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HISTÓRIA E CULTURA AFRO- BRASILEIRA E INDÍGENA INTRODUÇÃO 1 O BRASIL ANTES DO BRASIL Existem evidências arqueológicas de que o território que hoje chamamos de Brasil era ocupado por diferentes povos há mais de 12 mil anos. Entretanto, não existe consenso em relação a esse processo de ocupação: enquanto alguns pesquisadores problematizam a migração asiática pelo Estreito de Bering como única forma de chegada dos seres humanos ao continente que viria a ser conhe- cido como América, outros questionam a ideia de que os povos que ocupavam a parte sul do continente, principalmente as partes baixas (em contraposição com os povos dos Andes), eram sociedades nômades, pequenas e rudimenta- res, basicamente compostas de caçadores e coletores. Quanto a este último tópico, pesquisas recentes demonstram a existência de sociedades complexas e sofisticadas do ponto de vista tecnológico (evidenciadas por sua cerâmica) e na organização social formando os cacicados (OLIVEIRA; FREIRE, 2006). Manuela Carneiro da Cunha, uma das especialistas em história indígena no Brasil, sintetiza esses conflitos interpretativos no texto a seguir: Sabe-se que entre uns 35 mil acerca de uns 12 mil anos atrás, uma glaciação teria, por intervalos, feito o mar descer a uns 50 metros abaixo do nível atual. A faixa de terra chamada Beríngia teria assim aflorado em vários momentos deste período e permitido a passagem a pé da Ásia para a América. Em outros momentos, como no intervalo entre 15 mil a 19 mil anos atrás, o excesso de frio teria provocado a coalescência de geleiras ao norte da América do norte, impedindo a passagem de homens. Sobre o período anterior a 35 mil anos, nada se sabe. De 12 mil anos para cá, uma temperatura mais amena teria interposto o mar entre os dois continentes. Em vista disso, é tradicionalmente aceita a hipótese de uma migração terrestre vinda do nordeste da Ásia e se espraiando de norte a sul pelo continente americano, que poderia ter ocorrido entre 14 mil e 12 mil anos atrás. No entanto, há também possibilidades de entrada marítima no continente, pelo estreito de Bering [...]. Há considerável controvérsia sobre as datas dessa migração e sobre ser ela ou não a única fonte de povoamento das Américas. Quanto à antiguidade do povoamento, as estimativas tradicionais falam de 12 mil anos, mas muitos arqueólogos afirmam a existência de sítios arqueológicos no Novo Mundo anteriores a essas datas (CUNHA, 1992, p. 10). Para fins didáticos, apresentaremos a seguir o sistema de periodização da história originalmente proposto por Willey e Phillips (1958), e também seguido por Neves (1995), para o território que viria a se tornar o Brasil antes da conquista europeia. Esse sistema classificatório, ainda que seja alvo de críticas, permite que ordenemos e comparemos dados em escala continental. Lembre-se, ao empregá-lo, de não considerar essas divisões como etapas evolutivas lineares, pois se sobrepõem umas às outras. 1.1 Paleoíndio O período paleoíndio corresponderia ao estágio de adaptação dos povos migrantes às condições climáticas e geográficas do novo território (continente americano). Esse período se estenderia desde as primeiras ocupações até o final do Pleistoceno, há mais ou menos 10 mil anos. De acordo com Neves (1995, p. 177): [...] as evidências disponíveis para o paleoíndio — em sua maioria compostas por artefatos de pedra lascada — indicam uma diversidade de modos de aproveita- mento dos recursos naturais: havia populações de caçadores especializados em grandes animais e também grupos que faziam uso variado de um número maior de recursos. Tal variabilidade estava ligada às condições ecológicas específicas de cada região ocupada por essas populações. 1.2 Arcaico O período arcaico corresponderia ao estágio de adaptação das populações às condições climáticas mais próximas que possuímos atualmente, incluindo os povos caçadores. Cronologicamente, esse período estaria situando no Holoceno, estendendo-se de 10 mil anos atrás até o presente. Conforme Neves (1995, p. 177): [...] com a extinção de vários dos animais caçados pelos seus ancestrais paleoíndios, as populações arcaicas adotaram estratégias adaptativas mais diversificadas, que incluíam a exploração de recursos aquáticos, como moluscos, a caça de pequenos animais e o manejo e domesticação de várias espécies de plantas. 1.3 Formativo O período formativo corresponderia à presença e ao desenvolvimento da agricultura ou qualquer outra economia de subsistência, bem como à fixação da população em aldeias. Segundo Neves (1995, p. 177): “a prática da agricultura e a redução do nomadismo tiveram como consequência um aumento populacional significativo, e consequentemente o aumento da densidade demográfica”. É muito difícil precisar quantas pessoas e quantos povos ocupavam o território que foi conquistado pelos colonizadores europeus. Alguns etnólogos estimam que havia 1.400 povos indígenas ocupando esse espaço. Utilizando a classificação a partir das grandes famílias linguísticas, podem ser identifi- cados como Tupi-Guarani, Jê, Karib, Aruák, Xirianá, Tucano, entre outros, com imensa diversidade cultural e de organização social, em parte resultado da ocupação de diferentes espaços (OLIVEIRA; FREIRE, 2006). Há várias estimativas numéricas sobre a população indígena à época da conquista. Os pesquisadores chegam a diferentes números porque utilizam diversos métodos para elaborar suas hipóteses: alguns levam em consideração a área ocupada pelas aldeias, outros, a densidade populacional, etc. Assim, temos as seguintes estimativas: Julian Steward calculou em 1,5 milhão o número de indígenas ocupando o território atual do Brasil; William Denevan projetou, primeiramente, uma população de 5 milhões de indígenas na Amazônia, e, posteriormente, reviu essa projeção para cerca de 3,6 milhões; John Hemming elaborou uma estimativa de 2,4 milhões de indígenas, mas seus métodos foram bastante criticados (OLIVEIRA; FREIRE, 2006). Alguns pesquisadores defendem a interpretação desenvolvida por Donald Lathrap e José Brochado para a migração e ocupação territorial do Brasil. Segundo esses arqueólogos, o território brasileiro começou a ser ocupado ao longo do rio Amazonas com o povo Tupinambá, chegando ao litoral do Nordeste e ao atual estado de São Paulo. O povo Guarani, por sua vez, seguiu para o sul, chegando à foz do rio da Prata. Os povos do grande ramo Tupi eram encontrados na costa e no vale amazônico, onde dividiam espaço com grupos da etnia Aruák (principalmente nos rios Negro e Madeira) e Karib (nas Guianas e no Baixo Amazonas) (OLIVEIRA; FREIRE, 2006). Essas informações são provenientes das descrições culturais e geográficas realizadas pelos cronistas do período colonial, e é preciso assinalar que tais fontes apresentam inúmeras limitações: Frequentemente se equivocam na identificação das populações, e pouco com- preendiam como os índios se rearticulavam para fazer frente ao projeto colonial português. A incapacidade dos portugueses em subjugar alguns grupos indígenas contribuiu para identificar genericamente os índios hostis como “Tapuios”. Tal identidade ocultava as iniciativas indígenas, os processos socioculturais intertribais de aliança ou conflito com os colonizadores. (OLIVEIRA; FREIRE, 2006, p. 22). Além das descrições provenientes dos cronistas, temos as evidências ar- queológicas e os estudos provenientes da linguística histórica. Cada um desses campos apresenta inúmeras contribuições para o estudo da ocupação territorial do Brasil antes de 1500, mas também dificuldades e limitações. Se já nos referimos aos equívocos dos relatos dos colonizadores e missionários, precisamos comentar também que determinados vestígios da cultura material se perderam (em alguns casos devido à ação climática), e que o estudo dalinguística histórica só é viável se há registro da gramática das línguas (FAUSTO, 2010). Falemos um pouco mais sobre as limitações e as contribuições da linguística. O antropólogo Greg Urban (1992) afirma que a linguística, principalmente a linguística comparativa, apresenta bons resultados para estudos cujo recorte cronológico está entre 4 mil e 500 mil anos a. C. Em outras palavras, essa metodologia não contribuiria para o estudo da origem dos povos sul-americanos. Porém, com o atual estado da arte, é possível fazer alguns apontamentos O que se vê mais claramente, e com um grau maior de certeza, atualmente, é um padrão de ocupação antiga no Brasil (4000–5000 a.C.) periférico ao curso principal do Amazonas, o que pode refletir uma adaptação a cabeceiras. E podem-se localizar três grandes troncos linguísticos (Jê, Tupi e Arawak), cada qual associado a um foco em cabeceiras e/ou periférico (planalto oriental do Brasil, região da chapada dos Parecis no oeste do Brasil e na Bolívia, e centro-norte do Peru, respectivamente). Essas áreas geográficas são também locais de aglomeração de línguas isoladas, sugerindo áreas de dispersão linguística muito antiga. Uma quarta área, os altiplanos guiano-venezuelanos, área das línguas Karith, parece ser um foco secundário de dispersão, mais recente do que os outros três. As distribuições sugerem que a ocupação das terras baixas propriamente ditas se fez mais tarde, embora possa haver ocorrido incursões temporárias nessas zonas, com migrações regulares ou ocasionais de povos das cabeceiras e regiões periféricas (URBAN, 1992, p. 102). Mesmo que essas dificuldades e esses problemas sejam entendidos pe- los pesquisadores como desafios para a escrita da história, seus trabalhos permitem que conheçamos um pouco mais sobre esses povos, como veremos no próximo item. Apenas para citar um exemplo, em relação à linguística, mesmo com todas as dificuldades apresentadas, foi possível que antropólogos como Urban (1992, p. 102) afirmassem o seguinte sobre a ocupação do território brasileiro: Os dados de que dispomos atualmente indicam situações de intenso contato, multilinguismo, línguas de comércio etc. para uma região que vai do extremo oeste da bacia Amazônica para o norte e em seguida para o leste, cruzando toda a América do Sul ao norte do Amazonas. O centro e o oeste do Brasil, ao contrário, parecem ser áreas nas quais a hipótese tradicional uma língua/uma cultura/um povo tem mais credibilidade. Como um resumo desse primeiro tópico, podemos recuperar alguns consensos arqueológicos, historiográficos e linguísticos a respeito da ocupação do território do atual Brasil pelos indígenas até o século XV. Esse espaço era ocupado há pelo menos 12 mil anos quando houve o contato com os portugueses em 1500. Havia, inclusive, uma grande densidade populacional na região nordeste desde pelo menos 8 mil anos atras. Segundo Niéde Guidon (1992,p. 52): “a agricultura apareceu entre –4 mil e –3 mil, sendo praticada em todo o território nacional desde –2 mil, mesmo que de maneira restrita”. Já em relação à cultura material: “a fabricação de vasilhas em cerâmica, fora da Amazônia, parece ter sido corrente a partir de –3 mil anos, pelo menos na área arqueológica de São Raimundo Nonato, no Piauí” (GUIDON, 1992, p. 52). Todos esses dados permitem que problematizemos a noção de “pré-história” ou de “sociedades simples” para os povos que ocupavam o território do que viria a ser o Brasil. 2 A DIVERSIDADE INDÍGENA BRASILEIRA Um dos motivos pelos quais abandonou-se o termo “índio” para se refe- rir aos povos indígenas brasileiros foi que o termo, além de não designar qualquer etnia específica, perpetuava uma ideia de que os indígenas eram todos iguais, desprezando sua diversidade cultural, histórica, linguística e de organização política e social. Hoje em dia, devemos nos referir a esses povos como “indígenas”, “nativos”, “originários”, ou, melhor ainda, pela sua própria nomenclatura étnica. Juntamente com essa mudança em relação à diversidade étnica, foi neces- sário que se abandonasse uma perspectiva sobre os povos indígenas como “sociedades atrasadas” ou “primitivas”, que viviam nas florestas recorrendo a métodos rudimentares para sua sobrevivência. Com importantes mudanças conceituais, epistemológicas e teóricas, a história indígena contemporânea, além de estar sendo escrita pelos próprios indígenas, tem se caracterizado pelo reforço de uma narrativa de que os povos indígenas: [...] descendem de populações que aqui se instalaram há dezenas de milhares de anos, ocupando virtualmente toda a extensão desse continente. Ao longo desse período essas populações desenvolveram diferentes modos de uso e manejo dos recursos naturais e diferentes formas de organização social, o que é atestado pelo crescente número de pesquisas arqueológicas realizadas no Brasil e países vizinhos (NEVES, 1995 p. 171). Se recuperarmos a classificação adotada por Neves (1995) e apresentada no item anterior, teremos as seguintes perspectivas sobre os povos ocupantes do território que viria a se tornar o Brasil. Primeiramente, em relação ao período paleoíndio, ainda que exista uma divergência entre os que defendem que o sul do continente começou a ser povoado há mais de 30 mil anos e aqueles que sustentam uma ocupação mais recente, em torno de 12 mil anos atras, existe um consenso quanto à diferença da paisagem naquele período comparada aos dias atuais. No Brasil, existem apenas dois sítios arqueológicos cujas datações são anteriores a 20 mil anos atrás: Toca da Esperança, na Bahia, e Toca do Boqueirão, do sítio da Pedra Furada, no Piauí. Em relação a esse último sítio: [...] datas de até 48.000 anos AP [Antes do Presente] foram obtidas para amostras de carvão de fogueiras circulares delimitadas por blocos de rocha caídos da parede do abrigo. Associada a essas fogueiras há uma indústria de objetos de pedra lascada feitos a partir de seixos de quartzo e quartzito (NEVES, 1995, p. 179). Porém, alguns pesquisadores fazem objeções a essas datações, já que não se poderia afirmar que as fogueiras analisadas são de autoria humana ou oriundas de um fenômeno natural (raios, por exemplo). Da mesma forma, questionam-se os objetos de pedra lascada encontrados: embora possam ter sidos confeccionados pela ação humana, também podem resultar de lascamentos naturais devido a desabamentos (NEVES, 1995). Independentemente das controvérsias quanto à datação, os sítios arque- ológicos brasileiros com datações perto de 12 mil anos atrás apresentam ca- racterísticas de uma ocupação por seres humanos que usavam uma variedade de instrumentos líticos. De acordo com Neves (1995, p. 180): A maior parte dos vestígios referentes a essas ocupações é composta por instru- mentos de pedra lascada, em sua maioria lascas com sinais de utilização, mas há também raspadores, seixos lascados (“choppers”), e pontas de projétil. É provável que parte do arsenal de caça fosse composto por materiais perecíveis como madeira e dentes de animais e por isso não se preservaram no registro arqueológico. Alguns dos animais então caçados — mastodonte, cavalo (posteriormente reintroduzido pelos europeus), preguiça gigante, gliptodonte (tatu gigante) — foram extintos como consequência da ação combinada do excesso de caça e do gradual aumento de temperatura que ocorreu no final do Pleistoceno. No Quadro 1, a seguir, são listados alguns desses sítios, sua localização e sua datação, sustentando a tese da ocupação do atual território brasileiro desde o período paleoíndio. Quadro 1. Sítios arqueológicos que evidenciam a ocupação do território brasileiro Datação (AP = Antes do Presente) Localização 11.940 AP Bacia do rio Madeira, em Rondônia 14.000 AP Bacia do rio Guaporé, Estado do Mato Grosso 12.770 AP Baciado rio Uruguai, no Rio Grande do Sul 12–14.000 AP Serra da Capivara, Piauí 16–22.000 AP Lagoa Santa, Minas Gerais 11.960 AP Serra do Cipó, Minas Gerais 12.000 AP Vale do Peruaçú, Minas Gerais 14.000 AP Goiás 12.000 AP Baixo Rio Amazonas, Pará Fonte: Adaptado de Neves (1995) Já no período arcaico, ocorreu uma série de mudanças no meio ambiente como consequência da elevação geral de temperatura no início do Holoceno, resultando na formação de grandes áreas de florestas, a perenidade de muitos rios e a formação e expansão de manguezais. Essas transformações no meio ambiente ofereceram aos seres humanos uma maior diversidade de recursos naturais potencialmente utilizáveis, e a cultura material encontrada nos sítios arqueológicos desse período indica uma especialização no manejo de diferentes ecossistemas. Qual o impacto dessas mudanças no território e na ocupação do que seria o Brasil? Neves (1995) afirma que na região Amazônica houve períodos de ressecamento que levaram à expansão do cerrado por áreas hoje cobertas pela floresta. Essas mudanças climáticas teriam influenciado na ocupação humana da foz do rio Amazonas, mas também seria responsável pela diversificação das línguas indígenas em torno de 4.500 anos atrás. Quanto aos achados de cultura material desse período, predominam objetos confeccionados com pedras lascadas, artefatos feitos com ossos e pedras polidas, além de restos orgânicos, como no sítio Alfredo Wagner, num banhado no alto do Vale do Rio Itajaí, em Santa Catarina. Lá foram encontrados vários quilos de pinhões preservados, demonstrando a importância econômica da coleta de vegetais (NEVES, 1995). Nesse período, também surgiu uma maior variedade de sítios: ocupações em grutas e abrigos sob rocha, sambaquis (colinas artificiais de conchas com restos de ocupações humanas sobrepostas), sítios a céu aberto, etc. Em relação aos sambaquis, foram encontrados sítios desse tipo ao longo de toda a costa do Brasil e nas regiões de manguezais, o que se explica pela riqueza e pela diversidade de recursos de fauna e flora. Nesses sítios, podemos observar que a cultura material é bastante rica, com destaque para os artefatos e adornos feitos com ossos de aves, dentes de mamíferos e restos de peixe, além de artefatos líticos feitos de pedra lascada e polida e figuras zoomorfas, os chamados zoólitos (NEVES, 1995). Foi no período arcaico que ocorreram os primeiros experimentos de do- mesticação de plantas nesse território. Ainda predominavam as atividades de subsistência e econômicas relacionadas à coleta. Com as extinções da megafauna no final do Pleistoceno, as atividades de coleta ocuparam uma importância ainda maior para as populações do arcaico [...]. O cultivo de plantas era no arcaico apenas um dos componentes de um complexo de atividades produtivas que incluíam a caça, a pesca, a coleta e o comércio. Poste- riormente, já no formativo, a agricultura passou a ocupar um papel fundamental na economia de várias sociedades indígenas, mas não de sua totalidade. Seria errado, portanto, considerar que o desenvolvimento da agricultura seja uma etapa evolutiva imprescindível ou mesmo um critério para se avaliar o nível de desenvolvimento de uma sociedade. Existem hoje no Brasil sociedades indígenas que fazem da caça, pesca e coleta sua estratégia principal de manejo dos recursos naturais [...]. A condição básica para domesticação de plantas foi o surgimento, no arcaico, das comunidades sedentárias de pescadores e coletores estabelecidas próximas a locais com abundância de fauna, como é o caso dos sambaquis (NEVES, 1995, p. 183). Para explicar esse processo de domesticação, o arqueólogo Donald Lathrap (1977) sugeriu o conceito de quintal: os povos indígenas teriam transplantado mudas de plantas de importância para alimentação, construção, produção de matérias-primas e substâncias para rituais da floresta para os “quintais” de suas casas, levando, posteriormente, ao desenvolvimento das roças. Para empreender essas sutilezas interpretativas, os especialistas afirmam que é necessário um conhecimento dos hábitos e dos saberes dos povos indígenas: [...] existe um gradiente sutil, e difícil de ser percebido pelo observador leigo, entre os domínios da sociedade — o espaço da comunidade — e da natureza, a floresta e as plantas e animais que nela vivem. É dentro desse gradiente, que inclui roças novas, roças antigas, roças abandonadas, os cursos d'água, a floresta e suas trilhas, que os recursos naturais são manejados. As roças abandonadas são um bom exemplo: embora não produzam mais mandioca, elas têm árvores frutíferas que atraem animais como paca, cutia, veados, funcionando, portanto, como campos de caça. Algumas dessas árvores — pupunheiras, bacabas, umaris, babaçu — continuam frutificando mesmo depois do abandono das aldeias e na Amazônia funcionam com indicadores de sítios arqueológicos. O antropólogo William Balée sugeriu que cerca de 10% das matas de terra firme da Amazônia seriam florestas antropogênicas, isto é, resultados diretos ou indiretos da ação humana [...]. Essas evidências arqueológicas e etnográficas sugerem que parte do que conhecemos como natureza selvagem na Amazônia pode provavelmente ser o produto de milhares de anos de manejo de recursos naturais por parte das populações indígenas da região. A paisagem amazônica — e por que não a de outras regiões do país? — seria assim patrimônio histórico além de patrimônio ecológico (NEVES, 1995, p. 183-184). Por fim, temos o período formativo. Neves (1995) afirma que, se durante o período arcaico coexistiram povos que experimentavam o cultivo de plantas e outros que eram praticamente sedentários, não há uma data, ou um aconteci- mento específico, que determine o início desse novo período. O que caracteriza uma mudança substancial é a emergência da agricultura como principal atividade produtiva e o paulatino sedentarismo dos povos, processos que ocorreram de maneiras e ritmos diversos de acordo com cada uma das regiões do atual Brasil. Veremos mais detidamente essa contribuição da cultura indígena à formação da cultura brasileira no próximo item, mas é fundamental, desde já, destacar, como faz Neves (1995), a domesticação de um número expres- sivo de plantas pelos indígenas americanos como uma das maiores contribui- ções para a humanidade. O autor cita como exemplos: “tomate, batata, tabaco, milho, pimenta, amendoim, mandioca, abacaxi, mamão, maracujá, abóbora, coca, batata- doce, feijão, um tipo de algodão, pupunha, açaí, urucum (colorau)” (NEVES, 1995, p. 184). No processo de transformação da agricultura como a principal atividade produtiva das populações indígenas, desenvolveram-se práticas e técnicas que, até os dias de hoje, são utilizadas por muitos povos de diferentes etnias, tais como a roça de toco ou coivara. Tal prática ou técnica consiste na der- rubada, ressecamento e queima de áreas de mata, o que permite a limpeza da área de cultivo e a fertilização do solo (NEVES, 1995). As populações agrícolas a partir do período formativo também eram, muitas vezes, fabricantes de cerâmicas — embora nem todo povo ceramista praticasse a agricultura. Ao estudarem essas cerâmicas, os arqueólogos conseguem demonstrar quais eram suas funções e seus usos, e muito mais: [...] os artefatos cerâmicos são também frequentemente decorados com pinturas, incisões, excisões, apêndices e outros recursos que podem fornecer informações sobre a tecnologia, economia, divisão do trabalho, religião, enfim elementos da organização sociocultural das sociedades que produziram ou adquiriram e depois descartaram esses artefatos (NEVES, 1995, p. 186). Essa reconstituição dos povos indígenas ao longo do tempo demonstra uma diversidade diacrônica. Vejamos agora um panorama da diversidade dos povos indígenas à época da conquistae da colonização. De acordo com Fausto (2010), o litoral era dominado por povos das etnias Tupinambá e Guarani. Esses grupos étnicos não devem ser compreendidos como uma unidade política, mas divididos em castas, gerações e nações, algumas aliadas entre si, outras rivais. Nesse sentido, já mencionamos que os cronistas coloniais registraram com muitas imprecisões a ocupação do território do Brasil por essas etnias, o que explica esses povos serem chamados de formas diferentes conforme os territórios ocupados. Fausto (2010, p. 75-76), afirma que as aldeias tupinambás “eram compostas por um número variável de malocas (em geral, de 4 a 8), dispostas irregu- larmente em torno de um pátio central, abrigando uma população de 500 a 2 mil pessoas”. As aldeias podiam se ligar por laços de consanguinidade ou aliança, mantendo relações pacíficas entre si, e participando, conjuntamente, de rituais e atividades militares (expedições e defesa do território). Em função dessas características, deve-se ter muito cuidado ao considerar cada etnia como uma organização política autônoma e verticalizada. As fronteiras eram fluidas, fruto de um processo histórico em andamento, no qual se definiam e redefiniam as alianças. Aldeias aliadas formavam conjuntos multicomunitários, como nós de uma rede sem centro; não existia um núcleo regional, político-cerimonial, onde residisse um chefe ou sacerdote supremo [...]. Tampouco havia chefes com poder supralocal. A estrutura da chefia era tão difusa e fragmentária quanto a das unidades sociais (FAUSTO, 2010, p. 77). Essa organização político-social pode ter sido distinta para os guara- nis. Alguns cronistas do período colonial os descrevem como “divididos em províncias submetidas a um cacique principal e denominaram agregados de aldeias como cacicados” (FAUSTO, 2010, p. 77). 3 ASPECTOS DA CULTURA INDÍGENA NA SOCIEDADE BRASILEIRA Recuperar aspectos da cultura indígena que formam a cultura brasileira é um processo de reconhecimento e valorização de práticas e saberes historicamente marginalizados, porque compreendidos como provenientes de povos “incivilizados” ou “inferiores”. Ao longo do século XIX, após o processo de Independência, quando se iniciou a construção de uma identidade nacional brasileira, as contribuições das populações africanas e indígenas foram ignoradas em detrimento de aspectos da cultura branca europeia, identificada como representante da civilidade e do progresso. Essas representações dos povos indígenas foram perpetuadas ao longo do século XX, desenvolvendo-se, por parte do Estado brasileiro, uma série de políticas indigenistas que mantinham esses povos sob a condição de tutelados. Esse cenário somente se modificou com a promulgação da Constituição de 1988 e com a conquista de uma série de direitos mediante as lutas dos movimentos indígenas. Uma dessas vitórias foi a obrigatoriedade, em todos os níveis educativos, do ensino da história e da cultura indígenas. A partir dessa mudança, houve uma ressignificação das contribuições dos povos indígenas para a conformação da cultura e da sociedade brasileira. Rompeu-se com uma compreensão monolítica sobre os indígenas, expressa em termos genéricos como “índio”, e passou-se a valorizar a identidade étnica e identitária dos povos nativos do Brasil, como afirma o indígena Luciano- Baniwa (2006, p. 49-50): A compreensão dessa diversidade étnica e identitária é importante para a superação da visão conservadora da noção clássica de Unidade Nacional e Identidade Nacional monolítica e única, na qual se pretende que a identidade seja uma síntese ou uma simplificação das diversas culturas e identidades que constituem o Estado-nação, o que aconteceria a partir dos processos denominados de hibridismo ou mestiçagem. Luciano-Baniwa também critica a ideia de que os indígenas tenham perdido sua identidade a partir do momento em que deixaram de viver em florestas, em aldeias ou comunidades, ou quando passaram a utilizar recursos tecno- lógicos, como celulares e computadores. Essa crença, bastante arraigada na sociedade brasileira, de que os indígenas possuem culturas estáticas, presas em comportamentos e hábitos do passado, e somente assim poderiam ser considerados “indígenas”, precisa ser problematizada a partir de uma com- preensão da cultura como algo dinâmico, resultado de processos de interação: Fazem parte de qualquer dinâmica cultural os intercâmbios e as interações com outras culturas, quando acontecem perdas e ganhos de elementos culturais, inclusive biológicos, mas que não resultam em perdas das identidades em interação. Dito de outra forma, não existe cultura estática e pura, ela é sempre o resultado de interações e trocas de experiências e modos de vida entre indivíduos e grupos sociais (LUCIANO- BANIWA, 2006, p. 49-50). O texto a seguir, de Gersem Luciano-Baniwa, filósofo e antropólogo, professor da Universidade Federal de Goiás, é bastante didático na explicação sobre a conformação da cultura e da identidade indígenas e o desafio do enfrentamento de uma visão monolítica construída desde a formação do Estado-nação brasileiro no século XIX: Desta constatação histórica importa destacar que, quando falamos de diversidade cultural indígena, estamos falando de diversidade de civilizações autônomas e de culturas; de sistemas políticos, jurídicos, econômicos, enfim, de organizações sociais, econômicas e políticas construídas ao longo de milhares de anos, do mesmo modo que outras civilizações dos demais continentes: europeu, asiático, africano e a Oceania. Não se trata, portanto, de civilizações ou culturas superiores ou inferiores, mas de civilizações e culturas equivalentes, mas diferentes. Deste modo, podemos concluir que não existe uma identidade cultural única brasileira, mas diversas identidades que, embora não formem um conjunto monolítico e exclusivo, coexistem e convivem de forma harmoniosa, facultando e enriquecendo as várias maneiras possíveis de indianidade, brasilidade e humanidade. Ora, identidade implica a alteridade, assim como a alteridade pressupõe diversidade de identidades, pois é na interação com o outro não idêntico que a identidade se constitui. O reconhecimento das diferenças individuais e coletivas é condição de cidadania quando as identidades diversas são reconhecidas como direitos civis e políticos, consequentemente absorvidos pelos sistemas políticos e jurídicos no âmbito do Estado Nacional (LUCIANO-BANIWA, 2006, p. 49). Como mencionado anteriormente, os saberes e as práticas dos povos indí- genas relativos ao meio ambiente e sua forma de manejo é uma contribuição não somente à cultura e à sociedade brasileira, mas a toda a humanidade. Esses saberes e essas práticas são oriundos de uma compreensão holística do mundo, em que as vidas animal, humana e vegetal fazem parte de um todo (RIBEIRO, 1995). Não seria exagero, portanto, afirmar que as principais plantas de que os seres humanos se alimentam foram descobertas e domesticadas pelos povos originários do território que passou a se chamar América: batata, mandioca, milho, batata-doce, tomate, feijão, amendoim, cacau, abacaxi, caju, mamão, castanha-do-pará, etc. Vejamos a seguir mais alguns exemplos desse tipo de contribuição (RIBEIRO, 1995). • Borracha: era conhecida pelos indígenas, que a utilizavam para fazer bolas, seringas e impermeabilizar objetos. Quando seu uso se tornou massificado no mundo inteiro a partir da segunda metade do século XIX, a Amazônia era a única região do mundo produtora para a indústria automobilística. • Propriedades medicinais de plantas: a capacidade curativa de diversas plantas domesticadas e cultivadas pelos indígenas está na base de muitos remédios produzidos e comercializados pela indústria farmacêu- tica. De acordo com Ribeiro (1995), três quartos das drogasprescritas hoje em dia foram descobertas por povos indígenas, que, aliás, não receberam o devido reconhecimento mundial por sua contribuição. • Plantas estimulantes, vegetais como a erva-mate, o guaraná e o tabaco foram difundidos e são utilizados em todo o mundo. Assim, o território que foi conquistado e colonizado pelos europeus era ocupado por centenas de etnias e povos distintos, que foram reduzidos segundo seu olhar eurocentrista à categoria monolítica de “índio”, ignorando sua diversidade e heterogeneidade. Por isso, é recomendável se referir a membros dessa categoria como “povos indígenas”, “povos originários” ou por seu nome étnico, como uma forma de reconhecimento de sua cultura, sua história e sua memória. Também fica clara a necessidade de reconhecermos as contribuições das populações indígenas que formam parte do Brasil para nossa cultura, mesmo que, durante muitos anos, tenhamos aprendido a valorizar apenas aspectos provenientes dos colonizadores brancos. A cultura brasileira é formada por elementos herdados das culturas dos povos africanos que, escravizados, foram trazidos para a América, e também por hábitos, práticas e saberes de diferentes povos indígenas. 4 APRENDER COM OS POVOS INDÍGENAS Na década de 1990, o Grupo de Trabalho de Educação Popular (GT06) da ANPEd discutiu amplamente a crise dos movimentos sociais e o papel da educação popular no contexto da redemocratização política do Brasil. Partindo do alerta de Victor Valla (1996) que apontava a dificuldade que os profissionais e intelectuais têm de compreender o que as classes populares estão querendo lhes dizer, o GT06 buscou analisar os modelos teóricos desenvolvidos por intelectuais brasileiros para interpretar os problemas e as práticas dos movimentos populares. Entendeu que os modelos de interpretação e condução da educação popular – no contexto de amplas mobilizações sociais e culturais dos anos 1960, ou no contexto de resistência à ditadura dos anos 1970, ou então nos processos massivos de luta pela redemocratização política dos anos 1980 – foram colocados em questão nos anos 1990. O que aparecia como crise dos movimentos sociais passou a ser percebido como crise dos modelos de conhecimento a partir dos quais os intelectuais, profissionais e militantes têm buscado entender a realidade dos movimentos sociais. No atual contexto brasileiro de golpe de estado de 2016, torna-se pertinente refletir em que sentidos a atual crise política e social está relacionada à dificuldade que os líderes e políticos, profissionais e intelectuais têm de compreender o que os diferentes sujeitos populares estão querendo lhes dizer. E esta reflexão será tanto mais crítica e radical quanto mais dialogar com os grupos populares que mais têm sofrido os processos de exploração, exclusão e subalternização! Neste sentido, temos muito a aprender com os povos indígenas, que no continente ameríndio há cinco séculos vêm resistindo aos genocidas processos de colonização. Segundo o alerta de Eduardo Viveiros de Castro, neste momento em que o planeta passa por uma situação de “[...] catástrofe climática [...]” e está sendo transformado em um “[...] lugar irrespirável [...]”, devemos aprender com os povos indígenas “[...] como viver em um país sem destruí-lo, como viver em um mundo sem arrasá-lo e como ser feliz sem precisar de cartão de crédito [...].” “O encontro com o mundo índio nos leva para o futuro, não para o passado”. “Os índios têm muito a colaborar para um país mais democrático e diverso [...]” (apud FERRAZ, 2014, p. 1). No espaço deste texto, nos propomos a discutir o que estamos aprendendo com os povos indígenas da América Latina. Situamos esta discussão no contexto da colonização brasileira e de resistência dos povos indígenas. Sob o enfoque decolonial e não-colonial dos estudos interculturais críticos e orientados por autores que têm se colocado na escuta dos povos indígenas, discutimos aspectos de sua cosmovisão de sustentabilidade e da política do bem-viver. Concluímos com algumas considerações que levantam a hipótese de que a concepção pedagógica de Paulo Freire tem conexões com o modo indígena de educar. 5 OS POVOS ORIGINÁRIOS E A COLONIZAÇÃO DO BRASIL O processo de colonização do Brasil significou um trágico processo de genocídio dos povos originários, destruição de seus territórios ancestrais, bem como o ocultamento ou esquecimento de suas ricas e variadas culturas. A redução demográfica dos povos indígenas foi descomunal: uma população estimada em quatro milhões de pessoas há cinco séculos, antes da conquista portuguesa, hoje está reduzida a cerca de novecentas mil pessoas, menos de meio por cento do conjunto dos atuais cidadãos brasileiros. De aproximadamente mil etnias originárias no século XIX, ainda resistem no território brasileiro, no século XXI, cerca de 305 pequenos grupos étnicos falantes de 274 línguas aborígenes, não eurodescentes (BRASIL, 2011). De acordo com o Censo Demográfico 2010 (BRASIL, 2011), os três maiores povos originários do Brasil são o Tikuna, do Amazonas, com 46.045 pessoas; o povo Guarani Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, com 43.401 pessoas; os Kaingang, presentes nos Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que somam 37.470 pessoas. Com população variando entre 29 mil e 9 mil pessoas, estão os Makuxi, Terena, Tenetehara, Yanomami, Potiguara, Pataxó, Sateré-mawé, Mundurukú, Múra, Xucuru, Baré, Pankararú, Kokama, Wapixana, Kayapó, Xacriabá. Esta população numericamente pequena, mas representante de uma rica variedade de povos ancestrais no território brasileiro, vem resistindo ao processo de colonização, que se iniciou a partir do século XVI com a chegada dos conquistadores portugueses e se complexificou com múltiplos processos imigratórios no século XIX e com a globalização do mercado internacional no século XX. O processo de povoamento, dominação e exploração colonial do território brasileiro vai além do domínio político-jurídico português. O povoamento pelos colonizadores visava demarcar e conquistar o território, dominar e explorar seus recursos. A dominação da natureza se fez mediante a subjugação das numerosas nações indígenas que aqui habitavam. E a dominação humana se constituiu mediante o discurso colonial sobre os povos nativos. Um discurso que classifica o mundo baseado no critério de raça, posicionando os povos autóctones em uma condição de subalternidade em relação ao europeu, na medida em que suas diferenças culturais eram interpretadas negativamente, como falta dos atributos da civilização e da cultura letrada europeia. A cosmovisão etnocêntrica das culturas europeias, que se autodefiniam como universais, induzia os conquistadores a ver os outros povos e as culturas diferentes como particulares e inferiores. Assim, pela incapacidade de entender as línguas e as culturas dos povos originários, os colonizadores europeus os conceituavam, por oposição negativa às culturas europeias, como povos não civilizados, não cultos, não letrados. Tal conotação pejorativa passou a se expressar na própria denominação índio. A nomeação do apelido genérico índio seria resultado de um equívoco de Cristóvão Colombo que, em 1492, em nome da Coroa espanhola, no contexto da expansão marítima e comercial europeia, tinha como destino alcançar e conquistar as Índias pela circunavegação do globo terrestre. Ao aportar neste continente desconhecido passaram a chamá-lo de Índias Ocidentais. E tal denominação se manteve pela perspectiva colonial para identificar, classificar e homogeneizar os nativos, desconsiderando as diferenças culturais e identitárias de inúmeros grupos étnicos neste imenso território. Não obstante os significados pejorativos que lhe foi atribuído historicamente, o termo índio foi apropriado pelos grupos e movimentos sociais indígenas,em seus processos de etnogênese, adquirindo, especialmente a partir da década de 1980 e 1990, sentidos políticos de afirmação de identidades étnicas. A despeito das diferenças e diversidade de povos indígenas e suas experiências históricas, a denominação índio articula e confere uma unidade, demarcando uma fronteira étnica e identitária entre os povos nativos originários das Américas (LUCIANO, 2006). Todavia, neste estudo, preferimos indicar estes povos com os termos originários, nativos, ancestrais, autóctones, indígena. A palavra indígena significa “[...] natural do lugar em que vive, gerado dentro da terra que lhe é própria [...]”; “[...] população autóctone de um país ou que neste se estabeleceu anteriormente a um processo colonizador [...]”; por extensão, “[...] que é originário do país, região ou localidade em que se encontra; nativo [...]” (HOUAISS, 2001, verbete “indígena”). Da mesma forma, os povos originários buscam renomear, a partir de suas perspectivas etnoculturais, o continente das Américas, tal como os Guarani resgatam a nação Pindorama e sua cultura Tekó Porã, juntamente com os povos da AbyaYala, que desenvolvem suas culturas do bem-viver. Pindorama (etimologicamente significa região das palmeiras) é uma designação para o local mítico dos povos tupi-guarani, que seria uma terra livre dos males (CLASTRES, 1978). A expressão AbyaYala (que significa terra em sua plena maturidade) vem sendo cada vez mais usada pelos povos originários do continente objetivando construir um sentimento de unidade e pertencimento. 6 DESAFIOS INTERCULTURAIS: A PERSPECTIVA DECOLONIAL E NÃO- COLONIAL O ponto de vista dos povos indígenas recoloca o desafio de compreender criticamente a lógica da destruição ou subjugação que tem se configurado historicamente nas relações interculturais entre grupos e povos de diferentes contextos culturais, na busca de construir relaçõesinterculturais criativas e dialógicas. Catherine Walsh (2012) questiona o interculturalismo relacional, que restringe a relação intercultural ao nível individual, oculta os conflitos e contextos de poder ou reduz a diferença cultural em termos de superioridade ou inferioridade. Também refuta a perspectiva funcional da interculturalidade, que apoia a produção e gestão da diferença de forma funcional à expansão do sistema do mundo moderno. Esta concepção de interculturalidade não aponta para a criação de sociedades mais equitativas e igualitárias, mas para o controle do conflito étnico pela inclusão de grupos historicamente excluídos, de modo a manter a estabilidade social sob os imperativos econômicos do modelo neoliberal de acumulação capitalista. Walsh (2012) assumindo a perspectiva do interculturalismo crítico, questiona a estrutura colonial racial e seu vínculo com o capitalismo, apontando para a construção de sociedades diferentes. O interculturalismo crítico aponta para um projeto político, social, ético e epistêmico necessariamente decolonial. Significa compreender e confrontar a matriz do poder colonial, que historicamente vincula a ideia de raça, como uma critério de classificação e controle social, com o desenvolvimento do capitalismo global (moderno, colonial, eurocêntrico), iniciado como parte da formação histórica da América. A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial de poder capitalista. Se funda na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do dito padrão de poder e opera em cada um dos planos, âmbitos e dimensões materiais e subjetivas, da existência social cotidiana e da escala social. Origina-se e mundializa-se a partir da América. (QUIJANO, 2000, p. 342). A perspectiva decolonial de estudos interculturais vem sendo desenvolvida na América Latina por diferentes intelectuais e militantes. Segundo Carlos Walter Porto- Gonçalves, [...] há um enorme legado teórico-político que nos vem desde Guaman Poma de Ayala, Simon Rodrigues, Simon Bolivar, José Artigas, José Maria Caycedo, José Martí, Emiliano Zapata, José Carlos Mariategui, Franz Fanon, Aymé Cesaire, C. R. James, Pablo Gonzalez Casanova, Zavaleta Mercado, Florestan Fernandes, Silvia Rivera Cusicanqui, Rachel Gutierrez, Anibal Quijano, Maristela Svampa, Enrique Leff, Enrique Dussel, Walter Mignolo, Ramon Grosfogel, Catherine Walsh, Arturo Escobar, Rui Mauro Marini, Norma Giarraca, Raul Zibechi, Pablo Mamani, Alberto Acosta entre tantos e tantas que haveremos de considerar para um diálogo denso com o pensamento crítico do sistema mundo capitalista moderno colonial em sua heterogeneidade histórico-estrutural. (PORTO- GONÇALVES, 2015, p. 246). Outros autores latino-americanos têm buscado ir além da crítica decolonial. Entre eles, Mario Valencia (2015) propõe uma perspectiva intercultural não- colonial. O não-colonial refere-se à geração, aspiração e dinamização de saberes- fazeres inspirados no pensamento crítico latino-americano [...] compartilha com o decolonial o ponto de partida da consciência do estado de colonialidade e da sua total rejeição. Mas [...] dis-tinto do colonial, o não-colonial é aqui entendido como uma afirmação autodeterminada e criativa da consciência crítica e de todas as suas dimensões humanas. [...]. Isto faz com que se concentrem os esforços prioritariamente na imaginação epistêmica para a autoconstituição e constituição coletiva de contextos sociais, culturais, políticos, da sensibilidade diferentes, e não apenas na refutação dialética dos padrões dominantes. (VALENCIA, 2015, p. 12). A perspectiva não-colonial potencializa e ultrapassa o esforço de crítica e de desconstrução da colonialidade. Ao favorecer a escuta epistêmica das cosmovisões ancestrais não-coloniais, favorece uma interação dialógica com os povos originários que nos possibilita aprender com eles. 7 ESCUTAR E COMPREENDER OS POVOS INDÍGENAS Vários autores vêm desenvolvendo estudos em perpectivas decoloniais e não- coloniais. Entre outros, Jorge Gasché (2012), convivendo com comunidades ribeirinhas e indígenas da Amazônia peruana, compreendeu que os valores compartilhados pelos diferentes povos tradicionais da floresta amazônica não são reconhecidos pelas sociedades nacionais brasileira ou peruana. Entendeu que os valores são implícitos nas condutas e nas atividades cotidianas dos povos da floresta, mas estes não têm vocabulário para expressar seus valores na língua castelhana ou portuguesa e, por isso, não conseguem reivindicá-los em contraste com os valores sociais urbanos e capitalistas. Gasché indica os valores que identificou na convivência e pesquisa com os povos da floresta e propõe uma metodologia de trabalho educacional para ajudar essas comunidades a explicitar e identificar seus valores, nomeando-os na língua dominantes, de modo que possam identificar as diferenças, e fazer suas escolhas, em relação aos valores dominantes. Jacques Gauthier (2011) compartilha a compreensão de que os oprimidos têm interesse vital em revelar, analisar e criticar os fundamentos ocultos das opressões que estão sofrendo e que possuem conhecimentos implícitos, desconhecidos por outros grupos culturais, mas que podem ser explicitados mediante o diálogo intercultural. Entretanto, como acadêmicos eurodescendentes, ao nos propor a estabelecer um diálogo intercultural com os povos indígenas (assim como com outras culturas) necessariamente nos dispomos a uma crítica radical dos pressupostos epistemológicos que constituem a singularidade de nossa cultura, assim como da de nossos interlocutores: “[...] cada grupo (acadêmicos e populares) mostra ao outro o que ele não vê e não pode ver, ou seja, suas próprias costas, o caráter institucionalmente contextualizado da sua ciência, mesmo quando universal em direito [...]” (GAUTHIER, 2011, p. 80). Assim, o “[...] conceito de dialogicidadeexpressa essa dupla necessidade de uma escuta sensível mútua e de uma crítica mútua das ilusões e cegueiras de antes das rupturas epistemológicas” (GAUTHIER, 2011, p. 49, grifo do autor). Com esta disposição é que nos perguntamos – desde uma atitude crítica em relação à matriz epistemológica colonial constitutiva de formação científica eurodescendente – o que estamos aprendendo no diálogo intercultural com os povos originários de AbyaYala. 8 O QUE ESTAMOS APRENDENDO COM OS POVOS INDÍGENAS Os genocídios dos povos ancestrais na América Latina constituem uma dimensão paradoxal do processo de globalização do sistema mundo moderno-colonial que, ao implantar e expandir o modo de produção capitalista mediante a exploração dos recursos da natureza e submissão dos trabalhadores, vem promovendo a destruição sistemática dos ecossistemas, bem como dos seus guardiões ancestrais, entre os quais os povos e as culturas originárias. Assim, neste contexto trágico, torna-se absolutamente necessário aprender com os povos originários ancestrais modos de vida que tornem sustentável a convivência planetária, inclusive para as futuras gerações dos seres humanos e das diferentes espécies de seres vivos que necessitam cuidar da Mãe Terra, para que esta possa continuar a nutri-los. O diálogo intercultural crítico com os povos originários implica em desconstruir os processos e princípios coloniais e em promover a construção de modos não- coloniais de ser e viver, bem como de poder e saber. Decolonializar implica um projeto intencional e processo contínuo e insurgente de diálogo e cooperação intercultural, que reinvente modos de vida não-coloniais. 8.1 O bem-viver e a sustentabilidade Hoje os povos indígenas são mais vulneráveis do que nunca, frente à ofensiva dos proprietários de terra e dos grandes projetos econômicos, bem como de projetos políticos que cerceiam os processos de demarcação e autonomia dos territórios indígenas. A iniciativa voltada para o mercado internacional atende à expectativa de poderosas corporações econômicas, sobretudo transnacionais, nas áreas da mineração, de petróleo e gás, de monocultivos da soja, da cana de açúcar, da pecuária, da celulose, produção de agrocombustível, exploração madeireira e demais recursos naturais. Também se beneficiam as grandes empresas construtoras, que doam generosas quantias em dinheiro para abastecer os caixas de campanha eleitoral dos partidos políticos, com a certeza de que receberão tudo de volta, em dobro. Fazem parte da carteira de projetos da IIRSA (Integração da Infraestrutura Regional Sul Americana), que aqui no Brasil integram o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) a construção de hidrelétricas, linhas de transmissão, estradas, ferrovias,hidrovias, portos e aeroportos, sistemas de comunicação. A IIRSA traz no seu bojo uma concepção de desenvolvimento, entendido como crescimento econômico, a partir da super- exploração dos recursos naturais e alimentando padrões insustentáveis de consumo, para assegurar a acumulação capitalista. (HECK et al., 2012, p. 25). Os povos indígenas, que a partir de sua experiência milenar estabeleceram uma relação harmônica com a terra, questionam duramente essa lógica predatória: Somos filhos da ‘Pachamama’, não seus donos, nem dominadores, vendedores ou destruidores. Nossa vida depende dela e por isso desde milênios construímos nossas próprias formas do mal-chamado ‘desenvolvimento’, o SumaqKawsay/ SumaqQa-maña. Nosso Bem-viver como alternativa legítima de bem-estar em equilíbrio com a natureza e espiritualidade está longe da IIRSA, que nos quer converter em territórios ‘de trânsito’ de mercadorias, buracos da mineração e rios poluídos de petróleo. (Resolución de Pueblos Indígenas sobre el IIRSA, CAOI – Coordinadora Andina de Organizaciones Indígenas, La Paz, 19 jan. 2008 apud HECK et al., 2012, p. 25, grifos dos autores). Esta visão de mundo fundamenta a concepção de bem-viver: buen vivir, em espanhol, SumakKawsai em quéchua; Suma Qa-mañaem aymara; Tekó Porã, em guarani. Significa a boa maneira de ser e viver, ou seja, viver em aprendizado e convivência com a natureza. Esta sabedoria, presente em todas as culturas ameríndias, nos leva a compreender que a relação entre todos os seres do planeta tem que ser encarada como uma relação social, entre sujeitos, em que cultura e natureza se fundem em humanidade. El Buen Vivir es un ‘paradigma comunitario de la cultura de la vida para vivir bien’, sustentado en una forma de vivir reflejada en una práctica cotidiana de respeto, armonía y equilibrio con todo lo que existe, comprendiendo que en la vida todo está interconectado, es interdependiente y está interrelacionado. (MAMANI, 2010, p. 6, grifos do autor). A maioria das culturas originárias brasileiras também entendem a Terra como Mãe (Pachamama). A Mãe protege e promove a vida mediante dádiva e reciprocidade. A natureza torna a vida humana possível. Por reciprocidade, os seres humanos são convidados a cuidar e proteger a natureza. Bartolomeu Melià, linguista e antropólogo jesuíta, explica do ponto de vista do povo Guarani o bem-viver: Tekóporã é um bom modo de ser, um bom estado de vida, é um ‘bem-viver’ e um ‘viver bem’. É um estado de ventura, de alegria e de satisfação; um estado feliz e prazeroso, aprazível e tranquilo. Há um bem-viver quando existe harmonia com a natureza e com os membros da comunidade, quando existe alimentação suficiente, saúde e tranquilidade, quando a ‘divina abundância’ permite a economia da reciprocidade, o ‘jopói’, isto é, ‘mãos abertas’ de um para o outro. (MELIÀ, 2013, p. 194, grifos do autor). Essa visão da vida e da natureza contrasta com a visão das culturas ocidentais: a natureza é concebida como um objeto a ser dominado, apropriado e mercantilizado. A maneira moderno-europeia de ver o mundo justifica um processo de exploração predatória do ambiente, bem como a sua própria força de trabalho para realizar a acumulação privada de capital. Tal sistema encontra-se agora em profunda crise, assim como a cosmovisão e as ideologias que a justificam. Entretanto, as cosmovisões ancestrais dos povos originários, ao integrar as dimensões biofísica, humana e espiritual, permite superar a concepção moderna que divide natureza e sociedade e justifica a exploração e dominação predatória da natureza pelos seres humanos. Assim, as culturas originárias oferecem uma visão de mundo que pode contribuir para superar o impasse em que as culturas ocidentais e o sistema capitalista se encontram hoje, no que diz respeito à sustentabilidade da vida e do ecossistema no planeta. Assim, para além da concepção moderna eurodescendente de oposição binária entre natureza e sociedade, o bem-viver – cultivado por povos da AbyaYala – promove a relação milenar entre mundos biofísicos, humanos e espirituais que dá sustentação aos sistemas integrais de vida dos povos ancestrais. Revalorizar esta relação holística, tecida pelos povos ancestrais mediante práticas comunitárias dialógicas integradas com o mundo natural, é a condição que torna possível desconstruir a matriz racista constitutiva das relações de poder colonial, que tem agenciado a distribuição, dominação e exploração da população mundial no contexto capitalista-global do trabalho. 8.2 b) O bem-viver e a política A desconstrução da colonialidadedo poder implica, de modo particular, reconfigurar as relações jurídico-políticas do Estado, para além da imposição do nacionalismo monocultural. Implica em viabilizar a convivência intercultural, sem que as diferenças sejam negadas ou subalternizadas, mas que potencializem relações sociais críticas e criativas entre os diferentes sujeitos sociais e entre seus respectivos contextos culturais. Nesta direção, vários países da América Latina, impulsionados pelas lutas dos povos ancestrais,vem incorporando em sua organização política de Estado os princípios do bem- viver dos direitos da mãe-terra. No Brasil, os povos indígenas brasileiros continuam travando significativas lutas de resistência e por participação ativa na vida política do país. Eles procuram entrar positivamente no sistema político, judicial, legislativo, cultural e social do Estado, tentando viver e manter suas identidades como povos indígenas. Para isso, buscam fortalecer suas identidades e suas propriedades por meio de autogestão, bem como práticas de relações interculturais. Por exemplo, eles assumem a gestão ambiental de parques nacionais e das terras indígenas, promovem apoio comunitário intercultural para setores populares indígenas e urbanos e, para além das políticas de Estado, desenvolvem suas próprias políticas educacionais e atividades interculturais na cidade e no campo, bem como a colaboração com outros movimentos sociais. Alguns indígenas brasileiros têm buscado também participar do sistema político do Estado. A Constituição Brasileira de 1988 reconheceu o direito de representantes dos povos indígenas se candidatarem a cargos públicos, como prefeito, vereador e deputado estadual e federal. A mais recente conquista da população indígena na política foi a criação, em 2006, da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), que instituiu um foro de discussão, com os próprios indígenas, a respeito da elaboração de políticas públicas federais para a classe indígena. Este é o único espaço hoje no Brasil em que os povos autóctones podem exercer algum controle social sobre as políticas públicas feitas para eles mesmos. Entretanto, a CNPI tem atribuição consultiva e não deliberativa, o que significa que o governo não é obrigado a implementar suas propostas. As tentativas dos povos indígenas brasileiros de participar das instâncias políticas do Estado Brasileiro têm revelado um paradoxo. Ao assumirem o modo de vida dos colonizadores, muitos povos indígenas perderam sua identidade e autonomia. Por isso, várias comunidades indígenas buscam repensar esses desafios com base em suas necessidades e em sua maneira ancestral de ver o mundo. Eliel Benites (apud FLEURI, 2009, p. 18)2 enfatiza que o modo de organização dos povos indígenas brasileiros baseia-se no diálogo e na cooperação na comunidade. Por isso, é incompatível com o tipo de organização política do Estado, baseado em partidos. Essa contradição tornou-se muito clara nos processos eleitorais em que não só os candidatos políticos buscam e utilizam os votos dos indígenas, mas também os levam a assumir a forma de organização política contrária ao modo de organização comunitária de seu povo. Tal contradição questiona a forma hegemônica de organização política do Estado- Nação. A organização dos Estados foi constituída, mesmo após as lutas por independência nas Américas, conforme o modelo de Estado-Nação, que reconhece apenas uma identidade nacional, vinculada à cultura e à língua dos colonizadores, subalternizando os diferentes grupos e povos nativos aos interesses das elites coloniais, de modo a manter o controle e a concentração do poder econômico e político capitalista. Neste contexto, diferentes movimentos sociais, que se articulam rizomaticamente no mundo atual, vêm desenvolvendo estratégias decoloniais, no sentido de desconstruir a matriz de dominação e exploração colonial que engendra os Estados Nacionais. A rebelião dos povos ancestrais colonizados, particularmente na América Latina, questiona o pressuposto racista e o caráter monocultural do Estado Nação (MARÍN, 2010; GUZMÁN, 2012; DÍAZ; VILLARREAL, 2010). Denuncia a violência latente e a ideologia neoliberal dominante que favorecem a manutenção do controle e da concentração do poder econômico-político nas mãos dos setores capitalistas hegemônicos (GASCHÉ, 2010). Os povos originários reconhecem criticamente os processos de subalternização a que foram submetidos historicamente e assumem as lutas por fortalecer suas identidades e autogerenciar seus territórios (ESQUIT, 2010). Grupos étnicos subalternizados se mobilizam na busca por reconstruir relações de justiça e equidade entre os diferentes setores socioculturais na gestão da vida e do meio-ambiente, colocando em discussão as bases teórico-jurídicas dos projetos estatais nacionais de interculturalidade (CARR; THESÉE, 2012). As lutas dos povos indígenas, portanto, não se conformam em participar das lutas sociais dentro do modelo político excludente e subalternizante estabelecido pelo Estado-Nação. Ao defender suas culturas e suas formas de organização social e política ancestrais, propugnam a Luta pela Vida, pela Dignidade e Território, em que vários desses movimentos indicam que a vida não pode ser pensada fora da natureza, [...] A Dignidade é um reclamo ao respeito à sua condição de outro ser digno, negado pela colonialidade da modernidade [...], enfim, o direito à diferença afirmando a diversidade biológica, em que criativamente se inspiram, para afirmar suas culturas. [...] E como a cultura não é algo abstrato, nos apontam que são necessárias as condições materiais para seus horizontes de sentido para a vida. Daí o território, como categoria que reúne natureza e cultura através das relações de poder sobre as condições materiais da vida. [...] Com isso, sinalizam que no mesmo estado territorial habitam múltiplas territorialidades [...]. Enfim, tensão de territorialidades. Daí o debate acerca da autonomia territorial, da plurinacionalidade, dos direitos da natureza, como se inscreve nas novas constituições do Equador e da Bolívia. Não mais Estado nacional, mas plurinacional. (PORTO GONÇALVES, 2015, grifos nossos). As lutas por se construir formas plurinacionais de Estado, tal como hoje propõe Estado Plurinacional Boliviano (MATEUS, 2012), bem como o Equador, constituem um significativo processo para se superar a colonialidade do poder, sustentada sobre o pressuposto da superioridade de uma etnia sobre as outras, ou da universalidade de uma nação, que nega a diferença cultural e a autonomia política dos povos que podem constituir democraticamente um Estado. Em suma, para além da concepção moderna eurodescendente de oposição binária entre natureza e sociedade, a cultura AbyaYalado bem-viver promove a relação milenar entre mundos biofísicos, humanos e espirituais que dá sustentação aos sistemas integrais de vida dos povos ancestrais. Revalorizar esta relação holística, tecida pelos povos ancestrais mediante práticas comunitárias dialógicas integradas com o mundo natural, é a condição que torna possível desconstruir a matriz racista constitutiva das relações de poder colonial, que tem agenciado a distribuição, dominação e exploração da população mundial no contexto capitalista-global do trabalho. Implica, de modo particular, reconfigurar as relações jurídico-políticas do Estado, para além da imposição do nacionalismo monocultural. Implica em viabilizar a convivência intercultural valorizando as diferenças como potencializadoras de relações sociais críticas e criativas entre os diferentes sujeitos sociais e entre seus respectivos contextos culturais. Neste sentido é que países como a Bolívia e o Equador, impulsionados pelas lutas dos povos ancestrais, vêm incorporando em sua organização política de Estado os princípios do bem-viver dos direitos da mãe-terra. Esta transformação política implica em mudanças na própria matriz moderno- colonial de saber. Reconhecer a singularidade e relatividade das culturas e das ciências eurodescendentes, desconstruindo o mito de sua universalidade, é a condição para se reconhecer as racionalidades epistêmicas desenvolvidas historicamente por comunidades ancestrais e por movimentos populares, de modo a com eles estabelecer diálogos críticos e interação mutuamente enriquecedores.9 APRENDER A EDUCAR COM OS POVOS INDÍGENAS Os povos indígenas brasileiros, em sua rica complexidade e diversidade, compartilham com a maioria das sociedades ancestrais ameríndias uma visão de mundo baseada no bem-viver, bem como uma visão educacional que enfatiza a autonomia pessoal e a participação comunitária. Estes valores trazem uma perspectiva educativa muito diferente da educação colonial forjada pela modernidade europeia. Eliel Benites disse que os colonizadores e, posteriormente, os missionários de diferentes credos e agentes governamentais desenvolveram junto às nações autóctones uma educação de fora para dentro, pautados no sistema escolar e catequético. Tal como Paulo Freire entende a invasão cultural, através da educação bancária. Tal processo educativo pressupõe que a educação se faça de uma pessoa para outra, de um grupo sociocultural para outro, como um processo de transmissão de seu modo de perceber e de significar o mundo, de tal modo que o outro o absorva e o reproduza da mesma forma. Ao contrário do processo de educação de fora para dentro – afirma Eliel Benites – o povo Kaiowá-Guarani procura, hoje, desenvolver a educação de dentro para fora: É como uma fonte tapada que, ao ser desobstruída, jorra água em abundância. A água que jorra é a reflexão. A reflexão que se apresenta como a capacidade de se repensar o seu projeto e sua relação com o mundo a longo prazo. (depoimento de Eliel BENITES apud FLEURI, 2009, p. 17). Esta perspectiva educacional dos povos indígenas tem sido muito pouco incorporada pelas políticas educacionais do Estado-Nação. No Brasil, embora a Constituição de 1988 ea Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 tenham dado passos importantes na formulação de princípios gerais visando a uma educação diferenciada, bilíngue e intercultural, esta legislação foi construída com base em escasso diálogo com os diferentes povos indígenas (MARCON, 2010). Deste modo, nos contextos indígenas, as escolas foram estabelecidas com uma perspectiva colonial e doutrinária, em clara oposição à cultura dos antepassados, contribuindo para a destruição da coesão social nas famílias e nas comunidades indígenas (SIERRA et al., 2010). Os povos indígenas, portanto, para promover e consolidar suas culturas ancestrais não-coloniais, confrontam-se com as lógicas coloniais e disciplinares da educação escolar orientadas para a transmissão e reprodução da cultura nacional representada pelo Estado monocultural. O enfrentamento desta contradição implica em descontruir a colonialidade da cultura escolar, ao mesmo tempo que aprender com os povos indígenas estratégias educacionais não-coloniais. Um dos educadores que desenvolvem princípios epistemo-pedagógicos aprendidos com culturas ancestrais indígenas é Paulo Freire. Mesmo que Paulo Freire tenha formulado sua concepção pedagógica com as referências culturais de teorias críticas ocidentais, seu engajamento com os movimentos sociais populares ensejou a incorporação de perspectivas epistemológicas das culturas dos povos ancestrais da América Latina. Assim, se pode reconhecer os princípios do bem-viver, TekóPorã, em sua metodologia didática dialógica, que se caracteriza pela cooperação e reciprocidade nas relações entre os educadores e educandos, favorecendo uma atmosfera de aceitação mútua, respeito, compreensão e comunicação entre diferentes sujeitos, na busca de compreensão e transformação dos contextos socioculturais e ambientais em que se constituem. Neste sentido, Paulo Freire apresenta uma concepção educacional decolonial que reforça a perspectiva não-colonial. Por outro lado, desde o ponto de vista não-colonial das culturas ancestrais, somos convidados a reconfigurar a pedagogia crítica. Assim, a educação entendida como processo dialógico de problematização e transformação das relações socioculturais desiguais e injustas, apresenta-se como um instrumento de luta política dos grupos sociais e étnicos subalternizados ou excluídos no processo de colonização. Mas as lutas sociopolíticas conduzidas em parceria com os povos ancestrais radicalizam os projetos de transformação social para além dos limites do Estado-Nação e do antropocentrismo, criando perspectivas de organização política que sustentem as diferenças culturais e socioambientais, bem como os direitos da natureza. Na proposta pedagógica de Paulo Freire, os círculos de cultura apresentam-se como uma estratégia educacional para favorecer o diálogo na comunidade sobre as contradições que enfrentam em seu contexto social, de modo a promover a organização política para superá-las. Nesta direção, com as culturas indígenas, aprende-se que as lutas sociais e políticas não se restringem a mudanças no âmbito do sistema mundo moderno-colonial, mas se busca reconstruir as relações sociais na perspectiva inter-transcultural (GAUTHIER, 2011; PADILHA, 2004). Por conseguinte, o diálogo problematizador a partir dos temas geradores pode ultrapassar o enfoque econômico-política dos processos de opressão e dominação, questionando seus fundamentos epistêmicos da moderno-coloniais. O diálogo crítico entre as culturas ancestrais pode permitir processos transculturais e não apenas “[...] as pessoas se educam em relação, mediatizadas pelo mundo” (FREIRE, 1975, p. 79) mas também os povos e suas culturas se transformam, mediatizadas pela relação entre as pessoas. 10 O IMPERIALISMO NA ÁFRICA Até meados do século XIX, a presença dos europeus no continente africano se limitava a algumas feitorias e colônias posicionadas no litoral, geralmente em locais estratégicos para o comércio. Assim, a maior parte do continente encontrava-se sob o poder das sociedades africanas, governadas por reis, imperadores ou conselhos de anciões. Contudo, essa situação mudou a partir dos últimos anos do século XIX. Em pouco tempo, quase toda a África passou a ser dominada pelas potências europeias. Esse novo processo de expansão colonial ficou conhecido como “imperialismo” ou “neocolonialismo”. O conceito de neocolonialismo é utilizado para diferenciar a nova expansão colonial do século XIX da colonização do período das grandes navegações, iniciada por portugueses e espanhóis no século XV. Sobre o termo “imperialismo”, Hernandez (2008, p. 71) afirma que foi utilizado pela primeira vez em 1870, na Grã-Bretanha, “[...] dando nome a uma política orientada para criar uma federação baseada no fortalecimento da unidade dos Estados autônomos do império [...]”. Tanto a palavra “imperialismo” como a ideia que ela representa são carregadas de premissas ideológicas que geram inúmeras polêmicas, como pontuam Visentini e Pereira (2008, p. 92): As sociedades metropolitanas justificavam ideologicamente a conquista e dominação dos povos coloniais através de teorias como o darwinismo social, que concebia a existência como uma luta pela sobrevivência (onde os mais fortes predominam), pela consciência de uma missão civilizadora da raça branca e pelas teorias da superioridade racial. Vários escritores, religiosos e políticos, por exemplo, consideravam o colonialismo benéfico para os povos da África e da Ásia, vistos como atrasados do ponto de vista tecnológico e cultural. Aos olhos dos europeus, as instituições políticas e econômicas e o desenvolvimento industrial da Europa eram evidências da superioridade do homem branco. Por isso, os europeus defendiam que cabia a eles libertar os povos africanos e asiáticos da suposta “barbárie” em que viviam e introduzi-los na chamada “civilização”. Para além dessas razões “civilizatórias”, a expansão imperialista foi motivada pelos fatores listados a seguir. • Fatores econômicos: a grande concorrência entre as potências indus- triais as levou a ampliar os investimentos em tecnologias para dimi- nuir os custos de produção, reduzindo, em contrapartida,a oferta de empregos. A produção de mercadorias cresceu, enquanto o mercado consumidor, afetado pelo desemprego e pelos baixos salários, não era capaz de absorvê-las. O resultado foi uma grave crise econômica entre 1873 e 1896, marcada pela falência de empresas e pela queda generalizada dos preços. A saída encontrada pelos países europeus para resolver a crise foi a conquista de novos mercados para os seus produtos industrializados e para a aplicação dos seus capitais excedentes, além de novas fontes de energia e de matérias- primas para as indústrias. • Fatores políticos e sociais: os governos europeus utilizaram a conquista de colônias como propaganda política. A expansão do poderio nacional por meio da obtenção de colônias serviu para despertar na população o orgulho patriótico e para obter o apoio dela aos governos das potências imperialistas. Para isso, também era necessário transferir para as áreas coloniais a mão de obra ociosa na Europa, minimizando as tensões sociais e enfraquecendo o movimento operário. Todos esses fatos [fatores] indicam uma convergência de interesses econômicos e políticos em torno do continente africano, abrangendo o estabelecimento de pontos de ocupação com a assinatura de inúmeros tratados com os potentados africanos, tornando-os presas fáceis para os colonialismos europeus dos finais do século XIX (HERNANDEZ, 2008, p. 61). Até 1880 não havia domínios europeus no interior do continente africano. Conforme Visentini e Pereira (2008, p. 92), desde a metade do século XIX, expedições exploratórias eram organizadas ao interior dos continentes, principalmente da África; os exploradores, “[...] geralmente financiados por sociedades geográficas, por mais idealistas que fossem, objetivamente abriam caminho para as potências colonialistas, na medida em que elaboravam um inventário dos povos e dos recursos naturais das regiões a serem conquistadas [...]”. A essas expedições exploratórias soma-se a ação de missionários, inaugurando uma nova fase da evangelização, que serviria para combater a “selvageria e salvar a alma" dos africanos. Essas expedições tiveram um efeito pragmático: “[...] todo o interior do continente e as bacias dos grandes rios africanos tornaram-se conhecidos dos europeus, facilitando uma penetração que fora, por séculos, evitada [...]” (CHAGASTELLES, 2008, p. 114). A partir dessas missões exploratórias e das ações missionárias, o interesse dos europeus pelo continente africano cresceu exponencialmente. A cobiça pelo continente despertou grandes rivalidades entre os principais países industrializados do século XIX. Para evitar um conflito de grandes proporções, representantes de 15 potências organizaram, entre o final de 1884 e o início de 1885, o Congresso de Berlim, em que foram definidas as regras de ocupação do território africano. 11 O CONGRESSO DE BERLIM Três importantes acontecimentos impulsionaram a organização de uma conferência para decidir sobre a partilha da África. Primeiro, o interesse que o rei da Bélgica, Leopoldo I, demonstrava pelo continente. Em 1876, foi criada em Bruxelas a Associação Internacional Africana, cujo objetivo era explorar a região dos Congos. Segundo, Portugal iniciou uma série de expedições que culminaram com a anexação das propriedades rurais afro-portuguesas de Moçambique, em 1880. Terceiro, a França mostrou o seu caráter expansionista entre 1879 e 1880, quando, junto à Grã- Bretanha, passou a controlar o Egito pelo envio de uma missão exploradora ao Congo — com a ratificação de tratados com o povo beteke, que habitava a bacia do Congo — e pela iniciativa colonial estabelecida na Tunísia e na ilha de Madagascar (UZOIGWE, 2010). Os interesses dos europeus no continente africano prenunciavam um conflito entre as potências da época. Por isso, em 1880, Portugal convocou uma conferência internacional para resolver as disputas na África Central. Em 1884, Otto Von Bismarck, chanceler alemão, formulou uma declaração por meio da qual todo o sudoeste da África foi proclamado protetorado alemão. Para evitar um conflito de grandes proporções, Bismarck organizou o Congresso de Berlim, que reuniu representantes de 14 potências (França, Alemanha, Áustria-Hungria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Grã-Bretanha, Itália, Países Baixos, Portugal, Rússia, Suécia- Noruega e Turquia). As reuniões aconteceram entre 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885. A Conferência tinha como principal objetivo “[...] assegurar as vantagens de livre navegação e livre comércio sobre os dois principais rios africanos que deságuam no Atlântico, o Níger o e Congo. Visava também a regulamentar novas ocupações de territórios africanos, em particular da costa ocidental do continente [...]” (HERNANDEZ, 2008, p. 62). Ficou acordado que o princípio definidor da partilha seria o de áreas de influência. Isso significava que, uma vez estabelecida no litoral, a nação estrangeira teria o direito de ocupar a zona do interior. É interessante você notar que, apesar de se tratar da partilha da África, “[...] nenhuma [n]ação independente africana foi convidada a participar dos assuntos que diziam respeito, diretamente, aos seus territórios [...]” (CHAGASTELLES, 2008, p. 119). Se um dos principais objetivos do Congresso de Berlim era evitar rivalidades, ela não foi proveitosa, pois em vez disso as rivalidades se acirraram e, nas décadas seguintes, as potências europeias se enfrentaram na disputa pelo controle de regiões da África. Essa rivalidade é um dos fatores que deram início à Primeira Guerra Mundial, em 1914. Veja o que Hernandez (2008, p. 64) afirma sobre os resultados do Congresso de Berlim: A carta geopolítica da África estava basicamente pronta, sendo boa parte das fronteiras conservada, no seu conjunto, até os dias atuais. Com isso foram desconsiderados os direitos dos povos africanos e suas especificidades históricas, religiosas e linguísticas. Em outras palavras, as fronteiras da nova carta geopolítica da África, aprovada no Congresso de Berlim, raramente coincidiram com as da África antes dos portugueses. Mas cerca de trinta anos depois, por volta de 1920, quase todo o continente estava sob administração, proteção colonial ou ainda era reivindicado por outra potência europeia. Após o Congresso de Berlim, vários outros acordos foram assinados entre as potências europeias para assegurar o domínio sobre os territórios. O fato de as fronteiras culturais dos povos africanos não terem sido respeitadas nessa divisão desencadeou conflitos que são sentidos na África até os dias de hoje, como você vai ver adiante. O continente africano foi dividido entre as potências europeias por meio do Congresso de Berlim e dos acordos assinados até o início do século XX. Partindo de feitorias na costa africana — como Dacar, atual Senegal —, a França estendeu o seu domínio sobre uma área que ia do Atlântico ao interior, acompanhando o curso do rio Níger e criando a África Ocidental Francesa. A esses domínios, somavam-se a África Equatorial Francesa (atual Gabão e parte do Congo) e as províncias francesas do norte da África, Marrocos e Tunísia. Na região equatoriana, vizinha a Angola, grande parte da bacia do rio Congo converteu-se numa espécie de propriedade particular do rei Leopoldo II, da Bélgica, um dos principais envolvidos no Congresso de Berlim e em seus resultados (CHAGASTELLES, 2008). A colonização belga na região do Congo caracterizou-se pela extrema violência contra os nativos (homens, mulheres e crianças eram mutilados caso não cumprissem as metas estipuladas pelos belgas) e pelo saque das riquezas naturais da região. Portugal, a partir de suas antigas colônias de Angola e Moçambique, re- clamou a soberania sobre um território mais amplo e obteve, além deste, as terras que formaram a Guiné Portuguesa,
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