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INTRODUÇÃO O filme conta a estória de Val, uma empregada doméstica como tantos outros trabalhadores, que deixa sua cidade natal em busca da realização do sonho de uma vida melhor numa grande metrópole. Val mora na casa de uma família de classe média alta em São Paulo e o filme faz uma crítica velada de como as relações de poder permeiam a classe trabalhadora e os patrões. Bárbara - patroa de Val, não perde a oportunidade de frisar que a empregada faz parte da família e finge se importar com seus assuntos. Contudo, Val, que na casa dos patrões ocupa o quarto dos fundos da casa - sem conforto algum, apesar de na casa existir um quarto de hóspede aconchegante, não tem percepção da relação opressor e oprimido e aceita como natural o tratamento dispensado a ela. As coisas passam a mudar com a chegada de Jéssica - filha de Val, que vindo de Pernambuco para prestar vestibular numa renomada faculdade de São Paulo, ignora o padrão desprezível e humilhante de relação entre os patrões e a empregada - Val e passa a ter comportamentos que logo são considerados repulsivos pela patroa e reprováveis por sua própria mãe. Jéssica demonstra estranheza quanto as evidências do cotidiano vivenciadas pela sua mãe na casa dos patrões e sua crítica filosófica - por assim dizer, é manifestada através de seu comportamento que refuta a questão social e as relações de poder impregnada culturalmente na sociedade brasileira. Quando Val recebe a notícia de que Jéssica tirou uma nota alta no vestibular e que Fabinho, filho da patroa não logra o mesmo êxito, olha para dentro de si e pela primeira vez não se enxerga menor que a patroa. Este acontecimento é o marco para a reflexão de viés libertador. Val então, entra na piscina dos patrões – algo que nunca tinha feito, liga para a filha para contar o inédito, diz que está muito orgulhosa com o resultado do vestibular e pede demissão do emprego. O comportamento de Jéssica representa a ruptura do sistema social estabelecido entre as classes e desperta em Val, ainda que de forma tímica, um olhar crítico sobre a realidade a que estava submetida. ANÁLISE DO CASO No decorrer do filme, Bárbara – a patroa, repetida vezes afirma que Val é “praticamente da família”. Contudo, interrompe sua fala, finge se importar com seu bem- estar e chama Jéssica de “tadinha”, pelo fato de a menina ter cursado o ensino médio numa escola pública no estado do nordeste e almeja uma vaga na renomada universidade de São Paulo. Bárbara subestima a capacidade de Jéssica e tem desprezo pela situação “marginal” da garota. Jéssica por sua vez, tem senso crítico, é curiosa, inteligente e questionadora. Considera estranho a mãe morar na casa dos patrões, dormir no pior quarto da casa, ser tratada de forma desprezível e aceitar esse padrão como “normal”. Segundo Patto (1997), a formação que o psicólogo recebe no decorrer de sua vida acadêmica, contribui para a atuação e a perpetuação do modelo opressor e oprimido enraizado nos processos de educação escolar. Para a autora, existe um padrão estereotipado, preconceituoso e engessado de testes e observações realizados pelos profissionais da área que desconsidera as realidades objetivas das populações consideradas pelo senso comum de “marginais”. Em outras palavras, a relação entre psicologia, educação e desigualdade social - não pode ser pensada sem considerar as especificidades econômicas, sociais, políticas, culturais e a própria história da psicologia da educação; caso contrário, o psicológico escolar não passará de “mantenedor” de um programa cuja crença é de que no processo escolar, a neutralidade política e filosófica deve imperar e a culpa do fracasso escolar é sempre do aluno. Jéssica come na mesa dos patrões, toma banho na piscina da casa, pede para dormir no quarto de hóspedes porque lá tem uma mesa para apoiar seus livros de estudo e considera anormal a mãe aceitar ser tratada como inferior. No filme, Val repreende a filha dizendo que quando os patrões oferecem alguma coisa é porque sabem que os empregados não vão aceitar; e em outro momento chama a menina de metida, diz que ela se acha melhor que os outros - ao que Jéssica responde que “não é melhor mas também não é pior que ninguém”. De acordo com Patto (1997), marginalidade, carência ou privação cultural são termos da psicologia utilizados para designar as condições dos indivíduos pertencentes às classes oprimidas. Fazendo uso de padrões da cultura dominante, os problemas apresentados pelas crianças em idade escolar, apontam para a ausência de experiências vividas em ambientes que não transmitem os padrões de cultura considerados adequados para o desenvolvimento do comportamento tido como ideal para o início da educação formal nas escolas públicas. Logo, a teoria da carência social deturpa as concepções sobre educação no sentido que atribui o fracasso escolar à privação cultural comparado ao padrão da cultura dominante, desconsiderando as características psicossociais e pedagógicas destas crianças. O filme retrata a estória sob o ponto de vista da emprega Val, que se muda de Pernambuco para São Paulo em busca de condições melhores de vida; Val não dispõe de casa própria, não enxerga valor em si mesma, não visualiza um futuro diferente e considera ingenuamente natural ser tratada com indiferença; até que Jéssica, despida de estereótipos, desperta - por assim dizer, a ruptura do padrão que dita regras e papéis de acordo com a classe social. Dado o contexto, é possível afirmar que existe uma ideologia de que a solução “chave” para o problema da “marginalização” e das desigualdades sociais estão nos programas de educação compensatória - que tem por objetivo promover a igualdade de oportunidades. Nas palavras de Patto (1997, p. 268): As crenças dos ideólogos da educação liberal (por exemplo, Dewey, nos Estados Unidos, e seu discípulo Anísio Teixeira, no Brasil) de que as injustiças sociais, materializadas na extrema pobreza da maioria da população, pudessem ser abolidas através da igualdade de oportunidade de acesso à educação escolar, viabilizada pelo aumento do número de vagas disponíveis no ensino público, não passa de ilusão. Dito de outro modo, a posição ideológica da psicologia que favorece a manutenção das desigualdades sociais é essa, que ignora a dimensão da realidade social, as relações de poder e atribui à educação o papel de pôr fim às desigualdades sociais. Cheia de discursos lacunares - espaços em branco, por assim dizer - silenciam as barbáries sociais, as divisões de poder e as divisões de sociedade. Logo, não existe conhecimento desinteressado e a ideologia da educação compensatória é o pano de fundo para a formação de mão de obra necessária ao desenvolvimento econômico de uma sociedade industrial capitalista (PATTO, 1997). Nesta mesma linha, Patto afirma (2022, p.174): (...) sabemos que as medidas que compõem a política educacional de um país não são neutras nem visam efetivamente ao benefício e todos. Nos países capitalistas, além de trazerem um novo alento à crença de que o Estado está empenhado numa promoção social não-discriminativa e de manterem, por algum tempo a ilusão da possibilidade de ascensão através do sistema educacional (...), as mudanças na política educacional, como as que dizem respeito à pré-escola, parecem ter (...), dois outros resultados: em primeiro lugar, aumentam a rentabilidade do sistema de ensino, enquanto qualificador de mão-de-obra, na proporção exigida pelo atual modelo econômico de internacionalização do mercado interno; em segundo lugar, disseminam a crença de que todos os esforços estão sendo empenhados no sentido de escolarizar os filho da pobreza e de sanar suas deficiências(...). No filme, Jéssica explica aos patrões o motivo da escolha da faculdade de arquitetura e menciona alguns pontos importantes. Afirma que considera o cursode arquitetura um instrumento de mudança social e que, a despeito de não ter estudado na melhor escola, teve um professor de história que tinha uma visão muito crítica das coisas e instigava os alunos a pensar. A educação tradicional tem o viés de perpetuar a divisão de classe. Padronizada e engessada, ela impede que o aluno pense de forma politicamente crítica (PATTO, 1997). Citando Patto, Viegas explica: (...) ultrapassando as publicações especializadas, os termos carência, deficiência e privação cultural estavam consolidados como explicação dominante do fracasso escolar de pessoas pertencentes às chamadas “classes oprimidas”. Em sua análise, o Brasil ficou anos mergulhado em importações não-críticas e produções acríticas sobre o tema. Assim, mesmo quando tais termos eram questionados, o debate não atingia o cerne, mantendo uma lacuna básica: a falta de uma “percepção solidamente fundamentada do papel que estas classes desempenham numa sociedade capitalista”. (PATTO, 1981, p. 220 apud VIEGAS, 2023). Neste sentido, no âmbito escolar, a psicologia do oprimido serve de instrumento à violência contra as classes oprimidas. Longe de uma verdadeira psicologia popular, ela perpetua o padrão estereotipado, preconceituoso e alheio às realidades objetivas. E para Patto (1997, p.77), “a configuração de um corpo de conhecimentos sobre a dimensão psicológica dos integrantes dessas classes sociais é uma tarefa que está para ser feita (...)”. Na mesma linha de raciocínio, fazendo uso das ideias de Paulo Freire, Patto critica o sistema de educação bancária e afirma (1997, p. 59): Não é de se estranhar, pois, que nesta visão ‘bancária” de educação, os homens sejam vistos como seres da adaptação, do ajustamento. Quanto mais se exercitem os educandos no arquivamento dos depósitos que lhe são feitos, tanto menos desenvolverão em si a consciência crítica de que resultaria a sua inserção no mundo, como transformadores dele. Como sujeitos. Logo, sendo o homem um ser consciente, capaz de dizer não ao senso comum e de ter uma posição filosófica, crítica e política, a autora rechaça a educação como prática de dominação. Em contraponto à educação bancária, a educação libertadora - também chamada de problematizadora, enfatiza a consciência intencional, a capacidade de questionar, refletir e gerar ações de transformação social. (PATTO, 1997). No filme, quando Jéssica diz que um professor de história a auxiliou muito no processo de escolarização, ela afirma que ele a ajudou “a pensar”. Esta é por assim dizer, a ideia principal da educação libertadora – a prática intencional e consciente de pensar. O filme retrata a estória de Val com humor, apresenta uma personagem alegre e alienada num padrão que não nota. A maioria dos telespectadores também não é capaz de identificar a clara divisão de classes que alimenta o sistema opressor e oprimido cuja crítica principal o filme deseja narrar. Este sistema faz parte da cultura dos brasileiros e no âmbito da psicologia escolar é retroalimentado pelas clássicas práticas de ensino. Nesta linha, Patto preconiza a necessidade de teorias e práticas críticas na psicologia escolar. A autora incentiva a crítica do conhecimento, seu compromisso com os valores e com os aspectos históricos e refuta qualquer ideia de filosofia que não considere a historicidade do homem, seu contexto, sua dimensão política e social. Nas palavras da autora (1997 p. 277): (...) enquanto o professor desempenha seu papel de “professor-policial” (Nidelcolff, 1978) de uma maneira mais clara, o psicólogo, com seu arsenal de instrumentos de medida, seus critérios de normalidade e sua falta de conhecimento das características de formação social em que atua, desempenha este mesmo papel de maneira mais sutil, porque escudado numa pretendida neutralidade científica. CONCLUSÃO Em seus estudos, Patto enfatiza a necessidade de os psicólogos repensarem o compromisso político de seu saber e sua capacidade de criticar a própria ciência que pratica. A autora rechaça a prática da psicologia escolar no modelo clássico que além de engessado, considera a escola uma instituição politicamente neutra. Sem dúvida, o sistema escolar tradicional é todo articulado para atender aos interesses da classe dominadora. Os programas de educação compensatória por exemplo, vendem a ideia de que as desigualdades sociais serão resolvidas através da igualdade de oportunidades de acesso à educação escolar e essa é de longe, uma ideologia psicológica que retroalimenta a manutenção das desigualdades sociais - pois ignora a dimensão da realidade social, as relações de poder e as divisões de sociedade. Aliado a isso, tem-se uma prática de ensino, a qual Paulo Freire conceituou de “educação bancária”, que verticaliza a relação professor-aluno e impede que este último elabore sua crítica filosófica a partir do contexto social em que vive. E a psicologia do oprimido, endossando as tradicionais práticas de ensino escolar, serve de estímulo à ingenuidade, ao medo da liberdade e à perpetuação dos padrões opressor e oprimido arraigados no sistema escolar. Dito isso, depreende-se do estudo, a premente necessidade de uma educação libertadora, questionadora - que priorize e estimule a capacidade de pensar do aluno, capacidade de argumentar e a partir disso, ele ser capaz de gerar ações de transformação social. E por fim, mas não menos importante, destaca-se que teorias e práticas críticas na psicologia escolar é primordial, e dada à relação de poder existente entre as classes sociais e sua correlação com o fracasso escolar, cabe ao psicólogo o papel de repensar sua própria formação, problematizar o mito do conhecimento acima de qualquer suspeita e refutar as teorias que ignoram a dimensão da realidade concreta. REFERÊNCIAS PATTO, M. H. S. Introdução à Psicologia Escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1997. PATTO, M. H. S. Psicologia e ideologia: uma introdução crítica à psicologia. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2022. Que horas ela volta? Direção de Anna Muylaert. Produção Fabiano Gullane Caio Gullane, Débora Ivanov, Anna Muylaert. Globo Filmes. Brasil: 2015 (114 min). VIEGAS, L.S. Lições de rebeldia: o materialismo histórico-dialético na obra de Maria Helena Souza Patto. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/54281/29040, acessado em 20.08.2023.