder separaram Portugal dos demais países. Tal atraso refletiu na elaboração da consciência cidadã do povo Português e, consequentemente, do povo brasileiro, já que neste período o Brasil ainda era uma colônia de Portugal. FIQUE ATENTO Figura 1: Marques de Pombal, Claude Joseph Vernet (1766) Imagem disponível em: https://cutt.ly/xkb17S7. Acesso em 13 de fev. de 2021. No link acima você pode conhecer um pouco mais da história do homem que modernizou o Estado português e foi chamado por de impiedoso por muitas pessoas de sua época. O Iluminismo foi um movimento cultural e intelectual que ocorreu na Europa entre os séculos XVII e VIII, baseado na valorização da razão, da ciência e do conhecimento. Foi responsável pelo impulso às ideias liberais de afirmação dos direitos humanos e de separação de poderes, alicerces das democracias con- temporâneas. GLOSSÁRIO A tarefa da construção de um Estado nacional se iniciou com a transferência da Cor- te de D. João VI e do aparato administrativo metropolitano para o Rio de Janeiro. A separa- ção política de Portugal acelera a construção de um Estado ca¬paz de controlar e dominar o amplo território, dadas as ameaças constantes de rebeliões e movimentos separatistas. Os temas da abolição da escravidão e da representação política moveram as preocupações de José Bonifácio de Andrada e Silva, um dos articuladores da Independência, como a or- ganização do novo país. José Bonifácio simbolizava os compromissos liberais do processo de Independência, marcado pelas contradições de uma sociedade escravocrata e conser- vadora. A cidadania, nesse contexto estava restrita a uma pequena parcela da população brasileira que possuía condições econômicas de participar da vida política. O pensamento 46 A separação de poder entre Estado e Igreja ocorreu tardiamente em Portugal e na Espanha, em relação a outros países europeus, como França, Itália, Holandae Inglaterra. Estes países viveram o amplo crescimento das liberdades individuais e a contenção da tirania por meio da queda dos governos absolutistas. Portugal e Espanha, por outro lado, permaneceram por muito tempo ainda sob a influência do pensamento medieval, que pregava a obediência ao clero. Dessa forma, as colônias europeias receberam a influência de seus países coloni- zadores. As colônias inglesas situadas no norte da América, por exemplo, logo incorporaram o ideal reformado e democrático. Seguindo este raciocínio, em que escala esse atraso refle- tiu no processo de construção democrática nas colônias latino-americanas dominadas por portugueses e espanhóis? E no Brasil, qual influência desse atraso marcou a construção da democracia e da cidadania? Como os valores liberais chegaram ao Brasil e como eles foram aplicados aqui? VAMOS PENSAR? 4.2 A CIDADANIA NO IMPÉRIO político do Primeiro Reinado (1822-1931), da Regência (1831-1840) e do Segundo Reinado (1840-1889) foi marcado pela convivência entre conservadorismo e liberalismo. Os liberais, de um lado, buscavam uma inspiração em ideias cosmopolitas, universalistas e moralistas. Os conservadores, de outro, se embasavam numa leitura realista e pragmática dos fatos, orientados pela prudência, moderação e experiência. Durante todo o século XIX, a cidadania esteve restrita a uma elite de brasileiros. A Constituição de 1824 estabelecia requisitos de renda para que os brasileiros pudessem exercer o direito de voto e de se candidatar a cargos públicos. Esse critério econômico excluiu grande parte da população do processo de escolha de representantes nas insti- tuições políticas do Império. Sendo assim, a vida política brasileira era conduzida por uma elite letrada diminuta, concentrada na Corte e nas capitais das províncias, sendo a maior parte do povo excluído de qualquer possibilidade de participar do processo político. Durante a maior parte do século XIX, o pensamento político produzido pelas elites brasileiras correspondia às aspirações elementares de um país recém independente em busca de modelos de organização social, moral, política, jurídica e institucional. A tarefa da construção de um Estado nacional se iniciou com a transferência da Corte de D. João VI e do aparato administrativo metropolitano para o Rio de Janeiro. A separação política de Portugal acelera a construção de um Estado capaz de controlar e dominar o amplo terri- tório, dadas as ameaças constantes de rebeliões e de movimentos separatistas, tais como a Farroupilha (1835-1845). Os temas da abolição da escravidão e da representação política moveram as preocupações do cientista e político José Bonifácio de Andrada e Silva (1763- 1838), Patriarca da Independência, como homem de Estado. 47 4.3 CIDADANIA NA REPÚBLICA • Os liberais, de um lado, buscavam uma inspiração em ideias cosmopolitas, universalistas e moralistas. Os conservadores, de outro, se embasavam numa leitura realista e pragmática dos fatos, orientados pela prudência, moderação e experiência; • O voto censitário era baseado na valorização da renda e do patrimônio para que os cidadãos pudessem exercer seus direitos políticos. Somente brasileiros com maior extrato de renda es- tavam habilitados a votar e a e candidatar a cargos públicos FIQUE ATENTO O advento da República em 1889 não modificou esse quadro de restrição ao exer- cício da cidadania e dos direitos políticos. A substituição da Monarquia pelo novo regime não alterou as bases oligárquicas do Estado brasileiro. A vida política nacional prosseguiu controlada por uma oligarquia rural de fazendeiros de café e o acesso à cidadania conti- nuou restrito a uma parcela pequena de brasileiros. Se o pensamento político do Império gestaria os dois caminhos antagônicos para o alcance da modernidade política no Brasil, os pensadores “autoritários” da década de 1930 dariam continuidade à linhagem conser- vadora, reconhecendo o imperativo de um Estado material e simbolicamente forte para asseugurar o desenvolvimento nacional segundo os cânones do capitalismo moderno. A Revolução de 1930 trouxe à tona as reinvindicações dos tenentes acerca de um Estado forte e centralizado. Uma dessas principais reivindicações era a necessidade de fortalecer os meio de exercício dos direitos políticos. A falta de transparência do sistema político e eleitoral brasileiro era apontada como uma das causas do atraso brasileiro. As eleições eram apontadas como fraudulentas e as elites rurais eram vistas como sinônimo da manutençao de um sistema oligárquico que mantinha o país atrelado ao coronelismo. Nas décadas de 1920 a 1940, houve uma proliferação de estudos que buscavam analisar a formação do país e as suas transformações, numa interpretação global da história e da sociedade brasileiras (WEFFORT, 2011). Na obra “Raízes do Brasil” (1936), o historiador Sérgio Buarque de Holanda trata do distanciamento entre as instituições e a estrutura social ao longo da formação do país. Ao analisar o período colonial, o Império e a Primeira República, o ensaísta argumenta que a democracia e as ideias liberais não se naturalizaram em nossa terra, deformadas pelos caudilhismos locais e por uma cultura política personalista. Personalismo e caudilhismo são características de governos, regimes ou países nos quais as instituições do Estado são fracas e predomina a vontade pessoal do caudilho (líder político). FIQUE ATENTO 48 A emergência de uma sociedade industrial e urbana, que surge a partir da Revolu- ção de 1930, deixa em evidência o surgimento de camadas médias, num processo de mo- dernização pelo alto, controlado pelo Estado. A chamada “questão nacional” emerge com grande força num momento internacional de expansão dos imperialismos. Sob os efeitos da crise de 1929 e do colapso do sistema econômico agrário-exportador, base do sistema político liberal das oligarquias agrárias, a Revolução de 1930 estabeleceu os fundamentos de um país industrial e urbano. As ideias sobre cidadania alcançam um nível elevado de relevância para a ação polí- tica na segunda metade da década de 1940 e começo da década de 1950. O debate entre liberalismo e nacionalismo, com diversas variações de matizes, influenciou tanto o mundo intelectual, quanto o da prática política dentro das instituições do Estado. Diversos alinha- mentos, composições, rupturas e radicalizações entre pensadores e políticos marcariam essa disputa entre caminhos para o Brasil. Com a democratização do país em 1945, após a queda do regime ditatorial do Estado Novo, novas perspectivas se abriram para o desenvolvimento da cidadania política no Bra- sil. O sufrágio foi ampliado e surgiram novos partidos políticos. No debate ideológico dos anos 1950 e 1960 girava em torno de questões como urbanização, desenvolvimento, nacio- nalismo e ação do Estado para impulsionar o desenvolvimento (WEFFORT, 2011). As massas urbanas foram incorporadas ao sistema político por meio do surgimento de partidos com base sindical e popular, como o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Sob a vigência da República de 1946, a democracia brasileira adquiriu um grau mais elevado de institucionalização, com eleições periódicas e a alternância de poder entre os partidos políticos. A Constituição de 1946 ampliou ainda o grau de autonomia do Poder Ju- diciário e deu amplas prerrogativas ao Poder Legislativo. No entanto, o período 1946-1964 também foi marcado pela instabilidade política, com o suicídio de um chefe de Estado (Getúlio Vargas), a renúncia de outro (Jânio Quadros) e um golpe militar, em 1964. Foi uma experiência democrática importante, porém efêmera. A democracia brasileira avançou em termos eleitorais, mas foi subitamente interrompida por uma segunda ditadura que gol- peou a elite civil e os partidos políticos (WEFFORT, 2011) Dando continuidade ao projeto conservador e autoritário, nos moldes do Estado Novo, o Regime Militar integrou o país, mas ao custo do sacrifício das liberdades democrá-ticas e do aumento das desigualdades sociais. Houve alguns avanços no que toca à moder- nização econômica, aos investimentos na infraestrutura e à ampliação do mercado inter- no. Outro ponto positivo foi a ampliação dos direitos sociais, com a criação, por exemplo, do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). No entanto, a falta de eleições períodicas para presidente da República, a intervenção nos partidos políticos, a repressão política e a perseguição às oposições impediram que a democracia brasileira funcionasse normal- mente. Sem dúvida foi um período de retrocessos para o desenvolvimento das instituições e para o aprendizado democrático. A cidadania, em síntese, permaneceu refém do autori- tarismo, com a interdição do debate de ideais, do exercício dos direitos fundamentais e da contestação do regime. 49 4.4 CIDADANIA NA REDEMOCRATIZAÇÃO A sociedade brasileira demonstrou intensa maturidade e energia cívica ao conduzir o reencontro do país com a democracia durante o movimento das Diretas Já (1984). Apesar de não ter sido bem-sucedido em seu objetivo de eleger um presidente da República pela via direta na transição do regime militar para a democracia, a campanha nacional foi um importante marco na afirmação dos direitos políticos odos brasileiros. Após a redemocra- tização, a Assembleia Nacional Constituinte de 1988 refletiu a busca obstinada desta socie- dade por novos espaços de expressão e de defesa dos interesses coletivos. Em 1988, após dois anos de trabalho, foi promulgada a “Constituição Cidadã”, expressão do presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães. A Constituição é o documento político supremo de uma Nação. Contém a or- ganização dos elementos essenciais do Estado Nacional: a forma do Estado (República ou Monarquia), o sistema de governo (presidencialismo ou parla- mentarismo), o modo como o poder é adquirido (eleições diretas ou indiretas), o estabelecimento das instituições e os direitos fundamentais. GLOSSÁRIO A Constituição de 1988 é o vértice do sistema jurídico do país e a pedra angular em que se assenta o edifício do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, a República Federativa do Brasil constitui Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Além dos direitos e das garan- tias individuais, a Carta Magna busca assegurar aos cidadãos direitos como a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a educação, a saúde, a cultura e o meio ambiente equili- brado. Em suma, ela procura construir uma sociedade fraterna, pluralista, solidária e sem preconceitos, fundada na harmonia social e na garantia de oportunidades a todos. A República Federativa do Brasil também tem objetivos a serem perseguidos. É a primeira vez que uma Constituição assinala, especificamente, os objetivos do Estado Brasileiro. O Art. 3º da Constituição consagra estes objetivos fundamentais: I – construir uma sociedade digna, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a margi- nalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. FIQUE ATENTO 50 A Constituição brasileira também está comprometida, na ordem internacional, com a solução pacífica das controvérsias, a não intervenção nos assuntos internos de outros povos, a autodeterminação dos povos, a igualdade jurídica das nações, a cooperação entre os povos, a defesa dos direitos humanos, o respeito ao Direito Internacional e a busca da integração latino-americana. Trata-se de um documento com princípios e objetivos avan- çados que buscam ampliar os compromissos do Estado brasileiro com a democracia em todas as suas vertentes e com uma cidadania global. Em suma, a Constituição brasileira se compromete a efetivar um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Com o advento do Estado de Bem-Estar Social, os poderes pú- blicos assumiram o compromisso de garantir não apenas as liberdades individuais, mas contemplar também direitos sociais, econômicos e culturais previstos na Declaração Uni- versal dos Direitos do Homem de 1948 e nos tratados subsequentes. O grande drama das Constituições brasileiras, no entanto, é o seu não cumprimento na prática. A valorização da Constituição como documento primordial na defesa da cidadania e da democracia, entretanto, ainda é algo recentíssimo em nosso país. Afortunadamente, a consciência popular a respeito das vantagens da democracia tem crescido. Participar da vida política do país é fortalecer dentro de cada um a crença nos princípios democráticos. Nesse sentido, há uma via de mão dupla: o cidadão é beneficiado com os direitos e garan- tias e, em contrapartida, contribui com seus deveres para a harmonia e o funcionamento do Estado. Para aprimorar seu conhecimentos acerca do tema abordado nesta unidade leia o livro “So- ciedade, Cultura e Cidadania” de autoria de Bes e colaboradores (2018). Essa obra coletiva reúne um conjunto de ensaios que cobre cinco séculos da História Brasileira, desde o proces- so de construção do país durante a Colônia até a Redemocratização. Ao consultá-la como fonte complementar de estudos, você poderá compreender como se deu o processo de afir- mação da cidadania em um país marcado pela escravidão, pelo patrimonialismo e pela ex- ploração predatória dos recursos naturais. Tendo em vista a tardia consolidação do Estado e da Nação, a obra permite aos alunos compreender a trajetória cidadania à luz das disputas pelo poder e por diferentes projetos de país no Império e na República. Por fim, o livro traz interessantes análises sobe o Brasil contemporâneo, com foco nas dificuldades para a afir- mação da cidadania e para a superação dos problemas sociais em um mundo globalizado. Disponível em: https://bit.ly/3r8M7kB. Acesso em: 14 de fev. de 2021. BUSQUE POR MAIS 51 Advento: surgimento. Agrárias: relativo às atividades agrícolas. Antagônicos: contrários. Aportou: chegou. Assenta: o que se apoia em algo. Autonomização: refere-se ao que se torna autônomo, independente. Caudilhismo: força irregular de poder. Cosmopolita: da cidade, urbano. Dissociação: separação, afastamento. Esteira: área, processo, dinâmica. Fulcral: refere-se à base, apoio, sustentáculo. Gestaria: conceberia. Indissociável: inseparável, inerente. Medievalismo: refere-se ao período medieval. Modernizante: relativo à modernização. Oligárquicas: refere-se às oligarquias, ao governo de poucos. Perpassa: decorre, atravessa, passa por. Remonta: o que se refere a alguma coisa por alusão, ou seja, menciona algo. Ressonância: repercussão. Secularização: abandono de sistemas que estavam sob o domínio da Igreja Cristã para o domínio dos leigos, ou seja, o domínio das leis do Estado. GLOSSÁRIO 52 FIXANDO O CONTEÚDO 1. (Enem/2019). A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) como uma política para todos constitui-se uma das mais importantes conquistas da sociedade brasileira no século XX. O SUS deve ser valorizado e defendido como um marco para a cidadania e o avanço civiliza- tório. A democracia envolve um modelo de Estado no qual políticas protegem os cidadãos e reduzem as desigualdades. O SUS é uma diretriz que fortalece a cidadania e contribui para assegurar o exercício de direitos, o pluralismo político e o bem-estar como valores de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, conforme prevê a Constituição Fe- deral de 1988. RIZZOTO, M. L. F. et al. Justiça social, democracia com direitos sociais e saúde: a luta do Cebes. Revista Saúde em Debate, n. 116, jan.-mar. 2018 (adaptado) Segundo o texto, duas características da concepção da política pública analisada são: a) Paternalismo e filantropia. b) Liberalismo e meritocracia. c) Universalismo e igualitarismo. d) Nacionalismo e individualismo.e) Revolucionarismo e coparticipação. 2. (IDECAN, 2016, adaptado). Cidadania é a tomada de consciência de seus direitos, tendo como contrapartida a realização dos deveres. Isso implica no efetivo exercício dos direitos civis, políticos e socioeconômicos, bem como na participação e contribuição para o bem- -estar da sociedade. De acordo com o exposto, analise as afirmativas a seguir. I. Direitos humanos são valores, princípios e normas que se referem ao respeito à vida e à dignidade. II. Democracia significa governo do povo, assegurado pelo gozo dos direitos de cidadania. Assim, quando há isonomia, ou seja, igualdade diante da lei, há democracia. III. Entre as condições básicas à conquista da cidadania estão a educação, a saúde e a ha- bitação. IV. A Constituição não prevê objetivos fundamentais para o Estado brasileiro O Estado é o responsável na prestação desses serviços à população, e deve fazê-lo de forma satisfatória, possibilitando avanço na convivência social. Estão corretas apenas as afirmati- vas a) IV e III. b) I, II e III. c) I, II e IV. d) II, III e IV e) Todas alternativas estão corretas. 3. (CESPE). A respeito dos marcos históricos, fundamentos e princípios dos direitos huma- nos, assinale a opção correta. 53 a) Segundo a doutrina contemporânea, direitos humanos e direitos fundamentais são in- distinguíveis; por isso, ambas as terminologias são intercambiáveis no ordenamento jurí- dico. b) Os direitos humanos estão dispostos em um rol taxativo, que foi internalizado pelo orde- namento jurídico brasileiro com a promulgação da Constituição Federal de 1988. c) No Brasil, os direitos políticos são considerados direitos humanos e seu exercício pelos cidadãos se esgota no direito de votar e de ser votado. d) A dignidade da pessoa humana, princípio basilar da Constituição Federal de 1988, é fun- damento dos direitos humanos. e) Em razão do princípio da imutabilidade, os direitos humanos reconhecidos na Revolu- ção Francesa permanecem os mesmos ainda na atualidade. 4. (IF-TO). Na história, há dois grandes movimentos que foram fundamentais para a base da Declaração dos Direitos Humanos, elaborada pela Organização das Nações Unidas (ONU), criada em 1948. Quais foram esses dois acontecimentos históricos que influenciaram a De- claração Universal dos Direitos Humanos? Com base no exposto acima, marque a alternativa correta. a) A Revolução Industrial (1760) e a Revolta dos Malês (1835). b) A Revolução Francesa (1789) e a Abolição da Escravidão no Brasil (1888). c) A Revolução Francesa (1789) e a Independência dos Estados Unidos (1776). d) A Independência dos Estados Unidos (1776) e a Bill of Rights (1689). e) A Petition of Rights (1628) e a Guerra do Paraguai (1864). 5. (Enem 2013). Tenho 44 anos e presenciei uma transformação impressionante na condi- ção de homens e mulheres gays nos Estados Unidos. Quando nasci, relações homossexu- ais eram ilegais em todos os Estados Unidos, menos Illinois. Gays e lésbicas não podiam trabalhar no governo federal. Não havia nenhum político abertamente gay. Alguns homos- sexuais não assumidos ocupavam posições de poder, mas a tendência era eles tornarem as coisas ainda piores para seus semelhantes. ROSS, A. “Na máquina do tempo”. Época, ed. 766, 28 jan. 2013. A dimensão política da transformação sugerida no texto teve como condição necessária a: a) Ampliação da noção de cidadania. b) Reformulação de concepções religiosas. c) Manutenção de ideologias conservadoras. d) Implantação de cotas nas listas partidárias. e) Alteração da composição étnica da população. 6. (Enem 2012) TEXTO I O que vemos no país é uma espécie de espraiamento e a manifestação da agressividade através da violência. Isso se desdobra de maneira evidente na criminalidade, que está pre- 54 sente em todos os redutos — seja nas áreas abandonadas pelo poder público, seja na polí- tica ou no futebol. O brasileiro não é mais violento do que outros povos, mas a fragilidade do exercício e do reconhecimento da cidadania e a ausência do Estado em vários territórios do país se impõem como um caldo de cultura no qual a agressividade e a violência fincam suas raízes. Entrevista com Joel Birman. A Corrupção é um crime sem rosto. IstoÉ. Edição 2099; 3 fev. 2010. TEXTO II Nenhuma sociedade pode sobreviver sem canalizar as pulsões e emoções do indivíduo, sem um controle muito específico de seu comportamento. Nenhum controle desse tipo é possível sem que as pessoas anteponham limitações umas às outras, e todas as limitações são convertidas, na pessoa a quem são impostas, em medo de um ou outro tipo. ELIAS, N. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. Considerando-se a dinâmica do processo civilizador, tal como descrito no Texto II, o argu- mento do Texto I acerca da violência e agressividade na sociedade brasileira expressa a: a) Incompatibilidade entre os modos democráticos de convívio social e a presença de apa- ratos de controle policial. b) Manutenção de práticas repressivas herdadas dos períodos ditatoriais sob a forma de leis e atos administrativos. c) Inabilidade das forças militares em conter a violência decorrente das ondas migratórias nas grandes cidades brasileiras. d) Dificuldade histórica da sociedade brasileira em institucionalizar formas de controle so- cial compatíveis com valores democráticos. e) Incapacidade das instituições político-legislativas em formular mecanismos de controle social específicos à realidade social brasileira. 7. (FUVEST 2018) [...] a Declaração Universal representa um fato novo na história, na medida em que, pela primeira vez, um sistema de princípios fundamentais da conduta humana foi livre e expressamente aceito, através de seus respectivos governos, pela maioria dos ho- mens que vive na Terra. Com essa declaração, um sistema de valores é – pela primeira vez na história – universal, não em princípio, mas de fato, na medida em que o consenso sobre sua validade e sua capacidade de reger os destinos da comunidade futura de todos os homens foi explicitamente declarado. [...] Somente depois da Declaração Universal é que podemos ter a certeza histórica de que a humanidade – toda a humanidade – partilha al- guns valores comuns; e podemos, finalmente, crer na universalidade dos valores, no único sentido em que tal crença é historicamente legítima, ou seja, no sentido em que universal significa não algo dado objetivamente, mas algo subjetivamente acolhido pelo universo dos homens. N. Bobbio. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. A Declaração Universal mencionada no texto: a) Foi instituída no processo da Revolução Francesa e norteou os movimentos feministas, sufragistas e operários no decorrer do século XIX. b) Assemelhou-se ao universalismo cristão, que também resultou no estabelecimento de um conjunto de valores partilhado pela humanidade. 55 c) Desenvolveu-se com a inclusão de princípios universais pelos legisladores norte-ameri- canos e influenciou o abolicionismo nos Estados Unidos. d) Foi aprovada pela Organização das Nações Unidas e serviu como referência para grupos que lutaram pelos direitos de negros, mulheres e homossexuais na década de 1960. e) Originou-se do jusnaturalismo moderno e consolidou-se com o movimento ilustrado e o despotismo esclarecido ao longo do século XVIII. 8. “A Declaração Universal dos Direitos Humanos está completando 70 anos em tempos de desafios crescentes, quando o ódio, a discriminação e a violência permanecem vivos”, disse a diretora-geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Audrey Azoulay. “Ao final da Segunda Guerra Mundial, a humanidade inteira resolveu promover a dignida- de humana em todos os lugares e para sempre. Nesse espírito, as Nações Unidas adotaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos como um padrão comum de conquistas para todos os povos e todas as nações”, disse Audrey. “Centenas de milhões de mulheres e homens são destituídos e privados de condições básicas de subsistênciae de oportunida- des. Movimentos populacionais forçados geram violações aos direitos em uma escala sem precedentes. A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável promete não deixar nin- guém para trás - e os direitos humanos devem ser o alicerce para todo o progresso.” Segundo ela, esse processo precisa começar o quanto antes nas carteiras das escolas. Diante disso, a Unesco lidera a educação em direitos humanos para assegurar que todas as meninas e meninos saibam seus direitos e os direitos dos outros. Disponível em: https://nacoesunidas.org. Acesso em: 3 abr. 2018 (adaptado). Defendendo a ideia de que “os direitos humanos devem ser o alicerce para todo o progres- so”, a diretora-geral da Unesco aponta, como estratégia para atingir esse fim, a: a) Inclusão de todos na Agenda 2030. b) Extinção da intolerância entre os indivíduos. c) Discussão desse tema desde a educação básica. d) Conquista de direitos para todos os povos e nações. e) Promoção da dignidade humana em todos os lugares. 56 DESAFIOS DO EXERCÍCIO DA CIDADANIA NO BRASIL UNIDADE 05 57 5.1 A CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA APÓS 1988 “A democracia brasileira é uma plantinha tenra que precisa de muitos cuidados” Otávio Mangabeira O exercício da cidadania no Brasil está diretamente relacionado à vigência de um Estado Democrático de Direito, ao funcionamento das instituições, à realização de eleições livres e à difusão de uma educação voltada para o exercício da cidadania. Conforme ates- ta Carvalho (2004), o caminho da construção da cidadania no Brasil foi bastante tortuoso, mas pavimentou o caminho para uma democracia de massas no começo do século XXI. A conjuntura de crise econômica do Brasil, no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, dificultou a implementação dos direitos assegurados na Constituição de 1988, pois a realidade nacional e internacional era bastante adversa: maior dívida externa, restrições ao crédito, recessão econômica e competição internacional (BRASIL, 1988). Dessa forma, o modelo econômico brasileiro, baseado na substituição de importações e na forte inter- venção estatal na economia, tornava-se cada vez mais obsoleto e incapaz de lidar com os desafios de um país com mais 150 milhões de habitantes à época. Do mesmo modo, a permanência de grupos que estiveram no poder durante os governos militares na ordem pós-ditatorial também criou impasses políticos para a maior participação popular e para a adoção de medidas mais ousadas no que concerne ao combate às desigualdades sociais. A agenda brasileira no começo da Nova República apontava para a necessidade de se edificar uma ordem constitucional capaz de afastar de vez o risco da ingovernabilidade pretoriana do horizonte nacional, isto é, uma eventual recaída autoritária. Dessa forma, a nova Constituição foi aprovada em um momento de mudança nas relações entre o Estado e a sociedade e de readaptação do papel do próprio Estado na economia. As ideias liberais sobre a abertura da economia, a reforma administrativa, as privatizações, a desregulamen- tação e o ajuste fiscal também aportaram no Brasil nesse momento, pressionando por mudanças no modelo de organização do Estado e nas suas relações com a sociedade. Nova República é o período conhecido após o término do Regime Militar no Brasil, iniciando- -se com a posse de José Sarney, vice de Tancredo Neves, em 01 de março de 1985. O período da Nova República iniciado há 36 anos é o de mais longevidade das instituições democráticas na História da República no Brasil. FIQUE ATENTO O ponto central era a necessidade de abandono da herança patrimonialista brasi- leira e da forte dependência de setores econômicos e sociais em relação ao Estado. Nesse sentido, buscava-se uma repactuação das relações entre empresários, trabalhadores e o Estado, de modo a reduzir a dependência em relação ao corporativismo, ao protecionismo e às benesses governamentais. A fragilidade dos partidos políticos, sua pouca consistência ideológica e a ausência de mecanismos de intermediação de interesses tornaram difícil essa transição de modelo. Passado o clima de euforia democrática da Constituinte, o debate político transitou da questão participativa para a questão da eficiência governativa, centrando-se nos pro- 58 A Constituição Brasileira de 1988 reformulou a estrutura federativa do país e organizou os aspectos legislativo e judiciário. A previsão de capítulos na Constituição sobre direitos sociais e econômicos foi um avanço importante para o exercício da cidadania em nosso país, am- pliando o campo de atuação do Estado Nesse sentido, qual é papel da ordem jurídica brasi- leira em balizar o alcance da cidadania? VAMOS PENSAR? blemas de ingovernabilidade por sobrecarga de demandas sociais decorrente da crise de financiamento do setor público e da falência do modelo de desenvolvimento por substitui- ção de importações. Reis (2007) chama a atenção para o modo como a globalização afetou dramaticamente os problemas da autoridade (construção de capacidade administrativa e simbólica do Estado para projetar presença e ação junto à coletividade no território nacio- nal) e da igualdade (desafio da plena incorporação social da população, especialmente das camadas populares, para neutralizar conflitos e resolver o problema constitucional) nas sociedades modernas (REIS, 2007). Após a Constituição de 1988 realizaram-se no Brasil oito eleições presidenciais di- retas, além de eleições congressuais, estaduais e municipais periódicas, normalizando-se o ciclo eleitoral paralelamente à dispersão do eleitorado num quadro plural e multiparti- dário. A identificação do eleitor brasileiro com determinados partidos populares era um passo fundamental na direção da construção de identidades partidárias estáveis e da ins- titucionalização da participação eleitoral das massas no processo político. Apesar dos inúmeros avanços verificados nos últimos trinta anos no que concerne à organização do Estado e à afirmação das franquias da democracia, Santos (1994) sustenta a tese da existência de um híbrido institucional no Brasil: haveria uma democracia formali- zada que assiste a poucos, uma “minúscula mancha na turbulenta superfície do país”; e ao redor dela, imensos espaços de anomia onde não existe soberania ou controle democráti- co, mas múltiplos poderes transgressores concorrentes regidos pela lei do mais forte. Conheça mais da nossa Constituição acessando o link https://cutt.ly/wkmQeIG. (Acesso em: 14 de fev. de 2021) e veja o contexto histórico e a formação da Carta Magna. No site, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal homenageiam a ocasião de comemoração pelos 30 anos da Constituição. BUSQUE POR MAIS 59 5.2 OS DESAFIOS PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA Apesar da existência formal de um Estado Democrático de Direito, a maioria dos indivíduos se abstém de recorrer ao Estado brasileiro para buscar soluções para seus con- flitos, preferindo antes negar sua existência a admitir que sejam vítimas deles. Essa cida- dania não intermediada por instituições democráticas, alienada eleitoralmente e refratária à participação alimenta uma cultura de dissimulação, violência difusa, enclausuramento e absoluto descrédito na eficácia do Estado em prover suas funções básicas (segurança, ad- ministração e justiça). O impacto de tal comportamento indiferentista abala mortalmente a cultura cívica e gera um sentimento de impotência que conduz à desconfiança e ao des- crédito em relação à coisa pública. Assim, o problema constitucional do país ainda permanece em aberto, pois não se concebe uma democracia estável que conviva com grande desigualdade social. Em outras palavras, existe um risco ainda não dimensionado de retrocesso institucional decorrente da ingovernabilidade evidenciada na deterioração do tecido social, no aumento da crimi- nalidade e da violência urbanas, na ampliação de territórios dominados pelo poder para- lelo e na descrença dos cidadãos em relação à justiça. Diante do desapreço de que gozamos direitos civis na cultura política convencional e da tolerância com as violações diuturnas aos direitos humanos, pregações autoritárias ainda continuam a amealhar simpatizantes em toda parte. Outro obstáculo ao exercício da cidadania no Brasil são as práticas patrimonialistas, isto é, a mistura entre interesses públicos e privados na gestão pública. O patrimonialismo é um modelo de dominação baseado em relações pessoais e em arbitrariedade, não em regras impessoais entre governantes e governados. Como observa Faoro (2000), a prática entrecorta toda a história brasileira desde a colonização portuguesa até a Independência, moldando a sociedade, a economia e as instituições do Estado. Qual a relação entre patrimonialismo e cidadania? Sabe-se que em sociedades nas quais o poder é exercido de forma tradicional, sem regras institucionalizadas, há grandes obstáculos para o desenvolvimento de liberdades individuais. O patrimonialismo concen- tra renda e poder, impedindo que a sociedade floresça e exerça plenamente os seus direi- tos. Os direitos e as garantias fundamentais, por sua vez, constituem as bases da democra- cia e de uma economia liberal. As instituições políticas do Império (1822-1889) e da República Velha (1889-1930), emulando as tradições coloniais, também se caracterizaram pela presença de interesses de camada oligárquica no funcionamento da burocracia do Estado. Essa burocracia era elitista e acessível a poucos membros da população brasileira, sobretudo, em um contexto de escravidão. A existência de uma casta de funcionários públicos que vivia à sombra do Estado marca o patrimonialismo à brasileira. Esse “estamento burocrático”, na visão de Faoro (2000), constituía uma camada privilegiada e dependente de favores, benesses e sinecu- ras do Estado brasileiro. Desde a Colônia até a Independência, esse grupo social buscava se encastelar nas estruturas de poder para manter seus privilégios. Seu modo de funcio- namento perpassava uma concepção personalista de exercício do poder, à sombra de um Estado centralizador e mercantilista (FAORO, 2000). Após a modernização do Estado português, com as reformas pombalinas do século 60 5.3 CIDADANIA E AS DESIGUALDADES SOCIAIS XVIII, buscou-se a modernização conservadora das instituições e da administração pública. Segundo Campante (2003), esse modelo de governança sobreviveu aos séculos e influen- ciou, decisivamente, a mentalidade política brasileira nos últimos três séculos. Tanto o Estado Novo quanto o Regime Militar, ao buscar a modernização autoritária da sociedade brasileira, foram influenciados por essa visão do Estado como o domínio de uma elite de sábios (CAMPANTE, 2003). A mesma lógica modernizadora autoritária sobre- vive no funcionamento de instituições estatais até o presente momento, com ausência de mecanismos de controle e de transparência em instituições do Poder Executivo, do Poder Legislativo e do Poder Judiciário, nas três esferas federativas, bem como em organizações representativas de classe. A lógica do patrimonialismo e da modernização autoritária da sociedade, contudo, impede o reforço de um catálogo de liberdades fundamentais e de uma cultura política de accountability. Não se pode conceber uma democracia autêntica sem cidadãos cons- cientes, bem informados e capazes de exercer os seus direitos em face do Estado. E sem igualdade social e oportunidades para todos não se pode conceber um Estado verdadeira- mente democrático. A garantia de que todos os cidadãos possam usufruir de seus direitos e exigir que o Estado cumpra os seus deveres mantém viva a democracia. A superação das desigual- dades sociais, nesse sentido, deve ser o objetivo central do Estado Brasileiro. Esta razão já seria suficiente para refletirmos sobre novos meios de acesso aos bens jurídicos como a saúde, a educação, o trabalho, a segurança, a cultura e o lazer, de forma a obrigar o Estado a planejar e garantir a execução de programas de metas comprometidos com a equaliza- ção das condições de vida dos brasileiros, desta e das futuras gerações. O papel de uma democracia é organizar o Estado para que se torne um “agente de- cisivo da eventual acomodação dos conflitos e da busca de objetivos comuns ou compar- tilhados de qualquer tipo” (REIS, 2007, p. 161). Ao tentar conciliar solidariedade e eficiência, ela permite, de um lado, o diálogo, a participação, a transparência e a incorporação dos grupos sociais e, de outro, a governabilidade, a capacidade de tomar decisões e a possibili- dade real de implementá-las. O sistema democrático e institucional brasileiro vem sendo gradualmente reforçado com a consolidação de um elevado grau de institucionalização da competição pelo poder, a garantia de direitos e garantias fundamentais (liberdade de associação, liberdade de ex- pressão, formação de novos partidos políticos, igualdade perante a lei), o crescimento do associativismo civil, a emergência de uma cultura política mais plural, a grande expansão eleitoral e a proliferação de organizações extra-partidárias entre os grupos de maior esco- laridade. Nesse sentido, é importante ressaltar o papel da ordem jurídica brasileira em balizar o alcance da cidadania. A Constituição de 1988 trouxe como consequências mais relevan- tes o fortalecimento do Poder Legislativo, a reformulação da Federação, a salvaguarda dos direitos fundamentais e o empoderamento do Poder Judiciário. Houve ainda avanços re- lacionados à repartição de recursos entre Estados e Municípios, aos direitos dos servidores públicos e à organização do sistema de bem-estar social. Dito isso, quais os caminhos a serem experimentados e perseguidos para que a jovem 61 democracia brasileira se fortaleça nas décadas seguintes? A receita proposta por Santos (1994) é a universalização de um Estado mínimo eficaz, única saída viável para combater os poderes paralelos, as máfias descentralizadas, as punições aleatórias, a erosão das regras de convivência e a diluição dos laços de solidariedade que sustentam uma democracia. Já Reis (2007) aponta como saída um grande conjunto de reformas políticas que combine boas leis, regras e instituições para amadurecer a cultura democrática e forta- lecer a identificação dos eleitores com os partidos políticos, aperfeiçoando o princípio da representatividade: fidelidade partidária, cláusulas de barreira, regras sobre coligações, combinação de princípios majoritários e proporcionais nas eleições, combinações de listas partidárias fechadas e flexíveis, financiamento público de campanha. Mas para viabilizar a universalização do Estado mínimo, como sugere Santos (1994), e garantir que uma repre- sentação mais autêntica se traduza em ações governamentais que democratizem a de- mocracia, como quer Reis (2007), seria preciso prosseguir na reforma do Estado brasileiro. Como se percebe, muitos dos avanços da democracia brasileira podem ser explica- dos pelas melhorias institucionais que garantiram a estabilidade e a governabilidade do país nas últimas duas décadas. Contudo, falta completar a obra democratizadora com a expansão de uma cobertura estatal mínima para todo o universo social brasileiro capaz de alimentar a confiança nas instituições e fortalecer uma cultura cívica autêntica. Mas sem uma iniciativa reformista que torne o Estado mais moderno, eficiente, efetivo, transparente e responsável, não se conseguirá alcançar um patamar minimamente razoável de cobertu- ra de toda a população por serviços públicos básicos que uma democracia moderna deve prover. De que modo o Brasil fez a sua transição para a democracia plena em meio a uma conjun- tura econômica adversa? Quais os desafios de nossa inserção como nação democrática no século XXI? Como a cidadania brasileira evolui ao longo do período republicano em face das transformações do Estado e da sociedade? A obra “História econômica e social do Brasil: o Brasil desde a república” (2016) de autoria de Francisco Vidal Luna e Herbert S. Klein auxilia- rá vocêa responder a estas e a outras perguntas acerca do processo tortuoso de afirmação de uma sociedade de massas no Brasil. A compreensão dos grandes problemas estruturais da formação do Estado nacional e a análise da crise do modelo de desenvolvimento por substituição de importações são indispensáveis para pensarmos na viabilidade de um Esta- do viável e democrático no Brasil. Disponível em: https://bit.ly/3qSgGL7. Acesso em: 14 de fev. de 2021. BUSQUE POR MAIS 62 Accountability: prestação de contas. Anomia: comportamento desvirtuoso ocorrido pela falta de leis. Conjuntura: sequência ou combinação de fatos e acontecimentos num mesmo momento; coincidência. Corporativismo: escola de pensamento em que os grupos e aglomerações de determinadas classes de profissionais são de extrema importância para a or- ganização política, econômica e social. No entanto, esses grupos precisam estar subordinados ao Estado. Enclausuramento: refere-se à prisão, fechamento. Hiperinflação: aumento significativo dos índices de inflação. Institucionalização: transformação em instituição. Patrimonialista: refere-se ao patrimonialismo, ou seja, ao conceito de patrimo- nialismo desenvolvido por Max Weber, em que trata de um Estado onde não há limites entre o que é considerado público e o que é considerado privado. Poliarquia: sistema de governo onde o poder é exercido pela coletividade. Pretoriana: Governo que usa de modo abusivo as forças militares para exercer poder. O termo remonta à Guarda de Pretoria, que era a elite militar que partici- pava ativamente das decisões tomadas para eleger imperadores romanos. Esse grupo, por vezes, chegava a assassinar opositores. Pretoriana: Governo que usa de modo abusivo as forças militares para exercer poder. O termo remonta à Guarda de Pretoria, que era a elite militar que partici- pava ativamente das decisões tomadas para eleger imperadores romanos. Esse grupo, por vezes, chegava a assassinar opositores. Redemocratização: processo de retomada da democracia. Reserva de mercado: atitudes ou decisões de um governo que impede, por meio de leis, que certos tipos de mercadorias ou produtos internacionais sejam acessíveis pela importação. Essa espécie de reserva é feita pelo governo com a intenção de que o próprio mercado interno produza essas mercadorias e servi- ços, para que a economia seja aquecida. Tecnocracia: sistema governamental que se baseia na soberania dos técnicos. Utilitarista: refere-se à doutrina do utilitarismo, ou seja, à doutrina criada pelos ingleses Bentham e Mill e prega que as ações políticas devem atingir o máximo possível de bem-estar. GLOSSÁRIO 63 FIXANDO O CONTEÚDO 1. (Enem 2012) É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer; mas a liber- dade política não consiste nisso. Deve-se ter sempre presente em mente o que é indepen- dência e o que é liberdade. A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros também teriam tal poder. MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1997 - adaptado. A característica de democracia ressaltada por Montesquieu diz respeito: a) Ao status de cidadania que o indivíduo adquire ao tomar as decisões por si mesmo. b) Ao condicionamento da liberdade dos cidadãos à conformidade às leis. c) À possibilidade de o cidadão participar no poder e, nesse caso, livre da submissão às leis. d) Ao livre-arbítrio do cidadão em relação àquilo que é proibido, desde que ciente das con- sequências. e) Ao direito do cidadão exercer sua vontade de acordo com seus valores pessoais. 2. (ADM&TEC, 2019). Leia as afirmativas a seguir e marque a opção CORRETA: a) No Brasil, o município pode obrigar qualquer cidadão a permanecer associado a uma entidade paramilitar. b) Os valores sociais do trabalho não são fundamentos da República Federativa do Brasil. c) No Brasil, é proibida a associação para fins lícitos. d) Segundo a constituição brasileira, homens e mulheres não são iguais em direitos e obri- gações. e) A Constituição Federal de 1988 procura valorizar a construção de uma sociedade frater- na. 3. (ADM&TEC, 2019). Leia as afirmativas a seguir e marque a opção CORRETA: a) A Constituição Federal de 1988 procura impedir a construção de uma sociedade sem preconceitos. b) O direito ao bem-estar é negado pela Constituição Federal de 1988. c) A cidadania não é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. d) A Constituição Federal de 1988 procura valorizar a construção de uma sociedade sem preconceitos. e) A soberania não é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. 4. (ADM&TEC, 2019). Leia as afirmativas a seguir e marque a opção CORRETA: a) O Legislativo é um dos poderes da União. b) O direito ao desenvolvimento é contrário aos princípios da Constituição Federal de 1988. c) Constituição Federal de 1988 procura desvalorizar a construção de uma sociedade fra- terna. d) A República Federativa do Brasil busca promover os preconceitos relacionados à raça. 64 e) A República Federativa do Brasil busca promover os preconceitos relacionados ao sexo. 5. (FUNDEPES, 2017, adaptado) - Analise as seguintes assertivas relativas ao preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR/88): I. O preâmbulo da CR/88 não pode, por si só, servir de parâmetro de controle da constitu- cionalidade de uma norma. II. A invocação de Deus no preâmbulo da CR/88 torna o Brasil um Estado confessional. III. O preâmbulo traz em seu bojo os valores, os fundamentos filosóficos, ideológicos, so- ciais e econômicos e, dessa forma, norteia a interpretação do texto constitucional. IV. A invocação de Deus no preâmbulo da CR/88 é norma de reprodução obrigatória nas Constituições Estaduais. Está CORRETO somente o que se afirma em: a) I e II. b) I e III. c) II e III. d) III e IV. e) I e IV. 6. (FUNDATEC, 2012) A Constituição Brasileira de 1988 define normas constitucionais pro- gramáticas, fins e programas de ação futura para a melhoria das condições sociais e eco- nômicas da população. A partir disso, analise as afirmações abaixo: I. A intensa participação popular criou condições para que o Brasil tivesse uma Constitui- ção democrática e comprometida com a supremacia do direito e promoção de justiça. II. A partir dela, o Estado brasileiro passou a ter o dever jurídico-constitucional de realizar justiça social. III. São fundamentos que constituem o eixo relativo aos direitos individuais e coletivos: a ci- dadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa e o pluralismo político. IV. A saúde, a previdência e a educação compõem um conjunto integrado de ações de ini- ciativa dos poderes públicos e da sociedade, denominado seguridade social. Quais estão corretas? a) Apenas I e II. b) Apenas I, II e III. c) Apenas I, II e IV. d) Apenas II, III e IV. e) I, II, III e IV. 7. (IESES, 2017) Conforme prevê a Constituição Federal, é correto afirmar: a) Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma so- ciedade livre, justa e solidária; a defesa da dignidade da pessoa humana; dos valores sociais 65 do trabalho e da livre iniciativa; a defesa da paz. b) República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos princípios da soberania; da prevalência dos direitos humanos; da dignidade da pessoa humana; dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; da defesa da paz. c) A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Muni- cípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; o pluralismo político. d) Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária; a prevalência dos direitos humanos; a dignidade da pessoa humana;a solução pacífica dos conflitos; o pluralismo político. e) Nenhuma das Anteriores 8. (FGV, 2014). A República Federativa do Brasil é laica, já que há separação total entre Igreja e Estado e não há religião oficial. No entanto, constou expressamente no preâmbulo da Constituição da República, quando de sua promulgação, que estava sendo feita “sob a proteção de Deus”. Sobre o tratamento constitucional conferido aos cultos religiosos, é correto afirmar que: a) É inviolável a liberdade de consciência e de crença, desde que exercida no interior dos locais onde ocorrem os cultos religiosos e suas liturgias, na forma da lei. b) É violável a liberdade de crença religiosa, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. c) Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa, que pode ser invocada como justificativa para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa. d) É vedada a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de interna- ção coletiva. e) É vedado aos entes federativos estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. 66 ÉTICA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO: O CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL UNIDADE 06 67 6.1 ÉTICA, MERCADO E INSTITUIÇÕES “Conheço apenas duas coisas belas no universo: o céu estrelado sob nossas cabeças e a lei moral em nossos corações” Immanuel Kant Existe uma ética do trabalho e das organizações? Assim como os indivíduos, as or- ganizações, as empresas e os profissionais de várias áreas também obedecem a códigos de conduta ética. A intensificação do fluxo de informações, a internacionalização dos mer- cados, a forte competitividade, os novos marcos regulatórios (especialmente em questões ambientais e sociais) e o desenvolvimento de novas tecnologias são fatores que, no perío- do contemporâneo, têm contribuído para as mudanças de comportamento das organiza- ções. Que mudanças são essas? Que impacto elas têm no mundo do trabalho? No mundo contemporâneo, percebe-se uma crescente busca para manter ou ganhar reputação fren- te à sociedade, o que tem sido feito principalmente através da adoção de um comporta- mento ético e socialmente responsável. Mas esse comportamento nem sempre fora ado- tado pelas organizações. O processo de institucionalização das organizações se processou por meio da transformação de ações, crenças e comportamentos em regras estabelecidas de conduta social. Tais normas comportamentais, ao serem aceitas e incorporadas às ro- tinas de trabalho, acabam sendo legitimadas e compartilhadas no dia a dia. A partir disso, inicia-se um processo de dissipação ou de aceitação e uso de práticas institucionalizadas. A corrente sociológica do neoinstitucionalismo reafirma que organizações com estruturas for- mais tendem a prevalecer como meio mais eficiente e racional de coordenar a complexidade da vida moderna. Essa teoria tenta explicar os motivos que levam as instituições a mudar, além de apontar a direção em que caminham e o propósito da mudança. FIQUE ATENTO As instituições, enquanto regras do jogo, são mediadoras das relações humanas. Sua principal função é a coerção, o estabelecimento dos limites da ação. O desdobramento imediato é o fato de que quanto mais submetidas às instituições e quanto mais similares estas forem, mais homogêneo será o comportamento das organizações. A ética no ambiente de trabalho é ao mesmo tempo individual e coletiva. FIQUE ATENTO 68 6.2 A RESPONSABILIDADE SOCIAL NAS ORGANIZAÇÕES As instituições são regras de conduta que prescrevem ações e determinam o que é mais adequado ou pertinente a ser feito. Ela exercem um papel de facilitação e de influên- cia direta sobre as estratégias, sobre as escolhas e sobre o comportamento dos agentes. As empresas são organizações que podem institucionalizar ações de responsabilidade social para adequar a sua estratégia de atuação e o seu comportamento corporativo às mudan- ças de ambiente e do meio social. As ações de responsabilidade social são práticas formais difundidas e aceitas que credenciam e dão legitimidade a uma organização. Como ilustração, a maior parte das grandes e médias empresas, em ramos diversos da economia, adotam princípios de ges- tão empresarial. Essas diretrizes comportamentais devem ser seguidas a fim de dar uma orientação, um código básico de ética que permita balizar as ações dos seus funcionários e colaboradores. Tais códigos de ética tratam de temas como proteção ambiental, trabalho infantil, discriminação de funcionários, relações com fornecedores, dentre outros. Nessa direção, empresas multinacionais que possuem grande visibilidade midiática e competem de forma agressiva no mercado externo necessitam seguir regras internas e externas para adequar seu comportamento aos padrões internacionais. Programas de excelência de treinamento contra acidentes de trabalho e adequação a normas internacio- nais de sustentabilidade ambiental são exemplos de conformação dessas organizações a padrões de excelência mundiais. As matrizes dessas empresas estabelecem diretrizes mais amplas que são seguidas pelas suas filiais, adequando as práticas às realidades locais. A atuação das empresas em áreas como educação, saúde, cultura e meio ambiente é consi- derada pela sociedade como um valor importante. Iniciativas como essas passaram a ser um componente estratégico para as organi- zações, na medida em que este tipo de atividade agrega valor à imagem corporativa. A responsabilidade social foi conduzida à institucionalização, seja pela imposição que induz uma conduta de aceitação, seja pelo interesse estritamente individual ou da organização. Dessa forma, as empresas e seus dirigentes, ao adquirirem a consciência de que a mudan- ça de práticas agrega valor às atividades empresarias, concentram-se na adequação das rotinas organizacionais ao universo simbólico-cultural da responsabilidade social. Tanto o meio social atua sobre as empresas, quanto as companhias atuam sobre o meio social, influenciado um ao outro. Nessa interação social, surgem preceitos que se institucionalizam e ajudam a legitimar processos dentro das organizações. O interesse da organização em se adequar aos preceitos do ambiente externo é ainda mais exacerbado em um ambiente de extrema competição entre as organizações. Em um contexto de disputa entre empresas pelo mercado, as práticas organizacio- nais tornam-se cada vez mais semelhantes e homogêneas. Em um ambiente de incerteza, é conveniente escolher as soluções prescritas. O isomorfismo reflete a força das institui- ções, sem necessariamente resultar em maior eficiência. O que está em jogo são as re- compensas advindas da homogeneização, da similaridade de estruturas, de práticas e de resultados. 69 Isomorfismo é a tendência das organizações de se comportar de maneira se- melhante, incorporando práticas umas das outras para competir melhor. GLOSSÁRIO A adequação das empresas a um código de ética mínimo para reger as suas práti- cas internas e as suas interações externas é extremamente vantajosa. Ao incorporar regras aceitas socialmente como éticas, demonstram a sua conformidade com valores e com nor- mas compartilhadas pela coletividade. A adequação das organizações a um mínimo ético, nesse sentido, assegura oportunidades de crescimento, expansão e inovação ao longo do tempo. As organizações modernas funcionam por meio da incorporação de orientações pre- viamente definidas e racionalizadas para a legitimação das suas atividades e para a sua sobrevivência. Pode-se dizer que há pressões contextuais, decorrentes da ética vigente nas relações sociais, que direcionam as escolhas e estratégias adotadas pela organização. A le- gitimidade passa a ser o“imperativo” organizacional e a organização passa a se preocupar com as influências do ambiente, reconhecendo a estrutura formal como produto institu- cionalizado. A ação organizacional tem como ponto de partida o reconhecimento de que van- tagens competitivas são obtidas por meio da implantação de estratégias coerentes com os significados e valores socialmente compartilhados, como o de um meio ambiente so- cialmente equilibrado, da defesa de regras justas de comércio ou do respeito aos direitos do consumidor. Os princípios institucionais condicionam a construção de uma lógica de mercado, resultando em modelos de comportamento que moldam as relações entre as organizações e as induzem a se constituir de maneira homogênea. As companhias, portanto, são motivadas pela visão socioeconômica das ações de responsabilidade social por um motivo simples: a boa reputação frente à sociedade traz maior legitimidade à empresa, o que tente a fortalecer a sua aceitação pela sociedade, o seu poder de mercado, maximizando o seu retorno financeiro. Este fenômeno é conheci- do como marketing social. Contudo, não existe modelo ideal para todas as organizações. Cada qual encontra um equilíbrio próprio, compatibilizando estratégia, estrutura, tecnolo- gia, envolvimento, necessidade e ambiente externo. O neoinstitucionalismo prevê as intenções e determinações que uma organização tem em sua tomada de decisões. Com a mudança no mercado, os valores deixam de ser apenas financeiros e passam ter peso no campo social e ambiental. Portanto, avaliar a viabilidade ética de um investimento é avaliar sob a ótica econômica, social e ambiental. A ética institu- cional passa pela responsabilidade social e pela responsabilidade ambiental. FIQUE ATENTO 70 6.3 ÉTICA NAS BUROCRACIAS PÚBLICAS E PRIVADAS Assim como nas organizações privadas, as instituições públicas também passaram a incorporar valores e princípios de ética corporativa. As estruturas formais das organizações modernas espelham as instituições do ambiente em que operam. Ao impulsionarem-se no sentido de incorporar práticas institucionalizadas, as organizações buscam aumentar sua legitimidade, independente da aferição da eficácia e da eficiência dos procedimentos escolhidos. Ou seja, muito mais do que o desempenho é a conformidade aos valores éticos e às normas sociais consagrados que determina as chances de sobrevivência de uma orga- nização. O processo coativo ou voluntário que força ou incentiva uma organização a se tornar mais parecida com outra ao se defrontar com as mesmas condições ambientais e ao com- petir por recursos, poder político e legitimidade, denomina-se isomorfismo institucional. O isomorfismo institucional, conforme visto na seção anterior, força uma homogeneização e torna as organizações mais similares, relacionando-se com a produção de respostas pa- dronizadas frente às incertezas. Quando o ambiente cria uma incerteza simbólica, as orga- nizações buscam se estruturar seguindo organizações similares e bem-sucedidas de seus campos de atividade, percebidas como portadoras de maior legitimidade. Assim como as empresas, a burocracia também segue normas e padrões éticos. O padrão burocrático é o modelo mais superiormente eficaz para assegurar estabilidade, previsibilidade, certeza, continuidade, permanência, subordinação, controle, clareza, con- fiabilidade, disciplina, rigor e precisão nas modernas sociedades industriais. Sua superio- ridade técnica incontrastável o torna um instrumento de poder de primeira ordem para eliminar ambiguidades e garantir uma base legítima de obediência aos preceitos norma- tivos superiormente estabelecidos. Assegura ainda uma eficaz coordenação, um eficiente controle e uma efetiva coesão entre as inúmeras partes do organismo estatal, recortado e multifacetado por natureza. Ao longo de sua história, os Estados nacionais utilizam a burocracia como instrumento de materialização concreta de sua soberania e da defesa dos valores éticos socialmente com- partilhados. O poder estatal funda-se num sistema integrado e coeso de normas jurídicas, ca- bendo-lhe impor condutas para assegurar a supremacia de sua autoridade. A administração pública se baseia em preceitos legais e não pode extravasar os limites da estrita legalidade, devendo ater-se somente às condutas que as normas abstratas, impessoais e escritas pres- crevem e legitimam. FIQUE ATENTO A burocracia está presente em todas as grandes organizações modernas, públicas ou privadas, desde o seu nascedouro. Sua identificação com a administração pública se justifica pelo fato de ser mais facilmente percebida, porque está onipresente em sua vida quotidiana. A administração pública lança mão da divisão de trabalho para recrutar pes- soas com diferentes habilidades e experiências para o desempenho das mais variadas e complexas funções em centenas de órgãos autônomos. 71 O sistema hierárquico do quadro administrativo assegura alto grau de eficiência no exercício de dominação, sendo indispensável à sua racionalização. A hierarquia ajuda na minimização de atritos, na redução de custos e na eliminação de elementos irracionais e emocionais que fogem à possibilidade de cálculo. O controle dos processos e das rotinas imprime segurança e certeza, unificando a aplicação das normas no tempo e no espaço, segundo padrões éticos previamente estabelecidos. Ou seja, o serviço público deve ser invariavelmente burocratizado porque lhe cabe perseguir e implementar, com a máxima eficiência técnica, as normas legitimamente impostas. O funcionário público - seja ele o militar, o diplomata, o coletor do fisco, o magistrado ou o delegado de polícia – só pode agir no âmbito do que lhe é facultado pela norma. Nas relações entre agentes privados impera a liberdade negativa: tudo o que não está proibido é permitido. O espaço de liberdade de ação é bem maior, mas tem limites na ética organi- zacional e do trabalho. O modelo burocrático, nesse sentido, também sofre influência dos valores éticos socialmente enraizados. Ao se legitimar pelo saber técnico, pela especialização do conhecimento e pela efici- ência administrativa, fundamentado em um sistema hierárquico e disciplinar, a burocracia ajuda a fortalecer os padrões éticos legitimados. Dessa forma, ao gerar mais obediência às normas de comportamento desejadas, a burocracia fortalece o controle, a confiança e a previsibilidade nas organizações. 6.4 O CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL Conforme visto nos itens anteriores, a ética nas organizações e nas burocracias visa estabelecer padrões mais elevados e socialmente legitimados de comportamento corpora- tivo. Busca-se um equilíbrio entre as preocupações racionais, financeiras, sociais e susten- táveis. No âmbito individual do exercício das profissões, a ética também busca promover atitudes e valores considerados positivos pela sociedade, como a transparência, a verdade e a honestidade. Dessa forma, as ações éticas, no âmbito profissional, são indispensáveis para orientar as condutas humanas e gerar harmonia social. 6.4.1 CONSELHOS PROFISSIONAIS DE ÉTICA Em qualquer profissão existe um mínimo ético a ser respeitado. Os conselhos pro- fissionais têm um papel relevante nesse sentido, ao disciplinar a conduta dos profissio- nais, prever situações que envolvam dilemas morais e estabelecer rotinas padronizadas para a resolução de conflitos. Os conselhos profissionais de classe - como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Conselho Federal de Medicina (CFM), o Conselho Federal de Administradores (CFA), o Conselho Federal de Engenharia (CFE) e o Conselho Federal de Psicologia do Brasil (CFP), bem como as suas representações regionais - são organizações que geram previsibilidade e certeza para a conduta dos profissionais. Suas regras, normas e portarias são guias de ação para situações de incerteza. Cada vez mais a ética profissional se enraíza nas relações de trabalho e produção, sobretudo, em uma sociedade cada vez mais marcada pelaproliferação de serviços e de demandas. O Código de Ética Profissional busca a implantação de valores considerados re- levantes para a orientação da conduta dos indivíduos nas relações de trabalho, levando em 72 conta as particularidades da profissão que representa perante a classe e a sociedade. Con- forme visto nas seções anteriores, as práticas éticas disseminadas socialmente fortalecem as organizações e ampliam o seu valor de mercado. Organizações e seus profissionais não podem estar alheios ao que ocorre no ambiente externo, pois estão socialmente inseridos num espaço e num tempo marcado por valores, crenças e práticas institucionalizadas. Conforme visto nas Unidades 1 e 2 deste livro, a Ética não deve ser vista como algo abstrato, mas como a base da agregação de valor e de conhecimento em cada sociedade. Dilemas morais e éticos existem em todos os contextos sociais, inclusive no mundo corpo- rativo. O que as normas de conduta ética na vida profissional visam é elevar o desempenho, reduzir incertezas e disseminar ações consideradas positivas, lícitas, corretas e desejáveis. Nesse sentido, a ética profissional não se diferencia tanto da ética na família, na reli- gião, na escola e na política. A codificação e a formalização de comportamentos conside- rados éticos buscam a sua interiorização e obediência. Diferentemente da moral, o Direito estabelece normas obrigatórias que induzem a adequação dos comportamentos dos indi- víduos às regras dadas, sob pena de sofrerem sanções em caso de descumprimento. Com o desenvolvimento e a expansão da economia capitalista, a ética profissional passou a ser um tema cada vez mais relevante. Na economia de livre-mercado, o indivíduo é o ator central. Dessa forma, não se pode dissociar a ética individual da ética das empre- sas. Da adequação dos indivíduos a comportamentos socialmente esperados depende o êxito das empresas. As organizações modernas são um produto da Revolução Industrial e se desenvolveram com base na certeza e na previsibilidade. Na sociedade contemporânea, porém, impera o indivíduo. As organizações nada mais são do que um conjunto de indivíduos mobilizados em torno de um objetivo comum. Muitas vezes essa abstração esconde os atores que, mais do que simples agentes signa- tários de um contrato de obrigações, são verdadeiramente sujeitos ativos, seres conscien- tes da realidade e dotados de plena capacidades analítica e reflexiva. A visão do indivíduo como unidade de análise levaria a novas formas de superação da resistência à mudança que permitem a adoção espontânea de padrões éticos, sem a necessidade de imposição. A mudança de pensamento organizacional leva tempo para ser processada, um tempo que não é apenas o da organização, mas o que cada um dos seus partícipes leva para responder aos estímulos do ambiente, já que a aceitação e resistência à mudança é algo emocional e cognitivo. Assim sendo, direcionar as percepções individuais e integrá-las num programa de ação coordenado no campo da ética profissional pode ser o diferencial entre a adoção de um comportamento resistente e a decisão convicta de superar a resis- tência. A resistência à mudança de padrões éticos é um mecanismo de defesa, um meio de expressão da insegurança, da nostalgia ou da repressão do indivíduo que muda junto com a organização a que pertence. Assim, pensar o ser humano como o princípio, a base de toda estratégia de mudança é a saída para a obtenção de melhores resultados e o alcance dos objetivos pretendidos. Dessa forma, as empresas que não conseguem convencer os indivíduos a mudar os seus comportamentos éticos estarão sempre vulneráveis a comportamentos perniciosos: corrupção, o patrimonialismo, o abuso de autoridade, o desvio de dinheiro, a fraude e os diversos tipos de assédio. Considerados desvios éticos graves pela sociedade, esses proble- mas podem comprometer a reputação das empresas e afetar o seu valor de mercado. Empresas que visam apenas a maximização utilitária do lucro, sem preocupações ambientais, sociais e humanas, estão mais sujeitas a comportamentos considerados mo- 73 ralmente desviantes e antiéticos. A perda da reputação, do respeito e da credibilidade, em um mundo de elevada competição, pode ser fatal para uma companhia. Nesse sentido, tal como visto nas primeiras seções deste capítulo, as empresas desenvolveram estratégias institucionais de adaptação à nova realidade social, na qual práticas antiéticas são conde- nadas. A necessidade de adequar ações humanas ao padrão de comportamento deseja- do traz um custo elevado para as empresas. A necessidade de alterar diretrizes organiza- cionais nos planos interno e externo conduziu à necessidade de se pensar em uma ética empresarial. A responsabilidade social com os empregados, clientes, consumidores, forne- cedores, governo e com a comunidade como um todo se insere neste contexto. A busca de um bom relacionamento com os diversos atores que interagem no processo produtivo tem consequências diretas na imagem das empresas e de seus empregados. Responsa- bilidade social, dessa forma, é indissociável de uma harmônica relação de um profissional com o seu meio. Os códigos de ética são uma imposição dessas mudanças institucionais. Nesse sen- tido, sob a influência de corporações norte-americanas, começaram a surgir, na década de 1970, as primeiras codificações sobre os comportamentos dos funcionários e a sua ade- quação às regras éticas vigentes. Esses primeiros manuais de conduta estavam alinhados às legislações vigentes naquele período, sobretudo, no campo das relações de trabalho, do meio ambiente e dos direitos do consumidor. Buscava-se, sobretudo, a limitação da mar- gem de ação dos empregados e a punição de comportamentos desviantes. Na década seguinte, buscou-se a mudança das mentalidades não apenas pelo uso de mecanismos de coerção e punição, mas pelo convencimento da necessidade de alte- ração dos padrões e da cultura organizacional. A busca do fomento à confiança e à trans- parência no ambiente de trabalho foi a chave dessas alterações. As pessoas precisavam ser convencidas dos valores das empresas e dos princípios que defendiam. Tendo em vista esse novo contexto, as corporações representativas de categorias profissionais passaram a auxiliar no processo de normatização, de orientação e de disciplina no ambiente de traba- lho. Nesse sentido, os códigos de ética profissional se tornaram instrumentos de raciona- lização de comportamentos profissionais. Eles apresentam os princípios orientadores, os valores e as diretrizes considerados éticas no exercício de cada profissão, com consonância com os padrões éticos e as melhores práticas da sociedade. Sua eficácia depende, sobre- tudo, da sua aceitação e incorporação à cultura das organizações e às rotinas dos funcio- nários. 74 O mundo se transforma a todo momento. Nas últimas décadas temos visto inúmeras mu- danças tecnológicas, culturais, sociais, econômicas e profissionais. Os valores estão mu- dando e o que antes era normal, aceito e até mesmo ético já não cabe mais nos padrões e valores atuais. Por exemplo, o trabalho escravo foi adotado por muitos séculos em muitos países. Mudanças nos valores proporcionaram o fim desse terrível período da humanidade. Outro exemplo é o desmatamento, há muitos anos nem se imaginava os terríveis danos que isso causaria ao meio ambiente. Mudanças e avanços têm mostrado que o meio ambiente precisa ser preservado. Questões éticas e morais tiveram muito peso para que tais mudan- ças ocorressem. Para o futuro, que valores de mercado aceitáveis atualmente poderão sofrer alterações? Para responder, reflita nas questões ambientais, sociais e também nas rápidas mudanças que vêm ocorrendo originadas pelo avanço da tecnologia, especialmente, no campo da informação. VAMOS PENSAR? 6.5 ÉTICA E CIDADANIA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO A mudança de comportamentos éticos nas empresas depende, sobretudo, da mu- dança das mentalidades individuais e da culturaorganizacional. Não basta às organiza- ções apenas obedecer às legislações nacionais e gerar retornos financeiros aos seus acio- nistas. É preciso manter relações harmônicas com todos os atores que com elas interagem, gerando comprometimento com valores básicos da sociedade. A incorporação de valores nas interações sociais fortalece a aceitação das empresas e o desejo por seus produtos e serviços. A valorização de competências, o reconhecimento da cidadania, a busca da transparência, da excelência, da eficiência, da competência e da honestidade são cada vez mais centrais no mercado de trabalho. Em síntese, a disciplina da ética, nas relações sociais e no mundo do trabalho, tor- nou-se um imperativo no mundo contemporâneo. Os princípios éticos são importantes não apenas para a adequação das organizações às normas socialmente aceitas como líci- tas e corretas, mas também para o fortalecimento de uma cultura cidadã no país. A ética é indispensável para agregar valor às relações produtivas e para fortalecer o compromisso das organizações com os valores supremos da cidadania. Não se pode separar o espaço público do espaço privado no que toca a valores indispensáveis da civilização. Dessa forma, ao valorizar profissionais éticos e prestigiar práticas alinhadas com comportamentos socialmente responsáveis, as empresas maximizam as suas vantagens competitivas e contribuem para disseminar padrões mais elevados de comportamento social. Em longo prazo, decisões éticas constituem a base sobre a qual se constrói uma sociedade mais livre, justa e solidária, baseada nos valores do trabalho e da livre-iniciativa. Os Códigos de Ética Profissional, nos mais variados campos do trabalho, são instrumentos que asseguram a difusão de normas de conduta ética no mundo corporativo, moldando empresas e profissionais segundo padrões moralmente desejados. Não se pode depender, contudo, apenas dos instrumentos punitivos para que tais normais sejam cumpridas no cotidiano profissional. É preciso, sobretudo, mudar menta- lidades e difundir novas práticas culturais acerca da ética empresarial e profissional. As empresas bem-sucedidas no mundo globalizado são aquelas capazes de se pautar por 75 um mínimo ético. Dessa forma, empresas não devem encarar a ética como um empecilho para o alcance dos seus objetivos, mas como uma plataforma de sustentação e de sobre- vivência. Padrões éticos de conduta melhoram as relações entre os empregados, elevam a imagem externa e melhoram a relação das empresas com o seu meio, contribuindo para uma sociedade mais harmônica e equilibrada. A opinião pública, as instituições sociais e a mídia nunca exigiram tanto da ética profissional. Sugerimos a leitura do livro “Curso de ética jurídica: ética geral e profissional” Ede duardo C. B. Bittar (2018). Nessa obra de referência o autor analisa a conexão entre Ética e Direito em diversos ramos da vida: família, escola, trabalho etc. Ao abordar a problemática da ética no mundo contemporâneo, o autor analisa como as relações de produção da economia moder- na influenciam nas decisões de indivíduos e de organizações. A ética nas relações de traba- lho é um dos temas centrais desse livro, texto bastante utilizado na disciplina Ética Jurídica nas faculdades de Direito em todo o Brasil por exemplo. Disponível em: https://bit.ly/2PiIjyY. Acesso em: 16 de fev. de 2021. BUSQUE POR MAIS Inconstrastável: O que não pode ser respondido, contrastado. Neoinstitucionalista: corrente sociológica que explica a adoção de regras por uma instituição, bem como as marcas e atitudes empregadas por ela, tudo isso baseado em valores culturais de uma sociedade. GLOSSÁRIO 76 FIXANDO O CONTEÚDO 1. (FGV - Analista Legislativo Municipal, 2007) Código de valores que norteiam a conduta de um indivíduo, bem como suas decisões e escolhas, fazendo com que esse indivíduo seja capaz de julgar o que é certo e errado. Trata-se d definição de: a) Altruísmo. b) Egoísmo. c) Consenso. d) Participação. e) Moralidade. 2. (Fundação Carlos Chagas (FCC, 2019) A ética associa cultura e sociedade para definir o que seja mal ou bem, vício ou virtude, que são antagônicos. Com base nessa definição, a virtude da “gentileza”, muito importante para o atendimento do cidadão- usuário, correla- ciona-se ao vício de: a) Irascibilidade. b) Ambição. c) Vaidade. d) Indulgência. e) Vulgaridade. 3. (FGV, 2015, adaptado) O campo em que a ética empresarial se manifesta é constituído por três elementos: agente, virtude e meios. Os dilemas éticos resultam do conflito pre- sente nos valores, nos destinatários e nos meios que servem de base às decisões, impondo uma hierarquia de princípios. Encontrar solução para esses dilemas não é tarefa fácil. Mas alguns princípios podem facilitar a decisão acerca dos dilemas éticos, entre eles: a) Faça o que for melhor para o maior número de pessoas e siga seu mais alto juízo ou princípio; b) Faça o que for melhor para o maior número de pessoas e opte pelos valores do ambien- te; c) Siga seu mais alto juízo ou princípio e opte pelo alijamento do código de conduta moral vigente; d) Faça o que quer que os outros façam a você; e opte pelo alijamento do código de con- duta moral vigente; e) Faça apenas o que lhe foi solicitado e nada mais. 4. (FCC, 2019) Determinado agente público estadual comissionado tem direito a carro ofi- cial para ser utilizado no exercício de suas funções. Considere que o referido agente tem feito uso desse direito para seus familiares, em especial para conduzir seus filhos às ativi- dades escolares. A conduta do agente: 77 a) A despeito de violar o código de ética, somente poderá ser apurada se for objeto de de- núncia, cabendo ao denunciante demonstrar o efetivo prejuízo causado aos cofres públi- cos. b) Viola o código de ética da Administração Pública Estadual, razão pela qual poderá ser instaurado, de ofício ou em razão de denúncia, procedimento para apuração dos fatos, de competência da Comissão Geral de Ética. c) A despeito de ferir o princípio da moralidade, não viola o código de ética da Administra- ção Pública Estadual, pois este não se aplica aos servidores comissionados, mas aos servi- dores públicos titulares de cargo efetivo e aos titulares de cargo de alta direção. d) Não viola o código de ética, porquanto, em razão dos usos e costumes, é administrativa- mente aceita. e) Somente poderá ser objeto de apuração pela Comissão de Ética na hipótese de o refe- rido agente ter expressamente aderido aos termos do Código de Ética no momento da investidura. 5. (FEPESE, 2019) Leia o fragmento a seguir. A ética profissional garante um ambiente de trabalho produtivo e seguro. A fim de expli- citar os padrões éticos para uma determinada classe profissional, foram instituídos os ____ que têm por finalidade tornar claro o pensamento de uma dada classe profissional, de modo a comprometer seus integrantes com os objetivos particulares da profissão, respei- tando os princípios ____ da ética. Assinale a alternativa cujos itens completam corretamente as lacunas do fragmento aci- ma. a) Códigos de conduta - universais. b) Regulamentos - legais. c) Códigos de conduta - legais. d) Regulamentos - universais. e) Regulamentos - morais. 6. (FEPESE, 2019) É característica importante para o atendimento ao público a demons- tração de: a) Presteza e intolerância. b) Ineficiência e educação. c) Cortesia e falta de paciência. d) Pernosticidade e postura profissional. e) Objetividade na comunicação e postura profissional. 7. (FAUEL, 2019, adaptada) Leia com atenção a definição a seguir e assinale o termo cor- respondente. É um conjunto de valores e normas de comportamento e de relacionamento adotados no ambiente de trabalho, no exercício de qualquer atividade. Ter essa conduta é saber construir relações de qualidade com colegas, chefes e subordinados, contribuir para bom funcionamento das rotinas de trabalho e para a formação de uma imagem positiva da instituição perante os públicos de interesse, como acionistas,clientes e a sociedade em 78 geral. (Fonte: Guia da Carreira) a) Cidadania e urbanidade. b) Ética profissional. c) Relações humanas. d) Sociedade de consumo. e) Moralidade e responsabilidade. 8. (FEPESE, 2019) Analise as afirmativas abaixo que tratam de Ética e Responsabilidade Social nas organizações: 1. As organizações contemporâneas devem valorizar o comportamento ético de seus fun- cionários e agir de forma responsável em relação ao seu ambiente de atuação. 2. As organizações contemporâneas devem buscar seus resultados independentemente dos padrões éticos e morais empregados para obtê-los. 3. A responsabilidade social é sempre um custo desnecessário para as organizações. 4. Ações de responsabilidade social podem valorizar a imagem organizacional. Assinale a alternativa que indica todas as afirmativas corretas. a) É correta apenas a afirmativa 1. b) É correta apenas a afirmativa 2. c) São corretas apenas as afirmativas 1 e 3 d) São corretas apenas as afirmativas 1 e 4. e) São corretas apenas as afirmativas 2 e 3. 79 RESPOSTAS DO FIXANDO O CONTEÚDO UNIDADE 1 UNIDADE 3 UNIDADE 5 UNIDADE 2 UNIDADE 4 UNIDADE 6 QUESTÃO 1 A QUESTÃO 2 B QUESTÃO 3 B QUESTÃO 4 D QUESTÃO 5 B QUESTÃO 6 A QUESTÃO 7 E QUESTÃO 8 C QUESTÃO 1 A QUESTÃO 2 E QUESTÃO 3 D QUESTÃO 4 D QUESTÃO 5 C QUESTÃO 6 D QUESTÃO 7 C QUESTÃO 8 C QUESTÃO 1 B QUESTÃO 2 C QUESTÃO 3 C QUESTÃO 4 C QUESTÃO 5 E QUESTÃO 6 A QUESTÃO 7 A QUESTÃO 8 C QUESTÃO 1 C QUESTÃO 2 B QUESTÃO 3 D QUESTÃO 4 C QUESTÃO 5 A QUESTÃO 6 D QUESTÃO 7 D QUESTÃO 8 C QUESTÃO 1 B QUESTÃO 2 E QUESTÃO 3 D QUESTÃO 4 A QUESTÃO 5 B QUESTÃO 6 B QUESTÃO 7 C QUESTÃO 8 E QUESTÃO 1 E QUESTÃO 2 A QUESTÃO 3 A QUESTÃO 4 B QUESTÃO 5 A QUESTÃO 6 E QUESTÃO 7 B QUESTÃO 8 D 80 BES, P. et al. Sociedade, cultura e cidadania. Porto Alegre: Sagah, 2018. BITTAR, E. C. B. Curso de ética jurídica: ética geral e profissional. São Paulo: Saraiva, 2018. BOBBIO, N. O Filósofo e a Política: Antologia. Tradução de César Benjamim, Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003. BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. 563 p. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, [1988]. Disponível em: https://bit.ly/2Gd7tdY. Acesso em: 05 dez. 2020. CAMPANTE, R. G. O patrimonialismo em Faoro e Weber e a sociologia brasileira. Dados, Rio de Janeiro, v. 46, n. 01, p. 153-193, 2003. Disponível em: https://bit.ly/3031cs3. Acesso em: 11 fev. 2021. CARVALHO, J. M. D. Cidadania no Brasil: o longo caminho. São Paulo: Civilização Brasileira, 2004. FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, v. II, 2000. FERRAZ JR., T. S. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2019. FURROW, D. Ética: conceitos-chave em filosofia. Tradução de Fernando José R. da Rocha. Porto Alegre: Artmed, 2007. 184 p. KELSEN, H. Teoria pura do Direito. Tradução de João Batista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. LOPES FILHO, A. R. I. et al. (Org.). Ética e cidadania. Porto Alegre: SAGAH, 2018. LUNA, F. V.; KLEIN, H. S. História econômica e social do Brasil: o Brasil desde a república. São Paulo: Saraiva, 2016. MAQUIAVEL, N. O Príncipe. Tradução de Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. MATIAS, E. F. P. A Humanidade e suas fronteiras: do Estado soberano à sociedade global. São Paulo: Paz e Terra, 2014. MIRANDA, J. Teoria do Estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 81 MORAES, A. D.; KIM, R. P. (Coord.). Cidadania: O novo conceito jurídico e a sua relação com os direitos fundamentais individuais e coletivos. São Paulo: Atlas, 2013. MORRIS, C. Os grandes filósofos do Direito: Leituras escolhidas em direito. Tradução de Reynaldo Guarani. São Paulo: Martins Fontes, 2002. (Coleção Justiça e Direito). REIS, F. W. Dilemas da Democracia no Brasil. In: MELO, C. R.; SÁEZ, M. A. (Org.). A Democracia Brasileira: Balanço e Perspectivas para o Século 21. Belo Horizonte: Editora UFMG, v. 1, 2007. p. 453-484. SANTOS, W. G. D. Razões da desordem. São Paulo: Rocco, 1994. 152 p. WEBER, M. Politics As a Vocation. Philadelphia: Fortress Press, 1965. WEFFORT, F. C. Formação do pensamento político brasileiro: ideias e personagens. São Paulo: Ática , 2011. 82 graduacaoead.faculdadeunica.com.br