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Repressão 1915 Resumo por Guilherme Magnoler Guedes de Azevedo Introdução Em seu belicoso artigo de 1914, A História do Movimento Psicanalítico, Freud declarou que a repressão era a pedra angular do edifício teórico da psicanálise. O conceito faz parte da história da ciência criada por ele, e podemos dizer, sem medo, que a compreensão desse fenômeno coincide com a criação da psicanálise como disciplina. De fato, a repressão foi um dos temas que opuseram Freud e Breuer e fez com que o primeiro criasse a nova ciência. Freud foi levado ao conceito de repressão pela descoberta da resistência, compreendida como uma força que se opunha ativamente à lembrança de ideias inconscientes. A partir daí foi fácil concluir que essa mesma força seria a responsável por ter tornado a ideia inconsciente em primeiro lugar: repressão foi o nome dado a essa ação de tornar algo inconsciente. No presente texto, Freud apresenta o assunto de forma mais elaborada. Na nota introdutória ao texto, do editor da standard edition, nos deparamos com a afirmação de que a descoberta da resistência se deveu ao abandono da hipnose. Esse equívoco está disseminado entre praticamente todos os psicanalistas, que foram levados a assim pensar pelo próprio Freud, que faz essa afirmação algumas vezes ao longo de sua obra. Não tenho espaço aqui para abordar o tema, mas gostaria de deixar claro que a descoberta da resistência e o abandono da hipnose foram acontecimentos que ocorreram de forma concomitante, de maneira que é impossível dizer o que de fato veio primeiro. Essa interpretação fica clara quando fazemos uma leitura minuciosa do livro Estudos sobre a Histeria, de Freud e Breuer. De início Freud utilizava a termo repressão como sinônimo de defesa e oscilava entre os dois termos. Com o tempo, utilizou o segundo de forma mais abrangente, e a repressão passou a ser um tipo específico de defesa. O conceito de repressão não foi utilizado por Freud apenas para designar uma ideia que foi esquecida, como é comum de acontecer na histeria, mas também se refere a pensamentos que tenham tido seus elos de ligação com outras ideias rompidos, mesmo que a ideia reprimida em si mesma não tenha sido esquecida, o que é comum na neurose obsessiva, como veremos. O texto No texto O instinto e suas vicissitudes, Freud havia apresentado quatro destinos dos impulsos, sendo um deles a repressão, para o qual reservou o presente artigo. A repressão é, portanto, uma das vicissitudes do instinto. Consiste em uma espécie de fuga. Se o que estivesse em jogo fosse um estímulo vindo do exterior, o apropriado seria fugir, contudo, como não conseguimos fugir de nossos próprios desejos e impulsos, o ego lança mão da repressão. Freud diz: A repressão é uma etapa preliminar da condenação, algo entre a fuga e a condenação; trata-se de um conceito que não poderia ter sido formulado antes da época dos estudos psicanalíticos. (p. 151) Mas por que uma ideia sofre esse destino? Com certeza, porque a realização do impulso causaria desprazer ao ego. Ou seja, mesmo sabendo que toda satisfação instintual é prazerosa, temos que admitir que em alguns casos esse prazer instintual causa desprazer moral ao ego, que o sente como repudiável, sendo necessário dele se afastar. Portanto, há aqui um jogo de forças: para que a repressão ocorra é necessário que o desprazer moral obtido pela satisfação do impulso seja maior do que a quota de prazer. Segundo Freud, “a essência da repressão consiste simplesmente em afastar determinada coisa do consciente, mantendo-a à distância.” (p. 152) Freud diz que a repressão não é um mecanismo de defesa que existe desde o início, pois exige certa integração do ego e precisa que a separação entre consciente e inconsciente já tenha se estabelecido. A repressão só pode surgir quando “tiver ocorrido uma cisão marcante entre a atividade mental consciente e a inconsciente” (p. 152) Segundo Freud, antes disso, os impulsos eram rechaçados de outras formas, ou seja, tinham outras vicissitudes, que foram apresentadas em seu texto sobre os instintos: a reversão em seu contrário e o retorno ao próprio eu. Em seguida Freud diz: ... em vista da grande extensão da correlação entre repressão e o que é inconsciente, devemos adiar o exame mais aprofundado da natureza da repressão até que tenhamos aprendido mais sobre a estrutura da sucessão de agentes psíquicos e sobre a diferenciação entre o que é inconsciente e consciente. (p. 152) Depois da citação acima, entre colchetes, o tradutor diz: “ver o artigo seguinte”, ou seja, o texto sobre o inconsciente. Eu gostaria de tecer alguns comentários sobre essas últimas afirmações de Freud. Vemos que Freud admite a existência de mecanismos de defesa mais primitivos do que a repressão, que atuam antes que exista uma separação entre o inconsciente e o consciente. Podemos ver aqui Freud falando daquilo que hoje chamamos de “irrepresentável”? Ou seja, um conteúdo que é anterior à simbolização? Acredito que sim, embora formulado de maneira muito insipiente. Outro ponto interessante é aquele no qual Freud diz que a repressão só pode existir após a cisão “marcante entre consciente e inconsciente”. Mas, se assim for, ou seja, se a repressão só puder existir após a criação de um inconsciente, o que é que cria esse inconsciente? Podemos apelar para a ideia, já apresentada por Freud anteriormente, de que toda ideia é, primeiramente, inconsciente. Então, Freud deve estar se referindo à simbolização de maneira geral, consciente e inconsciente, ou seja, a repressão só pode atuar sobre representações. Isso é real, mas algo fica sem resposta, a saber: esse inconsciente inicial, não reprimido, seria dinâmico? Ou apenas inconsciente no sentido descritivo. Em outras palavras, o que funda o inconsciente sistemático e dinâmico não é a repressão? Caso não, qual a diferença entre o material inconsciente inicial de uma representação e um conteúdo reprimido? Não sabemos, no momento, qual a saída que Freud dará a essa questão. Portanto, teremos que aguardar a sequência de seu pensamento. Depois de ter adiado a discussão, Freud diz que o que tem de concreto são “algumas características da repressão que tenham sido observadas clinicamente” (pp. 151-153) Ele diz: Temos motivos para supor que existe uma repressão primeva, uma primeira fase de repressão, que consiste em negar entrada no consciente ao representante psíquico (ideacional) do instinto. Com isso estabelece-se uma fixação...” (p. 153) No parágrafo acima, Freud aborda o tema que havíamos levantado, e parece tentar resolvê-lo por meio do artifício de uma repressão originária. Penso, contudo, que a resolução é insatisfatória. Analisemos a passagem. A repressão primeva nega a entrada de uma representação na consciência. Se isso acontece, então havia uma representação existente, ou seja, um representante ideacional do instinto. Se a este foi negada entrada em algum lugar, somos obrigados a concluir que estava fora desse lugar, portanto, inconsciente. Se, ao mesmo tempo, ainda não tinha sido reprimido, pois ele sofrerá uma repressão primeva, originária, então, esse representante era ao mesmo tempo inconsciente e não reprimido. E era, ao mesmo tempo, uma representação, ou seja, não se trata do irrepresentável. A única explicação possível, nesse ponto, é de que fosse inconsciente no sentido descritivo apenas e não no sentido de um sistema inconsciente. Mas, se assim for, esse inconsciente seria na realidade pré-consciente, e não existiria ainda uma “cisão marcante entre a atividade mental consciente e a inconsciente”, como havia afirmado Freud um pouco antes. Por enquanto, a questão não foi resolvida, e a meu ver nunca foi, até hoje. Portanto, existe uma repressão originária que não permite que um representante psíquico (inconsciente) entre na consciência. Ele é então reprimido, e ocorreo que Freud chama de fixação, ou seja, a representação fica inalterada e grudada ao instinto. Freud continua da seguinte forma. A segunda fase da repressão, a repressão propriamente dita, afeta os derivados mentais do representante reprimido, ou sucessões de pensamento que, originando-se em outra parte, tenham entrado em ligação associativa com ele. Por causa dessa associação, essas ideias sofrem o mesmo destino daquilo que foi primevamente reprimido. Na realidade, portanto, a repressão propriamente dita é uma pressão posterior. (p. 152) Essa passagem é mais fácil de entender. Os representantes psíquicos primevamente reprimidos criam na consciência derivados, ou seja, representações que se associam a ele em diferentes níveis e que poderiam levar ao desvelamento daquilo que está reprimido, por terem com esse material significados semelhantes. Esses conteúdos, que poderiam levar o indivíduo na direção do reprimido, acabam tendo que ser reprimidos também, devido justamente a seus elos associativos com o que foi originalmente recusado. Essa segunda fase da repressão, diz Freud, é a repressão propriamente dita, pois é ela que causa grande perda de conteúdos mentais, uma vez que os laços associativos com o representante reprimido são em grande número. Dependendo da quantidade de material psíquico que se associa ao representante originário, uma cadeia grande de ideias terá que ser reprimida, pois levaria o sujeito na direção exata daquilo que quer evitar. Esse processo, a repressão propriamente dita é o que causa empobrecimento neurótico do ego. Ou seja, o instinto originalmente reprimido “prolifera no escuro”, fazendo ligações com outros conteúdos ideacionais. A passagem seguinte deixa isso claro. ...a repressão não impede que o representante instintual continue a existir no inconsciente, se organize ainda mais, dê origem a derivados, e estabeleça ligações. (p. 153) Esses derivados darão ao material reprimido diferentes formas de se expressar na vida consciente, por meio do deslocamento. É importante lembrar que a repressão não precisa tirar da consciência todos os derivados do recalque originário. Se eles tiverem suficientemente afastados do reprimido, poderão permanecer na consciência. Ou seja, se os vínculos associativos forem muitos, de forma que apenas uma análise cuidadosa pudesse levar até o recalcado, não seria necessário que a repressão atingisse esse material. A resistência contra os materiais conscientes diminui de acordo com a distância deles em relação o recalcado. Aqui percebemos em que consiste a técnica psicanalítica. Pedimos que o paciente associe livremente, para produzir conteúdos que estejam suficientemente afastados do reprimido para poderem ser ditos, mas que, ainda assim, mantenham, via deslocamento, relação com o material reprimido. Ao apresentar suas associações, o paciente, em algum momento, se aproxima demais do recalcado, que é quando se detém. Os sintomas neuróticos também são derivados do reprimido, e é por meio deles que o material inconsciente muitas vezes encontra caminho, de forma distorcida, até a consciência. Outro elemento fundamental que influencia a repressão é o nível de catexia da ideia recalcada, além de sua proximidade com outras representações. Uma ideia pouco investida libidinalmente não precisa ser reprimida. Portanto, o fator quantitativo é decisivo para que surja um conflito e a ideia precise ser reprimida. É a intensidade do conflito que leva à repressão. Ou seja, não só o impulso deve ser intenso, mas a recusa ao mesmo. Vemos, portanto, que um enfraquecimento da instância crítica também pode levar a uma diminuição da repressão. Outra forma de se afastar de uma ideia insuportável é idealizando seu contrário, como por exemplo um homem egoísta que se faz passar insistentemente por altruísta, ou um homessexual latente que precisa provar sempre sua heterosessualidade. Uma vez que o nível de intensidade de sua catexia e a proximidade com o reprimido são tão relevantes para determinar se um impulso deve ser reprimido, concluímos que a repressão atua de maneira extremamente individual, sendo que cada ideia recebe seu destino de acordo com o quanto consegue incomodar o indivíduo. Há outro aspecto importante, que é o fato de que a repressão não é algo que é realizado uma vez e pronto, da mesma forma que se mata um ser vivo e a partir de então o mesmo fica morto. A ideia reprimida, pelo contrário, não morre. Freud diz: ... a repressão exige um dispêndio persistente de força, e se esta viesse a cessar, o êxito da repressão correria perigo, tornando necessário um novo ato de repressão. Podemos supor que o reprimido exerce uma pressão continua em direção ao consciente, de forma que essa pressão pode ser equilibrada por uma contrapressão incessante. (p. 156) É por isso que quando a repressão é eliminada o resultado é uma espécie de poupança, ou seja, sobra de energia. Até agora, Freud tratou da repressão da ideia, do representante ideacional do instinto, que é catexizado com uma quota de energia (libido). Mas nada falou, até o momento, do outro elemento representativo do instinto, que, diante da repressão, passa por vicissitudes diferentes do representante ideacional. Este outro elemento é a quota de afeto. Ou seja, ao descrevermos um caso de repressão, precisamos dizer o que é que acontece com a energia que estava ligada à ideia. O fator quantitativo do representante do instinto pode sofrer três destinos: 1) Ser totalmente suprimido, desaparecer. 2) Aparecer como algum tipo de afeto específico. 3) Ou ser transformado em ansiedade. Se a finalidade da repressão é evitar o desprazer, podemos concluir que o destino do afeto é mais importante do que da ideia. Se a repressão não evita ansiedade ou sentimentos de desprazer, então ela falhou, pelo menos naquilo que é essencial. Em seguida, Freud levanta a questão de saber se existe apenas um mecanismo de repressão ou se existem vários, ou seja, se cada neurose teria seu próprio tipo de repressão. Em primeiro lugar, Freud distingue o mecanismo da repressão daquele que produz formações substitutivas e sintomas, estes, segundo ele, são criados a partir do retorno do reprimido. Portanto, Freud diz que seria aconselhável examinar os mecanismos que criam as formações substitutivas e os sintomas antes de analisar a repressão em si mesma. Contudo, continua ele: Sugiro... que adiemos essa tarefa até que tenhamos formado concepções dignas de confiança a respeito da relação entre o consciente e o inconsciente. Mas, a fim de que o presente exame não seja de todo infrutífero, direi de antemão que (1) o mecanismo da repressão de fato não coincide com o mecanismo ou mecanismos de formação de substitutos, (2) existem numerosos e diferentes mecanismos de formação de substitutos e (3) os mecanismos de repressão têm pelo menos uma coisa em comum: uma retirada da catexia de energia (ou da libido, quando lidamos com os instintos sexuais). (p. 159) Apesar de dizer isso, Freud analisará, em seguida, de forma resumida, como as coisas se dão nas três diferentes psiconeuroses: histeria de angústia (fobia), histeria de conversão e neurose obsessiva. Na histeria de angústia o impulso reprimido é a atitude libidinal para com o pai, aliada ao medo do mesmo (Freud está provavelmente fazendo uma referência ao homem dos lobos, caso cujo relato viria à luz três anos depois). O representante ideacional do impulso, uma vez reprimido, desaparece completamente da consciência. Como substituto do pai, entra em cena um animal que se preste a ser ameaçador. Ou seja, via deslocamento, se forma uma reação substitutiva. A parcela quantitativa, o afeto, não desaparece, mas é transformado em ansiedade, agora sentida em relação ao animal que é colocado no lugar do pai. No caso específico do homem dos lobos, o resultado foi um medo de lobos. Esseé um caso, naturalmente, no qual a repressão falhou, uma vez que Freud já havia indicado que a parte mais importante dela é a exclusão do afeto e, aqui, este se mantém na forma de ansiedade, mantendo o sentimento de desprazer. E é exatamente por esse motivo que o trabalho da neurose continua, se estendendo para a fase da fobia, que é a evitação de locais e situações que possam fazer emergir a ansiedade e o desprazer. Na histeria de conversão, o processo de repressão se dá de forma diferente. Nesse caso, pode acontecer de a quota de afeto ser totalmente suprimida, de modo que a histérica pode ter em relação a seus sintomas aquilo que Charcot chamava de “a bela indiferença” das histéricas. Em alguns casos, naturalmente, o afeto pode não ser totalmente suprimido, de modo que a angústia faça parte do quadro e possa, inclusive, colocar em marcha o desenvolvimento de uma fobia. Assim como no caso da fobia, a ideia que representa o instinto é totalmente retirada da consciência. Como substituto deste temos uma forte inervação somática (sensorial, ou motora, uma inibição funcional, uma excitação). A área afetada no corpo tem relação simbólica com o representante reprimido, assim como seu contexto ideacional. No caso do contexto ideacional, este é condensado no sintoma, de modo que vimos agindo aqui, como na formação de sonhos, o deslocamento e a condensação. Uma vez que a quota de afeto desaparece, podemos dizer que a repressão alcança maior êxito na histeria de conversão. Já na neurose obsessiva, ocorre um caso bem diferente no processo de repressão. Em primeiro lugar, não temos como nos decidir a favor de qual componente instintual é mais importante na repressão, se o libidinal ou o hostil. Na realidade, são ambas as coisas, ou seja, é um impulso hostil em relação ao objeto amado que é reprimido. O efeito da repressão no início do processo é diferente daquele de uma fase mais avançada do mesmo. Ou seja, ela é bem sucedida de início e não tão bem sucedida no final das contas. Portanto, no começo tanto o conteúdo representacional é rejeitado quanto o afeto a ele ligado desaparece. A formação reativa que surge como consequência é uma alteração na consciência, ou seja, uma maior exigência em relação a algumas questões da vida cotidiana, que de início mal se parecem com um sintoma. De fato, muitos neuróticos obsessivos, nessa primeira etapa, se sentem apenas pessoas, organizadas, preocupadas com que as coisas se passem de determinada maneira, etc. Nesse ponto, tudo parece em equilíbrio. Vemos que a formação substitutiva, até esse ponto, não coincide exatamente com o sintoma. O mecanismo de repressão aqui é diferente, ou seja, em vez do esquecimento da ideia, o que acontece é o fortalecimento de outra que torne a ideia reprimida supérflua, geralmente seu oposto, por exemplo, uma mulher com fortes tendências perversas se transforma em devota. A ideia de que há perversão no mundo e nas pessoas não precisa desaparecer. Na verdade, a pessoa pode inclusive trabalhar no auxílio e tratamento de mulheres perversas, de modo que o conteúdo ideacional se encontra em sua “consciência”, no sentido descritivo, pois, do ponto de vista sistemático, está reprimido. Teríamos uma devota bastante pura e organizada. Contudo, se a repressão de início funciona muito bem, o que acontece é que esse sucesso não se sustenta, de modo que seu fracasso se torna cada vez mais acentuado. O afeto desaparecido, acaba por retornar na forma de autocensuras ilimitadas, embora deslocadas. Em geral, esse deslocamento é para algo insignificante e pequeno. Em outras palavras, o recalcado tenta fazer seu caminho de volta e acaba sendo colocado em um material inócuo do ponto de vista do perigo instintual, mas que torna a vida da pessoa insuportável. Portanto, a repressão acaba falhando e colocando em jogo um processo de fuga e evitações semelhantes àquele que acontece nas fobias. O paciente se vê diante de uma batalha interminável e numa luta estéril, da qual não consegue sair.
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