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Edição em formato digital: maio de 2023 FINLAY DONOVAN LEVA TUDO À FRENTE Título original: Finlay Donovan Knocks ’Em Dead Texto © 2022, Elle Cosimano Publicado por Minotaur Books, uma chancela de St. Martin’s Publishing Group, Nova Iorque. Todos os direitos reservados. © desta edição: 2023, PRH Grupo Editorial Portugal, Lda. Topseller é uma chancela de Penguin Random House Grupo Editorial Portugal. Rua Alexandre Herculano, 50, 3.º, 1250-011 Lisboa, Portugal correio@penguinrandomhouse.com Penguin Random House Grupo Editorial Portugal apoia a proteção do copyright. Sem a prévia autorização por escrito do editor, esta obra não pode ser reproduzida, no todo ou em parte, por meio de gravação ou por qualquer processo mecânico, fotográfico ou eletrónico, nem ser introduzida numa base de dados, difundida ou de qualquer forma copiada para uso público ou privado, além do uso legal como breve citação em artigos e críticas. Tradução: Elsa T. S. Vieira Revisão: Manuela Duarte Capa: adaptação de Wonder Studio sobre design de David Baldeosingh Rotstein Imagens da capa: © Clash_Gene, vi73, MatoomMi, Yana Lesiuk/Shutterstock Composição digital: Simon and Sons ITES Services Private Limited ISBN: 978-989-787-129-0 mailto:correio@penguinrandomhouse.com https://www.simonnsons.com/ Site: penguinlivros.pt Twitter: @PenguinLivros Facebook: topseller.editora Instagram: topseller.suma http://www.penguinlivros.pt/ https://twitter.com/penguinlivros https://www.facebook.com/topseller.editora https://www.instagram.com/topseller.suma ÍNDICE Finlay Donovan Leva Tudo à Frente Créditos Dedicatória Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16 Capítulo 17 Capítulo 18 Capítulo 19 Capítulo 20 Capítulo 21 Capítulo 22 Capítulo 23 Capítulo 24 Capítulo 25 Capítulo 26 Capítulo 27 Capítulo 28 Capítulo 29 Capítulo 30 Capítulo 31 Capítulo 32 Capítulo 33 Capítulo 34 Capítulo 35 Capítulo 36 Capítulo 37 Capítulo 38 Capítulo 39 Capítulo 40 Capítulo 41 Capítulo 42 Capítulo 43 Capítulo 44 Capítulo 45 Capítulo 46 Capítulo 47 Epílogo Agradecimentos Sobre este livro Sobre Elle Cosimano Para as Mamãs de Junho de 2002 O CAPÍTULO 1 Christopher estava morto. Fora encontrado a boiar na água, com os olhos esbugalhados e vidrados, pouco depois do nascer do dia. Embora não se pudesse afirmar com completa honestidade que eu nunca tinha matado ninguém, desta vez era inegável que a responsabilidade era cem por cento minha. — A culpa não foi tua. — A Vero apertou-me o braço num gesto encorajador por cima da manga da camisola de fato de treino preta. Não encontrara nada mais apropriado para vestir; não tinha acordado propriamente a contar ter de ir a um funeral. No entanto, não sei como, a jovem e ultraelegante ama dos meus filhos conseguira desencantar um par de calças moldadas ao corpo, uma blusa de estilista e fazer um penteado fabuloso. Ofereceu-me um sorriso triste. — Não tiveste intenção. A mão da minha filha parecia frágil na minha, o seu corpinho encostado a mim do outro lado, com os olhos vermelhos de chorar. — Em tua defesa — murmurou a Vero —, as instruções vinham em letra muito pequena. E com a tua idade… — Tenho 31 anos. — Exato. Ninguém podia esperar que lesses aquelas letrinhas minúsculas. Deste-lhe demasiado. Mais nada. — Ele parecia esfomeado. — A desculpa soava esfarrapada até aos meus próprios ouvidos. Mas cada vez que eu entrava no quarto da minha filha, o Christopher fitava-me do seu aquário com aqueles olhos redondos e suplicantes. — Eu sei. — A Vero franziu os lábios brilhantes e deu-me uma palmadinha no ombro. — Deste o teu melhor, Finn. O peixinho dourado da minha filha boiava na água turva, com a barriga inchada virada para mim como um dedo acusador. O Christopher fora uma prenda do pai, embora eu estivesse certa de que o Steven lhe comprara o peixe só para me aborrecer. Para colocar mais uma responsabilidade no meu prato já cheio, só para poder ver-me falhar e depois me esfregar isso na cara enquanto competia comigo pela guarda das crianças. Desde que me deixara para ficar noivo da nossa agente imobiliária, parecia decidido a demonstrar a minha incompetência. Tornara-se uma competição para ele, que se intensificara ainda mais depois de ele e a Theresa se separarem. Eu estava decidida a não deixar morrer o maldito peixe, para provar ao meu ex-marido que era capaz de sustentar os nossos filhos — e o seu peixe de estimação — sem ele, apenas com os meus pobres rendimentos provenientes da escrita. Que era capaz de alimentar e de cuidar da Delia, do Zach e do Christopher sozinha. Ou, quando muito, com a ajuda da Vero. O Christopher sobrevivera aos meus cuidados menos de um mês. E embora o Zach não fosse crescido o suficiente para me denunciar ao pai, a Delia não conseguia guardar um segredo nem que a sua vida dependesse disso. Seria impossível esconder do Steven a notícia da morte do Christopher. E ele iria vangloriar-se disso ao Guy, o seu desonesto advogado de divórcio, e provavelmente o assunto viria à baila em tribunal. Meritíssimo, gostaria de chamar a vossa atenção para o peixe no saco de prova identificado como Prova A. O falecido foi desta para melhor após três meras semanas aos cuidados da minha ex-mulher. É evidente que ela não é uma progenitora adequada para cuidar dos nossos filhos. Se o Steven fizesse a mais pequena ideia do humano que morrera aos meus cuidados no último mês (ou de onde eu e a Vero nos tínhamos livrado do corpo), provavelmente teria um ataque cardíaco — uma possibilidade que a Vero levara alegremente em consideração, até calcular como eram remotas as probabilidades de a notícia o matar mesmo. Um mês antes, depois de uma mulher chamada Patricia Mickler me ter ouvido a discutir o enredo de um livro com a minha agente literária num restaurante apinhado, oferecera-se para me pagar cinquenta mil dólares para assassinar o marido dela, um homem horrível que fazia lavagem de dinheiro para a máfia russa. O facto de o Harris ter acabado na minha carrinha, drogado, fora um acidente, e embora não tivesse sido eu a assassiná-lo propriamente, a Patricia estava convencida disso. Passara o meu nome à sua amiga Irina, casada com um assassino a soldo da mesma e assustadora máfia. A morte do marido da Irina fora também um acidente. De qualquer maneira, para manifestar a sua gratidão, ambas as mulheres me tinham dado copiosas quantias de dinheiro. E uma dica: que alguém tinha publicado um anúncio online, à procura de uma pessoa disposta a assassinar o meu ex- marido por dinheiro. A Vero estendeu-me a pequena rede de plástico verde. — Queres dizer algumas palavras? O Zach aproximou-se do aquário nas suas perninhas rechonchudas, com as orlas da fralda a espreitarem por baixo da camisa preta. Os seus dedinhos peganhentos fecharam-se sobre a beira do tampo da cómoda e ele pôs-se em bicos de pés para ver. Tocou com o dedo no vidro, com um fio de baba a pingar-lhe do queixo. A Delia soltou um suspiro choroso, com o lábio superior a brilhar de ranho, e ergueu o olhar para mim com ar expectante. Tirei a rede da mão da Vero. — O que é que eu digo? — murmurei. Ela empurrou-me na direção do aquário. — Diz só qualquer coisa simpática sobre ele. Encostei a rede ao peito enquanto me debatia para encontrar palavras capazes de acalmar a minha filha de 5 anos, que estava histérica desde que acordara e encontrara o seu peixe de estimação a boiar no aquário como um Cheerio numa taça de leite. Afinal de contas, eu era escritora. O meu trabalho era encadear palavras umas nas outras. Aquilo devia ser fácil. Mas de cada vez que olhava para o Christopher, tudo o que via era a cara do meu ex-marido. Não porque quisesse matar o Steven. Quer dizer, até queria. Às vezes. Na maior parte dos dias. Sempre que ele abria a boca, sem dúvida. Mas por mais litigiosa que fosse a nossa relação desde que ele me trocara pela agente imobiliária, o Steven amava os filhos e as criançasamavam o pai. E eu nunca faria nada que magoasse a Delia ou o Zach. Havia quem quisesse ver o Steven morto, sim. Mas não era eu. — O que posso dizer do nosso Christopher? — Olhei para a Vero em busca de inspiração. O canto da boca dela estremeceu, e fez um gesto mandando-me continuar. — Era um bom peixe. Um amigo leal e constante de todos nós, que… Senti um puxão na perna das calças de yoga. — Fala sobre o sorriso dele — disse a Delia, limpando o nariz na manga do body preto. — E diz que ele fazia as melhores bolhas. — Desfez-se de novo em lágrimas, com a cara escondida nas pregas da minha camisola. A pequena testa do Zach franziu-se numa expressão preocupada. Dei graças por ele ser demasiado pequeno para compreender o que estava mesmo a acontecer, enquanto dava voz aos sentimentos da Delia e depois enfiava a rede na água para retirar o Christopher. Ela agarrou-se à minha perna e marchámos, solenemente, até à casa de banho do outro lado do corredor. O Zach vinha ao colo da Vero, atrás de nós, encerrando o cortejo fúnebre. Parámos em volta da sanita aberta, prestando uma última homenagem enquanto o Christopher caía dentro da água ao fundo com um suave chape. A Delia agarrou no meu braço quando estendi a mão para o autoclismo. — Não, mamã! — Querida, tem de ser. Ele não pode ficar na sanita para sempre. — Porquê? — gemeu ela. — Porque… — Lancei um olhar suplicante à Vero. Não havia decididamente nenhum capítulo sobre isto nos livros sobre filhos que eu lera durante a gravidez. Queria o meu dinheiro de volta. — Porque — disse a Vero de forma prestável —, vai começar a cheirar mal… — Pisei-a com força. — Mas assim nunca mais o vejo — soluçou a Delia. Uma bolha de ranho formou-se no seu nariz e eu limpei-a com a manga. — Teremos sempre as memórias. — E as dezenas de fotografias que ela me obrigara a publicar em #peixinhodouradonoinstagram. — Podíamos ir à loja de animais comprar outro — sugeriu a Vero antes que eu pudesse fazer alguma coisa para a impedir. A Delia desatou a chorar alto. O lábio inferior do Zach começou também a tremer. — Não quero outro peixe! — berrou a Delia. — Não há mais nenhum peixe como o Christopher! — Tens toda a razão — concordei, levantando a voz agora que estavam os dois aos berros. — Nunca haverá outro peixe como o Christopher. Devíamos honrar a sua memória com um momento de silêncio. A Delia fechou a boca com força. A casa de banho ficou em silêncio, à exceção das fungadelas infelizes dos meus filhos. Baixei a cabeça e dei uma cotovelada nas costelas da Vero para ela fazer o mesmo. Esperei um minuto antes de levar a mão ao autoclismo. Desta vez a Delia não tentou impedir-me e o Christopher desapareceu num redemoinho de escamas cor de laranja. A Vero alisou carinhosamente o cabelo espetado da Delia. — Anda, Dee. Vamos fazer bolachinhas. — Não lhes dês muitas — recordei-lhe. A minha mãe estava a preparar peru recheado suficiente para alimentar um exército, e matava-me se eu estragasse o apetite dos miúdos antes de jantar. O Zach soltou um gritinho deliciado quando a Vero lhe pegou e desceu as escadas com ele ao colo. A Delia ficou para trás e deitou uma última olhadela à sanita antes de ir atrás deles para a cozinha. Quando ia apagar a luz, hesitei. Voltei para trás e puxei mais uma vez o autoclismo. Porque não sou a pessoa mais sortuda do mundo e sei muito bem que os mortos às vezes voltam para nos assombrar. U CAPÍTULO 2 ma hora mais tarde, eu e a Vero prendemos a Delia e o Zach nas suas cadeirinhas no carro. A Vero limpou os restos de migalhas de bolacha das bochechas deles enquanto eu punha duas malas de viagem pequenas na bagageira da carrinha e fechava a porta. — Para que é a bagagem? — perguntou a Vero. — Recebi um e-mail do Steven esta manhã. Mudou-se para a casa nova e quer levar os miúdos para passarem o fim de semana com ele. — Anexara fotografias da casa de quinta remodelada que arrendara em Fauquier County, com o cuidado de sublinhar que os quartos das crianças já estavam preparados, com os respetivos brinquedos, e a cozinha estava abastecida e pronta para os receber. Colocara o advogado, Guy, em Cc no e-mail, e este respondera-nos a ambos, dando os parabéns ao Steven por ter encontrado «uma casa tão boa para as crianças», o que queria claramente dizer «Não tens maneira de te opor a isto», em língua de advogado. Fora fácil afastar as crianças da quinta do Steven depois de a sua ex-noiva ter sido presa. Após a descoberta de cinco cadáveres enterrados na quinta, e da Theresa Hall ter sido implicada na investigação que se seguiu, o Steven rompera o noivado. Em poucas horas tinha saído da casa dela na cidade e desde então estava a dormir no sofá da caravana que servia de escritório de vendas na quinta. Ele e o advogado tinham concordado que seria melhor para as crianças suspender as dormidas com o pai até ele se organizar. Mas não sabiam aquilo que eu e a Vero sabíamos: que alguém publicara um anúncio classificado num fórum online, a oferecer cem mil dólares a quem despachasse o Steven Donovan. Tanto quanto eu e a Vero percebíamos, o fórum era um autêntico esgoto disfarçado de grupo de apoio para mães — um espaço de reunião anónimo para centenas de mulheres de meia-idade frustradas, onde podiam queixar-se de tudo o que as aborrecia, nomeadamente os maridos, os patrões e os namorados. Pelos vistos, para as mais abonadas, era também uma boa forma de se verem livres deles. A Vero parecia chocada. Fechou a porta de correr da carrinha, depois de instalar os miúdos. — Não vais mesmo deixá-los ficar com ele, pois não? — Claro que não. Liguei aos meus pais e perguntei se podiam ficar com os netos. Depois mandei um e-mail ao Steven e disse que os miúdos já tinham planos. Um sorriso malicioso ergueu os cantos dos lábios da Vero enquanto entrávamos na carrinha. Baixou a voz para um murmúrio conspirador e levantou uma sobrancelha. — Três dias inteiros sem as crianças? Posso passar uma ou duas noites em casa do meu primo, se quiseres convidar o Julian para vir brincar às casinhas no fim de semana. Senti o rosto quente ao imaginar o Julian na minha cozinha. Ou no meu quarto. Lancei um olhar culpado para o espelho retrovisor, mas o Zach já estava a adormecer, com a cabeça encostada à cadeirinha, e os olhos vermelhos da Delia também pareciam pesados. — Não tenho tempo para brincar às casinhas. — Por mais tentador que fosse passar um fim de semana sozinha com o sexy estudante de Direito com quem saíra algumas vezes, tinha coisas muito mais importantes a fazer. — Tenho de descobrir quem publicou aquele anúncio. Tenho medo de deixar as crianças passarem os fins de semana com o Steven enquanto não tiver a certeza de que não há ninguém a tentar matá-lo. Além disso, como se não bastasse, ainda tinha de mandar o resumo do novo livro à minha agente até às nove horas de segunda- feira. Rodei a chave na ignição e fiz uma careta quando o motor protestou e se engasgou antes de pegar. A Vero emitiu um som aborrecido. — Vamos comprar um carro novo na segunda-feira. — A carrinha está ótima. O teu primo acabou de a arranjar. — Não, o Ramón só lhe pôs um penso rápido. Admite, a carrinha já deu o que tinha a dar. Engatei a minha velha Dodge Caravan e rezei para que nada se soltasse e caísse — pelo menos nada importante — enquanto descia o caminho de acesso ruidosamente. — Não posso comprar um carro novo agora, com o Steven e o advogado a vigiarem todas as minhas despesas. — Podias, se aceitasses o trabalho naquele fórum. Com cem mil dólares já compravas um carro de jeito. — Não vamos matar o meu ex-marido por dinheiro — sussurrei, com um olhar de relance para os meus filhos adormecidos. — Quanto é que achas que nos pagariam pelo advogado dele? — sugeriu a Vero. Lancei-lhe um olhar fulminante. — Acalma-te, estou só a brincar. Mas esta transmissão não vai durar muito mais. Bem podes começar a escrever esse livro que a Sylvia pensa que estás a escrever. — Eu sei. E é o que vou fazer. — A minha agente literária, a Sylvia Barr, andava a atormentar-mepara lhe enviar algumas páginas de um romance que supostamente começara a escrever há um mês e que a editora esperava antes do fim do ano. — Vou trabalhar nisso este fim de semana. Já que estarei na biblioteca, de qualquer maneira. Eu e a Vero andávamos a fazer turnos, entre cerca de uma dúzia de delegações da nossa biblioteca regional, sempre com o cuidado de eliminar o histórico de pesquisas depois de usar os computadores, para verificar se alguém aceitava o trabalho oferecido naquele fórum. Passara já um mês sem que ninguém mordesse o isco, mas isso não alterava o facto de haver alguém que queria assassinar o pai dos meus filhos e, agora que o Steven tinha uma casa, eu ficara sem desculpas plausíveis para o afastar das crianças. Passaria o fim de semana todo na biblioteca, se tivesse de ser. Ia esquadrinhar aquele fórum de mulheres até descobrir quem publicara o anúncio — provavelmente uma das inúmeras mulheres que o Steven maltratara ou conseguira irritar de alguma maneira. Depois faria um telefonema anónimo para a polícia a denunciar as intenções dessa mulher e, se tudo corresse bem, seria o fim da história. — Eu ajudo-te — ofereceu-se a Vero enquanto entrávamos na autoestrada. — Não há necessidade de desperdiçarmos o fim de semana de ambas. Não tens encontros escaldantes planeados? — Por favor. A única aqui que está a ter alguma ação és tu. Olhei de relance para ela. Sempre fora a Vero que me pressionara para vestir roupas a sério e sair mais. No entanto, ultimamente, via-a cada vez mais em casa. À exceção das aulas na universidade comunitária local, parecia satisfeita a passar as noites livres comigo e com as crianças, a ver filmes, de pijama. — Talvez tivesses mais ação se saísses de casa de vez em quando. — Ela revirou os olhos. — E aquele tipo de Macroeconomia, o Todd? — Microeconomia — corrigiu ela, com ênfase em micro. — Se estás a tentar livrar-te de mim para andares despida com o teu namorado, prefiro passar o fim de semana a ver futebol com o meu primo. A carrinha guinou ligeiramente quando afastei os olhos da estrada para a observar por um segundo, e o tipo na faixa do lado buzinou-me. — Não tinhas dito que a tua família este ano não ia passar o Dia de Ação de Graças junta porque a tua tia está doente? — E está. A minha mãe ficou a tomar conta dela. Eu sabia que a Vero e o primo eram bastante próximos — ela vivia no sofá dele antes de se ter mudado para nossa casa —, mas no que dizia respeito à família, a Vero era invulgarmente reservada. Ela vivia connosco há um mês e, nesse período, a família nunca ligara lá para casa e, apesar de a mãe e a tia viverem do outro lado da ponte, em Maryland, tanto quanto eu sabia a Vero nunca fora visitá-las. — Se o Ramón está em casa, porque é que não vais jantar com ele? A Vero respondeu com uma risada seca. — A ideia que o Ramón tem de uma refeição caseira é macarrão com queijo instantâneo. Além disso, prefiro passar o dia com vocês. Virou-se para a janela. Eu não conseguia afastar a sensação de que havia algo que ela não me estava a dizer, mas quando virámos para o bairro dos meus pais decidi não insistir. Ela falaria comigo quando estivesse preparada para isso. As famílias eram estranhas, por vezes. Eu sabia-o bem. A minha mãe e o meu pai ainda viviam na mesma casa onde eu e a Georgia tínhamos crescido, uma vivenda de dois andares com fachada de tijolo em estilo colonial, naquilo que fora em tempos um subúrbio mais tranquilo em Burke. A minha mãe abriu a porta quando ouviu a carrinha. Tinha um avental a dizer AS AVÓS SABEM TUDO, salpicado de óleo e farinha. O cheiro delicioso a peru recheado chegou até mim enquanto acordava os miúdos e os empurrava para dentro. Durante cinco dias, todos os anos, eu ficava contente por viver tão perto dos meus pais. Nos outros 360? Nem por isso. A minha mãe olhou para o cabelo da Delia com o sobrolho franzido quando a encurralou no vestíbulo para lhe dar um abraço. As madeixas loiras e espetadas tinham crescido pelo menos dois centímetros, desde um incidente que envolvera fita adesiva e uma tesoura, e a Vero penteara-as para o lado antes de sairmos de casa, prendendo-as com ganchos cor-de-rosa. — Estás tão crescida! Parece que não te via há meses! — Viste-os na semana passada, mãe. — Com o saco das fraldas num braço e uma tarte de abóbora na outra, larguei o Zach nos braços da minha mãe. Ela limpou-lhe uma mancha de chocolate da cara e beijou-o, fitando-me de testa franzida. Depois torceu o nariz e estendeu a mão para o saco das fraldas. — Desculpa. Mudei-o antes de sairmos de casa, mas apanhámos trânsito. A Georgia apareceu no vestíbulo, de cerveja aberta na mão. A nossa mãe revirou os olhos para o céu. — O que foi? — perguntou a Georgia, o retrato da inocência. — Já são cinco da tarde. — No Vaticano, talvez — resmungou a minha mãe. Depois ficou mais animada quando a Vero entrou com as duas malas. — Vero, minha querida, é tão bom ver-te. Fico muito feliz por poderes juntar- te a nós. — O Zach riu-se quando elas se abraçaram meio atabalhoadamente com ele pelo meio. — Não perderia isto por nada. — Deixa aí as malas — disse a minha mãe, apontando na direção do fundo das escadas antes de fechar a porta. — Olá, Vero. Feliz Dia de A… uuuf! — A Georgia soltou a respiração com um grunhido quando foi abalroada pela Delia, que lhe apertou as pernas num abraço esmagador. — Tia Georgia, podes vir à minha escola para a semana? É Dia do Trabalho. — Dia do Trabalho? — Dia das Profissões — esclareci, pousando a tarte na mesa do vestíbulo para despir o casaco. A Delia saltitou, em bicos de pés. — Disse aos meus amigos que és polícia e eles querem ver a tua arma. A Georgia esfregou o cabelo da Delia, fazendo saltar um dos ganchos. — Eu depois combino com a tua mãe. Vai falar ao avô. Acho que ele está a comer as bolachas todas. A Delia correu para a sala, onde se ouvia o som de um jogo de futebol proveniente da televisão. A Georgia ergueu a cerveja num brinde, mas antes de conseguir levar o gargalo da garrafa aos lábios, a nossa mãe pôs-lhe o Zach contra o peito. Os reflexos de polícia de Georgia levaram a melhor e ela agarrou em Zach com o braço livre enquanto ele escorregava pela sua camisola abaixo. — Podes mudar-lhe a fralda no quarto de visitas — disse a minha mãe, largando o saco das fraldas aos pés dela. Ela arregalou os olhos. A Vero recuou, com as mãos no ar. — Não olhes para mim. Hoje estou de folga. — Dirigiu-se para a sala, cumprimentou o meu pai com um beijo na cara e deixou-se cair ao lado dele no sofá. A Georgia soltou uma fungadela e a sua expressão enojada fez rir o Zach. — Finn, pega lá nele. Não sou qualificada para tratar disto. — Estendeu-mo. Eu tinha a certeza de que ela se sentiria mais à vontade a desmontar uma bomba. Em vez disso, tirei-lhe a cerveja da outra mão e enfiei-lhe as alças do saco das fraldas no braço, até ficar pendurado como um casaco num cabide. — Pensa que é um saco de equipamento tático — disse-lhe, com uma palmadinha tranquilizadora nas costas. A Georgia olhou para o saco e suspirou o meu nome com ar suplicante enquanto eu bebia um trago de cerveja e me virava para a cozinha, no rasto do delicioso aroma a batatas-doces assadas e a recheio. Sentei-me numa cadeira à mesa da cozinha, fechei os olhos e bebi, grata por alguns instantes de paz e sossego. Algo pesado bateu na mesa à minha frente. Abri um olho. Era uma tigela cheia de feijões-verdes, um emaranhado de vagens e caules. — Trata destes enquanto eu rego o peru — disse a minha mãe, enfiando as luvas do forno. Pousei a cerveja com um suspiro enquanto ela tirava o peru fumegante do forno. — Como está a correr o livro? — Muito bem — menti. A minha mãe olhou para mim de lado, enquanto regava o peru com o molho do fundo da travessa. — Já te pagaram? — Só metade. O resto recebo quando acabar. — Se acabasse. — Põe essa metade nas tuas poupanças. Pelo sim, pelo não. — Porquê? — Podes precisar, para pagar a um advogado. Com um gemido, pegou na travessa. Eu sabia que nem valia a pena oferecer-mepara ajudar. Havia certas coisas que a minha mãe gostava de fazer sozinha. Os jantares de festa — cozinhar e alimentar a família — eram um trabalho que só deixaria de fazer no dia da sua morte. A única razão para me deixar tratar do feijão- verde era por ser um trabalho que eu não conseguiria fazer mal. — O advogado do Steven ainda anda a chatear-te? Parti uma vagem ao meio. — Está tudo bem, mãe. Eu trato do assunto. — Pensei que o Steven tinha concordado com visitas semanais. — Ele quer os miúdos todas as semanas, de sexta-feira à tarde até segunda-feira de manhã, agora que arranjou casa. A minha mãe soltou uma exclamação de revolta, atirou uma tábua para cima da mesa e espetou a faca nela. Guarda conjunta não era tão má como a guarda exclusiva pela qual o meu ex se batera quando ele e a Theresa estavam a preparar-se para dar o nó. Mesmo assim, eram três noites que os meus filhos estariam fora de casa, noutro condado, em vez de estarem a poucos quarteirões, na mesma rua. — Ele é um monstro — disse a minha mãe, picando salsa com ferocidade. — Não é um monstro, está apenas zangado. — Zangado porque a sua relação com a Theresa não resultara. Porque o negócio estava a passar por dificuldades depois de terem sido exumados cinco corpos da sua quinta. Porque eu estava finalmente a ganhar dinheiro suficiente para me sustentar a mim e aos miúdos sem precisar dele. — Por causa desse rapaz com quem tens saído? E por isso também, talvez. O facto de eu estar envolvida com alguém era uma espinha na garganta do Steven. E ele gostava de me atormentar por isso, e todas as semanas ligava ao Guy com algum plano novo para interferir com a minha guarda das crianças. A minha mãe ergueu uma sobrancelha. — A Georgia diz que esse homem com quem andas só trabalha em part-time. Que ainda está a estudar. — Está a fazer o doutoramento. — É novo demais para ti. Devias arranjar alguém mais para a tua idade. Um homem estável, capaz de cuidar de ti e das crianças. — Eu consigo cuidar de mim e das crianças sozinha. — Se tivesses um marido, o Steven não estaria a ameaçar tirar- te os filhos. Não teria bases para isso. Empurrei a tigela de feijões assassinados. — Porque é que tu e o pai estão sempre a pressionar-me para arranjar um marido? Nunca aborrecem a Georgia para arranjar uma mulher. — A Georgia tem seguro de saúde e um plano para a reforma através da polícia. Suspirei e apoiei a cabeça na mão. Não tinha resposta para isso. — E aquele homem simpático que trabalha com a tua irmã? — A minha mãe agitou a concha no ar enquanto tentava recordar-se do nome dele. — Aquele alto, de cabelo escuro, cujo parceiro teve cancro. Lembro-me de o ter conhecido há uns anos, quando ele e a Georgia se formaram juntos da Academia. É muito bem-parecido — disse, baixando a voz como se isto fosse um anúncio escandaloso. — E é católico. Levei a cerveja à boca para disfarçar o constrangimento. O inspetor Nicholas Anthony era, de facto, muito bem-parecido. E beijava bem que se fartava. Mas a minha mãe não precisava de mais combustível para as suas fantasias matrimoniais. Passara um mês desde que o Nick aparecera à minha porta com uma garrafa de champanhe e um pedido de desculpas por ter suspeitado do pior em relação a mim, mas a discussão com ele ainda me incomodava. Detestava pensar que, embora os meus motivos fossem inocentes, o Nick estava certo, até certo ponto. Eu mentira-lhe para evitar problemas e ainda não me perdoara a mim própria por isso. — Não vou namorar com o colega da Georgia — declarei com firmeza. — Como queiras. A tua irmã diz que esse rapaz com quem andas está a estudar para ser advogado. Talvez ele possa ajudar-te a lidar com este problema do Steven. — Não vai ser esse tipo de advogado. — O Julian estava a estudar Direito Criminal. E sim, eu estava bem ciente da ironia da situação. — Ele já conheceu os miúdos? — Não. — O Julian ainda não me pedira para ir lá a casa e eu não o convidara. Normalmente, encontrávamo-nos no bar onde ele trabalhava. Ou no seu apartamento. Geralmente na cama dele, ocasionalmente no sofá, e uma vez no chão da cozinha. Levantei- me para ir buscar outra cerveja ao frigorífico, enfiando a cabeça atrás da porta para esconder o rubor incriminador. A nossa relação não era séria. Eu não sabia bem o que tínhamos. Sabia apenas que gostava da companhia dele e que o sexo era fantástico. E, para já, era tudo o que queria. Tinha a Vero, os miúdos e um salário regular. Na verdade, não precisava de mais nada além de um orgasmo assombroso de vez em quando. — Mais uma razão para guardares o teu dinheiro, Finlay. Uma mulher solteira tem sempre de estar preparada para tudo. Devias ter um pé-de-meia. — O meu pé-de-meia está muito bem — disse, fechando o frigorífico e abrindo a cerveja. Não precisava de mais dinheiro da máfia, cadáveres ou maridos problemáticos — fossem meus ou de outrem. As portas de batente da cozinha abriram-se e a minha irmã entrou, vestida com equipamento de combate, com o Zach debaixo do braço. Vi uma gota de suor deslizar-lhe pela testa por trás da proteção facial transparente do capacete. — Situação resolvida — disse ela, atirando uma fralda enrolada para o caixote do lixo enquanto o Zach se contorcia para ela o pôr no chão, desatando depois a correr para a sala. A Georgia deixou- se cair na cadeira ao meu lado e tirou o capacete. — Eu sabia que eras capaz. — Mas olha que foi por um triz. Quando é que vais tirar as fraldas àquele miúdo? E que conversa é essa do Dia das Profissões na escola da Delia? Ofereci-lhe a minha cerveja. — Ela tem de levar um adulto na terça-feira para falar à turma acerca da sua profissão. — Porque é que não vais tu? És uma escritora famosa. — Não sou famosa. — Um contrato decente para um livro fora suficiente apenas para pagar as minhas contas. O livro ainda nem estava publicado. Tanto quanto eu sabia, podia ser um fracasso e nunca escreveria outro. — Além disso, a Delia já perguntou à professora e ela disse que não. — Porquê? Olhei para a minha mãe e baixei a voz. — Pelos vistos, a escola tem algumas reticências devido ao conteúdo dos meus livros. — Estás a falar do sexo? A minha mãe parou de mexer o tacho. Dei um pontapé à minha irmã por baixo da mesa, e praguejei quando o meu pé atingiu a biqueira de aço da bota dela. — O que é que te passou pela cabeça para trazeres equipamento de combate para o jantar de Ação de Graças? — Não trouxe. Este é o meu equipamento de treino antigo da Academia. Encontrei-o guardado no armário no meu quarto. Ainda me serve — proclamou com orgulho, dando uma palmada no colete à prova de bala. — É velcro! — Que conversa é essa sobre sexo nos teus livros? — perguntou a minha mãe com uma mão na anca, a concha a pingar molho na outra. — Por que raio é que os teus livros têm sexo? Disseste-me que eram policiais. — Obrigadinha — resmunguei, tirando de novo a minha cerveja da mão da Georgia. Com um brilho malicioso nos olhos, ela disse: — Não leste os livros da Finn, mãe? Como é que não te lembras do sexo? — A minha irmã piscou-me o olho, tirou um feijão cru da tigela e enfiou-o na boca. Dei-lhe uma palmada na mão quando tentou tirar outro. — Por amor de Deus, Georgia. Acabaste de mudar uma fralda. Lavaste as mãos, ao menos? A minha mãe apontou para mim com a concha do molho. — Não invoques o nome do Senhor em vão nesta casa, Finlay Grace McDonnell. — Donovan — corrigimos eu e a Georgia em uníssono. A minha mãe rangeu os dentes e salpicou molho para o chão quando apontou para a minha irmã com a concha. — E tu, Georgina Margaret, vai lavar essas mãos imundas! A Georgia revirou os olhos. Deu-me um soco no ombro, levantou-se e afastou-se. — Então que história é essa do sexo nos teus livros? — insistiu a minha mãe. — Mas afinal leste-os ou não? Ela corou. — Li os primeiros capítulos. — Só os primeiros capítulos? — Do primeiro livro. Abri a boca. Sabia que o meu pai não lera os meus romances — e dava graças por isso. As letras daqueles livros de bolso eram demasiado pequenas para ele se dar ao trabalho.Mas partira do princípio de que a minha mãe, que vivia para a oportunidade de se intrometer na minha vida pessoal, teria pelo menos feito o esforço de ler um até ao fim. — Aquele que tentei ler — explicou ela —, não me cativou. O que foi? — perguntou quando me viu olhar para ela, de boca aberta. — Gosto da Nora Roberts. Já leste alguma coisa dela? É muito boa. — Com um gemido, colocou o peru no forno. — Vês, aqui está outra coisa em que um marido dá jeito. — Eu consigo pegar nos meus próprios perus, obrigada. Ela olhou para o teto, ou talvez para Deus, sacudiu um pano da loiça e limpou as mãos. — Vai dizer ao teu pai que o peru estará pronto dentro de meia hora e que preciso que ele vá à procura da faca elétrica. Ainda a abanar a cabeça, peguei na cerveja e saí da cozinha. A televisão com o volume quase no máximo transmitia o jogo de futebol, e a Vero e o meu pai estavam ambos instalados no sofá, a gritar com a televisão e a discutir as jogadas. — Olá, pai. A mãe precisa de ti na cozinha. — Aproximei-me por trás dele e dei-lhe um beijo na face. Ele deu uma palmadinha na minha mão pousada no seu ombro. — Mais devagar, velhote — brincou a Vero, e estendeu a mão aberta quando ele se levantou. O meu pai enfiou a mão no bolso e tirou uma nota de vinte. — Devia limitar-me às apostas online. — Não devia estar a jogar, sequer. É um mau hábito. As probabilidades são sempre terríveis — disse ela, aceitando o dinheiro com uma piscadela de olho. — Diz a rapariga que acabou de me limpar a carteira. Tu é que devias experimentar alguns desses websites. É um fim de semana em grande para o futebol universitário. Pega nesses vinte e aposta um ou dois dólares em cada jogo. Talvez tenhas mais sorte do que eu. A Vero olhou com ar pensativo para a nota de vinte enquanto o meu pai desaparecia na direção da cozinha. Enfiou o dinheiro no bolso com ar distraído e mal reparou quando eu me deixei cair na cova quente que o meu pai deixara na almofada ao lado dela. Perguntei a mim própria se a Vero estaria a pensar no primo, a desejar estar a ver o jogo com ele, no seu sofá. Teria acedido a passar o Dia de Ação de Graças com a minha família só porque eu a convidara? Porque a minha mãe insistira? Haveria algum código moral que dizia que uma pessoa era obrigada a aguentar um jantar de peru com a família de alguém só porque tinham enterrado um corpo juntas? — Ainda podes ir ter com o Ramón, se quiseres — disse-lhe. Ela fitou-me com ar surpreendido, como se eu tivesse ido buscar a sugestão ao lugar por onde a sua mente vagueava. — Mas a tua mãe… — A minha mãe compreende. Ainda te manda uma caixa com peru e outra com tarte, para levar. — Por mais que a minha família dê comigo em doida, não imaginaria passar um dia como estes longe deles. Tirei as chaves da carrinha do bolso e dei-as à Vero. — E tu vais como? — perguntou ela. — Peço boleia à Georgia depois de os miúdos irem para a cama. Vai passar o fim de semana com o teu primo. Eu tenho muito com que me entreter. A Vero soltou uma risada maliciosa. Eu sabia que não era na biblioteca que estava a pensar quando disse: — Não faças nada que eu não fizesse. A CAPÍTULO 3 minha irmã deixou-me em casa pouco antes das onze da noite. Vi a carrinha na garagem e o espaço vazio onde devia estar o Charger da Vero. Ela deixara um bilhete em cima da bancada, a recordar-me da reunião com a Sylvia na segunda-feira, e eu enfiei-o debaixo de um monte de contas, para fingir que não ia pensar nisso. Inclinei-me para o frigorífico aberto, e entretive-me a jogar Tetris com os restos que a minha mãe mandara, tentando encaixar as montanhas de caixas de plástico. Mesmo depois de tirar duas cervejas para arranjar espaço, a porta não fechava, e acabei por desistir, tirar uma caixa de gelado do congelador e enfiar o último recipiente de molho de arandos no lugar dele. Triunfante, descalcei-me, peguei numa colher e retirei-me para o piso de cima com as minhas cervejas e o meu Ben & Jerry’s, tentando não reparar no silêncio sufocante da casa vazia. A porta do quarto da Vero estava fechada, como era habitual à noite depois de ela se deitar, mas a sua ausência parecia-me tangível. Devia estar feliz por ter a casa só para mim, mas agora que a tinha, não sabia se gostava. Depois de trocar para umas velhas calças de fato de treino e uma t-shirt larga e desbotada, deitei-me na cama sob o brilho suave do candeeiro da mesa de cabeceira, com a caixa de gelado aberta apoiada no peito. Lambi o gelado de menta e chocolate da colher, dividida entre trabalhar no que tinha de entregar à Sylvia e aproveitar para dormir uma boa noite de sono seguida, enquanto podia. Nem sequer sabia sobre o que seria o meu próximo livro. Sempre que me sentava em frente ao computador para trabalhar, acabava a pensar no fórum feminino, preocupada com aquele tópico enterrado onde constava o nome do Steven. Espetei a colher no gelado e fitei o teto. Talvez a minha mãe tivesse razão. Talvez eu devesse pôr dinheiro de lado para um bom advogado. Talvez devesse lutar pela guarda total. Mas o que havia de dizer? Como o justificaria? Meritíssimo, não posso deixar os meus filhos passarem os fins de semana com o pai porque ele tem a cabeça a prémio e eu só sei disso porque, devido ao meu recente sucesso a eliminar maridos problemáticos, uma ex-cliente achou que talvez eu fosse indicada para o serviço. E embora não tenha planos imediatos para matar o meu ex-marido, preferia que os meus filhos não estivessem com ele, no caso de outra pessoa qualquer resolver tentar. O meu telemóvel vibrou na mesa de cabeceira. Pousei a caixa de gelado e puxei-o para mim, com um sorriso ao ver a fotografia do Julian a piscar no ecrã. Estás em casa? perguntou ele. Sim. Queres companhia? A luz de uns faróis penetrou por entre as frestas da persiana, inundando o meu quarto de luz. Saí da cama e aproximei-me da janela. Quando espreitei, vi o Jeep castanho do Julian lá em baixo, com o motor ligado. Desço já, respondi. Calcei uns ténis, enfiei uma camisola por cima da t-shirt e desci as escadas. O ar lá fora estava frio, e apertei os braços à volta do corpo enquanto corria sobre o relvado. Com um arrepio, abri a porta do lado do passageiro e entrei. Mal tive tempo de a fechar antes de ele se inclinar por cima da alavanca das mudanças e me prender o rosto. Os dedos dele eram macios, a pele em volta da sua boca era suave, a barba acabada de fazer. Cheirava a noz-moscada e aftershave, e o aroma a fumo de lenha agarrava-se à lã grossa da sua camisola. — Feliz Dia de Ação de Graças — disse, com um sorriso, os lábios encostados aos meus. Recuou apenas o suficiente para me enfiar um gorro de lã na cabeça, e depois afastou-me o cabelo do rosto e prendeu-mo atrás das orelhas. As suas madeixas douradas estavam escondidas sob um gorro escuro, com alguns caracóis rebeldes a espreitar. — O que fazes aqui? — perguntei, enrolando um deles no dedo. — Pensava que ias passar o dia com os teus pais. — E fui. — Delineou-me lentamente a curva dos lábios com o polegar. — Ia para casa, mas deixaste o gorro no meu apartamento, na semana passada. Pensei que podias precisar dele. — Oh — respondi. Pus-me de joelhos no banco e passei os braços em torno do pescoço dele. — Estava mesmo a precisar, sim. Com um brilhozinho nos olhos, ele enfiou a mão debaixo do banco e puxou-o para trás. — Precisas de mais alguma coisa? — Ocorre-me uma ou duas — disse, passando por cima da alavanca das mudanças para o colo dele, sem querer saber se a Sra. Haggerty espreitava pela janela e sofria um ataque cardíaco. — Precisava de te ver — murmurou ele entre beijos. Enfiou a mão dentro do casulo da minha camisola, desenhando um padrão gelado nas minhas costas nuas e parando a meio, onde devia estar o fecho do soutien. Sorriu e o seu gemido ecoou contra os meus lábios enquanto as mãos desciam para as minhas coxas e me puxava mais contra si. Havia muita roupa pelo meio de nós. Eu mal o conseguia sentir através do blusão de cabedal e da lã grossa da camisola. Mas estava decididamentea sentir alguma coisa através da ganga das calças dele. — A tua carrinha está na garagem? — perguntou ele quando os vidros começaram a ficar embaciados. Contive uma risada, lembrando-me de como as coisas tinham corrido mal ao último homem que vira o banco de trás da minha carrinha. A carrinha estava na garagem. Mas nela estavam também as cadeirinhas dos meus filhos, uma caixa de pacotinhos de puré de fruta e uma embalagem de toalhitas. Eu nem queria acreditar que estava mesmo a pensar nisto. — Os miúdos ficaram a passar o fim de semana nos meus pais. Queres entrar? — As palavras saíram-me num atropelo desesperado, quentes e peganhentas no ar entre nós, antes que conseguisse voltar atrás. Ele prendeu o meu lábio inferior entre os dentes. — E a Vero? — Está com o primo — respondi, ofegante. A língua dele colidiu com a minha e tive a certeza de que me despiria e trataria do assunto em cima do relvado se as coisas aquecessem muito mais dentro do Jeep. Ele pegou-me na mão quando a estendi para a porta. — Espera. É melhor não — disse, arquejante. — Não posso demorar-me. Tenho de ir fazer as malas. O pessoal quer arrancar às seis da manhã. Endireitei-me, desorientada, com o gorro de lado. — Onde é que vais? Ele tinha os lábios inchados, os olhos ainda esfaimados. — Os nossos professores vão estar numa conferência para a semana. Deram-nos alguns dias de férias extra, para estudarmos para os exames. Alguns de nós combinámos ir acampar em Panama City. — Vais para a Florida? — Foi uma viagem decidida por impulso — disse ele, alisando- me o cabelo e endireitando-me o gorro. — O meu patrão deixou-me trocar alguns turnos no bar. Só fizemos as reservas no parque de campismo esta semana. Lembrei-me das férias do Steven na faculdade, quando ia para Daytona e Miami com os amigos. Eu nunca era convidada e nunca ficava a saber os pormenores depois. Mas isso não significa que fosse ingénua. — Só tu e os rapazes? — E mais algumas pessoas da escola — disse ele. Endireitei-me e deixei alguns centímetros entre nós. O Julian segurou-me suavemente no queixo. — Vamos só apanhar sol e descomprimir. Mais nada. Estarei de volta daqui a uma semana. Tive visões de universitárias em biquínis minúsculos e tendas ainda mais pequenas. Não tinha qualquer direito de sentir ciúmes. Eu e o Julian não tínhamos nada sério. Ele nunca estivera sequer dentro da minha casa. Nunca conhecera os meus filhos, nem a Vero, nem o meu ex. — Oh — disse, quando o outro lado dessa equação me atingiu em cheio na cara. Ao longo de todo este mês, desde que começáramos a andar um com o outro, eu nunca conhecera também nenhum dos amigos dele. — O que foi? — perguntou ele. — Nada — disse-lhe, com um sorriso forçado. Do que é que eu estava à espera? Tinha dois filhos e um trabalho e uma casa pela qual era responsável. Estaria mesmo à espera de que ele me convidasse a ir também? — Está tudo bem — insisti. — Vai, sim. Diverte-te. — Tens a certeza? Porque se há algum problema, se calhar… Segurei-lhe no rosto e beijei-o. Porque não queria que ele acabasse a frase. Se calhar é melhor não nos voltarmos a ver. Se calhar devíamos ir mais devagar. Se calhar devíamos conversar. Eu não queria fazer nenhuma dessas coisas. Queria fazer sexo com ele neste Jeep, e talvez até no chão coberto de migalhas da minha carrinha. Não queria imaginá-lo na praia, enfiado num saco-cama com outra. Ele tirou-me o gorro e atirou-o para o lado. Os seus dedos enfiaram-se entre o meu cabelo, a outra mão dentro da minha camisola, e puxou-me novamente para o colo com um gemido frustrado. Nesse momento ouvimos pneus a chiarem. Separámo-nos sobressaltados, arquejantes, quando uma carrinha de caixa aberta parou com uma derrapagem ao fundo do caminho de acesso à minha casa. As luzes dos travões brilharam, num tom lívido de vermelho. Saltei dos braços do Julian para o banco do passageiro. Ele virou-se e seguiu o meu olhar através do vidro de trás do carro, ainda com os olhos velados de desejo. — O teu ex? Fiz que sim com a cabeça e esperei que o Steven pisasse o acelerador e seguisse caminho. Em vez disso, ele puxou o travão de mão. — Merda! — murmurei. O Julian encostou a cabeça ao banco e disse, em voz rouca: — Se calhar é melhor eu ir. — Não. Por favor… Não te mexas — pedi, e abri a porta do Jeep. Fechei-a com mais força do que pretendia, ajeitei a camisola e alisei o cabelo enquanto avançava pelo caminho de acesso ao encontro do Steve. — O que estás a fazer aqui? Não te disse que os miúdos ficaram com os meus pais? — De quem é aquele Jeep? — O Steven franziu a testa ao ver o autocolante da universidade no vidro de trás, e esticou o pescoço para tentar ver o interior. — De uma pessoa amiga. — Pus-lhe a mão no peito quando ele tentou dar uma passada determinada na direção do Jeep. — Olha, estou ocupada. Não podes ligar-me amanhã? Ele parou e um rubor surpreendido invadiu-lhe o rosto. — Porque é que tens o pescoço todo vermelho? E que raio aconteceu ao teu cabelo? — Não aconteceu nada com o meu cabelo. Importas-te de…? Ouvi uma porta de carro bater atrás de mim e o Steven ficou tenso. Fechei os olhos com força. — Quem é este? — inquiriu o Steven quando o Julian parou ao meu lado. O Julian puxou-me à parte. — Parece que vocês os dois precisam de falar, e eu devia ir para casa. Tenho de acordar muito cedo. Ficas bem se eu te deixar? — Fica ótima — resmungou o Steven. Acenei afirmativamente. O Julian baixou-se e roubou-me um beijo lento que me deixou sem fôlego. — Por amor de Deus, rapaz — explodiu o Steven. — Não passa já da hora de estares na cama? — Mando-te uma mensagem quando voltar — murmurou o Julian. Derreti-me numa poça de frustração, e reconsiderei seriamente aquela oferta de cem mil dólares para matar o meu ex- marido, enquanto o Julian entrava no Jeep e arrancava. Virei-me para o Steven, de mãos nas ancas — sempre era melhor do que à volta do pescoço dele. — Que vem a ser isto, afinal? — Eu podia perguntar o mesmo. Quem era aquele? — perguntou, apontando para as luzes do Jeep, que diminuíam à distância. — Este é que é o advogado misterioso de quem a Vero está sempre a falar? Por amor de Deus, Finn! Que idade tem ele? — Que idade tem a Bree? — retorqui. Duvidava que a secretária loira e atrevida que ele tinha no escritório tivesse sequer idade para beber. — Não tens nada que ver com isso! — Ergui uma sobrancelha, mas pelos vistos a ironia da situação passou-lhe despercebida. Franziu os lábios numa expressão revoltada. — É por causa dele que a Delia e o Zach ficaram a passar o fim de semana na tua mãe? Para poderes estar aqui fora, de pijama, a embaciar as janelas do carro de um puto qualquer? — Olhou para a minha camisola e semicerrou os olhos. — Francamente, Finn, nem sequer tens soutien! Cruzei os braços no peito, vagamente consciente de uma luz a acender-se na janela do piso de cima em casa da Sra. Haggerty. — O que estás aqui a fazer, Steven? É Ação de Graças. Não tens nenhum sítio melhor para ir? Ele roçou a mão pela barba por fazer e disfarçou um esgar. Os pais tinham-se mudado para Tampa há alguns anos, depois de se aposentarem, e a irmã vivia agora em Filadélfia. Ele tinha nódoas de ketchup na camisa de flanela e o seu hálito cheirava a cebola. Provavelmente passara a noite de Ação de Graças a comer fast food no carro. O Steven deu alguns passos curtos e irritados em frente da carrinha, passando as mãos pelo cabelo demasiado comprido. Tinha tão mau aspeto como da última vez que aparecera na minha casa a meio da noite, quando ele e Theresa estavam zangados e ele viera de rabo entre as pernas tentar falar comigo. — A Bree deu-te com os pés — disse eu, e fiquei certa de que acertara quando ele nem se deu ao trabalho de se sair com uma tirada sarcástica. — Não me deu com os pés — disse, por fim, com azedume. — Foi uma decisão profissional. Perdi muitos clientes depois da investigação policial e já não podia estar a pagar a uma secretária. Despedi-a há umas semanas. — Contive uma risada irónica e abanei a cabeça. — O que foi?— Ele tinha as faces coradas sob a luz do candeeiro de rua. — Sugeri-lhe continuar a vir só quando fosse preciso, não é culpa minha que ela tenha recusado. Pus a cabeça nas mãos e murmurei o nome dele com um suspiro. O Steven teria sorte se a Bree não o pusesse em tribunal e não pintasse #MeToo no cartaz em frente da quinta. Eu nem sequer queria saber a quantas mulheres o Steven fizera isto ao longo dos anos, pô-las de lado depois de elas rejeitarem os seus avanços. Tentara fazer o mesmo com a Vero antes de ela vir viver connosco, afirmando que não podia pagar-lhe e sugerindo-lhe que só podia ficar se fizesse algumas horas extra nas calças dele. Despedira-a com a desculpa de não haver dinheiro quando ela recusara declaradamente as suas propostas indecentes. Com os braços cruzados no peito, dirigi-me para a porta. — Vai para casa, Steven. — Não tenho casa — disse ele atrás de mim. Parei a meio do caminho, furiosa comigo própria por me virar. Ele tinha o nariz encarnado, o rosto banhado pela luz crua do poste de iluminação. — Não me sinto em casa em lado nenhum sem os miúdos ao pé de mim. Era pena ter demorado tanto tempo para chegar a essa conclusão. — O que queres, Steven? — Deixa-me ficar com eles no domingo — pediu. — Só umas horas. Ainda não tenho pinheiros suficientemente grandes para cortar, mas encontrei uma quinta que tem umas árvores mesmo bonitas, e pensei que podia levá-los para escolherem uma árvore de Natal. Sabes, uma para cada casa. Esfreguei os olhos, já sem desculpas para afastar as crianças dele. — A Delia tem escola na segunda-feira. Uma centelha de esperança iluminou-lhe o rosto. — Eu trago-os antes da hora de dormir. Prometo. — Está bem. — Encolhi-me dentro da camisola, demasiado exausta para discutir. — Eu dou-lhes de comer mais cedo. Podes vir buscá-los às cinco. Virei-me para a minha casa — a casa que ele queria, subitamente, enfeitar com a árvore de Natal perfeita. A mesma casa que abandonara por achar que a galinha da vizinha era melhor do que a dele. O Steven ficou ali parado no caminho, de mãos nos bolsos, com a neblina da respiração a pairar no ar enquanto me via fechar a porta. O CAPÍTULO 4 parque de estacionamento da biblioteca estava quase vazio quando as portas abriram no sábado de manhã. O resto do mundo provavelmente ainda estava a curtir os seus comas induzidos pelos perus e à espera de que os botões das calças reencontrassem as respetivas casas. Até as minhas calças de yoga me tinham parecido um bocadinho justas quando as enfiara nessa manhã. Assim, optara antes pelas calças de fato de treino confortáveis que trazia, dizendo a mim própria que não era por cheirarem ainda levemente ao Jeep do Julian. Com um dos bonés da Vero puxado para baixo para esconder o rosto, contornei o balcão da receção, na esperança de que a única funcionária, com os seus superpoderes de bibliotecária, não sentisse o cheiro do copo de café fumegante que eu trazia escondido dentro do casaco, ou pressentisse que tinha uma sanduíche com os restos do jantar de Ação de Graças dentro da mala do portátil. Segui pelo caminho mais longo até aos cubículos com computadores para uso público mais distantes da entrada. Depois de confirmar que não havia ninguém escondido entre as estantes, sentei-me em frente a um monitor ao fundo da sala. Pousei a sanduíche e o café na secretária e tirei o telemóvel da mala do computador. O meu coração deu um saltinho ao ver a nova notificação no ecrã. Abri-a, mas não era do Julian. Era apenas a minha mãe, a dizer-me para ir buscar as crianças cedo no dia seguinte, para ela conseguir ir à missa da tarde. Curiosa, abri o Instagram e procurei o perfil do Julian. Não nos seguíamos um ao outro, mas a conta dele não era privada. Disse a mim mesma que não era bisbilhotar, com o dedo a pairar sobre o nome dele. Com o pulso acelerado, cliquei na fotografia de perfil. Não sei o que esperava ou queria encontrar, mas os meus ombros relaxaram quando vi as mesmas fotografias da última vez encherem o ecrã. Pousei o telemóvel com o ecrã para baixo em cima da secretária e virei a minha atenção para o computador da biblioteca. Estava aqui para trabalhar, recordei a mim mesma. Para encontrar a Fartinha e escrever um resumo para a Sylvia. Não para espiar o Julian enquanto ele gozava as suas férias. Afastei o Julian da mente e introduzi o endereço do fórum no motor de busca. Depois, iniciei sessão com o perfil anónimo que eu e a Vero tínhamos criado depois de tomarmos conhecimento da publicação sobre o Steven. O fórum era enorme, com quase trinta mil utilizadores registados e milhares de publicações novas que surgiam todos os dias. Passei pelas salas familiares dedicadas às mulheres: Rede de Mulheres, Saúde Feminina, Grupos de Apoio para Divórcio e Luto… Depois, enveredei pelos grupos #vidademae: Mães Trabalhadoras, Amamentação, Ensino Doméstico, Desfralde… hesitei neste último, e fiz uma nota mental para voltar a ele mais tarde antes de continuar. Eu e a Vero tínhamos encontrado os subgrupos mais suspeitos no fundo da página, dissimulados, escondidos entre chats de encontros de crianças e reuniões de clubes do livro. Como as Mães Poupadas, que traficavam cupões de desconto como se fossem drogas, as Mães Galinhas, que partilhavam métodos para espiar os filhos adolescentes e os maridos traiçoeiros, e as Miúdas Habilidosas, cujas «dicas de limpeza» de vez em quando entravam por território duvidoso, com várias publicações a parecerem uma metáfora para maneiras de lidar com um cônjuge problemático. A publicação com o nome do Steven aparecera num grupo de chat chamado Sessões de Reclamações. Passei rapidamente pelas publicações mais recentes e cliquei na que tinha o título Maus Negócios. Esta conversa começara como muitas outras — mulheres a queixarem-se dos homens problemáticos nas suas vidas — antes de enveredar por uma direção mais sinistra. MAMÃDE3: Sinto que é o meu dever cívico avisar as outras mamãs para evitarem o Vin, naquele salão de cabeleireiro novo em Fair Oaks. Apanhei-o a mandar mensagens à minha filha. Ela tem 17 anos!!! MAMÃSEXYDEGÉMEOS: Não!!! Espero que tenhas feito queixa dele! E por falar em homens que se portam mal, lembram-se de eu ter marcado uma massagem por causa da minha ciática naquela clínica de fisioterapia em Centreville? Um dos terapeutas tentou apalpar-me. Um autêntico tarado. Têm mesmo de o despedir. BOLACHINHADECANELA: ARGH! Lamento muito que tenhas passado por isso. Os homens são uns porcos! Uma amiga minha marcou um Airbnb em Rehoboth na semana passada, e encontrou uma câmara escondida na casa de banho. Juro pela minha saúde. Fui investigar e o tipo tem dezenas de casas de férias para arrendar. Já ponho aqui o link. FÃ#1HARRYSTYLES: Que nojo. Ainda bem que temos este chat para nos avisarmos umas às outras. FARTINHA: Sei precisamente como isso é. O dono da COLINAS VERDEJANTES, QUINTA DE RELVA E ÁRVORES, na Green Road, em Warrenton, é um caso sério. Chama-se Steven Donovan e é um mentiroso e um traidor. PRESASSPAIS: Espera… Não foi essa quinta que apareceu nas notícias em outubro? Onde encontraram uma data de cadáveres? FARTINHA: Sim, e eu era capaz de dar 100 Boas Razões para o mundo ficar melhor sem ele. Esta conversa terminara aqui, deixando um silêncio desconcertante, mas palpável depois dessa última resposta. Ninguém gostava de pensar que a relva cara que cobria o seu bonito jardim fora semeada na mesma terra que o crime organizado usava para enterrar cadáveres. E esta publicação parecia mais do que uma manifestação de solidariedade. Tresandava a rancor, à linguagem codificada de negócios ilícitos. Assunto sério podia muito bem indicar um contrato. E 100 Boas Razões dava mesmo a entender um preço. O nome completo do Steven com a morada e nome do negócio estavam bem explícitos, e o mundo ficar melhor sem ele… bem, essa parte era óbvia. Relaxei um pouco enquanto fechava a conversa. Não havia novas respostas desde a última visita da Vero à biblioteca, três dias antes, mas continuávamos com o problema de não saberquem era esta Fartinha. Passei as horas seguintes a mergulhar por labirintos escuros no fórum, em busca de outras publicações dela, mas, tanto quanto me era dado ver, esta mensagem sobre o Steven fora a única contribuição da Fartinha. De acordo com o seu perfil, registara-se como membro dois dias antes de publicar o anúncio de trabalho e não voltara a participar. Mas era evidente que continuava ativa: o seu último login fora naquela manhã. — Quem és tu? — perguntei baixinho, estudando o breve perfil da Fartinha. Era óbvio que se tratava de uma mulher. Alguém a quem o Steven mentira ou enganara. Uma pessoa de moralidade questionável. O meu reflexo obscuro fitou-me do ecrã e perguntei a mim própria se a Fartinha estaria do outro lado, oculta nas sombras, à espera de uma resposta. N CAPÍTULO 5 o domingo de manhã, deixei a biblioteca pela última vez nesse fim de semana com precisamente zero pistas sobre a identidade da Fartinha e ainda menos ideias sobre o enredo do meu próximo livro. Fui buscar a Delia e o Zach a casa dos meus pais, e fiquei muito aliviada quando o portão automático da minha garagem se abriu e vi o Charger da Vero estacionado lá dentro. Com o Zach num dos braços, e a puxar duas malas, o meu computador portátil e o saco das fraldas no outro, debati-me para abrir a porta da cozinha. — Vero! — chamei. O Zach deslizou do meu braço e dirigiu-se para o quarto dos brinquedos. A Delia atirou o casaco para cima de uma cadeira. O nome da Vero ecoou pela casa silenciosa. Larguei malas e sacos no meio do chão, à espera de a ver entrar pela sala, animada, depois de um fim de semana inteiro longe de nós. Chamei-a de novo enquanto tirava o copo do Zach do saco das fraldas e o colocava no lava-loiça, surpreendida por ver que estava cheio com a loiça do pequeno-almoço que eu não tivera tempo de pôr a lavar antes de sair para a biblioteca naquela manhã. A máquina de café ainda tinha borras frias no fundo e havia migalhas de torrada espalhadas sobre a bancada. Embora eu não tivesse deixado aquela desarrumação toda de propósito, não parecia coisa da Vero estar em casa e não ter tratado do assunto. Parei ao fundo das escadas no vestíbulo, à escuta de sons de água a correr na casa de banho, ou dos graves abafados de reggaeton através das paredes do seu quarto. — Onde está a Vero? — perguntou a Delia. — Deve estar a dormir a sesta. Vai brincar com o teu irmão — sugeri-lhe, e empurrei a minha filha na direção do quarto de brincar. Subi as escadas até ao quarto da Vero. Do outro lado da porta tocava uma música suave, uma balada melancólica de uma boy band que nunca ouvira antes e que tinha a certeza de que ela ridicularizaria se a ouvisse no rádio do carro. Bati e ouvi o rangido das molas da cama e o sussurro de pés descalços no chão. A porta entreabriu-se e ela espreitou pela fresta, vestida com um pijama desirmanado que eu tinha quase a certeza de que era meu. Tinha os olhos borrados de rímel, meio escondidos por trás de madeixas de cabelo escuro que se tinham soltado do rabo de cavalo descuidado. — Quem és tu? — perguntei, empurrando a porta. — E o que fizeste com a ama dos meus filhos? Esperei que ela me recordasse de que, na realidade, era a minha contabilista, mas a Vero virou-se, voltou para a cama e deixou-se cair de cara para baixo em cima dela. Sentei-me à beira do colchão, enfiei a mão entre a cara dela e a almofada e apalpei- lhe a testa. Não estava quente nem peganhenta, mas o seu cabelo cheirava vagamente a bar. — O fim de semana com o teu primo foi bom, hã? — Não seria a primeira vez que ela chegava a casa de ressaca depois de uma noitada com o Ramón. Mas era a primeira vez que vinha de casa do primo com ar tão abatido. A Vero enterrou mais o rosto na almofada e um nó de preocupação apertou-me o peito. — Queres falar sobre o assunto? — Não — foi a resposta abafada. Eu tinha a certeza de que só havia uma coisa que conseguiria arrancá-la a este estado de espírito. — Então salta da cama — disse. Levantei-me e puxei a almofada de baixo da cabeça dela, deixando-lhe o cabelo em pé, com a estática. — Vamos às compras. Ela abriu um olho, desconfiada. — Às compras de quê? — Presentes de Natal. E comida do Dairy Queen. — Ela nunca encontrara um cachorro-quente com chili ou um batido de gelado que não amasse. — Mas se estiveres demasiado cansada… — Espera — disse ela, sentando-se na cama. — Não compres nada sem mim. Eu vou contigo. Dois minutos depois, o chuveiro começou a trabalhar na casa de banho dela e o nó de preocupação no meu peito relaxou um pouco. Era óbvio que a Vero estava com problemas na família, e por mais que eu gostasse de saber que ela se sentia à vontade com a minha, incomodava-me pensar que não parecia preparada para me contar o que se passava. Depois de uma passagem rápida pelo drive-through do Dairy Queen, a Vero começou a ficar mais animada, mas murchou de novo quando virei a carrinha para o parque de estacionamento apinhado da loja de materiais de construção e remodelações. — O que vamos fazer? — perguntou. — Vamos às compras — respondi. — Disseste compras de Natal. Isto não são compras de Natal — lamentou-se, enquanto tirávamos as crianças da carrinha e entrávamos na loja. — Compras de Natal fazem-se no centro comercial. Ou na Internet, no último minuto, com bolachas de gengibre e bengalas de rebuçado na mão. Ou no sofá, em frente do canal de compras, de pijama e chinelos felpudos. — Aceitou um folheto de promoções que um funcionário lhe ofereceu à porta. Depositei o Zach dentro de um carrinho de compras. Ele retorceu-se e tentou enfiar os dedinhos gorduchos e peganhentos nas ventoinhas lentas que giravam na secção de iluminação. O seu guincho cresceu em volume e intensidade quando o empurrei na direção oposta. Tirei um detetor de pregos com luzes a piscar da ponta de um corredor e pu-lo no colo dele, para o distrair. A Vero tirou-lho das mãos. — Acredita, a tua mãe não precisa de uma coisa destas. — Deu- lhe um pacote de Cheerios quando ele começou a protestar. Passei-lhe a minha lista de compras. — Vê se encontras estas coisas. A Georgia quer um kit de limpeza para o carro e a minha mãe uma daquelas coisas de pôr na janela com comida para os pássaros. E já que vais à secção de jardim, precisamos de uma pá de neve lá para casa. Eu vou à secção de ferramentas comprar qualquer coisa para o meu pai. — Toma — disse ela, entregando-me o folheto. — Compra só o que estiver em promoção. Não gastes demasiado. Ainda mal acabámos de pagar os teus cartões de crédito. E desapareceu no meio dos outros clientes com a Delia pela mão. Empurrei o carrinho para um corredor apinhado e consegui deitar a mão ao último berbequim sem fios da prateleira, que depositei triunfantemente dentro do carrinho, para o meu pai. Depois passei lentamente pelas prateleiras de ferramentas para a casa. O corredor estava repleto de mulheres, todas elas com listas na mão, provavelmente de presentes para os maridos. Perguntei a mim própria quantas delas teriam bancadas vazias nas garagens daqui a um ano. Os meus pensamentos foram parar àquela estúpida pá cor-de- rosa por cima da bancada na minha garagem — a única ferramenta que o Steven deixara ao sair de casa. Pensei em todos aqueles suportes vazios e gavetas cheias de pó. No trabalho que eu e a Vero tínhamos tido só para encontrar um raio de uma pá para enterrar um corpo. Deambulei por entre a multidão de compradores e comecei a tirar uma coisa de cada das prateleiras: chaves de fendas, martelos, fitas métricas, lanternas e uma seleção de alicates de vários tamanhos, feitios e cores. Pensando melhor, se calhar queria o berbequim sem fios para mim. Peguei num grande sortido de pilhas Duracell e atirei-o para o carrinho. O Zach acabou os Cheerios e começou a choramingar. Tinham passado trinta minutos, e já estava a estranhar a demora da Vero quando ela apareceu ao fundo do corredor e parou com o carrinho ao lado do meu. — Olha, mamã! — disse a Delia, com as pernas enfiadas nos buracos do assento. — Tenho os dentes a abanar. A fadados dentes vai dar-me montes de dinheiro. — Empurrou os dentes da frente com a ponta da língua. Semicerrei os olhos e inclinei-me para ver melhor. Praticamente não se mexeram. — Parece-me que ainda não estão prontos para cair. — Mas foi por isso que a Vero me comprou isto. — Brandiu um alicate. Tirei-lho da mão antes que ela o enfiasse na boca, trocando- o pelo meu iPhone, e atirei a ferramenta para o carrinho da Vero. Ela olhou para o conteúdo do meu com um sorriso divertido. — Parece que alguém perdeu a cabeça com as pilhas. Não tinhas dito que o Julian só estava fora uma semana? — Baixou a voz para um murmúrio conspirador. — Se precisares de aparelhos a pilhas, a Stacey da nossa rua meteu-se há pouco tempo num desses negócios a partir de casa, de venda de brinquedos para adultos. Pilhas grátis com todas as compras e envios em embalagens discretas. Um funcionário adolescente que estava a reabastecer as prateleiras parou e olhou para nós. Com as faces a arder, respondi: — Não preciso de ferramentas dessas, muito obrigada. — Eu já vi a tua gaveta da mesa de cabeceira, Finn, e perdoa- me, mas tenho de discordar. — O empregado arregalou os olhos. — Para onde é que está a olhar? — disse-lhe ela, chamando a atenção dos outros clientes nas imediações. Depois de os últimos pares de olhos curiosos voltarem para os seus respetivos carrinhos, baixei a voz. — Isto não tem nada que ver com o Julian. Só estou farta de ver aquele quadro de ferramentas vazio sempre que entro na garagem. Não há necessidade nenhuma de estarmos dependentes do Steven ou do meu pai sempre que se avaria alguma coisa. — Eu e a Vero éramos perfeitamente capazes de apertar um parafuso de vez em quando. Peguei num rolo duplo de fita adesiva e atirei-o para o carrinho. — Uma vez que, pelos vistos, não pudeste brincar às casinhas com o teu namorado, como correu a escrita? Respondi com um grunhido ininteligível. — Passei o fim de semana todo a tentar descobrir mais alguma coisa sobre a Fartinha no fórum. — Tiveste sorte? — Nenhuma. — Eu também não. Puxei o carrinho até ele parar, depois agarrei no carrinho da Vero e obriguei-a a fazer o mesmo. — Acedeste ao fórum em casa do teu primo? — murmurei. — Claro que não! — disse ela, com uma careta. — Foi num computador público, no átrio de um hotel. — Qual hotel? — Isso não é importante. O que é importante é o que descobri. Sustive a respiração. — Descobriste a Fartinha? — Não, mas ouve isto — disse ela, inclinando a cabeça para a minha enquanto ambas recomeçávamos a empurrar os carrinhos. — Alguém com o nome de utilizador LimpezaFácil tem estado a ganhar uma fortuna naquele fórum. Aparece uma publicação, muito enigmática, em linguagem vaga… geralmente uma mulher que quer ver-se livre de uma coisa grande e precisa de alguém que faça o serviço por um valor. Ou uma mãe que está atrapalhada com uma nódoa persistente e disposta a pagar a alguém para a ajudar a eliminá-la. — A Vero manteve o tom de voz baixo e sublinhou as citações com aspas feitas com os dedos. — Alguns dias depois, a LimpezaFácil responde com umas perguntas cuidadosamente formuladas, até ficar bem claro que ela e a pessoa que publicou a mensagem original estão a falar a mesma língua. E depois a LimpezaFácil e a cliente passam para um chat privado. E em pouco tempo a conversa original morre… e imagino que o mesmo acontece ao marido problemático. — Tens a certeza de que não estás a interpretar mal o que viste? — perguntei, desconfiada. — Se essa LimpezaFácil é mesmo uma assassina a soldo, porque não respondeu às publicações da Patricia Mickler? — Segundo a Patricia, ela passara meses naquele fórum à procura de alguém disposto a despachar o marido, antes de por fim desistir e falar comigo. — A LimpezaFácil é uma profissional. Provavelmente investiga primeiro os alvos. Tu terias matado o Harris se soubesses que ele trabalhava para a máfia? — Fala baixo — sussurrei. — E eu não matei ninguém. — Estou a dizer-te, esta LimpezaFácil está literalmente a fazer uma limpeza, Finn! Estes trabalhos não são baratos. Vi pelo menos três terem lugar nestas últimas duas semanas. — Porque é que não disseste nada? — Não tinha dados suficientes para estabelecer um padrão. Só tive a certeza do que estava a ver quando apareceu o terceiro trabalho, e não queria preocupar-te em vão. Mas deixa-me a pensar… — A pensar no quê? — Naquele dinheiro todo. — A Vero levou o dedo ao queixo e estendeu a mão para o folheto que eu tinha na mão. — As arcas congeladoras estão em promoção na secção de eletrodomésticos. Aposto que cabia uma na garagem. Riu-se quando eu puxei o folheto. — Onde está a pá para a neve? E o comedor de pássaros para a minha mãe? Ela suspirou e olhou para o carrinho de testa franzida. — Parece que eu e a Delia nos distraímos. Os clientes começaram a diminuir enquanto empurrávamos os carrinhos pelo corredor central em direção à secção de jardim. Vi as horas no telemóvel. — Temos de nos despachar. O Steven vem buscar os miúdos daqui a uma hora para irem comprar árvores de Natal. — Não acredito que os vais deixar ir — disse a Vero em surdina, para as crianças não ouvirem. — Que querias que fizesse? — Ele tinha o direito legal de os levar, e um advogado extraordinariamente competente. — Acredita, não me agrada mais do que a ti, mas estarão ao ar livre, num sítio público com outras pessoas. E nós as duas andámos no fórum este fim de semana. Já passou um mês sem que ninguém tenha respondido à publicação, e de qualquer maneira já está enterrada por baixo de centenas de mensagens novas. De certeza que os miúdos estão seguros. — Não sei, Finn — disse ela enquanto virávamos para o corredor de jardinagem. — A LimpezaFácil tem andado muito ocupada. E se ela já anda a estudar o Steven? — Duvido muito. — Enquanto o dizia, senti o estômago às voltas. Não me agradava nada a ideia de os meus filhos estarem sozinhos com o Steven quando ele tinha um alvo no meio da testa. — Quer dizer, também não posso ligar-lhe e dizer-lhe que só pode estar com os filhos se eu lá estiver. Já insisti em ir com eles em todas as visitas este mês. Ele começa a ficar desconfiado. A Vero inclinou a cabeça enquanto estudávamos os comedores para aves. — Talvez haja outra forma de ter os miúdos debaixo de olho sem ir com eles? — Como assim? Tirou um par de binóculos da secção de observação de pássaros e colocou-os no meu carrinho. — Não aprendeste nada nas tuas excursões com o inspetor Anthony? E CAPÍTULO 6 u e a Vero estávamos encolhidas no banco da frente de um velho Chevy, enroladas em casacos de inverno, gorros de lã e cachecóis, com dois copos de café fumegantes e uma caixa de donuts meio vazia entre nós. A Vero deixara o Charger no parque de estacionamento da oficina do Ramón e trocara-o por um dos carros que ele tinha para emprestar aos clientes. Quando o Steven veio buscar os miúdos, eu ajudei-os a vestir os casacos, pus a mochila às costas da Delia e fiquei a fazer-lhes adeus com acenos entusiásticos enquanto a carrinha do Steven se afastava. Depois peguei no meu casaco, tranquei a porta e corri para me encontrar com a Vero na esquina. Seguimos o Steven a uma distância cautelosa até à quinta das árvores de Natal e estacionámos o carro de marcha-atrás num lugar ao fundo do terreno. A Vero espreitou pelos binóculos. — Não devíamos aproximar-nos um pouco mais? — Se nos aproximarmos mais ele pode ver-nos. — O parque de estacionamento da quinta estava repleto de carros, e as filas muito bem alinhadas de abetos e pinheiros cortados eram iluminadas por luzes brancas penduradas em estruturas de madeira. Música festiva saía das colunas montadas em postes e funcionários com chapéus de elfo deambulavam por entre as filas de árvores, recebendo o dinheiro dos clientes e transportando as árvores até aos carros. — Ali estão eles! — disse a Vero, apontando pelo para-brisas. Endireitei-me no banco e pousei o café no suporte para bebidas, tentando descortinar a Delia e o Zach enquanto a Vero me passava os binóculos. O Zach contorcia-se debaixo dobraço do Steven. A Delia puxava-o pela outra mão por entre as filas de árvores. Estava a mexer a boca, mas eu não conseguia perceber o que a minha filha dizia. — Levanta o volume. A Vero ajustou o botão azul no recetor em cima do tabliê. A tagarelice excitada da Delia sobrepôs-se à estática abafada proveniente do monitor de bebé que eu colocara dentro da mochila dela. Ligara-o e enfiara-o lá dentro mesmo antes de o Steven os vir buscar. — Qual é alcance desta coisa? — inquiriu a Vero. — Segundo o fabricante, até trezentos metros. — Pousei os binóculos no tabliê e bebi um gole de café, sentindo-me um pouco mais tranquila com o som da voz da Delia à minha volta. — Acho que a minha mãe tem razão — disse. — Devia contratar um bom advogado especialista em divórcios para lidar com esta questão da guarda. Estou completamente fora de pé para tratar das coisas sozinha. — Quanto é que custa um advogado a sério? — O Guy recebe duzentos dólares à hora — respondi, soprando para arrefecer o café. — E mais vale tratar disso agora, que tenho dinheiro no banco. Também estava a pensar em trocar a carrinha por uma coisa melhor. — Peguei num donut. A Vero estava muito calada. Demasiado calada. Nem sequer protestou quando eu tirei o único donut com creme de chocolate. — Porque é que estás a olhar para mim assim? — Assim como? — Como se houvesse algum problema. — Não há problema nenhum. — Pousou o seu donut meio comido e sacudiu açúcar das calças. — Ainda na semana passada estavas a chatear-me para comprar um carro novo. Porque é que estás de repente tão preocupada com cupões e arcas congeladoras em promoção? — Preciso de uma razão para fazer escolhas financeiras sensatas? — Quanto é que resta na conta bancária, Vero? Ela virou lentamente os olhos para mim. — Antes ou depois de termos ido fazer as compras de Natal? Abri a boca. — Não podes estar a falar a sério! E o dinheiro da Irina? — A mulher rica do assassino da máfia russa pagara-nos 75 000 dólares limpos, que tínhamos escondido no congelador. — Não é possível termos gastado esse dinheiro todo num mês! — Não gastámos. Eu investi-o. — Bem, então desinveste-o. Não deve ser assim tão difícil vender meia dúzia de ações. — Não é assim que estas coisas funcionam, Finlay. Temos de deixar o dinheiro a render. — E como é que eu vou pagar as minhas contas, entretanto? E não sugiras matar alguém por dinheiro. — Não sei — disse ela, com a voz a subir de tom. — Usamos o dinheiro do teu próximo livro. Quanto mais depressa o escreveres, mais depressa recebemos. — A Vero falava no plural, como se fosse ela que tinha de se sentar em frente ao teclado e escrevê-lo. — Quando é que vai estar pronto, já agora? Virei-me e olhei para a janela, vislumbrando a Delia e o Zach a correr a toda a velocidade por entre as filas de árvores de Natal, com o Steven atrás deles. — Não queiras saber. Ficámos em silêncio, a tensão no carro a crescer. A Vero começou a agitar-se. — Talvez tenhas esgotado a inspiração para policiais românticos — disse, virando-se para mim. — Se calhar precisas de alargar horizontes. Desafiar-te a ti própria artisticamente. Andei a ler sobre uma nova tendência. Há um enorme mercado por explorar. — O quê? — Dino-pornografia. — Engasguei-me com o café. — A sério, Finlay. Estive a fazer contas e a dino-pornografia é a próxima grande moda. Olhei para ela de boca aberta. — Como é que isso é possível? — Também não estava a perceber, por isso descarreguei umas amostras. — Dobrou os braços, imitando os bracinhos do T. Rex. — Parece que as mãos do dino-herói são pequeninas, mas a nossa protagonista não se importa porque ele compensa isso largamente com um gigantesco… — Cala-te! — Tapei os olhos, decidida a não visualizar. — Não quero saber. — Está bem. Mas quando toda a gente desatar a comprar literatura «velocirrapterótica», não digas que não te avisei. — Cruzou os braços e recostou-se no banco. Continuámos a olhar para o para-brisas. O Steven aproximou-se de uma jovem funcionária da quinta, com sininhos no gorro e seios extremamente generosos. Inclinou-se para ela e apontou para uma das árvores, aproveitando para lhe espreitar para o decote enquanto procurava a carteira. — Estás a ver isto? — perguntou a Vero, repugnada. — Ele está claramente a atirar-se àquela elfa. É mesmo previsível. A sério, Finn, não seria difícil despachá-lo. Cem mil dólares já davam para um bom carro. E pensa no dinheiro que poupavas em advogados. — Eu vou escrever o livro. Ela abanou a cabeça e observou o Steven pelos binóculos enquanto ele namoriscava descaradamente com a empregada. — O que é que viste nele? Se a Vero me tivesse feito essa pergunta um ano antes, eu diria que era o seu charme, a sua motivação, a sua confiança. Contudo, em retrospetiva, o tempo esclarecera muitas coisas na nossa relação. Suspirei. — Ele tinha muito jeito para me fazer sentir que precisava dele. — Isso é doentio. — Pois é. — Vi-o dar o seu cartão à funcionária vestida de elfo, e era evidente que estava a pedir o número dela. Apanhando o Steven de costas, o Zach afastou-se e desapareceu entre uma fila de árvores. A Delia foi atrás dele. O Steven deu meia-volta e gritou por eles. Enfiou a carteira no bolso e desatou a correr, quase derrubando um poste na pressa de os apanhar. Os três desapareceram por entre o labirinto de árvores. Os risos das crianças soaram pelo monitor. — Para onde é que eles foram? — perguntou a Vero com uma risada, procurando com os binóculos. — Ele já os apanhou, de certeza. Não devem demorar a aparecer. Ouvimos o riso do Zach afastar-se, perdido no restolhar da mochila da Delia. Os gritos do Steven tornaram-se cada vez mais distantes. Peguei no monitor e aumentei o volume. Momentos depois, deixámos de os ouvir. — Porque é que não os ouvimos? — perguntou a Vero. Aproximei mais o recetor da janela. A única coisa que ouvia era o restolhar do monitor. Senti os cabelos da nuca arrepiarem-se e fiquei com os braços em pele de galinha. Estiquei o pescoço para tentar ver melhor, mas a quinta por trás das luzes era um labirinto de árvores, hectares e hectares delas, que se perdiam à distância. E eu não conseguia calcular o que eram trezentos metros naquela escuridão. A voz da Delia soou por entre a estática. — Papá, onde estás? Peguei no recetor, com o coração apertado. — Não podem ter-se afastado muito. Ele já vai encontrá-la. — Papá? Papá? — A voz da Delia começou a tremer. — Tenho medo! Eu e a Vero abrimos as portas do carro, largámos os copos de café, que se entornaram no meio do chão, e desatámos a correr pelo parque de estacionamento. Abrimos caminho entre a multidão, murmurando com licença e desculpe, contornando casais e famílias. Um funcionário com chapéu de elfo atravessou-se à minha frente e fez-me sinal para abrandar. Com o coração aos saltos, empurrei-o para o lado. A Vero entrou atrás de mim no labirinto de árvores para lá da área iluminada. Separámo-nos, em direções opostas, a gritar pelas crianças. O caminho tornou-se mais estreito e mais escuro. Ramos atingiam-me o rosto enquanto corria. — Encontrei o Zach! — gritou a Vero. — Delia! — Parei e rodei sobre mim própria, à espera de ouvir uma resposta. — Mamã! — O seu grito frenético chegou-me em estéreo, através do monitor que tinha na mão e de um ponto algures à minha direita. Corri nessa direção, espreitando por entre as filas de árvores, até avistar a mancha do seu casaco rosa fluorescente. — Encontrei a Delia! — gritei, caindo de joelhos em frente dela e apertando-a nos braços. A Vero apareceu instantes depois com o Zach junto ao peito. — Onde está o Steven? — perguntou, com a respiração ofegante a formar pequenas nuvens no ar frio. — Steven? — chamei. Um gemido baixo nas trevas. Com as crianças ao colo, dirigimo-nos em direção ao som, perscrutando todas as filas até vermos uma figura caída de cara para baixo na terra. — Steven! — Com a Delia a baloiçar na minha anca, corri para ele. O Steven sentou-se devagar e levou a mão à parte de trás da cabeça. A Vero pegou no telemóvel e
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