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ANDREA HELENA FERREIRA BRAGA DEBORA MEYHOFER FERREIRA LAIRA LÚCIA DAMASCENO DE OLIVEIRA INICIAÇÃO À PESQUISA CIENTÍFICA LUIS FERNANDO CRESPO MAYRA MOREIRA DA COSTA RODRIGO GOUVÊA TAKETANI 1 UNIDADE 2 SONHANDO COM UMA VIAGEM INESQUECÍVEL: CIÊNCIA E CONHECIMENTO INTRODUÇÃO Sonhar é muito bom. Principalmente quando sonhamos com uma viagem. Assim pen- savam Júlia, João e Pedro. Porém, ainda que todos tivessem o propósito de viajarem juntos, não sonhavam com um mesmo destino. Cada um sonhava com um país diferen- te do outro. Pedro estava imaginando o quanto seria divertido caminhar pelos mercados da Turquia, enquanto Júlia pensava a maravilha que seria conhecer as pirâmides do Egito. João, por sua vez, quase podia sentir o gosto das iguarias culinárias que eles provariam na França. Como decidir? Pensaram em um sorteio, mas rapidamente con- cluíram que não seria uma boa opção, pois alguns acabariam não se sentindo tão feliz quanto o outro. Além disso, nenhum deles conhecia bem nenhum desses países, e, cer- tamente, haveria ainda outros países extremamente fascinantes ainda não cogitados. Ciência, Conhecimento e justificativa. Esses serão os temas centrais do início da nossa trajetória pelo instigante caminho da investigação científica. Veremos, que assim como uma bem fundamentada tomada de decisão em equipe, o conhecimento científi- co, diferentemente de fé, mera opinião, teses mal fundamentadas, ou teorias pseudo- científicas, envolve a prática da justificação rigorosa e a aplicação de métodos específi- cos de análise, interpretação e divulgação de resultados. Partiremos de uma breve introdução à história da ciência, tendo em vista sua distin- ção, importância, evolução e aplicabilidade. Passaremos por uma diferenciação entre os seguintes tipos de conhecimento: conhecimento por contato, conhecimento por descrição, conhecimento prático, conhecimento popular, conhecimento científico e conhecimento acadêmico. Posteriormente, partiremos para uma breve apresenta- ção da teoria tradicional do conhecimento, atentando para o critério de justificação, característico do empreendimento científico. 1. A CIÊNCIA NA HISTÓRIA DO CONHECIMENTO HUMANO Viajar resulta na descoberta de coisas novas e na ampliação de horizontes. Assim como em uma viagem, a trajetória científica da humanidade resultou não só na descoberta de novos mundos, como também, na invenção de novas tecnologias e, acima de tudo, possibilitou o aprimoramento de nossas crenças sobre o universo, através do uso da justificação rigorosa e estruturação de métodos adequados de pesquisa. Os resultados da ciência atingem hoje patamares inimagináveis para os seres humanos de milênios, séculos, e até mesmo de décadas ou anos atrás. Testemunhamos, atual- mente uma evolução vertiginal de avanços tecnológicos, que são apenas possíveis dada a evolução da ciência humana em si. Desde o início da história humana, a ciência, ainda 2 Iniciação à pesquisa científica U2 Sonhando com uma viagem inesquecível: Ciência e conhecimento que muitas vezes reduzida à technè, ou incluída em meio a crenças religiosas ou rituais, permitiu-nos um maior conhecimento da realidade a nossa volta e de nós mesmos, além da possibilidade de maior criação, intervenção, reprodução, e manipulação da natureza. Atualmente, conseguimos distinguir claramente práticas científicas, de práticas não científicas ou pseudocientíficas. Ciência, filosofia, e religião, por exemplo, são conside- rados campos separados, e até mesmo opostos por algumas pessoas. Essa clara dis- tinção, no entanto, não existia no passado. A ciência atual atingiu sua emancipação, não se tratando apenas uma parte a ser adequada a um conjunto de crenças tradicionais ou filosóficas. Além disso, sua classificação tornou-se cada vez mais distintamente demar- cada, ao serem estabelecidos critérios para o desenvolvimento de estudos científicos bem fundamentados e para a determinação de quais práticas seriam incorretas, ainda que estas últimas possam se auto classificar muitas vezes como pesquisas científicas. A área que estuda e visa oferecer respostas para questões como a de determinar o que é ciência, além de outras questões relacionadas aos fundamentos das ciências e problemas filosóficos resultantes delas, é chamada de filosofia da ciência. 2. CONHECIMENTO POPULAR, CIENTÍFICO E ACADÊMICO Denomina-se conhecimento popular, o conjunto de conhecimentos que adquirimos informalmente, muitas vezes de forma oral, passados de geração em geração. Embora não seja formalmente estabelecido, e o ser humano tenha ao longo da história acredita- do em muitas falsidades por simples crendice, o conhecimento popular pode ser muito rico e tem nos ajudado a sobreviver como espécie desde sempre. Em muitos casos, o conhecimento popular pode ser um bom guia sobre um determinado assunto, como, por exemplo, sobre a cultura de uma determinada comunidade ou sobre como fazer uma determinada atividade, um quitude, uma arte, uma caminhada, ou se uma planta en- contrada encontrada em um local específico e em determinada quantidade pode matar quando ingerida, se podemos confiar em pessoas com determinados comportamentos, o que é essencial de se levar em uma viagem, quais épocas do ano são boas para pes- car ou plantar, entre tantos outros exemplos. O conhecimento científico, diferentemente do conhecimento popular, é caracterizado pela fundamentação em práticas científicas solidamente estabelecidas. Muitas vezes pode vir a corroborar uma crença popular, mas também pode refutar. A principal diferen- ça entre os dois tipos de conhecimento está no método de obtenção, processamento, aquisição e divulgação de crenças. Enquanto o conhecimento popular não apresenta regras procedimentais bem definidas, uma das essências do conhecimento científico é a determinação de meios adequados de verificação e validação de hipóteses. Ao conjunto de conhecimentos gerados através e a partir de instituições acadêmicas de diversas áreas chamamos conhecimento acadêmico. A filosofia, por exemplo, com ex- ceção de alguns trabalhos filosóficos mais técnicos ou fundamentais das ciências, não é considerada uma ciência em sentido estrito. Assim como as artes, o serviço social, o jornalismo, a história, a gastronomia, entre outras áreas do conhecimento. No entanto, to- das elas são áreas inclusas no domínio do conhecimento acadêmico e, por isso, seguem regras semelhantes aos das áreas consideradas como ciências no sentido mais estrito. U2 3Iniciação à pesquisa científica Sonhando com uma viagem inesquecível: Ciência e conhecimento Por isso, em sentido lato (amplo), também podem ser classificadas como “ciências”. Por exemplo, história e filosofia são consideradas ciências humanas e ambas estabelecem critérios de rigor dentro de seus campos: os filósofos estudam princípios de lógica e argu- mentação, os historiadores seguem métodos de obtenção fidedigna de dados. Todas as áreas acadêmicas, portanto, praticam a chamada investigação científica nesse sentido. CONHECIMENTO POPULAR CONHECIMENTO CIENTÍFICO CONHECIMENTO ACADÊMICO - Informal. - Passado de geração em geração. - Formal. - Possui regras procedimentais bem definidas. - Formal. - Possui regras procedimentais bem definidas - É realizado no âmbito de intiruições acadêmicas. Fonte: Canvas 3. CONHECIMENTO POR CONTATO, CONHECIMENTO PROPOSICIONAL E CONHECIMENTO PRÁTICO Quando dizemos que conhecemos algo, podemos nos referir a diversos aspectos. Alguém pode dizer, por exemplo, que conhece a Índia. Isso pode significar que essa pessoa já foi à Índia, ou que ela conhece com detalhes fatos e tradições sobre a Índia, ou, ainda, que ela sabe como viver na Índia. Ao primeiro tipo de conhecimento chamamos de conhecimento por contato. Ele se relaciona à ciência imediata de algo ou alguém, obtida através de experiência direta com os nossos sentidos físicos. Você conhece, por exemplo, as cidades que já visitou e desconhece aquelas para as quais nunca viajou.O segundo tipo de conhecimento chamamos de conhecimento proposicional ou descritivo. Ele diz respeito ao conhecimento de proposições, isto é, ao conhecimento de ideias expressas por frases passíveis de valor de verdade. Por exemplo, a frase “a Índia é um país do continente asiático” expressa uma proposição verdadeira, enquanto a frase “a Índia é um país do continen- te americano” expressa uma proposição falsa. Se eu sei que a Índia é um país pertencente ao continente asiático, então eu tenho um conhecimento proposicional sobre a Índia. Já o terceiro tipo, o conhecimento prático, caracteriza-se pelo saber fazer algo, isto é, relaciona-se às aptidões práticas de um sujeito em realizar uma determinada atividade. Por exemplo: preparar uma receita, andar de bicicleta, dirigir um carro, suturar um corte, negociar, tocar um instrumento musical, dançar etc. 4 Iniciação à pesquisa científica U2 Sonhando com uma viagem inesquecível: Ciência e conhecimento CONHECIMENTO POR CONTATO CONHECIMENTO DESCRITIVO CONHECIMENTO PRÁTICO - Eu conheço Paris. - Eu sei que Paris está localizada na França. - Eu sei andar de bicicleta. Fonte: Canvas 4. A DEFINIÇÃO DE CONHECIMENTO Suponhamos que alguém diga para você que a Índia é um país do continente americano. Você sabe que ela realmente acredita nisso, pois não teria motivos para mentir. Você verifi- ca então em um mapa a localização continental real da Índia. Você diria que ela apresenta conhecimento sobre a Índia, no que diz respeito à sua localização geográfica? Muito pro- vavelmente não. Para saber, não basta crer, essa crença precisa também ser verdadeira. Digamos agora que você pergunte para uma terceira pessoa em qual continente a Índia está localizada. Essa pessoa acredita que pode obter respostas sobre a realidade jogando dados. Ela lança um dado e conclui pelo resultado que a Índia está situada no continente asiático. Você diria que ela tem conhecimento sobre a localização da Índia depois disso? Provavelmente também não, afinal ela só acertou por sorte. Não diríamos que ela apre- senta conhecimento notório de onde fica a Índia. Para saber, não basta ter uma crença verdadeira, ela também precisa ser justificada. E justificada aqui, significa bem justificada. Se ela concluísse que a Índia fica na Ásia, mas baseada em falsidades ou por meio de um raciocínio inválido, diríamos que ela não está justificada, pois não ofereceu boas razões para a conclusão, mesmo que essa conclusão consista em uma crença verdadeira. Dessa forma, só diríamos que alguém realmente tem conhecimento sobre a localização geográ- fica da Índia, se ela nos oferecesse uma justificação para sua crença verdadeira, por exemplo, apresentando um mapa fiável, um livro de geografia, uma pesquisa em um site cientificamente fundamentado, dentre outros meios de comprovação confiáveis. Isto é, ela teria razões para acreditar que a Índia é localizada na Ásia, e é um fato que a Índia é um país asiático. O conhecimento proposicional, deste modo, consiste em sustentar uma crença verda- deira justificada. Chegamos, assim, à chamada teoria tradicional do conhecimento, também conhecida como teoria clássica, tripartida ou platônica, por ter sua origem atri- buída a Platão em seu diálogo intitulado “Teeteto”. Depois de muito tempo, em 1963, foi oferecido um desafio de peso a teoria clássica do conhecimento, conhecido como problema de Gettier. Edmund Gettier em seu curto e cé- lebre artigo “É a crença verdadeira justificada conhecimento?” oferece dois contra-exem- plos à definição tradicional de conhecimento, onde poderíamos ter crenças verdadeira justificadas, e ainda assim não as consideraríamos como casos de conhecimento, mos- U2 5Iniciação à pesquisa científica Sonhando com uma viagem inesquecível: Ciência e conhecimento SA IB A M A IS trando, desse modo, que a definição clássica pode talvez ser demasiadamente ampla. De qualquer forma, o aprofundamento nessas discussões acerca da definição, natureza e problemas sobre o conhecimento humano fazem parte de uma área de investigação filo- sófica conhecida por epistemologia ou teoria do conhecimento. O epistemólogo ou te- órico do conhecimento é o pesquisador que investiga e discute essas questões. Há ainda outros problemas e discussões acerca da definição e natureza do conhecimento que não teríamos como abordar aqui, dada sua amplitude. A epistemologia é uma das principais áreas da filosofia, de forma que grande parte das filósofas e filósofos, ao longo da história e atualmente, dedicaram-se aos seus problemas. No entanto, para o pesquisador não es- pecializado, em geral, é suficiente levar em consideração ao menos a teoria tradicional do conhecimento, exceto quando suas pesquisas estiverem relacionadas a essas questões epistemológicas mais fundamentais, ficando a critério de quem se interessar pelo tema um mergulho mais profundo pelo oceano da teoria do conhecimento. O célebre artigo de Gettier, com tradução para o português de Célia Teixeira, pode ser acessado neste link: http://www.criticanarede.com/html/epi_gettier.html. G LO SS Á R IO Epistemologia: Palavra de origem grega. ἐπιστήμη, epistéme: conhecimento. λόγος, lógos: discurso, estudo. Equivalente à chamada teoria do conhecimento, consiste em estudos acerca do conhecimento em sentido amplo, desde a sua natureza, passando pelos seus tipos, definição, problemas, e relações com outras disciplinas. É consid- erada uma das áreas fundamentais da filosofia. 6 Iniciação à pesquisa científica U2 Sonhando com uma viagem inesquecível: Ciência e conhecimento Descrição do mapa: Mapa Conceitual Figura 01. Diagrama de Euler-Venn representando a teoria tradicional do conhecimento. Figura 02. Diagrama de Euler-Venn representando o contexto do problema de Gettier para a teoria tradicional do conhecimento. Fo nt e: E la bo ra do p el a au to ra . U2 7Iniciação à pesquisa científica Sonhando com uma viagem inesquecível: Ciência e conhecimento Link No site Crítica na Rede, os estudantes podem encontrar um vasto material de qualidade sobre filosofia da ciência e epistemologia, além de outros textos muito interessantes e úteis: http://www.criticanarede.com Filme ou Documentários: Texto Complementar (livro ou artigo): COSMOS de Carl Sagan. Ed. Comemorativa de 25 anos. Vol. 1. Coleção Superinteressante vídeo. Direção: Adrian Malone. Produção: Gregory Andorfer & Rob McCain. Intérprete: Carl Sagan. [S.1]: Abril, 2005. 1DVD (178 min), son., color. Na série “Cosmos” de Carl Sagan, somos apresentados ao fabuloso universo da pesquisa científica, desde a antiguidade até finais do século XX. Em sua nave espacial, Sagan, um dos maiores divulgadores científicos que já existiu, nos leva por uma jornada pelo cosmos, mos- trando como a evolução do conhecimento científico humano nos proporcionou uma maior compreensão de nós mesmos e do universo ao nosso redor, possibilitando a elaboração de teorias, invenções e descobertas impressionantes. O’BRIEN, D. Introdução à Teoria do Conhecimento. Tradução de Pedro Serras Pereira. Revi- são científica de Aires Almeida. Lisboa: Gradiva, Junho de 2013. Esta é uma excelente introdução à teoria do conhecimento. Ela é indicada aos estudantes de nível superior, mas também será uma leitura gratificante para o público em geral. Através do uso de exemplos do cotidiano, em especial do cinema, O’Brein apresenta uma das áreas mais vastas da filosofia de forma leve e interessante, ainda que rigorosa. Casos de Aplicação: Com o advento da internet e o uso massificado de redes sociais para envio e obtenção de informações, as chamadas fake news, que estiveram de um modo ou de outro sempre pre- sentes na cultura humana, tomaram proporções alarmantes e catastróficas. Afim de diminuir o efeito da disseminação de crenças sem fundamento, principalmente em tempos de epi- demia, foram criados diversos recursos para checagem de notícias, tanto por parte de pes- quisadores dentro da academia, com a criaçãode programas de computador, entre outros recursos de pesquisa e verificação, como por orgãos governamentais (como, por exemplo o site do governo do Estado de São Paulo: https://www.saopaulo.sp.gov.br/coronavirus/sem- -fake-news/), e também por agências de notícias (como podemos encontrar, por exemplo, no site de notícias “g1”: https://g1.globo.com/fato-ou-fake/). Esses mecanismos representam ótimos exemplos da importância da fundamentação científica e da verificação de fatos para a construção de um corpo de crenças não somente sólido, mas também salutar para a popu- lação humana, garantido, além disso a soberania política dos cidadãos. https://www.saopaulo.sp.gov.br/coronavirus/sem-fake-news/ https://www.saopaulo.sp.gov.br/coronavirus/sem-fake-news/ https://g1.globo.com/fato-ou-fake/ 8 Iniciação à pesquisa científica U2 Sonhando com uma viagem inesquecível: Ciência e conhecimento CONCLUSÃO Depois de refletirem mais um pouco, Júlia, João e Pedro concluíram que era cedo demais para decidir. A melhor opção seria obter mais conhecimento sobre os países cogitados e outros possíveis destinos, compartilhar essas informações obtidas uns com os outros, discutir os pós e os contras de cada opção, e, somente depois disso, chegar a um veredito. Nesta unidade, vimos que a ciência e a evolução do conhecimento humano sempre estiveram conectadas. Verificamos também que um dos principais aspectos do conhe- cimento científico diz respeito à justificação de nossas crenças e à possibilidade de revisão destas, através de metodologias específicas. Além disso, exploramos breve- mente os diversos tipos de conhecimento e suas relações. U2 9Iniciação à pesquisa científica Sonhando com uma viagem inesquecível: Ciência e conhecimento REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: GETTIER, E. É a Crença Verdadeira Justificada Conhecimento? In Crítica, 2005. Tradução de Célia Tei- xeira. Disponível em: http://www.criticanarede.com/html/epi_gettier.html. Acesso em: 19 fev. 2022. O’BRIEN, D. Introdução à Teoria do Conhecimento. Tradução de Pedro Serras Pereira. Lisboa: Gradiva, Junho de 2013. PLATÃO. Teeteto – ou sobre o conhecimento. Belém: Universidade Federal do Pará, 1988. http://www.criticanarede.com/html/epi_gettier.html EDUCANDO PARA A PAZ
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