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EDUCAÇÃO E TRABALHO AULA 5 Prof. Rui Valese 2 CONVERSA INICIAL Nosso objetivo nesta unidade é refletirmos sobre as relações entre educação e trabalho do final do Estado Novo até os dias atuais. Nesse período, talvez precisemos destacar de antemão dois momentos bastante importantes devido aos impactos que causaram na educação e na sociedade como um todo. O primeiro deles foi marcado pelos movimentos de educação popular dos “Anos Dourados”, entre as décadas de 1950 e 1960. O Brasil vivia uma efervescência cultural, intelectual e política rica e interessante. É nessa época, por exemplo, que Paulo Freire propõe uma metodologia de alfabetização de adultos que se realizaria não somente em um tempo curto – 40 dias –, mas também que engendrava todo um processo de conscientização cidadã nos mesmos moldes que já haviam anunciados por, por exemplo, Kant e sua filosofia do esclarecimento. Estudaremos também como a educação e o trabalho foram pensados durante a Ditadura Civil-Militar, alinhados aos acordos entre Ministério da Educação e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (MEC-USAID) e à ideologia tecnicista, que visava a uma educação apenas formativa de mão de obra para o mercado de trabalho. Da mesma forma, trataremos das relações entre educação e trabalho, no bojo das transformações econômicas, políticas, sociais e educacionais que caracterizaram o Brasil dos anos 1990. Por fim, chegaremos às últimas transformações propostas para a educação brasileira pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Esse momento será mais de levantamento de dúvidas do que de afirmação de certezas, tendo em vista que ainda estamos vivendo esse momento, e as mudanças sugeridas pela BNCC ainda estão sendo implementadas. TEMA 1 – EDUCAÇÃO E TRABALHO PÓS-ESTADO NOVO Após 15 anos do governo de Getúlio Vargas, e da ida do exército brasileiro à Segunda Guerra Mundial para unir-se aos aliados para lutar contra os regimes autoritários, não fazia sentido manter um presidente ditador no poder, embora a saída de Vargas tenha sido negociada por ele mesmo e por Eurico Gaspar Dutra – seu candidato –, que o acompanhou durante a instauração do Estado Novo e que fora eleito presidente. 3 Após 1946, o Brasil respira ares de uma certa democracia, inclusive com partidos políticos perseguidos por Vargas podendo participar da vida política do país. Assim, a sociedade se mobiliza e consegue uma nova constituição. É importante destacar que não somente o Brasil vivia um momento de reconstrução, como outros países vitimados pelos seis anos da Segunda Guerra. O Brasil, nas duas décadas após o fim do Estado Novo, buscava conciliar o nacional-desenvolvimentismo defendido por alguns economistas, políticos e governantes, com a internacionalização da economia apoiada por outros grupos. A economia mundial aumentava o seu grau de globalização, e o Brasil precisava recuperar séculos de atraso do modelo econômico implementado desde a chegada dos portugueses no século XVI. É nessa esteira que, novamente Vargas tornou-se presidente, dessa vez, porém, pelo voto direto. Vargas realizou um governo nacionalista, com a criação da Petrobras como símbolo dessa ideologia na campanha iniciada, ainda no final da década de 1930, e sintetizada pela frase “O petróleo é nosso!”. Entretanto, essa sua segunda passagem pela presidência foi marcada por forte oposição, principalmente de políticos e líderes empresariais, os quais defendiam uma economia mais dependente do capital estrangeiro. O desfecho dessa oposição foi o suicídio de Vargas em 1954 e, em 1956, Juscelino Kubitschek (ou “JK”), conhecido como o “presidente bossa nova”, assume é eleito e apresenta o seu plano de “50 anos em 5”. A União Democrática Nacional (UDN) questionou a posse de Vargas por não ter obtido a maioria dos votos – 50% mais 1 – (o que não era exigido pela legislação eleitoral da época), e JK enfrentou o mesmo problema com esse grupo, precisando do apoio de parte dos militares para assumir. Segundo Marx (2000, p. 6), Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. Ele esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. No caso do Brasil, parece que, como farsa, a história tem se repetido mais de uma vez. Ao longo dos mais de 130 anos de República, algumas estratégias têm sido repetidamente utilizadas para questionar e/ou impedir um determinado governante de assumir, governar e/ou manter-se no cargo até o fim de seu mandato. 4 A política desenvolvimentista implementada por JK veio acompanhada, tanto em seu governo, quanto nos subsequentes, do crescimento do êxodo rural, o que provocou o inchaço de alguns centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, aumentando tensões sociais tanto no campo, como nas cidades, inclusive por conta do aumento da inflação. Em termos globais, vivíamos o surgimento do período conhecido como Guerra Fria, quando as duas grandes potências econômicas, políticas e militares da época – Estados Unidos e União Soviética – disputavam a hegemonia internacional. Nesse tabuleiro da geopolítica, o Brasil ficava no quintal dos norte- americanos. Dessa forma, qualquer política social ou aproximação com economias como União Soviética, China, Cuba ou países do Leste europeu, era tido e havido como uma aproximação do comunismo. Essa contextualização histórica é importante, pois as políticas educacionais, bem como algumas propostas pedagógicas surgidas nessa época, somente podem ser compreendidas dentro desse cenário. Estudaremos a seguir o que aconteceu com a educação nesse período, e como ela estava (ou não) vinculada ao mundo do trabalho em seu sentido mais amplo. Nossa primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB) é um capítulo à parte na história da educação brasileira, visto que levou 13 anos para ficar pronta, e não pelo fato de as discussões terem sido tão aprofundadas, mas porque o projeto de lei ficou hibernando por quase uma década na Câmara dos Deputados. Além da morosidade do Congresso Nacional em deliberar questões importantes para o país, outro problema que dificultava o avanço das discussões sobre uma legislação educacional abrangente eram as disputas entre os liberais (defensores da escola pública) e conservadores/religiosos (defensores das escolas privadas). Nessas discussões, outro aspecto que chamou a atenção foi a crítica dos escolanovistas à descentralização do ensino, que, como já se comprovara no passado, apenas servira para justificar a não implementação de decisões. Outro ponto muito polêmico, mas que acabou sendo aprovado, foi a destinação de recursos públicos para as escolas privadas. Por outro lado, houve alguns avanços, como a criação do Conselho Federal de Educação (CFE) e dos Conselhos Estaduais da Educação para legislarem, regulamentarem e fiscalizarem os sistemas de ensino. Quanto aos aspectos curriculares, o ensino secundário passou a ser menos enciclopédico, 5 embora o ensino técnico ainda continuasse a ser negligenciado, apesar da demanda do mercado de trabalho que crescera após o processo de industrialização iniciado no segundo governo Vargas e ampliado no de JK. Como vimos anteriormente ao tratarmos do toyotismo, as grandes empresas passaram a promover a capacitação profissional por meio de suas universidades corporativas. Mais uma vez a educação brasileira mostrava o seu descompasso com o contexto econômico, político e social. Com relação a esse período, é importante também destacarmos as contribuições do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e a ideia da necessidade de planejamento do Estado brasileiro. Um de seus objetivos era pensar a cultura brasileira e latino-americana e, combase nisso, propor um projeto de nação. Uma das conclusões a que o ISEB chegara é de que o liberalismo era incapaz de reduzir ou evitar a pobreza e, como contraponto, propunha uma maior presença do Estado na economia para promover o desenvolvimento de uma indústria nacional, e proteger a parcela desprotegida da sociedade. Por fim, nesse contexto, vale a pena refletirmos sobre a proposta de alfabetização desenvolvida pelo pedagogo Paulo Freire. Não é nosso objetivo, tampouco temos espaço aqui para tratar de forma aprofundada sua proposta, mas se alguns dos princípios propostos por Freire tivessem sido implementados à época, o Brasil poderia estar em outro patamar. A começar por sua ideia de educação popular como forma de acabar com o analfabetismo entre os adultos: somente essa medida teria colocado a educação no centro de um projeto de sociedade desenvolvida como defendiam os isebianos. Outra das ideias de Freire é a de que a educação não somente deveria partir da realidade do educando, mas também trabalhar com elementos dessa mesma realidade, e não para mantê-lo nessa condição, mas para emancipá-lo e torná-lo sujeito de sua história. Para Freire, a educação atua na formação integral do sujeito, não o olhando apenas como mão de obra a ser qualificada para o mercado de trabalho. Pelo contrário: a educação deve preparar os indivíduos para atuarem no mundo. 6 TEMA 2 – OS MOVIMENTOS DE EDUCAÇÃO POPULAR DOS ANOS DOURADOS Os anos de 1950 e 1960, não somente no Brasil, mas em toda a América Latina, foram de uma efervescência cultural, política e social sem precedentes. Alguns desses acontecimentos nasceram na região, outros por diálogos estabelecidos com países africanos e, também, sob a influência do que acontecia na Europa, como é o caso da Primavera de Praga e das jornadas de maio de 1968. É dessa época o surgimento de movimentos intelectuais tipicamente latino-americanos, como a pedagogia da libertação, a sociologia da libertação, a filosofia da libertação e a psicologia da libertação. A ideia desses movimentos intelectuais foi expressa nos versos de uma composição de Milton Nascimento e Fernando Brant intitulada “Notícias do Brasil (os pássaros trazem)”: “Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil/Não vai fazer desse lugar um bom país”. Parafraseando os compositores, podemos afirmar que ficar olhando para a Europa e para os Estados Unidos, seja do ponto de vista político e econômico, seja intelectualmente falando, nunca faremos de nosso país e continente um bom lugar para se viver e se desenvolver. Tais movimentos buscavam atuar não somente na construção de uma identidade latino-americana, mas também como resistência às várias tentativas e golpes de Estado tão comuns por aqui, e também no combate às ditaduras militares que marcaram a história da América Latina ao longo do século XX. Esses intelectuais viam na educação das classes oprimidas uma estratégia de justiça histórica e social. Vejamos agora alguns fatos que marcaram a educação e a cultura nesse período. Já falamos um pouco sobre Paulo Freire; agora abordaremos seu pensamento e suas ideias. Nas obras Pedagogia do oprimido (1968) e Conscientização (1980), Freire apresenta os fundamentos de sua concepção de educação, e também sua proposta de alfabetização. Na esteira do que o filósofo grego Sócrates defendia ao reafirmar a importância da ideia de “Conhece-te a ti mesmo”, ele propõe um projeto de esclarecimento como forma de construção da autonomia do sujeito defendida por Kant e da proposta de emancipação pela educação defendida pelos frankfurtianos. O “método Paulo Freire” propõe alcançar, por meio da alfabetização, os mesmos objetivos. Como ele mesmo afirma, na obra A importância do ato de ler: “a leitura do mundo precede a leitura 7 da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele” (Freire, 1988, p. 5). Ou seja, primeiramente, estamos no mundo, vivemos nele e, posteriormente, passamos a pensar sobre ele. Porém, esse pensar gera conhecimento, que precisa ser pensado na relação com o mundo. Dessa forma, o processo de ensino-aprendizagem deve ser pensado com base no que Freire chamou de palavras geradoras, para que se realize o processo de alfabetização. Tais palavras não são retiradas do universo acadêmico ou docente, mas do educando: por meio de conversas formais ou informais, entre o docente e o discente, o primeiro anota aquelas que são aquelas mais significativas e representativas no universo do discente. Por isso, Freire afirmava que a leitura do mundo precedia a da palavra. Definidas as palavras geradoras, parte-se para a reflexão sobre a vinculação delas com a realidade da turma. É a segunda parte da afirmação de Freire: sem “prescindir da continuidade da leitura daquele”. Ou seja, a palavra não é apenas uma combinação de signos e sons silábicos. É palavra-mundo. Toda palavra tem um sentido existencial, é vida, se refere a um determinado contexto. Por exemplo: a palavra “vida” adquire sentidos e significados diferentes de acordo com a pessoa e o contexto em que é pronunciada. Somente depois de descobertas as palavras-mundo, é que se passa para a silabação e, na sequência, a construção de novas palavras utilizando as vogais, consoantes e sílabas descobertas com base nas palavras geradoras. Pela proposta de alfabetização de adultos em 45 dias, Paulo Freire foi convidado pelo presidente João Goulart (Jango) para coordenar o Programa Nacional de Alfabetização em janeiro de 1964, quase às vésperas do Golpe Civil- Militar. Os boicotes ao governo Jango continuam, e os recursos financeiros do programa MEC-USAID para o desenvolvimento da educação brasileira são cortados. Nesse período, foi de fundamental importância a atuação da ala progressista da Igreja Católica e sua atuação em projetos e pastorais sociais, bem como na formação de leigos para atuação na sociedade. Outra importante contribuição para a formação cultural da sociedade brasileira dessa época foi a possibilitada pela União Nacional dos Estudantes (UNE) e o Centro Popular de Cultura (CPC). Iniciado pelo ator e dramaturgo Oduvaldo Viana Filho, pelo cineasta Leon Hirszman e pelo sociólogo Carlos 8 Estevam Martins, o CPC propunha que a arte e a cultura deveriam estar vinculadas ao mundo em que vivemos, e deveriam possibilitar a compreensão e atuação sobre ele para transformá-lo e possibilitar o rompimento com as estruturas de opressão sob as quais as pessoas viviam. Apoiada por vários artistas e intelectuais, a UNE volante passa a divulgar o movimento nas organizações estudantis por todo o país. Em comum a essas iniciativas, podemos perceber os seguintes elementos: todo ser humano é produtor de conhecimento; o contexto do educando é fundamental dentro de seu processo de alfabetização e do processo de ensino-aprendizagem; é importantíssimo o respeito à cultura, aos saberes, aos valores e às crenças do estudante; e, por fim, a necessidade de se pensar a gestão democrática em toda a sociedade. Porém, tais ideias pareceram por demais avançadas e perigosas para a época, e o resultado dessa reação veremos no próximo tema. TEMA 3 – EDUCAÇÃO E TRABALHO DURANTE A DITADURA CIVIL-MILITAR O capital dificilmente age diretamente sobre o Estado para que seus interesses econômicos e políticos sejam garantidos. Ao longo da história, nas mais diferentes sociedades, ele financia aqueles que irão representar os seus interesses no Poder Executivo e/ou no Poder Legislativo. Essa é uma das formas pelas quais podemos interpretar a ascensão dos militares com apoio de civis por meio de um golpe de estado no Brasil, em 1964, assim como em vários países latino-americanos ao longo de todo o século XX. Da mesma forma, tais golpes sempre tiveram o apoio implícito ou explícito de agências norte-americanas,dentro do jogo geopolítico da Guerra Fria. Lembremos que, por duas vezes – durante os governos de JK e de João Goulart – a UDN tentara impedir a posse de presidentes legitimamente eleitos e dar um golpe com o apoio da ala conservadora dos militares. Dessa forma, podemos dizer que o golpe de 1964 veio com quase dez anos de atraso. Outros fatores que explicam o golpe podem ser relacionados ao contexto da Guerra Fria, à Revolução Cubana, à adesão dos líderes à antiga União Soviética, ao crescimento dos movimentos populares e sindicais tanto nas áreas urbanas nas rurais e, em contrapartida, ao crescimento do movimento reacionário e conservador ligado às igrejas, às campanhas de formação e financiamento de lideranças e desinformação nos meios de comunicação, 9 principalmente impresso, dos think tanks para desestabilizar a sociedade, apelando para valores tradicionais de sentido conservador, como família e religião, ante à iminente ameaça comunista, que já havia sido utilizada por Vargas em 1937, por meio do Plano Cohen, para implantar o Estado Novo, também com apoio de militares e políticos de ideologia fascista, como os integralistas. Hoje, o avanço da internet e as redes sociais têm influência na formação da opinião pública; na década de 1960, os think tanks agiam de forma bastante eficaz na formação de uma mentalidade conservadora por meio da desinformação. Com relação à educação, uma das primeiras medidas adotados pelo regime civil-militar foi a perseguição às entidades estudantis: a UNE é proibida, sendo colocada na clandestinidade, os centro acadêmicos (CAs) e Diretórios Centrais Estudantis (DCEs) somente poderiam atuar no âmbito das respectivas universidades, e os grêmios estudantis foram transformados em centros cívicos. Para fazer a vigilância e o controle desses órgãos, foi criado o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS). A qualquer momento alguém poderia ser levado a esse departamento (que funcionava mais como uma delegacia), e tinha que se explicar por algum comentário ou crítica feita sobre o cenário político brasileiro. Em 1969, por meio de um decreto-lei, o ensino de Educação Moral e Cívica (EMC) foi tornado obrigatório nas escolas secundárias. Já no Ensino Fundamental, o nome recebido foi Organização Social, Política e Brasileira (OSPB). Porém, isso não significava que era permitido o debate sobre a organização social, política do Brasil; sua função era repassar a ideologia defendida pelos militares, além de tratar de nacionalismo e patriotismo por meio do estudo dos símbolos pátrios e hinos nacionais. No Ensino Superior, a disciplina obrigatória em todos os cursos era a de Estudo dos Problemas Brasileiros (EPB), cujo caráter era igual ao das disciplinas supracitadas, com o agravante de que, por vezes, entre os alunos universitários havia militares disfarçados. Por meio do Decreto-Lei n. 477/1969 foram proibidas todas e quaisquer manifestações políticas no âmbito das escolas. Por fim, houve a aprovação de vestibular classificatório para ingresso nas universidades. Em 1971, a Lei n. 5.692 estabeleceu uma reforma mais ampla da legislação educacional. Nessa reforma, estava prevista a aplicação do modelo empresarial na educação, buscando implementar a economia de tempo, esforço e custo na educação. Nessa lógica de gestão da educação, o pedagogo, nas 10 funções de supervisor e orientador educacional, ganha um status diferenciado, cujo objetivo era formar mão de obra especializada para as indústrias de base tecnológica e, para isso, fazia-se necessário que o processo fosse muito bem controlado. Aí entrava em cena essas duas funções: a primeira (supervisor), supervisionando o trabalho docente; a segunda (orientador educacional), acompanhando os discentes. Era a adoção dos princípios tayloristas e de recursos tecnológicos na educação. A gestão da educação era feita por meio da divisão de tarefas e responsabilidades: havia o setor de planejamento, executado pelas mantenedoras; o setor de fiscalização, operacionalizado tanto no âmbito das mantenedoras, como das escolas, pela supervisão de ensino e orientação educacional; o setor operacional e de execução, realizado por professores nas salas de aula. Dessa forma, garantia-se a racionalização, a organização, a objetividade e a eficiência para alcançar as metas estabelecidas. Curiosamente, ocorre a retomada do acordo MEC-USAID, suspenso no início de 1964, para garantir a assistência técnica e financeira para a educação. Ainda que de forma não tão efetiva como se esperava, a reforma de ensino propôs que o nível secundário fosse profissionalizante e com um objetivo: esperava-se que o egresso estivesse apto a ingressar no mercado de trabalho como mão de obra qualificada. De certa forma, busca-se uma vinculação da educação com o contexto econômico. Porém, a exclusão definitiva das disciplinas de Filosofia e Sociologia do Ensino Médio e a inclusão de disciplinas profissionalizantes e moralizantes representou um retrocesso em termos de formação para os jovens entrarem no mundo do trabalho. TEMA 4 – EDUCAÇÃO E TRABALHO NOS ANOS 1990 Para entendermos as mudanças educacionais apresentadas ao Brasil em meados dos anos 1990, precisamos voltar à década anterior, uma vez que elas são consequências de outros acontecimentos. Esse período, naquele momento, foi denominado Nova República. Sob a aparência de novidades, escondiam-se os principais atores que comandaram o Brasil com os militares desde o golpe de 1964. Assim, foi possível uma transição sem rupturas, sem julgamentos nem punições a qualquer dos crimes cometidos durante a Ditadura. Ainda que não tenha sido tão violenta como no Chile ou na Argentina, por exemplo, muitos crimes contra a humanidade foram cometidos 11 em nome da segurança nacional. De outro lado, as reivindicações da sociedade civil foram simplesmente ignoradas. Houve a elaboração e aprovação de uma nova Constituição, a “Constituição Cidadã”, que contou, pela primeira vez na história do Brasil, com a participação da sociedade civil. Porém, o endividamento dos períodos anteriores, principalmente durante os governos militares para a realização de obras faraônicas – a mais desastrada talvez seja a Transamazônica –, travava o desenvolvimento econômico e, somente 10 anos depois, em uma política de privatizações ineficiente1 do ponto de vista da autonomia econômica do Brasil, foi possível reequilibrar a economia do país. Ainda na área da economia, o descontrole inflacionário levou à edição de sucessivos planos econômicos e congelamentos de preços, sem que, com isso, a situação fosse controlada. Como dissemos, somente em meados dos anos 1990 é que a economia brasileira se estabilizou, levando pelo menos mais dez anos para voltar a crescer minimamente. Porém, ainda que estabilizada e inserida no contexto da globalização, nossa economia ainda permanece na dependência do capital estrangeiro – principalmente o especulativo – e no subdesenvolvimento. Nesse cenário, qual era a situação da educação? Primeiramente, precisamos abordar a Conferência de Jomtien, em 1990, e seu lema “Toda pessoa tem direito à educação”. Essa conferência teve objetivos que impactaram a educação brasileira, entre os quais destacamos a universalização do acesso à educação, e promoção da equidade; concentração da atenção na aprendizagem; ampliação dos meios e do raio de ação da educação básica; propiciar um ambiente adequado à aprendizagem; e, fortalecer alianças. Antes, porém, de a conferência acontecer, o Brasil já vinha discutindo uma nova LDB, mais antenada com o contexto político e econômico que vivíamos com a promulgação da Carta Magna de 1988. O projeto inicial vinha sendo construído com a participação da sociedade civil, por meio do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública. No entanto, fruto de acordos de bastidores,o projeto aprovado foi o apresentado por Darcy 1 Por política econômica de privatização desastrada nos referimos ao fato de algumas empresas serem estratégicas do ponto de vista do desenvolvimento econômico e social do país, e pelo fato de, antes de serem privatizadas, terem recebido aportes, por parte do Estado, maiores do que o valor pelo qual elas foram efetivamente vendidas. Além disso, em alguns casos, o próprio Estado financiou a compra da estatal. Para mais informações, sugerimos a leitura do artigo “As privatizações no Brasil dos anos 90”, de João Braga Arêas (disponível em: <http://www.ugb.edu.br/revista-episteme-transversalis/edicao_5/joao-braga-areas-as- privatizacoes-no-brasil-anos-90.pdf>. Acesso em: 21 fev. 2022). 12 Ribeiro, com apoio do governo e do Ministro da Educação. Nesse projeto, houve completa ausência de participação da sociedade civil em sua discussão. As principais características da nova LDB eram: o Ensino Médio, além da formação geral, também possibilitava a formação profissionalizante e reafirmava a competência dos Estados nessa etapa da educação. O Ensino Superior era de competência da União, podendo ser exercido pelos estados e municípios quando já tivessem atingido as metas de atendimento da Educação Básica. A educação profissional e tecnológica ganhou espaço, tendo como objetivos a preparação para atuar na atividade produtiva e a atualização profissional. Outra novidade dessa época é o aparecimento dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que surgiram com o Plano Decenal de Educação para Todos (1993-2003); eles eram importantes referenciais para os sistemas de ensino se organizarem. É também interessante destacar a formulação de parcerias entre os sistemas de ensino federal, estadual e municipal para alcançar as metas estabelecidas. Da mesma maneira, a criação de um sistema nacional de avaliação para acompanhamento trouxe a educação para o centro das discussões da sociedade civil. Um dos problemas foi a transformação dos parâmetros em diretrizes/currículos. No entanto, algumas de suas inovações merecem ser destacadas: o currículo passa a ser pensado para além de lista de conteúdos; a democratização da gestão escolar passa a ser implementada, apesar de algumas resistências e distorções; a inserção de temas transversais, como cidadania, saúde e sexualidade, torna a escola mais inclusiva; e, a organização do processo ensino/aprendizagem com base em competências e habilidades, traz mais organicidade à educação. Primando pela formação docente, a nova LDB estabelece a década da educação e cobra, pela primeira vez na história, que os professores das séries iniciais do Ensino Fundamental tivessem formação em nível superior. TEMA 5 – EDUCAÇÃO E TRABALHO NA BNCC Por fim, chegamos ao período mais recente da história da educação brasileira: o da discussão e implantação de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que significou uma completa descaracterização da LDB aprovada em 1996, feita pela Reforma do Ensino Médio (aprovada em 2017), ignorando todo o debate educacional que vinha sendo feito desde a discussão e 13 aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE), de 2014. Antes de tratarmos de algumas questões educacionais desse período mais recente, apresentaremos uma breve contextualização. Não desejamos fazer uma avaliação maniqueísta dos últimos 30 anos da história do Brasil, mas é possível olhar essas três décadas como de avanços e retrocessos em vários aspectos. Do ponto de vista político, por exemplo, vivemos a estabilidade das instituições, apesar de algumas tentativas de desestabilizá- las. Por outro lado, por trás de manifestações aparentemente legítimas, alguns atores políticos acabaram por provocar algumas instabilidades, ao quererem que as mesmas instituições estivessem a serviço de seus projetos pessoais. Tivemos avanços consideráveis em políticas de inclusão social e garantia de direitos individuais, porém, vimos parte da sociedade retroceder no reconhecimento desses direitos e, ao mesmo tempo, a pretexto de modernização das leis brasileiras, promoverem a flexibilização da legislação em várias áreas sem resultados efetivos e concretos quanto ao previsto. Da mesma forma, observamos polarizações ideologizadas sobre assuntos que deveriam ser pacíficos. Na economia, tivemos um crescimento econômico razoável na primeira década do novo milênio, mas, na segunda, vivemos estagnação e, até mesmo, o retrocesso. Consequentemente, a diminuição das desigualdades sociais alcançada na primeira década, parou e as vemos voltando a crescer. Por fim, da relevância política no cenário mundial na última década de 1990 e na primeira do novo milênio, voltamos a cumprir o papel de coadjuvantes da ordem global. Ainda em 2013, houve uma primeira grande reformulação da LDB, que ampliou a obrigatoriedade, gratuidade e responsabilidade estatal para todos os níveis da educação básica. Foi, sem dúvida, um grande avanço, permitindo o acesso e a permanência de mais crianças e jovens na educação básica. Porém, em 2017, a reformulação do Ensino Médio via Proposta de Emenda Constitucional (PEC) começou a causar os primeiros prejuízos à educação, seja pelo conteúdo, seja pela forma. Em 2015, quando a PEC foi apresentada, houve a reação de estudantes secundaristas, que ocuparam as escolas, cobrando a revogação da proposta; essas mobilizações foram apoiadas por educadores, órgãos de classe, entidades da sociedade civil. Porém, mais uma vez a sociedade foi excluída e alijada do processo de discussão da educação nacional. Audiências públicas até foram marcadas (e algumas realizadas), porém, 14 serviram apenas para legitimar o que se pretendia. A Reforma do Ensino Médio acabou por atropelar as discussões que resultaram no PNE de 2014, como metas previstas para a década seguinte, propondo a inclusão da BNCC. O estabelecimento de conhecimentos indispensáveis a todos os alunos da educação básica, previsto na reforma e na BNCC, veio, no entanto, acompanhado de algumas mudanças que consideramos como prejudiciais e equivocadas na formação de nossos jovens. Apenas dois componentes curriculares foram considerados obrigatórios: Língua Portuguesa e Matemática; outros, tiveram sua obrigatoriedade anulada, como Arte, Filosofia, Sociologia, entre outras que foram prejudicadas na medida em que se sugere a junção de áreas de conhecimento similares, mas ministrada por profissionais formados em ciências específicas. Tomemos o caso de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas: ainda que englobe áreas de conhecimento similares, como História, Geografia, Filosofia e Sociologia, os profissionais foram e ainda são formados em áreas específicas. Por outro lado, a inclusão de disciplinas como Educação Financeira e Projeto de Vida desvirtuam o que deveria ser a etapa do Ensino Médio: terminalidade por meio da profissionalização, ou preparatório para continuidade dos estudos no Ensino Superior. Ainda que uma das justificativas apresentadas seja a de uma educação voltada para a atuação no mercado de trabalho, o que se vislumbra é o aumento ainda maior da exclusão dos que mais necessitam da educação. Da mesma forma, outros aspectos dessas reformulações têm chamado a atenção de especialistas em educação e gestão da educação, como: a visão da educação como mercadoria, e não como parte fundamental de um projeto de nação; os educadores, estudantes e especialistas ficaram à margem das discussões; a formação cidadã, equitativa, republicana e de urbanidade, defendida pela Constituição de 1988, foi prejudicada; a inclusão de aspectos conservadores e reacionários atende apenas aos interesses de determinados grupos que monopolizam o debate nacional, acuando políticos de diferentes agremiações partidárias; e, por fim, a prevalência do econômico sob as demais dimensões da vida e da existência humana.Acreditamos que a educação precisa ser repensada, principalmente pelos resultados alcançados nas duas últimas décadas e pelos altos índices de evasão e reprovação escolar, além das péssimas condições de efetivação do processo 15 ensino-aprendizagem a que nossas crianças e jovens são submetidos. Porém, uma reformulação nesse sentido precisa, principalmente, de investimento efetivo de recursos para melhoria e atualização das condições de realização do processo ensino-aprendizagem. A mudança curricular como foi proposta, sem a efetiva correspondência de recursos financeiros adequados, mais uma vez significará o que, historicamente, temos visto na educação brasileira: boas intenções que ficam apenas no papel e no corpo da lei. NA PRÁTICA Apesar de Paulo Freire ser conhecido em praticamente todo o mundo, e ser um dos educadores mais lidos e pesquisados do século XX, podemos dizer que o Brasil ainda precisa descobrir o patrono da educação nacional. Desse modo, propomos a você, como atividade prática, investigar a proposta pedagógica de Paulo Freire, que parte do princípio de que a leitura do mundo precede a leitura da palavra, assim como as palavras que devem ser utilizadas para o processo de ensino-aprendizagem, com base em experiências concretas vividas pelos educandos. Portanto, aprofunde-se um pouco mais acerca da proposta freireana e, definindo um determinado grupo social, identifique quais palavras podem ser tomadas como temas geradores para um processo de alfabetização. FINALIZANDO Nesta aula, fizemos uma retomada dos últimos 80 anos da educação brasileira. Começamos pelo pós-Estado Novo e pelo início da redemocratização do Brasil, destacando os movimentos de educação popular dos “Anos Dourados”, a educação popular proposta por Paulo Freire, e a elaboração da nossa primeira LDB. Em seguida, analisamos as relações entre educação e trabalho durante a Ditadura Civil-Militar, e a tentativa de profissionalização ainda no Ensino Médio. Estudamos também as propostas educacionais feitas nos anos 1990, nossa última LDB (1996), e as mudanças apresentadas pela Reforma do Ensino Médio feita em 2017, além de alguns aspectos que consideramos relevantes sobre essa reforma, e a adoção de uma BNCC. 16 Nesse último tema, como já havíamos anunciado, há muito mais dúvidas do que certezas. Porém, algumas dessas certezas nos preocupam quanto ao que precisamos fazer, para que a educação seja parte integrante e fundamental de um projeto de desenvolvimento nacional autodeterminado e emancipatório. 17 REFERÊNCIAS BRASIL. Decreto-Lei n. 477, de 26 de fevereiro de 1969. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 fev. 1969. BRASIL. Lei n. 5.692, de 11 de agosto de 1971. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 ago. 1971. FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1988. _____. Conscientização. São Paulo: Cortez, 1980. _____. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1968. MARX, K. O 18 Brumário de Luís Bonaparte, 1851-1852. Disponível em: <https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/4/o/brumario.pdf>. Acesso em: 21 fev. 2022. NOTÍCIAS do Brasil (os pássaros trazem). Intérprete: Milton Nascimento. Compositores: Milton Nascimento; Fernando Brant. In: NASCIMENTO, M. Caçador de mim. Rio de Janeiro: Phillips, 1981. 1 CD (35 min).