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Organizadoras Rita Maria Lino Tarcia Sílvia Helena Mendonça de Moraes Débora Dupas Gonçalves do Nascimento Autoras Érica Gonçalves Nunes Isadora Simões de Souza Márcia Gabriele Nunes ESPAÇOS DE CUIDADO: CONSTRUINDO POSSIBILIDADES DE VIDA Organizadoras Rita Maria Lino Tarcia Sílvia Helena Mendonça de Moraes Débora Dupas Gonçalves do Nascimento CURSO DE APERFEIÇOAMENTO EM SAÚDE MENTAL E ATENÇÃO PSICOSSOCIAL DE ADOLESCENTES E JOVENS Autoras Érica Gonçalves Nunes Isadora Simões de Souza Márcia Gabriele Nunes ESPAÇOS DE CUIDADO: CONSTRUINDO POSSIBILIDADES DE VIDA 23-144560 CDD-362.21 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Nunes, Érica Gonçalves Espaços de cuidado [livro eletrônico] : construindo possibilidades de vida / Érica Gonçalves Nunes, Isadora Simões de Souza, Márcia Gabriele Nunes ; organização Rita Maria Lino Tarcia, Sílvia Helena Mendonça de Moraes, Débora Dupas Gonçalves do Nascimento. -- Campo Grande, MS : Fiocruz Pantanal, 2023. PDF Bibliografia. ISBN 978-85-66909-45-6 1. Adolescentes 2. Bem-estar social 3. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) 4. Saúde mental I. Souza, Isadora Simões de. II. Nunes, Márcia Gabriele. III. Tarcia, Rita Maria Lino. IV. Moraes, Sílvia Helena Mendonça de. V. Nascimento, Débora Dupas Gonçalves do. VI. Título. Índices para catálogo sistemático: 1. Adolescentes : Política de saúde mental : Bem-estar social 362.21 Eliane de Freitas Leite - Bibliotecária - CRB 8/8415 © 2022. Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF. Fundação Oswaldo Cruz Mato Grosso do Sul. Alguns direitos reservados. É permitida a reprodução, disseminação e utilização dessa obra, em parte ou em sua totalidade, nos Termos de uso do ARES. Deve ser citada a fonte e é vedada sua utilização comercial. UNICEF Representante Interina Paola Babos Coordenação do Programa de Desenvolvimento e Participação de Adolescentes Mário Volpi Coordenador Programa de Desenvolvimento e Participação de Adolescentes Gabriela Mora Joana Fontoura Luiza Leitão Rayanne França Oficiais do Programa Daniela Costa Higor Cunha Marina Oliveira Thaís Santos Consultores do Programa Fundação Oswaldo Cruz � Fiocruz Mario Santos Moreira Presidente em exercício Fundação Oswaldo Cruz Mato Grosso do Sul – Fiocruz MS Jislaine de Fátima Guilhermino Coordenadora Coordenação de Educação da Fiocruz MS Débora Dupas Gonçalves do Nascimento Vice- coordenadora de Educação Secretaria-Executiva da Universidade Aberta do SUS – UNA-SUS Maria Fabiana Damásio Passos Secretária-executiva Fundação Oswaldo Cruz Mato Grosso do Sul (Fiocruz MS) Rua Gabriel Abrão, 92 – Jardim das Nações, Campo Grande/MS CEP 79081-746 Telefone: (67) 3346-7220 E-mail: educacao.ms@fiocruz.br Site: www.matogrossodosul.fiocruz.br CRÉDITOS Coordenação Geral Débora Dupas Gonçalves do Nascimento Sílvia Helena Mendonça de Moraes Coordenadora Acadêmica Geral Léia Conche da Cunha Coordenadora Pedagógica Geral Rita Maria Lino Tarcia Coordenadora Acadêmica do Módulo Luana Lima Santos Cardoso Coordenadora Pedagógica do Módulo Maisse Fernandes de Oliveira Rotta Autoras Isadora Simões de Souza Erica Gonçalves Nunes Márcia Gabriele Nunes Revisora Técnico-científica Alessandra Silva Xavier Apoio técnico-administrativo Antonio Luiz Dal Bello Gasparoto Adriana Carvalho dos Santos Coordenador de Produção Marcos Paulo dos Santos de Souza Designer Instrucional Felipe Vieira Pacheco Webdesigner Stephanie Oliveira Moraes Silva Designers Gráficos Hélder Rafael Regina Nunes Dias Renato Silva Garcia Desenvolvedor David Carlos Pereira da Cunha Desenvolvedores AVA MOODLE Luiz Gustavo de Costa Vinicius Vicente Soares Editor de Audiovisual Adilson Santério da Silva llustrador Kelvin Rodrigues de Oliveira Revisor Davi Bagnatori Tavares Apresentação do módulo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . NÚCLEOS E ESPAÇOS DE CUIDADO: CONSTRUINDO PROPOSTAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CONHECIMENTOS E HABILIDADES ESSENCIAIS PARA A ESCUTA DE ADOLESCENTES E JOVENS: COMUNICAÇÃO PRECISA; ABORDAGEM INICIAL; CONTINUIDADE DO ATENDIMENTO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . FUNÇÕES, ATRIBUIÇÕES E LIMITES DO AGENTE DE CUIDADO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ÉTICA E SIGILO DAS INFORMAÇÕES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Encerramento do módulo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Minicurrículo das autoras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 7 12 16 20 23 24 25 SUMÁRIO Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 6 apresentação do módulo Olá! Seja muito bem-vindo ao módulo 6! Este é o trecho final desse percurso formativo. Neste módulo, pensamos em tra- zer para o centro do debate a importância de fomentar outros espaços de cuidado, assim como de pensar no fortalecimento de diversos agentes de cuidado que estão no território, mas que, não necessariamente, estejam compondo a rede de serviços já instituída . A intenção é garantirmos o princípio de prioridade absoluta estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) . É dever de toda a sociedade garantir direitos e cuidado para essa população . Pensamos em problematizar pontos que nos autorizem a escutar adolescentes e jovens, entendendo que isso não é uma tarefa exclusiva dos especialistas da área, uma vez que a saúde mental de adolescentes e jovens está presente e demanda aco- lhimento em muitos espaços . Para iniciar essa conversa, trouxemos o caso complexo “A comunidade de Monte Verde: construindo espaços de cuida- do e vida”, que retrata a história de jovens ribeirinhos, com vidas atravessadas por um cenário de exploração e pobreza, mas que encontram, em alguns agentes e parceiros, a possibilidade de construir um outro espaço de escuta e acolhimento . Chamaremos aqui tais construções de “espaços de cui- dado”, por entendermos que estes podem ser múltiplos e di- versos, não necessariamente aqueles instituídos pelas políticas públicas, que são serviços formais. Pretendemos mostrar que os espaços de cuidado podem surgir em qualquer lugar como resultado das relações entre as pessoas, inspirando, portanto, múltiplas e novas formas de cuidado, de acordo comas possibi- lidades da sua atuação e/ou trabalho . Ao longo deste módulo, sugeriremos algumas atribui- ções para o exercício da escuta, passando por algumas habili- dades essenciais para o acolhimento de adolescentes e jovens, como a escuta empática e o afastamento de julgamentos morais, e, por fim, pensaremos em algumas considerações éticas para realizar modos potencializadores e coletivos de cuidado . Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 7 NÚCLEOS E ESPAÇOS DE CUIDADO: CONSTRUINDO PROPOSTAS Expliquei à professora que na sala de aula tudo era perto e que nada se distanciava de nada como nos montes da paisagem . Mas a profes- sora negou . Disse-me que o rosto de cada um também era imenso como a paisagem e, visto com atenção, tinha distâncias até infinitas que importava tentar percorrer . [ . . .] Percebi que para dentro de nós há um longo caminho e mui- ta distância. Não somos nada feitos do mais imediato que se vê à superfície . Somos feitos daquilo que chega à alma e a alma tem um ta- manho muito diferente do corpo . Percebi que para ver verdadeiramente uma pessoa obriga a um esforço como o de estarmos sentados nos nossos bancos a tomar conta do que passa pe- los montes . Percebi que ver verdadeiramente uma pessoa também é como prevenir os fogos, como fazia o meu pai que, afinal, era guarda flo- restal. [...] Toda a vida precisamos estar atentos, se assim não fizermos vamos perder muito do mais importante que acontece em nosso redor . Como se houvesse um incêndio mesmo diante de nós e nem sequer o percebêssemos antes que restem todas as coisas completamente queimadas (Mãe, 2015). Chegamos ao último módulo e pensamos que esse seja um espaço precioso por trazer ao cerne do debate os adolescen- tes e jovens como prioridade absoluta, ou seja, toda a sociedade tem responsabilidade ética de acolher e cuidar dessa população . Pensamos em problematizar pontos que nos autorizem a escutar esse público, entendendo que isso não é uma tarefa única dos especialistas e que a questão da saúde mental de adolescen- tes e jovens pode ter lugar e acolhimento em muitos espaços, que, aqui, serão denominados de “espaços de cuidado”, justamente por entender que esses lugares podem ser múltiplos e diversos, não necessariamente precisam ser aqueles instituídos pelas políticas públicas. Estamos querendo mostrar que os espaços de cuidado podem surgir em qualquer lugar, através das relações entre as pessoas . Profissionais dos campos da saúde, assistência social e educação costumam pensar em como intervir em situações de sofrimento. Isso também ocorre com familiares, amigos, vizinhos, entre outros. Situações de sofrimento podem mobilizar cuidado e, em outros casos, podem afastar, em virtude de se temer uma inter- venção equivocada. Aqui, imaginamos que um lugar de escuta e de acolhimento é precioso e que esse acolhimento pode ser feito por diferentes atores, tanto na rede formal de serviços, quanto em redes informais, nos territórios em que a vida acontece. Para ampliarmos essa conversa, decidimos compartilhar um pouco da história de cuidado de crianças, adolescentes e jo- Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 8 vens, na intenção de pensarmos juntos formas de fazer e tecer esse cuidado . Você sabia que o cuidado de crianças e adolescentes tem uma longa história no Brasil? Indicamos e situamos alguns dos marcos legais no campo da infância e da adolescência que antecederam o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como legislações que traziam uma marca de criminalização da infância pobre e de suas famílias. Mostramos a seguir, na linha do tempo, algumas questões centrais dessa história: LINHA DO TEMPO – LEGISLAÇÃO E PRINCIPAIS PONTOS DE CADA TEMPO 1) Código Mello Mattos (BRASIL, 1927) - Afirma-se enquanto instrumento legal destinado e regu- lado à “disciplinarização dos filhos da pobreza”; - Finalidade: Saneamento Social; - Fim do Império e início da República, modelo de família moral cristã; - À infância “pobre” foi atribuído o sentido de periculosidade; - Aliança entre médicos (educadores das famílias) e juristas – composição que resultava em intervenções na vida das pessoas; - Processo centralizador da ditadura . 2) Código de Menores (BRASIL, 1979) - Forte tendência à institucionalização de crianças e ado- lescentes e criminalização da infância . Tal característica teve como consequência a desassistência e segregação da população infantojuvenil; - Abertura “galopante” de estabelecimentos para abrigar, em condições desumanas, “os filhos da pobreza” – afas- tamento compulsório das famílias; - Movimentos sociais e intelectuais começam a rediscutir o modelo de atenção às crianças e adolescentes em res- posta às arbitrariedades do regime ditatorial . 3) Constituição Federal – artigo 227 (BRASIL, 1988) - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão; - O Estado no lugar de garantir direitos, ou seja, essa fun- ção deixa de ser exclusiva da família; - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990); Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 9 - O debate de crianças, adolescentes e jovens como sujei- tos de direitos se fortalecia; - Substituição do termo “menor” por “crianças e adoles- centes”; - Doutrina da Proteção Integral, pautado na criação de po- líticas públicas voltadas à cidadania plena. Foi somente após a promulgação da Constituição Fe- deral de 1988 – marco de restabelecimento de um Estado De- mocrático de Direito no Brasil – que entrou em vigor o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990), que passa a considerar crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, abolindo definitivamente o termo “menor” e as “práticas meno- ristas”, marca central dos códigos anteriores. Calcado na pers- pectiva da doutrina da proteção integral, o ECA abandonou o foco no assistencialismo para a população de 0 a 18 anos e re- direcionou as ações do Estado para a proteção integral de crian- ças e adolescentes. O ECA afirma que a proteção somente será efetiva através da implantação de políticas públicas voltadas à cidadania plena . Apesar do reconhecimento dos avanços no Sistema de Garantia de Direitos da Infância e da Adolescência, ainda perce- bemos que estão vigentes crenças e valores morais semelhantes aos antigos códigos . Esse fator determina a necessidade de am- pliar a discussão sobre ações de proteção, garantindo atuações éticas para uma efetiva proteção de crianças e adolescentes . Quando pensamos na questão do cuidado em saúde mental, remetemo-nos logo à questão da escuta, existindo, em muitos casos, a prática de uma “pretensa proteção”, justifican- do a aplicabilidade do “melhor interesse” da criança (princípio central do ECA). Contudo, é importante percebermos que muitas pessoas, inclusive trabalhadores de diferentes campos das po- líticas públicas da saúde, assistência e educação, baseando-se em uma lógica adultocêntrica, julgam saber o que é melhor para as crianças, como podemos perceber no caso complexo deste módulo, quando o seu Cleiton aponta caminhos na intenção de ajudá-los, mas sem verdadeiramente escutar as demandas que Maurício e seus amigos tinham .Pensando nessa perspectiva, a autora Maria Cristina Vi- centin (2016) produziu um importante debate para apresentar o conceito de descriançável, que envolve um entendimento da- quelas práticas que não acolhem as crianças e adolescentes . Diz a autora: [...] identificamos o ‘descriançável’ no pano- rama das relações contemporâneas quando estas produzem um empobrecimento ou mesmo um sufocamento dos processos de abertura, acolhimento e invenção de territó- rios com as crianças e adolescentes (VICEN- TIN, 2016, p. 31). Como resposta a estas “práticas de sufocamento”, a au- tora (VICENTIN, 2016, p. 31) nos dá pistas para pensarmos em Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 10 práticas “criançáveis”, mostrando caminhos para visualizarmos “onde estão os manicômios infantis e juvenis nos dias de hoje” e onde estão “as situações de perigo” e, por fim, como pensar em “descolonizar a infância”, com base na afirmação de práticas criançáveis1. A seguir, detemo-nos em duas “situações de peri- go” que a autora nos apoia nessa discussão: - na delimitação de fluxos dos serviços de saúde por critérios exclusivamente diagnós- ticos e não pelas expressividades e neces- sidades das situações ou pelo reconheci- mento dos vínculos e dos territórios forjados pelos usuários; - na adoção acrítica às noções de proteção e desenvolvimento e, de forma geral, às co- lonizações que fazemos da infância (VICEN- TIN, 2016, p. 34). Seguem sugestões de materiais que podem ser utiliza- dos para aprofundar seus estudos: 1) Caderneta de Saúde da Criança Menina; 1 Para a autora Maria Cristina Gonçalves Vicentin, práticas “criançaveis” são aquelas que ocorrem quando efetivamente valorizamos a infância . 2) Caderneta de Saúde da Criança Menino; 3) Cadernos de Atenção Básica – Saúde da Criança: crescimento e de- senvolvimento; 4) Cadernos de Atenção Básica – Saúde Mental; Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 11 5) Linha de Cuidado para a Aten- ção às Pessoas com Transtornos do Es- pectro do Autismo e suas Famílias na Rede de Atenção Psicossocial do Siste- ma Único de Saúde; 6) Atenção Psicossocial a Crian- ças e Adolescentes no SUS; 7) Fórum Nacional de Saúde Mental . Para refletir: É muito importante reconhecermos e sabermos quais es- paços de cuidado para adolescentes e jovens existem no território . Sabemos que o Brasil é um país com diferenças e especificidades locorregionais, porém, em toda cidade da federação, existem pontos de atenção à saúde, à as- sistência social e à educação. Nesse sentido, é muito im- portante que a rede de profissionais, assim como a socie- dade civil, esteja atenta para garantir espaços de escuta, cuidado e vida para a juventude, promovendo protago- nismo e autonomia para essa população . Para além dos espaços instituídos nas políticas públicas que acabamos de citar, é importante valorizarmos as redes de apoio que vão sendo construídas ao longo da vida, como a famí- lia, amigos e comunidade. Você consegue pensar em espaços de cuidado e escuta a que você tinha acesso na sua adolescência? Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 12 CONHECIMENTOS E HABILIDADES ESSENCIAIS PARA A ESCUTA DE ADOLESCENTES E JOVENS: COMUNICAÇÃO PRECISA; ABORDAGEM INICIAL; CONTINUIDADE DO ATENDIMENTO Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nun- ca vi anunciado curso de escutatória . Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir . Pensei em oferecer um curso de escutatória . Mas acho que ninguém vai se matricular . Escutar é complicado e sutil… Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ou- vidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma”. Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer... Nossa incapa- cidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, so- mos os mais bonitos . . . Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os ín- dios. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de ini- ciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, abrindo vazios de silêncio, expulsando todas as ideias estranhas). Todos em silêncio, à es- pera do pensamento essencial . Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio den- tro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia . Eu comecei a ouvir . Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se refe- ria a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Aí, li- vres dos ruídos do falatório e dos saberes da filo- sofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar . Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no si- lêncio . Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também . Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto . Ouçamos os clamores dos famintos e dos despossuídos de humanidade que teimamos a não ver nem ouvir. É tempo de renovar, se mais não fosse, a nós mesmos e assim nos tornarmos seres humanos melhores, para o bem de cada um de nós. Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 13 É chegado o momento, não temos mais o que esperar . Ouçamos o humano que habita em cada um de nós e clama pela nossa humanidade, pela nossa solidariedade, que teima em nos falar e nos fazer ver o outro que dá sentido e é a razão do nosso existir, sem o qual não somos e jamais seremos humanos na expressão da palavra . Alves, 1999 É comum vermos pessoas exaltando a importância de falar, principalmente de falar bem, ter boa oratória, uma fala eloquente, mas será que as pessoas também compreendem e valorizam a importância de escutar, de saber escutar? Rubem Alves chama a atenção para isso no início do seu texto . Ele diz da existência de muitos cursos de oratória e da au- sência de cursos de escutatória . Percebemos isso como uma realidade, a escassez de pessoas disponíveis para escutar, e, quando nos referimos a escutar adolescentes e jovens, essa in- disponibilidade se evidencia ainda mais . Primeiramente, vamos fazer uma distinção entre escutar e ouvir. “Do ponto de vista conceitual, escutar é diferente de ou- vir. Escutar remete a aderir ao que se ouve, e ouvir não implica adesão . Aderir é se permitir ouvir quem nos fala – ainda que não acordemos com aquilo que é dito por quem nos fala” (FERREIRA, 2022, p. 128). Nessa perspectiva, ouvir limita-se à função orgâni- ca. Já escutar remete a ser afetado, a sentir o que é trazido pela fala do outro . É importante ressaltar que, quando falamos de escuta, estamos nos referindo a um modo de cuidado não exclusivo de determinada área do saber. Não se trata de uma escuta exclusi- va de profissionais especialistas da saúde mental. Esses locais Proposição 1 Feedback positivo: Feedback orientador: Você já parou para pensar sobre isso? Sobre o quanto, muitas vezes, a sociedade, a família e até mesmo a esco- la não dão espaço para o que os adolescentes e jovens têm a dizer? A escutaé um recurso essencial para a promoção da saúde mental de adolescentes e jovens. Por meio deste, podemos oferecer atenção, cuidado e ferramentas de transformação às situações de conflito ou sofrimento vivenciadas pelos mesmos . A sociedade, a família e a escola, quando ofertam espaços genuínos de escuta e troca, ao mesmo tempo em que garan- tem o acolhimento e acesso às reais necessidades do sujei- to, permitem que o jovem seja protagonista da sua própria história . ? Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 14 de escuta especializada instituídos formalmente são legítimos, importantes e indispensáveis em casos específicos. Contudo, precisamos estar atentos para o fato de que eles não são os úni- cos lugares e modos de escuta possíveis. Como já vimos, esses podem e precisam ser ampliados . Então, de qual escuta estamos falando? A escuta a que nos referimos aqui é uma ferramenta e uma habilidade que toda pessoa humana é capaz de desenvolver . É um instrumento vital para a relação humana . Pensando nessa relação numa perspec- tiva dialógica, em que uma pessoa se coloca diante da outra em uma atitude de respeito, presença, horizontalidade, igualdade e inteireza. Martin Buber (1977) aponta que o ser humano tem a capacidade de inter-relacionamento com seu semelhante . Essa relação eu-tu acontece no encontro verdadeiro de duas pessoas e se expressa pela habilidade da escuta . Para a prática dessa escuta, à qual podemos nos referir como uma escuta ativa, afetiva, amorosa, empática e acolhedora, não existe uma receita pronta ou uma regra rígida a ser seguida . Estamos falando de algo que se estabelece na complexidade e na individualidade de cada relação, sem modelos preestabeleci- dos. No entanto, existem “habilidades” potencializadoras dessa escuta . Vamos pensar sobre algumas dessas habilidades? Inicial- mente, o estabelecimento de vínculo entre a pessoa que escuta e a pessoa que fala é imprescindível. Nesse sentido, quem escu- ta precisa estar disponível para a relação mais próxima, simétrica e igualitária possível . A pessoa que escuta precisa ter cuidado para não se colocar no lugar de distanciamento e de superiorida- de em relação àquele que fala, evitando uma postura adultocên- trica, como já mencionado anteriormente. Proposição 2 Feedback positivo: Feedback orientador: A fala de pessoas adultas ou mais velhas para os adoles- centes e jovens, na maioria das vezes, vem carregada de opiniões e conselhos, mesmo quando baseados nas me- lhores intenções. Você já parou para pensar se isso favo- rece ou atrapalha a comunicação? Para a fala do outro acontecer, faz-se valioso que a pessoa que escuta abra espaço dentro de si para acolher o que é dito pelo outro, desprendendo-se de julgamentos e vivên- cias pessoais, evitando conselhos precipitados, excessos de teorizações e/ou veredictos . Recorrer a respostas prontas, universais e/ou motivado- ras pode ser um recurso acalentador ou apaziguador para quem diz, sem qualquer possibilidade de impacto profícuo para quem escuta . É preciso estar atento aos efeitos adver- sos do acolhimento . ? Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 15 A arte de escutar demanda da pessoa que se propõe a fazê-la a atitude de se esvaziar de si. Esse esvaziar-se, como men- ciona Rubem Alves em seu texto, requer, muitas vezes, o silêncio. A receptividade é uma estratégia importante no contexto da escuta de adolescentes e jovens . É a atitude de acolher sem julgamento o que o outro diz. Isso não significa concordar com tudo que o adolescente ou o jovem fala nem aceitar comporta- mentos negativos. No entanto, quer dizer aceitar as suas emo- ções, legitimar seus sentimentos e dar espaço para que ele pos- sa expressar o que sente e vive . Só é possível conhecer alguém se a pessoa que ouve se dispuser a escutar o outro que fala como ele é e não como queria que ele fosse. Por meio de uma atitude receptiva, pode ser pos- sível compreender o que é trazido pelo outro, o que está aconte- cendo com ele e, a partir daí, pensar os cuidados que ele precisa. Quando nos referimos ao que é trazido ou dito pelo ado- lescente ou jovem é importante destacar que esses modos de dizer nem sempre são verbais . A comunicação ocorre de modos variados, inclusive de modo não verbal. Por isso é preciso estar atento para as atitudes, expressões, gestos, atos corporais e até mesmo o silêncio, que em alguns casos também está a serviço da comunicação . Voltando às habilidades que favorecem a escuta acolhe- dora, vamos pensar na postura empática, que é tentar se colocar no lugar do outro . A empatia seria a capacidade de estar junto do outro para sentir o que ele sente, legitimando as emoções senti- das pelo outro. Brené Brown (2016) estuda a empatia e diz que ela consiste em quatro atitudes: assumir a perspectiva da outra pessoa; não julgar; reconhecer a emoção do outro; e comunicar essa emoção . (Animação: O poder da empatia . Site: | em casa gobblynne | Ani- mação, Ilustração) Quando se está diante do relato de uma situação difícil vivida pelo outro, é comum se ter o impulso de tentar amenizar a situação . O uso de argumentos de conforto precisa ser pondera- do, pois pode gerar o efeito negativo de fazer o outro não se sen- tir compreendido. Por outro lado, a postura empática, a de tentar compreender a perspectiva vivida pelo outro naquele contexto, sem julgamentos e buscando reconhecer e comunicar as emo- ções que ele vive, favorece a conexão e pode trazer benefícios. Compreendemos que a escuta é uma alternativa para li- dar com a dor e com o adoecimento. Ela, por si só, é uma estraté- gia potente, que pode repercutir de modo positivo em muitos ca- sos. No entanto, é importante que a pessoa que escuta conheça seus limites e reconheça que determinadas questões identifica- das podem demandar apoio de algum serviço e/ou atendimento especializado . Por isso é de suma importância conhecer a rede de serviços existente em seu território . Como já foi mencionado, a escuta à qual nos referimos aqui não se refere a uma escuta exclusiva de determinada área do saber, muito menos a uma escuta clínica terapêutica. Diversas pessoas que tenham interesse no cuidado de adolescentes e jo- vens podem ser agentes e promotores de cuidado . http://www.gobblynne.com/ http://www.gobblynne.com/ Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 16 FUNÇÕES, ATRIBUIÇÕES E LIMITES DO AGENTE DE CUIDADO Há algo nos seres humanos que não se encontra surgido há milhões de anos no processo evolutivo quando emergiram os mamíferos, dentro de cuja espécie nos inscrevemos: o sentimento, a capaci- dade de emocionar-se, de envolver-se, de afetar e de sentir-se afetado . Um computador e um robô não têm condições de cuidar do ambiente, de cho- rar sobre as desgraças dos outros e de rejubilar-se com a alegria do amigo . Um computador não tem coração . Só nós humanos podemos sentar-nos à mesa com o amigo frustrado, colocar-lhe a mão no ombro [ . . .] e trazer-lhe consolação e esperança . Construir o mundo a partir de laços afetivos . Esses laços tornam as pessoas e as situações preciosas, portadoras de valor . Preocupamo-nos com elas . Tomamos tempo para dedicar-nos a elas . Sentimos responsabilidade pelo laço que cresceu entre nós e os outros . A categoria cuidado recolhe todo esse modo de ser . Mostra como funcionamos enquanto seres humanos . (Boff, 2015). Leonardo Boff nos mostra a nossa capacidade humana de sentir, de chegar perto de outra pessoa, de afetar e ser afe- tado pelo outro, de formarlaços, fazer vínculos e cuidar. E ao cuidarmos uns dos outros nos aproximamos do que há de mais humano em nós . É esse o lugar do agente de cuidado . Você já presenciou algum jovem contando uma história que aconteceu com ele para um amigo? Percebeu como eles dão ênfase às palavras, ficam empolgados e carregam a fala de emoções? É dessa forma que muitos jovens chegarão até você . Outros falarão baixo, com pouca expressividade. Há também um grupo que, simplesmente, não fala, apenas acena com a cabe- ça e responde monossilabicamente às nossas perguntas . Esses serão alguns dos jovens que irão aparecer em nossas salas de aula, cozinhas, corredores de hospitais, centros comunitários, as- sociações, vizinhança e, até mesmo, dentro das nossas próprias casas . O que nós precisamos vivenciar com esses jovens é uma comunicação, um dialogar. O diálogo é uma ponte que leva o ser humano a se aproximar de outro ser humano . E para que esse diálogo possa fluir é essencial ser capaz de ouvir quem me fala, mesmo que eu discorde, ainda que seja diferente do que penso, do que sinto, mas eu respeito, eu escuto (FERREIRA, 2022). Algumas vezes, esses meninos e meninas farão pedidos diretos de ajuda a você; outras vezes esses pedidos não serão muito claros; e haverá pedidos quase imperceptíveis. Em qual- quer circunstância, é primordial estar atento e disponível para oferecer a escuta, o apoio, a ajuda. Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 17 Um jovem pode procurar você com demandas variadas . Ele pode, por exemplo, estar vivenciando uma angústia enorme, e encontrar você em um corredor da escola pode trazer a ele a ideia de não estar sozinho e de não ser necessário tomar uma decisão precipitada (VERAS, 2020, p. 298) Assim, para escutar um jovem, precisamos estar interes- sados na sua fala e na sua história, assim como nos aproximar dele. Quem pode oferecer a escuta? Eu, você e qualquer pes- soa interessada em tentar ajudar pode! A escuta deve ser livre de preconceitos e julgamentos, não seguir uma fórmula pronta nem produzir frases feitas; deve ser uma escuta de respeito ao outro e de liberdade. Devemos ouvir sempre mais, a ponto de promover a desconstrução de certezas consolidadas . Esse caminho nos leva à reconstrução de nós mesmos, com novas ideias, novos saberes, novos olhares. Proposição 3 Feedback positivo: Feedback orientador: Qual seria a sua função como agente de cuidado? Será que você está preparado para esse desafio? Vamos voltar um pouco ao caso complexo deste módulo . Na sua opinião, o seu Cleiton estava disponível para ofere- cer uma escuta acolhedora, sem julgamentos aos jovens? Podemos imaginar que ele ainda não estivesse preparado para ouvir o outro . Será que realmente você escuta o outro quando está pensando nos seus objetivos e sentimentos? A resposta é “Não”. Ele queria impor a sua crença religiosa para os meninos da comunidade de Monte Verde dizendo: “Seria muito bom para esses meninos saírem do pecado e conhecerem a palavra de Deus” . A tentativa de resolução do problema sem escutar as neces- sidades do sujeito em sofrimento pode levar ao silenciamen- to, distanciamento e desencorajamento de novos pedidos de ajuda . ? Você percebe a importância do seu pa- pel nessas situações? A sua escuta pode trazer alívio ao jovem que conversa com você. E poder proporcionar isso ao outro é algo extremamente gratificante . Ouça a música “Laços”, de autoria de Nando Reis clique e acesse https://youtu.be/PQ5cNYyRsxg Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 18 Atribuições e competências dos agentes de cuidado: 1) Conhecer a si mesmo (autoconhecimento), conhecer seus limites, suas características, habilidades, valores e crenças . O autoconhecer-se é um dos fatores de prote- ção à nossa saúde mental. Acolher os jovens, oferecendo uma escuta acolhedora que possibilite a expressão dos sentimentos e a com- preensão, sem avaliação e sem julgamento, estabelecen- do uma relação saudável, de respeito e de empatia com os jovens . 2) Promover a saúde mental escutando as demandas dos adolescentes, realizando orientações e até mesmo enca- minhamentos para serviços de saúde mental, como os Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), e buscando um estado de bem-estar usando habilidades para lidar com aquilo que vive e atuar em sua comunidade . 3) Promover a criação de espaços para que os jovens pos- sam se cuidar, como associações de moradores, escolas e até mesmo na garagem de Dona Lourdes, como acon- teceu no caso complexo . 4) Procurar informações sobre temas de interesse dos jo- vens, que poderão variar tanto inter, quanto intra-territo- rialmente . Lembrar-se de que tudo precisa ser pensado para os jovens e com os jovens . O protagonismo juvenil é importante nos espaços de cuidado . 5) Realizar os primeiros socorros emocionais (PSE) (UNICEF, 2021). São eles: oferecer apoio e ajuda; perguntar o que a pessoa precisa ou como você pode ajudar; ver se a pes- soa está com fome, sede ou precisa saber de alguma coi- sa; ouvir com atenção sem forçar a pessoa a falar nada nem julgar o que diz; falar coisas que possam ajudá-la a se sentir melhor ou ficar mais calma; proteger a pessoa. Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 19 Ao pensar em todas essas atribuições, você se per- gunta: será que tudo isso será muito pesado para mim? Será que eu vou dar conta? Nesses casos, precisamos pedir ajuda. Quem cuida do cuidador? Como estou me sentindo com tudo isso que está acontecendo com esse jovem? Buscar ser verdadeiro com você mesmo, pedir ajuda a um colega e procurar serviços estratégicos voltados à saúde mental são possibilidades para melhorar a sua escuta e o seu acolhimento das situações difíceis vivenciadas pelos jovens. Você também pode participar de capacitações, for- mações e cursos para compreender e utilizar técnicas que facili- tam o processo de comunicação e reconhecimento dos limites e potencialidades da atuação . Proposição 4 Feedback positivo: Feedback orientador: Ao ler todas estas atribuições, você pode pensar: será que vou conseguir? A resposta mais justa é: algumas vezes sim e outras não . São os seus limites; cada um tem os seus, é preciso apurá-los. Se você tem dificuldade em ouvir alguns temas ou lidar com algumas situações, por exemplo, isso pode ocorrer devido a dificuldades que você tenha vivido no passado e que ain- da provocam sentimentos ruins, comprometendo ou impe- dindo o acolhimento ao jovem . Pensemos em uma situação concreta: uma jovem está falando sobre o comportamento suicida, cuja vivência e expressão são semelhantes ao que você está vivenciando em casa com a sua filha. Como agen- te de cuidado, ouvir essa jovem pode trazer identificação fa- miliar, angústia, lembranças de sofrimento, tirando do foco a possibilidade de escuta ativa da jovem . Reconhecer os próprios limites é um ato de cuidado con- sigo e com o outro. Humanizar-se, acolher-se, adaptar-se à situação e/ou demandas específicas, buscar ajuda e/ou en- caminhamento para o jovem em sofrimento também é uma função do agente de cuidado . Esta não é uma função pron- ta, se constrói continuamente. ? Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 20 ÉTICA E SIGILO DAS INFORMAÇÕES Ética é tradicionalmente entendida como um estudo ou uma reflexão sobre as ações humanas (VALLS, 2017). A ética, na prática, convida a pensar e a responder questões sobre como se deve agir em sociedade. Esse convite está sendo feito a você . Discutimos até aqui questões voltadas para o cuidado da saúde mental de adolescentes e jovens . Discorremos sobre diferentes espaços e ambiências em que esse cuidado pode e deve acon- tecer; sobre a prática da escuta acolhedora; sobre habilidades que favorecem a escuta; e sobre a atuação daqueles que atuam nessa frente, a quem chamamos de agentes de cuidado. Abri- mos agora um espaço para pensarmos sobre a atuação ética dos agentes de cuidado . A atuação do agente de cuidado é tecida à disponibi- lidade e à necessidade de se deixar desconstruir pelo outro. Não há fórmula, receita, respostas prontas ou universais. Porém, esse fazer sempre deverá estar atrelado a: - Atitudes éticas respaldadas no respeito, liberdade, digni- dade, igualdade e integridade da pessoa humana; - Atitudes que busquem promover a saúde e a qualidade de vida desses adolescentes e jovens; - Atitudes que estejam comprometidas com a garantia de direitos; - Atitudes que sejam contrárias a situações de negligên- cia, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão . Sabe-se que profissões regulamentadas têm seus códi- gos de ética para subsidiar as reflexões de cada profissional acer- ca de sua prática . O objetivo de um código de ética não deve ser engessar e normatizar o trabalho, mas assegurar, de acordo com os padrões estabelecidos socialmente, direcionamentos para as profissões. Nesse sentido, destacamos o valor desses códigos de ética, sendo relevante que profissionais que os tenham ba- seiem suas práticas nesses documentos . A perspectiva ampliada proposta neste módulo, em con- sonância com as discussões da política de saúde mental, convo- ca ao lugar de agente de cuidado pessoas variadas (profissionais de saúde, da assistência social, da educação, enfim, pessoas da sociedade em geral). Ainda que alguns desses profissionais não tenham código de ética específico, a conduta ética deve sempre nortear as intervenções. Algumas legislações, como a Declara- ção Universal dos Direitos Humanos, o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) e o Estatuto da Juventude (BRASIL, 2013), também trazem contribuições para a atuação diante da es- cuta e do trabalho com este público. Em consonância com a ética, o sigilo das informações deve ser prioridade, com vistas a proteger a confidencialidade e a intimidade das pessoas . A quebra do sigilo só deve ocorrer diante de situações que ponham em risco a vida do adolescente ou jovem; devendo ser eventual, limitada a informações estrita- https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12852.htm Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 21 mente necessárias e baseada sempre na busca pelo menor pre- juízo . É relevante que qualquer decisão relacionada à quebra de sigilo deva priorizar o diálogo com esse adolescente ou jovem . Ressaltamos que a quebra do sigilo de fato deve ser utili- zada apenas se estritamente necessária, tendo em vista os riscos que essa pode acarretar. Pode gerar, a depender do caso: a) a ruptura da confiança e do vínculo, levando esse adolescente ou jovem a não mais confiar em se abrir e pedir ajuda a outras pes- soas; b) a potencialização do risco ou revitimização da pessoa. Em outras palavras esse procedimento só pode ser feito após alguns critérios terem sido analisados: existe algum outro caminho que não seja a quebra de sigilo? Existe de fato um risco iminente à vida desse adolescente ou jovem que justifique esta escolha? Com a quebra do sigilo, haverá mais efeitos positivos ou negativos? Vamos pensar aqui em uma situação proposta por Ana Marta Lobosque (2019) para subsidiar a nossa reflexão. A autora levanta uma discussão que aborda situações de automutilação em meninas, mas podemos utilizá-la de modo mais ampliado. Lobosque aponta que, diante de casos de automutilação de me- ninas, a pessoa que escuta e/ou percebe a situação corre dois riscos: o primeiro risco é “o da recusa, uma interpretação que pri- vilegia a minimização da dor do outro, a simulação, problemas falsos, indignos de atenção; o segundo risco é o de alarme, cujo apelo captura-nos em demasia, especialmente pelo temor do risco de suicídio, acionando estratégias, por vezes exageradas, que podem levar à patologização e medicalização excessiva, e até institucionalização . Diante de casos de autolesão, com ideação suicida ou mesmo situação de violência vivenciada pela adolescente, o agente de cuidado precisa avaliar a situação com cautela: nem pode ser “duro demais” e nem ser movido pela excessiva sensi- bilização e tomar atitudes precipitadas; ser cuidadoso para não romper o sigilo como um modo de autoproteção ou com a finali- dade de tentar “resolver o problema” de forma imediatista. Nes- ses casos mais complexos, é muito importante pensarmos em acionar a rede de serviços de saúde, como os Centros de Aten- ção Psicossocial (CAPS). Na ausência de um CAPS infantojuvenil, você pode buscar o CAPS adulto ou até mesmo a sua Unidade Básica de Saúde (UBS). Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 22 É importante compartilhar, com adolescentes e jovens, alguns números de contato, como: CAPS CRAS Disque 100 (Disque Direitos Humanos), para casos de Violência Disque 180, para casos de violência doméstica CVV 188 Site www .canaldeajuda .org .br, para casos de vítima ou testemunha de cyberbullying Site Pode Falar, canal de escuta 24h para adolescentes e jovens Site Como comunicar uma situação de perigo - Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crian- ças e Jovens (cnpdpcj.gov.pt) Nesse sentido, qualquer discussão ética a respeito do si- gilo e da postura dos agentes de cuidado deve estar vinculada a uma escuta atenta, cuidadosa, que busque acolher, compreen- der, estar junto desse adolescente ou jovem, trilhando novos ca- minhos e novas possibilidades, sempre em uma perspectiva de respeito e cuidado . Dessa forma, retomamos o caso complexo, que ocor- reu na cidade de Monte Verde, em que os próprios moradores pensaram em um espaço de cuidado e vida para adolescentes e jovens. Em seu território, você identifica espaços que sejam po- tentes para o cuidado de adolescentes e jovens? Caso eles não existam, você consegue pensar na criação deles? Quem seriam os parceiros mais próximos para começar esse espaço? Fica a dica! http://www.canaldeajuda.org.br https://www.podefalar.org.br/ https://www.cnpdpcj.gov.pt/como-pedir-ajuda https://www.cnpdpcj.gov.pt/como-pedir-ajuda https://www.cnpdpcj.gov.pt/como-pedir-ajuda Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 23 encerramento do módulo Chegamos ao final de um longo processo de aprendiza- gem. Não somos mais os mesmos, assim como o mundo tam- bém já é outro. Enfrentamos a dureza da pandemia de Covid-19, a tristeza de um luto coletivo, os efeitos da precarização de certas existências, entre outros desafios. Nos diferentes territórios do país, percebemos diferentes questões que atravessam a vida de adolescentes e jovens, como a violência, a violência do Estado e a falta de oportunidades e de espaços de partilha de vida . Depa- ramo-nos com expressões de sofrimento vividas e sentidas pe- los jovens, como o uso abusivo de drogas, trabalho no tráfico de drogas, violências diversas, como autolesões e comportamento suicida, etc. Pensamos que, diante do desamparo e de tantas cenas intoleráveis que nossos adolescentes e jovens estão vivendo, é necessárioconstruirmos respostas de cuidado melhores e mais ampliadas, que os acolham e que não os julguem, ou seja, que não minimizem aquilo que está sendo sentido e vivido. Para isso, é importante nos posicionarmos nessa trincheira ao lado deles, garantindo espaços de acolhimento, participação e, fundamen- talmente, protagonismo. A tecitura deste módulo teve como motivação reconhe- cer os avanços da garantia de direitos de adolescentes e jovens, assim como questões ainda não superadas, e olhar para muitos dos desafios atuais da comunicação, diálogo e conflitos que ocorrem com a juventude. Partimos, assim, da história e da legis- lação sobre direitos da adolescência e juventude para construir e inspirar modos plurais de reconhecimento, acolhimento e cuida- do voltados a essa população, independentemente do espaço físico, estrutura e exercício da profissão. De modo a centralizar o cuidado na relação e nas ferra- mentas coletivas, tecemos questionamentos, conhecimentos, habilidades, aspectos éticos e técnicos para reafirmar o com- promisso político com a promoção da saúde mental dos adoles- centes e jovens. Essa escrita, que pode ser complementada por você em sua prática, visa expandir temas, modos e exercício de um cuidado solidário, equânime e emancipador. Sigamos! Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 24 referências ALVES, R. O amor que acende a lua. 8. ed. Campinas: Editora Papirus, 1999. BRASIL . Lei no 12.852, de 5 de agosto de 2013. Institui o Estatuto da Juventude e dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Na- cional de Juventude - SINAJUVE. Diário Oficial da União, Bra- sília, DF, 6 ago. 2013. Disponível em: https://www .planalto .gov . br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12852.htm. Acesso em: 17 nov. 2022. BRASIL . Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre Esta- tuto da Criança e do Adolescente . Diário Oficial da União, Bra- sília, DF, 16 jul. 1990. 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Membro do Grupo de Estudo Transdisciplinar da Infância e Juventude (GETIJ). Atendente voluntária no canal Pode Falar – UNICEF. Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 26 minicurrículo das autoras Isadora Simões de Souza Psicóloga, doutora em psicologia social pela Pontifícia Universi- dade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestre em Saúde Men- tal pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, Portugal. Os principais temas em que atua são saúde mental, saúde mental infantojuvenil, justiça, gênero, drogas e di- reitos humanos. Atualmente, é professora do curso de Gradua- ção em Psicologia da Universidade Mackenzie em São Paulo-SP; professora e supervisora da Residência Médica em Psiquiatria em Rede (SUS) da 8 Coreme, da Prefeitura de São Paulo; e super- visora de CAPSij, na cidade de São Paulo. Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens Módulo: Espaços de cuidado: Construindo possibilidades de vida 27 minicurrículo das autoras Marcia Nunes Psicóloga. Trabalhadora do SUAS. Mestranda em Educação, Cul- turas e Identidades pela Universidade Federal Rural de Pernam- buco (UFRPE) . Especialista em Direitos da Criança e do Adoles- cente pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (2021), Especialista em Saúde Mental e Intervenções Psicossociais pela UNIFAVIP DEVRY (2011). Pesquisadora no Grupo de Estu- do Transdisciplinar da Infância e Juventude (GETIJ). Membro do Núcleo do Cuidado Humano da UFRPE. Atendente voluntária no canal Pode Falar – UNICEF. Realização FIOCRUZ MATO GROSSO DO SUL
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