Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Capítulo II O argumento Para compreender a argumentação deve-se abandonar o conceito binário de certo/errado. No Direito concorrem te ses diferentes, e não necessariamente existe uma verdadeira e outra falsa. O que existe é, no momento da decisão, uma tese mais convincente que as demais. Vimos que a argumentação é necessária àquele que tra balha com o Direito, pois o conhecimento jurídico desen volve-se por meio de argumentos. Mas o que são os argumentos? Sem nenhuma dúvida, definir o argumento de um modo bastante simples terá para nós efeito prático. Acompanhemos, então, essa definição. Os três tipos de discurso Argumentar é a arte de procurar, em situação comuni cativa, os meios de persuasão disponíveis. A argumentação processa-se por meio do discurso, ou seja, por palavras que se encadeiam, formando um todo coeso e cheio de sentido, que produz um efeito racional no ouvinte. Quanto mais coeso e coerente for o discurso, maior será sua capacidade de adesão à mente do ouvinte, por quanto este o absorverá com facilidade, deixando transpa recer menores lacunas. Desde Aristóteles, adota-se uma divisão tripartite en tre os tipos de discurso. O critério de diferenciação entre eles é o auditório a que se dirige, ou seja, quem são os destinatá rios finais das mensagens transmitidas pelo discurso. Para cada tipo de auditório, uma maneira distinta de compor o texto que lhe será levado a conhecimento. ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Pode-se citar Aristóteles: São três os gêneros da retórica, do mesmo modo que três são as categorias de ouvintes dos discursos. Com efeito, um discurso comporta três elementos: a pessoa que fala, o assunto de que se fala e a pessoa a quem se fala. O fim do discurso refere-se a esta última, que eu chamo o ouvinte. O ouvinte é, necessariamente, um espectador ou um juiz. Se exerce a função de juiz, terá de se pronunciar ou sobre o pas sado ou sobre o futuro. Aquele que tem de decidir sobre o futuro é, por exemplo, o membro da assembléia. O que tem de se pronunciar sobre o passado é, por exemplo, o juiz pro priamente dito. Aquele que só tem que se pronunciar sobre a faculdade oratória é o espectador.1 São os tipos de discurso em Aristóteles: a) O discurso deliberativo é aquele cujo auditório é uma assembléia tal qual um senado - atual ou da Grécia antiga. A assembléia é chamada a decidir questões futuras: um projeto, uma lei que deverá ser aplicada, o direcionamento de um ou outro plano para se atin gir uma meta. Enfim, questões políticas, em que se discute o que é útil, conveniente ou adequado. b) O discurso judiciário é aquele que se dirige a um juiz ou a um tribunal. Nele decidem-se questões que di zem respeito ao tempo pretérito. Tudo o que está do cumentado em um processo qualquer são, evidente mente, questões do passado, ainda que possam tra zer como resultado eventos futuros. Tais fatos pas sam por um esclarecimento, para que se comprove sua ocorrência de determinada forma, e depois vão a julgamento, quando são atingidos por um juízo de valor, para que se lhes aplique determinada con seqüência. Para Aristóteles, o discurso judiciário pode ser a acusação ou a defesa. E esse o tipo de discurso que 1. Arte retórica. Capítulo III. O ARGUMENTO 15 aqui mais nos interessa, na medida em que nos pro pomos a tratar da argumentação jurídica, c) O discurso epidíctico ou demonstrativo é aquele co locado a uma platéia para louvar ou censurar deter minada pessoa ou fato, não se interagindo com o ou vinte a ponto de este necessitar tomar posição sobre o que lhe é relatado. Esse é o tipo de discurso, por exemplo, dos comícios políticos atuais, a que com parecem apenas os eleitores daquele a quem cabe a fala principal, diante de uma enorme platéia, enalte cendo seus próprios predicados. Mesmo no discurso demonstrativo, em que não existe contraditório, está presente a arte retórica, de valorizar os pontos favoráveis àquele que fala. Por exemplo, é porque em um comício político um candidato não encontra, em número relevante, opositores a quem discursar que sua fala pode deixar de trilhar um caminho argumentativo que leve à adesão de seus ouvintes às idéias que são momentanea mente proferidas. Veja-se que curioso o trecho de Arte retórica, de Aristó teles, intitulado "Habilidade em louvar o que não merece louvor": Convém igualmente utilizar os traços vizinhos daque les que realmente existem num indivíduo, a fim de os con fundir de algum modo, tendo em mira o elogio ou a censura; por exemplo, do homem cauteloso, dir-se-á que é reservado e calculista; do insensato, que é honrado; daquele que não reage a coisa alguma, que é de caráter fácil [...]. Importa igualmente ter em conta as pessoas diante das quais se faz o elogio, pois, como diz Sócrates, não custa louvar os atenien ses na presença de atenienses.2 O que têm em comum os três tipos de discurso vistos? A resposta é simples: todos procuram convencer. Ainda no 2. Idem, p. 63. 16 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA discurso demonstrativo, cuja única finalidade é enaltecer ou criticar determinada pessoa ou atitude, procura-se conven cer os ouvintes a respeito daquilo que se fala: que determi nada pessoa é importante, que só tem qualidades etc. Mas a platéia que temos, quando nos voltamos à ativi dade principal do operador do Direito, é o juiz ou tribunal, e, se o Poder Judiciário existe para pacificar contendas, tem- se duas partes debatendo. Quando se argumenta nas ativida des forenses, na acusação ou na defesa, não se tem como fim principal a deliberação ou o elogio, mas sim a vitória em uma controvérsia. E a idéia de controvérsia nos conduz a alguns outros comentários um tanto pertinentes. Como a disputa é con dição do discurso judiciário, este reveste-se de qualidades que lhe são peculiares, que vale compreender. A disputa entre dois certos Participar do discurso judiciário é envolver-se em uma demanda, em uma disputa entre partes. Cada uma das par tes, como bem se sabe, procura obter para si o melhor re sultado: a sentença e o acórdão favorável. Para isso, têm de fazer vingar uma tese, que envolve questões relativas à pro va dos fatos alegados e à incidência de determinado insti tuto ou conseqüência previstos por lei, para que se aplique o Direito ao efetivo caso concreto. Por isso as partes se di- gladiam, afinal, seria desnecessário um juiz se não houves se controvérsia: poderia ser fechado um acordo de vontades, tal qual ocorre na assinatura de um contrato. Mas não é as sim, naturalmente: cada uma das partes, quando se socorre do Poder Judiciário, entende estar com a razão, às vezes lançando sobre a realidade um olhar por demais compro metido com seus próprios interesses. Na justiça criminal assim também ocorre, pois, ainda que um réu venha a re conhecer seu erro pelo cometimento de um delito, sempre entenderá merecer reprimenda mais leve que a que seu per- secutor lhe deseja. O ARGUMENTO 17 No Direito, quando se fala em disputa havida por meio da argumentação, surge, primariamente, sempre a idéia do justo. Se duas partes debatem, é natural que se entenda que ao menos uma delas não deva estar com a razão, não seja acobertada pelo Direito, pois não é possível que duas idéias contrárias estejam certas. Sob tal ótica, a argumentação ou a retórica seriam um instrumento de fazer com que aquele que não tem razão se valha de artifícios formais para enganar o julgador3. Quem nunca viu um advogado ser chamado de velhaco porque disfarça a verdade através de truques, de falácias em seu discurso? Essa idéia não é rara, mas bastante tragicômica. Em um evidente prejulgamento, entende-se a argumentação como um debate entre um certo e um errado. Ora, se duas teses são conflitantes, uma é correta, outra não, e a disputa da argu mentação somente viria a revelar quem é essa parte que procura fazer uma comprovação impossível. Assim, o de bate argumentativo poderia ser comparado àquelas ima gens dos desenhos animados:a personalidade do protago nista divide-se em dois pólos diferentes: à esquerda, sua imagem travestida de demônio o tenta a uma atitude eviden temente má, enquanto a mesma figura, travestida de anjo, tenta dissuadi-lo, mostrando-lhe o caminho do bem. Fácil sa ber quem tem a razão, qual o melhor caminho, apenas de cidindo-se procurar a forma angelical. Alguns tentam ver as lides processuais com a mesma obviedade que o jocoso discurso entre o anjo e o demônio, afirmando fazer uso do conceito de justiça. A disputa argu- mentativa seria uma lide em que se daria a oportunidade de retirar o véu que encobre a divisão entre o justo e o in justo: aquele que tem o direito e a justiça a seu lado reforça sua razão, mostrando, por meio de argumentos, que seu ra ciocínio é o único correto porque decorre de premissas vá 3. "Fada, non verba" - Fatos, não palavras! Frase latina que indica que a argumentação é dispensável porque visa turbar a realidade. 18 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA lidas. Qualquer comportamento está em acordo ou em de sacordo com o Direito e, portanto, se existe alguma diver gência entre duas partes, somente uma delas pode estar agasalhada pelo direito e/ou pela justiça. Veja-se como Kelsen, cuja lição sempre constitui uma aula de raciocínio, defende, ao analisar a justiça no concei to de Aristóteles, a idéia de que dos fatos somente se pode fazer dois juízos: adequados ou inadequados ao ordena mento jurídico: A afirmação de que uma virtude é o meio entre um ví cio de deficiência e um vício de excesso, com o entre algo que é pouco e algo que é muito, implica a idéia de que a re lação entre virtude e vício é uma relação de graus. Mas, com o a virtude consiste na conformidade, e o vício na não- conformidade de uma conduta a uma norma moral, a rela ção entre a virtude e o vício não pode ser uma relação de graus diferentes. Pois, no que diz respeito à conformidade ou à não-conform idade, não há graus possíveis. Uma con duta não pode ser muito ou pouco, só pode ser conform e ou não conform e uma norma (moral ou jurídica); só pode con tradizer ou não contradizer uma norma. Se pressupomos a norma: os hom ens não devem mentir, ou - expresso positi vamente - os hom ens devem dizer a verdade, uma afirm a ção definida feita por um hom em é verdade ou não é verda de, é mentira ou não é mentira. Se for verdade, a conduta do hom em estará em conformidade com a norma; se for uma mentira, a conduta do hom em estará em contradição com a norm a.1 O ordenamento jurídico prescreve modelos de condu tas e sanções àquelas que aparecem em desacordo com a norma. Dele surgem problemas intrínsecos, como a hierar quia entre as normas, as antinomias e as lacunas. Daí a ne cessidade do discurso judiciário, que pode ser caracterizado como aquele que procura comprovar a conformidade ou o 4. O que é justiça?, p. 118. O ARGUMENTO 19 afastamento das condutas humanas às prescrições jurídi cas. Mas isso não importa em dizer que, sempre que duas partes se encontram em litígio, uma necessariamente de fende uma conduta justa ou legal e a outra está afastada da norma jurídica, ou longe da justiça. Vale a pena ler o texto abaixo, adaptado do filme Um violinista no telhado5, em que o protagonista, Tevie, escuta a discussão entre Perchik e outro aldeão, ambos contrapon do-se em suas opiniões: Perchik - A vida é mais do que conversa. Deviam saber o que acontece com o mundo lá fora. Aldeão - Por que esquentar a cabeça com o mundo? Que o mundo esquente a própria cabeça! Tevie (apontando para o aldeão) - Ele tem razão. O Livro Sagrado diz: "Cuspindo para o alto, cairá em você." Perchik - Não pode fechar os olhos para o que passa no mundo. Tevie (apontando para Perchik) - Ele tem razão. Avram - Um e outro têm razão? Ambos ao mesmo tempo não podem estar certos. Tevie - Você também tem razão. (Risos.) Em obra de qualidade, como o citado filme, é evidente o teor ilustrativo de cada diálogo. O personagem Avram faz, no trecho recortado, observação final que pode ser tra duzida como: se dois personagens discutem e argumentam em teses antagônicas, ambos não podem estar certos! O pensamento do personagem rechaça a idéia de dois discor dantes ao mesmo tempo terem razão, porque aceitá-la se ria assentir com a impossível idéia de que duas verdades opostas coexistam. Quantas dificuldades isso pode trazer! Imaginemos um juiz que prolate uma sentença dizendo que as teses de am bas as partes estão corretas; forçosamente nenhum litígio 5. A fidleron the roof. Warner Brother South Inc., 1971. 20 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA seria resolvido, porque é impossível uma conclusão como essa. Uma das teses deve estar errada. De fato, duas verdades opostas não coexistem. Ou uma conduta é contrária à lei ou não é, pois não se pode ser meio contrário à lei, como já visto. Quer dizer, é até possível que uma conduta seja permitida por uma norma jurídica e proibida por outra, mas aí entraríamos em conflito de nor mas, que não é nosso assunto aqui. O que de fato se tem é que um juiz não pode aceitar duas teses opostas como ver dadeiras, porque nesse caso seu julgamento seria inócuo, motivo pelo qual aponta como verdadeira apenas uma das teses, aquela vencedora em seu julgamento, em sua decisão. Mas se duas verdades opostas não podem coexistir, duas argumentações opostas não significam necessariamen te que alguma delas seja incorreta. Como isso pode acontecer? Argumento e verdade A argumentação não se confunde com a lógica formal, não sendo então equivalente à demonstração analítica, ab soluta, como acontece, por exemplo, em uma equação ma temática. Em uma equação matemática verdadeira, somente se admite um resultado, fixando-se as variáveis. Sua resolução, passada em uma demonstração analítica, quaisquer que se jam os métodos válidos pelos quais ocorra, sempre chegará a um mesmo resultado. Imaginemos dois matemáticos discutindo o resultado de uma equação bastante complexa. Cada um deles utiliza um método de resolução, mas chegam a resultados dife rentes: o matemático A demonstra que a proposição resul ta em 350, enquanto o B demonstra que ela, em vez disso, traz forçosamente o resultado de 700. O que se deduz des se contexto? Evidentemente, um dos matemáticos, A ou B, está erradol O ARGUMENTO 21 O matemático lida com números, e estes representam, antes de tudo, exatidão. Na matemática ou em outras ciên cias exatas não existem opiniões ou posicionamentos, porque os números não o permitem. São linguagem artificial. Mas é um erro tentar aplicar ao Direito essa mesma premissa. Quem argumenta não trabalha com a exatidão numéri ca, por isso se afasta do conceito binário de verdadeiro/falso, sim/não. Quem argumenta trabalha com o aparentemente ver dadeiro, com o talvez seja assim, com aquilo que é provável. E diante dessa carga de probabilidade com a qual se opera que surge a possibilidade de argumentos combinados comporem teses totalmente diversas, sem que se possa dizer que uma de las esteja certa ou errada, mas apenas podendo-se afirmar que uma delas seja mais ou menos convincente. Vejamos um exemplo: Conta-se que, em um plenário do júri, um promotor exibia aos jurados as provas processuais. Procurava, por tanto, na prática de um discurso judiciário, convencer os ju rados a respeito de sua tese. Mostrava a eles, com muita pro priedade - argumentando - , que o laudo elaborado pela po licia técnica concluía que havia 99% de chance de que o projétil encontrado no corpo da vítima fatal houvesse sido disparado pelo revólver de propriedade do réu. Queria di zer o acusador que o réu não poderia, diante daquela prova concreta, negar a autoria do crime. Diante de tal fortíssimo argumento, a probabilidade matemática, o defensor, em tréplica, formulou aos jurados a seguinte pergunta retórica: "Suponhamos que eu tivesse um pequeno pote com cem balinhas de hortelã. E que eu, então, pegasse uma delas, tirasse do papel celofane que a envolvee, dentro dela, injetasse uma dose letal de um ve neno qualquer. Em seguida, que eu embrulhasse novamen te o caramelo letal, colocasse dentro do pote com outras 99 balinhas idênticas e misturasse todas. Teria algum dos jura dos coragem de tirar do pote um caramelo qualquer, desem brulhá-lo e saboreá-lo? Certamente que não. Pois, se nin guém se arrisca à morte ainda que haja 99% de chance de 22 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA apenas se saborear um caramelo de hortelã, ninguém pode condenar o acusado, ainda que haja 99% de chance de ha ver disparado sua arma contra a vítima!" Conta-se que, lançando mão desse argumento, o de fensor conseguiu a absolvição de seu cliente. Analisemos o exemplo. Trata-se de um discurso em que duas partes defendiam posicionamentos contrários, cada qual com seu argumento. A acusação procurava comprovar ser o réu o autor de um crime, enquanto a defesa negava tal autoria. Daí que, quando a acusação trouxe um argumento forte, a defesa procurou enfraquecê-lo perante os jurados. Assim se esquematiza a argumentação: Acusação: argumento forte, com uma prova concreta - 99 chances em 100 de que a arma que efetuara os disparos fosse a do acusado, o que o colocaria indiscutivelmente como autor do crime. Defesa: argumento mais fraco matematicamente: uma chance em 100 de que a arma não fosse a que efetuara os disparos. Todavia, esse 1% não autoriza a certeza, como de monstrou seu exemplo dos caramelos de hortelã. Note-se que, nessa argumentação, cada qual tinha sua parcela de razão, embora ambos procurassem comprovar teses totalmente opostas. Porém, ao mesmo tempo que valorizavam sua razão, ambos os argumentantes tinham sua parcela de falta de ra zão: ao argumento acusatório faltava revelar que realmente existia uma probabilidade de a arma letal não ser a do acu sado, enquanto ao argumento de defesa faltou dizer que, apesar da falta de certeza, as probabilidades apontavam far tamente para a razão da acusação. A boa argumentação consistiu, no caso concreto, em valorizar para o ouvinte, no caso os jurados, aquilo que é meramente provável como se verdadeiro fosse. Tanto não é ver dade que daquela porcentagem pertinente à criminalística se possa inferir ser um acusado real autor de um crime (porque 99% não são 100%), quanto não é de todo verdade a conclusão que a defesa pretende inferir: a de que o teste O ARGUMENTO 23 de balística não pode ser levado em consideração para a constituição da culpa do acusado. Porque o processo não é matemático, mas matéria hu mana, não existe uma conclusão única: acusação e defesa estão, ao mesmo tempo, certas e erradas! O argumento, en tão, antes de ser um modo de comprovação da verdadeb, é ape nas um elemento lingüístico destinado à persuasão. Argumento é elemento lingüístico porque se exterioriza por meio da linguagem. E, por isso, elemento que aparece inserto em um processo comunicativo, que deve ser o mais eficiente possível. Argumento é destinado à persuasão porque procura fa zer com que o leitor creia nas premissas e na conclusão do retor, ou seja, daquele que argumenta. Os objetivos e os meios da argumentação Qual é o objetivo da argumentação? Quem argumenta tem, como objetivo final, fazer com que o destinatário da argumentação creia em alguma coisa, como já dissemos. Tal idéia, no entanto, não é unânime, pois há quem afirme que o objetivo principal da argumentação vai além de levar o leitor a crer em algo, uma vez que o escopo últi mo do retor seria o de fazer com que o destinatário viesse a agir da maneira como se prescreve. E a diferença é relevante. Quem defende que argumentar é primordialmente le var o ouvinte a agir de maneira determinada, no discurso judiciário, tem uma visão, curiosamente, ao mesmo tempo pragmática e utópica. Pragmática - explicamos já - porque é destinada ao resultado de modo bastante imediato. Defen 6. João Mendes Neto (Rui Barbosa e a lógica jurídica, p. 27) comenta que a verdade é a conformidade do intelecto e da coisa (conformitas intelectas et rei). Entendemos que, para a argumentação, a definição é bastante válida, na medida em que o intelecto somente assume a coisa como um significante, uma representação. 24 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA de, com sua parcela de razão, que o objetivo de quem argu menta é uma ação específica do ouvinte: o advogado que arrazoa um recurso, sustentando certa tese, intenciona que o magistrado - seu destinatário - pratique uma ação determi nada por ele: julgar a causa a seu favor. De nada adiantaria - defende essa corrente aparentemente pragmática - o ma gistrado crer nas razões do advogado argumentante, mas não agir deferindo-lhe o pedido. Porém os defensores dessa corrente tropeçam em um elemento da realidade que não se pode ignorar, sejam eles os casos em que fogem do alcance do trabalho argumenta- tivo os motivos que ensejam a ação do ouvinte. Entre a cren ça do ouvinte e sua ação determinada existe um claro em que, infelizmente, a argumentação não pode interferir. Pode-se, com bons argumentos, convencer um fuman te de que muito maior do que o prazer que o cigarro pro porciona seriam os benefícios que imediatamente lhe viriam se deixasse o vício. Ele pode vir, por meio de elementos não raros de persuasão, a crer que é necessário abandonar o ci garro. Mas elementos exteriores à comunicação argumen tativa interferem na realidade - a exemplo da necessidade química de nicotina do fumante - e podem fazer com que ele não aja da maneira como se lhe prescreve. Melhor se o fizesse, mas a argumentação não pode, por si só, garanti- lo. O fumante crê, porém não age. Outro exemplo: um advogado defende excelentemen te uma tese perante o tribunal. Dos três julgadores do caso, relator e revisor não lhe dão razão, fundamentando a tese da parte contrária. O terceiro juiz, entretanto, pensando so bre os argumentos que lhes foram dirigidos, crê que a tese do nosso argumentante, a despeito da opinião de seus co legas, é a correta. Todavia, uma questão exterior à argumen tação se lhe coloca: se agir da maneira como prescreve o ar gumentante, terá de discordar de seus colegas. Isso lhe trará - pensa o magistrado - duas conseqüências desagradáveis, sendo a primeira delas o próprio fato de discordar de uma turma que há tempos é uníssona, e a segunda a necessidade O ARGUMENTO 25 de redigir um voto, imprescindivelmente bem fundamen tado por dissuadir de seus colegas. O comodismo indevido assola o julgador, e ele, contrariamente a seu dever, deixa seu livre convencimento e sua independência funcional de lado, e, embora creia na tese defendida pelo argumentan- te, não age da maneira como lhe fora prescrito. Acaba por acompanhar o voto dos colegas. Assim, para definir a argumentação não se pode apartar muito da realidade, devendo-se reconhecer que existe, en tre o crer e o fazer, um intervalo que a argumentação deveria alcançar, mas nem sempre o consegue, por mais eficiente que seja. Essa idéia tem valor prático, pois todas as vezes que ar gumentamos precisamos ter em mente que o leitor deve ser levado a crer em algo. Fazê-lo crer na tese representa o obje tivo da argumentação. E quais são os meios utilizados para esse objetivo? Para que o leitor creia na tese é necessário que ela lhe seja transmitida de forma que seu raciocínio venha aderir ao percurso transmitido pelo leitor. Nesse ponto, a atividade fo rense (o discurso judiciário) tem algumas peculiaridades. Quando um renomado jogador de futebol aparece na televisão e, em um comercial, afirma utilizar determinada marca de chuteiras, não há dúvida de que ele exerce um efeito de persuasão em seus espectadores. Em um anúncio como esse existe um argumento que não está expresso, mas pode ser resumido em: se esse atleta usa tal chuteira, é porque esse calçado é o melhor de sua categoria; afinal, um jogador desse gabarito só pode usar produtos de pri meira linha. Dúvidas não existem de que a figura daquele atleta re nomado,no comercial, funciona como uma forma de fazer crer na qualidade do produto anunciado. Afigura do joga dor é, então, parte de uma argumentação que dispensa um raciocínio complexo a ser transmitido, mas que ali existe sim ples e implícito, caso contrário o comercial não teria ne nhum efeito prático nas vendas do produto. Pode-se afir 26 ARG UMENTAÇÂO JURÍDICA mar que, no anúncio, foram predominantes a imagem e o conceito do jogador, sendo o raciocínio lógico um elemento imprescindível, porém de menor importância. De qualquer modo, existiam argumentos. Se um indivíduo vai comprar um tênis esportivo, é fá cil (e muito provável) que valorize imagens associadas aos ídolos dos esportes. Mas quando um juiz avalia uma tese ju rídica, pouco (mas não nada)7 lhe importa a figura do argu mentante, mas sim o raciocínio que lhe apresentam as partes, pois é um raciocínio desse tipo, em um percurso determi nado, que deve refratar-se em sua sentença. O fator de persuasão mais válido no discurso judiciário é, então, o raciocínio jurídico, seja na interpretação da lei, seja na análise das provas. Acontece que esse raciocínio não é unidi- recionado, como já explicamos, pois a lógica jurídica não é exata8. Ele depende dos argumentos para ser exteriorizado. E, ao se fazer essa exteriorização do raciocínio, o argu mentante procura valorizar o que lhe é favorável, e isso se faz por meio de técnicas de argumentação. Assim, pode-se dizer que, se o objetivo da argumenta ção é fazer crer em uma afirmação, seus meios são a hipertro fia dos elementos favoráveis, ou seja, a valorização deles. 7. Não deve causar espanto ao iniciante o fato de se afirmar que o julga dor é persuadido, ainda que em menor grau, por elementos externos aos pró prios argumentos que fazem parte do aqui chamado raciocínio jurídico. O que não se deve é retirar deste trabalho o objetivo prático, e para isso é necessário observar a realidade. Por exemplo, é impossível negar que quando se cita, para fundamentar uma peça, a doutrina de um famoso jurista, em parte se está valendo de sua imagem, tal qual faz o esportista de nosso exemplo ao anun ciar a marca de chuteiras. 8. Vale conhecer como o professor Alaôr Caffé Alves expõe esse tema: "Por isso, a Lógica formal jamais poderá orientar a ação dos homens. Por con seqüência, ela não pode ser a lógica dominante nos assuntos humanos, de vendo ser, a teoria da argumentação retórica, a única forma de justificar os va lores e os atos morais dos homens. A argumentação retórica, ao contrário da lógica simbólica ou Matemática - caracterizada por universal e, por isso, im pessoal, neutra e monológica - , supõe sempre o embate (dialético) de opiniões ou o confronto das ideologias e consciências no interior de situações e cir cunstâncias históricas determinadas e particulares" (Lógica, pensamento formal e argumentação, elementos para o discurso jurídico, p. 165). O ARGUMENTO 27 Fazemos hipertrofias com freqüência, e elas não são mo nopólio do discurso jurídico. Desde a propaganda de uma famosa doçaria que diga que seus produtos propiciam sabo rosa energia ou doces momentos, em vez de dizer, obviamen te, que seus alimentos engordam demais, até um elogio a um colega de trabalho, afirmando-se que ele é muito compene trado em vez de lento em suas funções. Evidentemente, a argumentação jurídica desenvolve-se por meios mais com plexos, mas de mesma natureza: a valorização dos aspectos favoráveis à tese defendida. O advogado que defende uma tese em juízo procura um percurso argumentativo eficiente naquilo que é mais persuasivo a seu leitor: o raciocínio jurídico válido. Fortalecer o raciocínio jurídico válido é a tarefa de quem procura chegar a um resultado efetivo. Características da argumentação Visto o que se entende por argumento e os meios da argumentação, cabe sistematizá-los em algumas breves ca racterísticas, que serão retomadas com maior profundidade no decorrer dos capítulos posteriores. A argumentação diferencia-se da mera demonstração porque tem o ouvinte, o interlocutor como alvo. A demons tração é absolutamente impessoal e, exagerando, poderia ser realizada por uma máquina, como já foi aqui afirmado, tal qual o computador resolve qualquer equação matemáti ca. E, assim, axiomática e segue um percurso definido por sistemas formais de raciocínio. Para que possa haver um raciocínio demonstrativo for mal, em sistema fechado, como aponta Olivier Reboul, é ne cessário que coexistam três condições: a) que não haja am bigüidades na significação dos signos - por isso a matemá tica se utiliza de uma linguagem artificial (o número um, o zero, o dois... são meros conceitos); b) o sistema deve ser coerente - não se pode afirmar dentro dele sua proposição e 28 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA negação: assim os sistemas de raciocínio formal progridem de modo único e não encontram contradições e quebra de coerência; c) o sistema deve ser completo - vale dizer que para cada proposição formada em um sistema deve-se ter condições de demonstrar sua verdade ou falsidade. Em ou tras palavras, cada proposição feita no sistema axiomático deve trazer uma resposta única, um resultado inequívoco e não pode haver proposições, se aceitas pelo sistema, que não encontrem resultado seguro. Todas essas características de um sistema formal em muito se afastam de nosso esquema argumentativo. A ar gumentação traz, ainda aproveitando-nos de Reboul, cinco características que devemos compreender, para aprofundá- las em momentos seguintes do nosso estudo. São elas: a) A argumentação dirige-se a um auditório. Sempre argumentamos para alguém, diante de alguém. Os argumentos e a progressão do discurso devem variar de acordo com aquele a quem este é direcionado. Tal caracte rística é objeto de nosso estudo, principalmente quando tratarmos a intertextualida.de. b) Utiliza-se de língua natural. Ponto muito importante. Quando argumentamos, uti- lizamo-nos da mesma linguagem com que nos comuni camos no dia-a-dia. E isso sujeita a construção argumen- tativa a diversas regras, que são as mesmas da comunica ção em geral. Se, por um lado, a língua natural dificulta o trato com os argumentos, já que eles não podem vir dis sociados de uma enunciaçâo, por outro confere-lhes uma série infindável de recursos: o trato com a palavra. Assim, os mesmos recursos da enunciaçâo em geral, da lingua gem como um todo, aplicam-se integralmente à constru ção argumentativa. Tais características serão exploradas neste livro, principalmente quando tratarmos de competên cia lingüística. c) Suas premissas são verossímeis. Essa característica foi matéria do presente capítulo, por que contida na classificação do argumento. Da realidade re O ARGUMENTO 29 duzimos seu contexto, para fixar pontos de partida impres cindíveis ao início da construção do discurso. Esses pontos de partida, como os demais argumentos, não são prova de verdade, mas sim elementos de demonstração de probabili dade. Mais convincente o argumento quanto mais verossí mil for, e nisso também se enquadra a forma, a enunciação. d) A progressão depende do orador. Quando se argumenta se faz constante seleção de ele mentos lingüísticos que podem vir a compor o discurso. Co gitamos o melhor argumento, as melhores palavras, as cita ções mais adequadas, formulam-se introduções, conclusões, prolongam-se ou encurtam-se exemplos... Tudo à livre es colha daquele que constrói seu discurso, quer seja oral, quer escrito. Quem defende que, por exemplo, para a constru ção de um recurso judicial exista um padrão de progressão argumentativa indeclinável está evidentemente ocultando do estudante uma visão realista da atividade suasória, nes se caso no contexto jurídico. Fazer progredir um discurso é atividade do intelecto humano. A progressão da argumentação será abordada nos capí tulos que tratam da coerência e da ordem dos argumentos. e) As conclusões são controvertidas. Ao contrário da lógica formal,a argumentação permite conclusões controvertidas. Veja-se: a lógica formal, como lembra Atienza, move-se no terreno da necessidade. Um raciocínio demonstrativo ou lógico-dedutivo importa neces sariamente que a passagem de uma premissa para a conclu são seja determinada. Mas a argumentação move-se na mera probabilidade. Os argumentos, na retórica, não de monstram provas evidentes, por isso é possível chegar-se a conclusões controvertidas, quando se avança em raciocínios retóricos por trilhas distintas. Nenhuma conclusão é, por fim, absolutamente verdadeira, ainda que o orador a anun cie como verdade ímpar, como único raciocínio aceito. Um orador jamais afirmará que seu discurso é composto de afir mativas em mera probabilidade. Porém, na realidade, qual 30 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA quer raciocínio retórico é meramente razoável. Mas não está aí a beleza da argumentação? Compreendidas essas características do argumento e da argumentação, pode-se passar a uma leitura mais espe cífica de cada uma delas, já com novo alcance prático. Capítulo III Argumentação e fundamentação. Pensando no ouvinte Um discurso passa a ser argumentativo quando seu autor toma consciência de que tem um auditório, um ouvin te específico a ser persuadido. Assim, não expõe seu próprio raciocínio, mas aquele que entende ser mais adequado a seu interlocutor. No capítulo anterior, dissemos que quem argumenta, em discurso judiciário, procura fortalecer um raciocínio jurídi co válido diante de outra argumentação que lhe é contrária. Nossa experiência em sala de aula indica, não raro, al guma relutância do aluno em aceitar a existência de uma grande diferença entre o trabalho argumentativo e o estudo do Direito em si. Por isso preparamos o presente capítulo. O discurso científico O Direito não tem a mesma sistemática exata da mate mática, como já foi dito, mas nem por isso deixa de se cons tituir em uma ciência. A inexistência de fórmulas e diagra mas1 na demonstração do raciocínio jurídico não lhe retira a cientificidade, ao contrário do que muitos pensam. Durante a universidade, embora a maioria dos livros de estudo sejam manuais que se preocupam mais com a didáti ca do que com a originalidade, nos é dada uma visão aprofun dada da ciência do Direito, ou seja, construções de raciocínio 1. Cf. ECO, Umberto. Como se faz uma tese, p. 21: "... Para alguns, a ciên cia se identifica com as ciências naturais ou com a pesquisa em bases quanti tativas: uma pesquisa não é científica se não se conduzir mediante fórmulas e diagramas." 32 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA a respeito do ordenamento jurídico que têm um caráter gené rico, que buscam tangenciar a veridicidade científica2. Ao absorver o Direito por meio de teses desenvolvidas pela veridicidade científica, alguns de seus operadores têm dificuldade em dissociar aquelas teses da aplicação do Direi to aos casos concretos, em que se abandona, já como pre missa, o caráter genérico do discurso científico. Em termos mais simples: alguns operadores do Direi to prendem-se por demais a opiniões prontas, a teses sus tentadas na doutrina pela qual apreenderam a matéria e então deixam - sem consciência disso - de ver a ciência como instrumento importantíssimo do argumentante, pas sando a encará-la como único instrumento de demonstra ção da realidade. Quando o operador do Direito, especialmente na ad vocacia, confunde conhecimento jurídico com convencimento científico, encarando o que aprendera na faculdade como verdade intransponível, está no caminho para se tornar um mau argumentante. Pode até ser um bom jurista por certo tempo, mas um mau argumentante. O bom argumentante deve ter um brilhante conheci mento jurídico, conceitos bem firmados, mas não se pode prender, na argumentação, a seu convencimento puramen te pessoal. Deve sempre ter em conta que, em seu trabalho de argumentação, não procura a veracidade científica, que se opera erga omnes, mas sim o convencimento de uma ou mais pessoas determinadas, a respeito de uma tese que surge de determinada situação fática específica. Por isso, no discurso judiciário se utiliza da ciência do Direito como instrumento para o convencimento de um ter ceiro, o julgador. E o trabalho que leva à persuasão desse terceiro não é trabalho idêntico ao que existe na demons tração de uma tese científica, tal como em uma dissertação acadêmica de mestrado, doutorado ou livre-docência. 2. Cf. MARCHI, Eduardo C. Silveira. Guia de metodologia jurídica, p. 36. ARGUMENTAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO 33 Pode parecer muito estranha uma colocação como essa, mas estas lições - reafirmo - perderiam seu fundamento prá tico caso se evitassem tais observações. E em sala de aula muitas vezes vimos estudantes que, nesta matéria, relutam em aceitar apresentar argumentos que se afastem de seu convencimento pessoal, como transpondo a si próprios no lugar do destinatário da argumentação. Isso importa, fatal mente, em pouca persuasão, como veremos a seguir. Um corte de casimira O texto que segue é um conto de Moacyr Scliar3. São desnecessárias quaisquer considerações a respeito de sua qualidade, pois brevemente o leitor o apreciará. Este texto nos permitirá depreender uma distinção importante na atividade argumentativa. Para chegarmos a ela, é interes sante que façamos, em sua leitura, o exercício tal qual ora proposto. O leitor perceberá que se trata de uma carta deixada pelo marido a sua esposa, e que o conteúdo dessa carta é eminen temente argumentativo. Por um esforço de raciocínio, o enun- ciador procura convencer a esposa a respeito de algo. Leia o texto abaixo e, ainda sem grandes preocupações com a técnica, procure perceber quais são os principais argu mentos utilizados pelo autor da carta. Estou lhe escrevendo, Matilda, para lhe transmitir aqui lo que a contrariedade (para não falar em indignação) me impediu de dizer de viva voz. Note, é a primeira vez que isso acontece em nossos trinta e cinco anos de casados, mas é a primeira vez que pode também ser a última. Não é ameaça. É constatação. Estou profundamente magoado com sua ati tude e não sei se me recuperarei. Tudo por causa de sua teimosia. Você insiste, contra to das as minhas ponderações, em dar a seu pai um corte de 3. "O s usos da casemira inglesa". In: Contos reunidos, p. 15-7. ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA casemira inglesa como presente de aniversário. Eu já sei o que você vai me dizer: é seu pai, você gosta dele, quer hom e nageá-lo. M as com casemira, Matilda. Com casemira ingle sa, Matilda. Q ue horror, Matilda. Raciocinemos, Matilda. Casemira inglesa, você sabe o que é isso? A lã dos melhores ovinos, Matilda. A tecnologia de um país que, afinal, deu ao mundo a Revolução Indus trial. O trabalho de competentes operários. E sobretudo tra dição, a qualidade. Esse é o tecido que está em questão, M a tilda. A casemira inglesa. Há muitos aspectos nesse problema, mas quero deixar de lado tudo o que me parece menos significativo, inclusive o preço. Sim, o preço. Você sabe que sou homem de poucas posses e que um corte de tecido importado custaria bastan te, mas vamos admitir que isso seja secundário, vamos omitir esse detalhe; fixemo-nos na própria casemira inglesa, M atil da. E da casemira eliminemos aquilo que possa entre nós gerar controvérsia - por exemplo, a conveniência de dar a um hom em que sempre se vestiu mal, que não dá a mínima importância já não digo à elegância, mas à limpeza, algo tão sofisticado, tão distinto. Não, não vamos discutir isso, não vamos discutir a sofisticação da casemira. Vamos abordar ou tro tópico. A duração. Sabe quanto tempo pode durar a casemira inglesa, Matilda? Muito tempo, Matilda. Muito tempo. D isse-m e o ven dedor - porque tomei o cuidado de colher essas inform a ções, não estou polemizando pelo prazer de polemizar, es tou querendo que você raciocine comigo - que um paletó de casemira inglesa, bem cuidado e ao abrigo de traças (e como há traças na casade seu pai, Matilda, como há traças lá), pode durar anos, décadas, séculos, talvez (ele falou em rou pas guardadas desde o século XVII, mas talvez haja exagero nisso, vendedor é vendedor, mesmo que esteja vendendo um fino artigo, com o é o caso). Isso, a casemira inglesa. Agora, seu pai. Ele está fazendo noventa anos. E uma idade respeitá vel, e não são muitos os que chegam lá, mas - quanto tempo ele pode ainda viver? Sim, todos nós desejamos que ele che ARGUMENTAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO 35 gue ao centenário, mas, francamente, Matilda, você acredita nisso? A gente fala em cem anos porque é um número re dondo, é um espaço de tempo expressivo, um século, mas quantos centenários há no mundo? E as chances de seu pai ser um deles... Aquela tosse, a falta de ar... Não sei, não. Mas mesmo que ele viva dez anos, mesmo que ele viva vinte anos, a casemira sem dúvida durará mais. Aí, depois que o sepultarmos, depois que voltarmos do cemitério, depois que recebermos os pêsames dos parentes, e dos amigos, e dos conhecidos, teremos de decidir o que fazer com as coisas dele, que são poucas e sem valor - à exceção de um casaco confeccionado com o corte de casemira que você pretende lhe dar. Você, em lágrimas, dirá que não quer discutir o as sunto, mas eu terei de insistir, até para o seu bem, Matilda; os mortos estão mortos, os vivos precisam continuar a viver, eu direi. Algumas hipóteses serão levantadas. Vender? Você dirá que não; seu pai, o velho fazendeiro, verdade que arrui nado, despreza coisas como comprar e vender, ele acha que ser lojista, como eu, é a suprema degradação. Dar? A quem? A um pobre? Mas não, ele sempre detestou pobres, Matilda, você lembra a frase característica de seu pai: tem de matar esses vagabundos. Essas hipóteses todas estando esgotadas, você se voltará para mim e me pedirá, naquela sua voz súpli ce: fique com o casaco. E eu terei de dizer que não, Matilda. Em primeiro lugar, eu sou muito maior que seu pai, coisa que ele sempre fazia questão de me lembrar, chamando-me de gordo porco, você lembra? Você achava graça, dizia que era brincadeira, mas eu sabia que no fundo ele estava falan do sério. Gordo porco, Matilda. Ouvi isso durante trinta e dois anos. Mas mesmo que o casaco me servisse, Matilda, eu não o usaria. Você sabe que isso seria a capitulação final, M a tilda. Você sabe que com isso eu estaria renunciando para sempre à minha dignidade. O casaco ficaria pendurado em nosso roupeiro, M atil da. Ficaria pendurado muito tempo lá. A não ser, Matilda, que seu pai dure mais tempo que o casaco. Não apenas isso é impossível, como rem ete a uma outra interrogação: e o se guro de vida dele, Matilda? E as jóias de sua mãe, que ele guarda debaixo do colchão? Quanto tempo ainda terei de esperar? 36 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Estou partindo, Matilda. Deixo o meu endereço. Como você vê, estou indo para longe, para uma pequena praia da Bahia. Trópico, Matilda. Lá ninguém usa casemira. O texto é argumentativo porque se utiliza de vários ele mentos lingüísticos que procuram fazer com que a leitora ideal - a esposa do enunciante - seja conduzida a determi nada conclusão. Quem leu o texto procurando seus princi pais raciocínios de persuasão percebeu-os muitos, pois apa recem de modo exagerado, hiperbólico, como costuma acon tecer nos textos que buscam o humor. Mas esse conto nos ensina mais, e procuraremos dele aproveitar suas nuanças que se identificam em uma boa argumentação. Releia o texto e responda a estas questões: 1. Qual é a tese principal da qual o autor da carta pro cura convencer a esposa? 2. Qual é sua estrutura argumentativa principal, ou: em que se concentram seus argumentos? 3. Quais são os motivos ou fundamentos que levam o autor a escrever a carta? A resposta a essas perguntas nos estabelecerá concei tos relevantes. Portanto, leitor, alertamos mais uma vez: pense nas respostas antes de seguirmos. Perceba que a tese principal apresentada é aquela de que se pretende convencer o leitor. A primeira vista, pode parecer que ela estaria representada no tema de não compen sar ofertar ao sogro do autor da carta um corte de casimira. Mas esse é apenas um grande argumento do texto, não a tese. Esta aparece na primeira frase do segundo parágrafo: Tudo por causa de sua teimosia. O que o autor procura com provar, como objetivo final da argumentação, não é o fato de caber ou não o presente da casimira, mas sim o fato de o abalo no casamento dever-se ao comportamento da esposa, qualificado como teimoso. A tese principal é aquela idéia para a qual todos os ar gumentos convergem. Os argumentos passam pela imper tinência do corte de casimira pretendido pela esposa, e nis ARGUMENTAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO 37 so de fato se concentram, mas todo o conjunto converge para uma idéia que vai além: colocar a mulher como a única res ponsável pelo fim do casamento (conseqüência que somen te é apresentada na última parte do texto). Esse princípio nos é essencial: o objetivo final da argu mentação nem sempre representa a idéia principal mais aparente. Às vezes o percurso argumentativo tracejado pelo argumen tante faz a tese depender muito da aceitação de um argumento principal, mas ele por si só não constitui a tese4. A tese é aquela que representa objetivo último do ar gumentante ao ouvinte. Conhecedores de sua tese, e percebendo que ela ultra passa o mero cerne da argumentação, vamos à segunda questão: quais foram os principais argumentos tracejados pelo autor? Essa questão é mais simples, dada a diferenciação an terior. Como elementos lingüísticos destinados à persuasão (no caso, a persuasão da esposa do autor da carta), temos vários raciocínios ali enunciados. A argumentação do autor é vasta, e vai de argumentos mais longos, com estruturas maiores, a outros menores, idéias curtas, mas também lançadas ao convencimento. O maior deles é a pertinência da casimira, pois, como visto, todo esse tema é apenas um vasto lugar argumentati vo de todo o texto, apartado da tese. Dentro dele, um per curso definido, permeado de diversas outras idéias com teor suasório indiscutível, podendo ser resumido em: a) a casi mira e seus aspectos: o preço, a conveniência, a qualidade e 4. Em sala de aula, motivamos aos alunos a notar como não é rara a técnica retórica de fazer com que o ouvinte se concentre tanto em um argu mento que o interprete como em uma verdadeira tese. Isso ocorreu no exem plo que citamos no capítulo anterior, a respeito do confronto entre os 99% do laudo de balística e a alegoria do veneno oculto na bala de hortelã. O advo gado daquele exemplo, porque sabia que tinha um argumento muito forte, diante da evidência transforma aos jurados a desconstituição da certeza do lau do em uma lese. Entretanto, sua tese era a negativa de autoria de que o laudo de balística - conclusivo ou não - era apenas um argumento. Essa técnica se denomina rcducionismo. 38 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA a duração; b) o pai, sua idade, sua morte em intervalo de tempo curto, quanto mais se comparado à duração do teci do, e os destinos da casimira depois desse evento; c) a casi mira e a hipótese de o pai durar mais tempo que o casaco. E enfim a conclusão, a fuga do autor-argumentante para um lugar onde não estará sujeito a todos esses problemas, por que nos trópicos "ninguém usa casemira". O leitor pode ter percebido muitos outros argumentos, dentro de nossa definição ampla. A título de exemplo, usa- se um forte argumento ao se dizer "Raciocinemos, Matilda". Aquilo que parece simplesmente um modo de preencher o texto e chamar a atenção do leitor é muito mais: transmite à destinatária do texto que lhe vai ser demonstrada uma conclusão fruto do melhor raciocínio - contrario sensu indu zindo a que o pedido inicial (a casimira) seria desprovido de razão, de raciocínio. Outros argumentos há, em um texto dessa qualidade, mas aqui o principal é procurar responder à terceira ques tão formulada para a leitura:quais são os motivos ou funda mentos que levam o autor a escrever a carta? Quem procurou responder às três perguntas formula das percebeu a evidente distinção entre argumento e motivos ou fundamentos que a induzem. Pois essa distinção - a seguir explicada - parece-nos o elemento mais característico do texto de Scliar, que funda menta seu forte elemento humorístico. E que o leitor man tém, na leitura do texto, um estranhamento constante: o fato de um marido buscar tantos recursos de raciocínios di versos a respeito de um corte de casimira, dando-se ao tra balho de lançá-los em uma longa epístola à esposa. Esse estranhamento, porque a atitude foge à normalidade, traz uma expectativa no leitor: não haveria um interesse do ma rido que transcendesse à compra da casimira? Com essa expectativa - que é característica da narrati va literária - o leitor aos poucos descobre outros detalhes da vida do casal que o lançam em uma contradição cômica: que os motivos que o levam a escrever são muito diferentes dos argumentos que o marido elenca. ARGUMENTAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO 39 Em resumo: o que motiva o autor a escrever é o fato de querer terminar seu casamento e atribuir à esposa a culpa por tal ato; e os fundamentos do fim do casamento são: a) o des prezo do velho para com seu genro; b) as ofensas freqüen tes em decorrência desse desprezo, que se prolongam por 32 anos; c) a ruína econômica atual do velho; e d) a desis tência por aguardar o prêmio do seguro e as jóias como herança. Quando o autor enuncia esses fatos, o leitor percebe os verdadeiros fundamentos de sua argumentação: o casa mento termina devido a um martírio longo, composto por esses quatro elementos, além de outros que não vieram enunciados. Os fundamentos são, então, os elementos racionais que sustentam a conclusão daquele que enuncia o texto, daquele que, aqui, argumenta. Entretanto, no texto de Scliar, fica evidente que esses fundamentos não poderiam ser expostos à leitora, a esposa, pois nela não surtiriam nenhum efeito persuasivo. Em primeiro lu gar, porque a maioria dos fundamentos dirige-se diretamen te a defeitos do pai da leitora, os quais ela relutaria em aceitar por uma condição pessoal. Ninguém com bom relaciona mento familiar aceita objetivamente críticas ao próprio pai. Consciente disso, o autor da carta livra-se de pensar em como ele, autor, é convencido a abandonar o laço matrimo nial e passa a colher idéias que venham a surtir maior efeito na leitora. E assim aproveita a casimira, que não é fundamen to para o fim do casamento, mas que funcionou como argu mento, pois surtirá efeito no raciocínio da esposa, a quem direciona o texto. Ao escrever à esposa, o autor abandona a fundamenta ção em sentido estrito para dedicar-se à argumentação. Isso ocorre no exato momento em que ele pensa não em si, não em justificar como funciona seu raciocínio ou em explicar suas conclusões, mas sim no que convence o terceiro. E esse raciocínio, no texto, implicou também a elabo ração de uma outra tese. No momento em que o argumen- 40 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA tante, o marido, percebeu que os motivos que os convence ram eram diferentes daqueles que efetivamente conven ceriam sua esposa, optou por este último percurso. E assim foi persuasivo. O argumentante adaptou seu discurso às condições pessoais do ouvinte. Tal conclusão nos é muito importante. Argumentação x fundamentação: a distinção relativa Toda decisão judicial deve ser motivada ou funda mentada5. A fundamentação da sentença é elemento essencial não só para o processo, mas para toda a sociedade, que diante dos fundamentos da decisão tem condições de saber se o Ju diciário age com imparcialidade e se suas decisões são fru to da lei ou do arbítrio do prol a to r . A Constituição garante a fundamentação do julgado, bem como os códigos de procedimento. A motivação compreende "a exposição atinente às pro vas produzidas e aos respectivos critérios de avaliação"7. Quando o juiz faz sua fundamentação, elenca elemen tos que devem convencer as partes de que seu raciocínio é o mais correto, é o decorrente da lei, e de que seu livre con vencimento não provém da arbitrariedade, mas sim de uma boa avaliação de todas as provas e de todo o ordenamento legal. 5. Utilizam-se como sinônimos os termos fundamentação e motivação, pois aparentemente a doutrina nacional não lhe faz distinção relevante. A lei parece também utilizar como sinônimo, ao tratar e ao se referir à fundam enta ção na lei maior e no ordenamento processual civil (art. 93, IX, da CF 88, e arts. 165 e 458, II, do CPC) e motivação na lei processual penal (art. 381, III). Impor tante será aqui a distinção entre esses termos e a argumentação, que tem efei tos práticos evidentes. 6. Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini et alli. As nulidades no processo penal, p. 209. 7. CHIAVARRIO, Mario. In: FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. ARGUMENTAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO 41 Ao fundamentar, o julgador põe à prova seu método de raciocínio. Deve sempre motivar exaustivamente sua deci são, pois as partes merecem conhecer tanto o método de ra ciocínio do juiz quanto, e principalmente, a prova de que fo ram avaliados todos os elementos levados ao processo, in cluindo-se nesses elementos os argumentos argüidos pelas partes, um a um8. Assim, a fundamentação deve ser exaustiva, deve reve lar um percurso lógico bem detalhado, completo, que possa ser criticado em seu raciocínio pelos interessados em resul tado diverso daquele proferido na decisão. Quando fundamenta uma decisão, o juiz está preocu pado em exteriorizar seu próprio raciocínio, em explicar - detalhadamente - os motivos pelos quais ele foi levado a de terminada conclusão, seja na avaliação das provas, seja na avaliação das teses a ele expostas. Sua conclusão só pode ser sujeita a críticas fundamentadas na medida em que o decisor exponha de modo claro os meios pelos quais fo i le vado a determinada conclusão. Ao menos assim deveria ser. Expondo os motivos de sua decisão, o juiz põe à prova seu raciocínio enunciado. A avaliação das provas, a solidez das premissas e o percurso até a chegada a suas conclusões, as idéias invocadas como fundamentos, as estruturas lógi cas, os elementos que podem vir subentendidos, os trechos do ordenamento jurídico invocados e aplicados ao caso em julgamento, os argumentos a ele lançados que fizera acatar e, principalmente, os elementos que fazem com que tenha deixado de aceitar a tese contrária ao direcionamento de sua decisão. Em resumo, ao que nos interessa neste tópico, quem fundamenta explica, em tese, sua própria decisão\ Veremos, adiante, que, em posicionamento mais aprofundado, pode- 8. Vide Capítulo XIV. 9. Essa decisão, claro, é objetiva, conforme a alegação das partes. Afinal, o juiz de Direito, ao contrário do jurado, julga secundum allegata etprobata par- tium, e não secundum propriam suam conscientiam. 42 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA se acreditar que mesmo o julgador, em lugar de construir fundamentação, acaba convencendo-se por fatores muito diversos daqueles que elenca, e isso aproxima seu trabalho da argumentação propriamente dita, na medida em que tam bém pretende convencer as partes. Mas para esse comentá rio crítico remetemos a leitura posterior10. Quando lemos julgados ou participamos do estudo ou da produção científica do Direito, acostumamo-nos ao dis curso da fundamentação, ou seja, ao discurso em que as partes explicam suas próprias conclusões. É bem verdade que esse discurso nunca aparece puro11, e não é raro que mes mo em uma tese dotada da mais objetiva cientificidade ou em uma decisão das mais fundamentadas e imparciais en- contrem-se elementos lingüísticos que busquem mais a per suasão que a demonstração, mas essa não é a regra. Porém aquele que argumenta, que defende um ponto de vista buscando primordialmente a adesão do leitor ou ou vinte não o pode fazer como se construísse uma funda mentação.O argumentante não apenas explica seu próprio motivo de convencimento, mas pode até afastar-se dele quando se preocupa em conseguir a adesão daquele a quem sua argu mentação se dirige. Para o advogado essa idéia é essencial: deve sempre ter em mente que os raciocínios que o levam a determinado con vencimento não coincidem necessariamente com aqueles que le vam o ouvinte ou leitor a aderir a esse mesmo convencimento12. Argumentar, em sentido estrito, é algo mais que a cons trução do bom raciocínio jurídico, para aqueles que operam o Direito. Argumentar significa partir do bom raciocínio ju 10. Vide Capítulo XTV. 11. Por isso todo discurso judiciário é também argumentativo. 12. Exemplo simples: um advogado pode estar convencido de que de terminado cliente não é autor do crime porque o conhece há anos, sendo tes temunha de sua integridade. Este é um motivo próprio e predominante, mas não lhe serve de argumento, pois não é o que convencerá o magistrado. Terá de conseguir provas nos autos, embora independa delas, em raciocínio pró prio, para crer na inocência. ARGUMENTAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO 43 rídico e preocupar-se com o conteúdo lingüístico necessário para que o leitor o aceite como verdadeiro (ou, ao menos, o aceite como o melhor dos raciocínios apresentados, no caso da dialética processual). Quando um advogado, argumentando, cita trecho de um julgado de um tribunal qualquer, está utilizando-se de um argumento por analogia. Apoiando-se na eqüidade, pede que para em fatos análogos o Judiciário aplique resultados idênticos. Ao lançar mão desse argumento - porque é argu mento, e não fundamento - , não está dizendo que ele, advo gado, tenha se convencido de sua tese por força do texto que recorta, mas sim que entende que aquele julgado funciona como fator de persuasão para quem pretende atingir. O advogado, porque defende um interesse, não expli ca seu raciocínio, mas sim expõe um raciocínio que leva, por seu percurso, a uma adesão. Essa adesão depende do inter locutor, e por isso atende às peculiaridades, aos gostos e à visão de mundo deste. Nesse contexto, não é exagero dizer que, enquanto a fundamentação tem seu centro de gravidade naquele que fala, a argumentação se concentra naquele a quem se fala. Retomemos exemplos aqui já fornecidos nesse sentido. No texto de Moacyr Scliar, o marido, ao dirigir sua carta à esposa, já tem claros os fundamentos de seu pedido. Mas eles não bastam: daqueles fundamentos, o enunciador tira a questão "que devo fazer para convencer a esposa acerca de les?". Ao fazer essa pergunta, hipotética, o enunciador trans porta o centro de argumentação dele para a destinatária. En tão percebe que os fundamentos que o convencem não são os argumentos eficientes para persuadir a esposa. Esta precisa, como argumento, de um raciocínio bem diverso. O mesmo ocorreu com o exemplo do tribunal do júri, no confronto entre os 99% do laudo e os 100% que autori zariam a certeza. Ao transportar o centro do raciocínio dele para os jurados, o advogado criou um raciocínio persuasi- vo: as balinhas de hortelã. Evidentemente elas não fazem parte dos motivos que o levaram a acreditar que o laudo não era digno de certeza da culpabilidade, mas representaram 44 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA meio eficiente de levar os jurados a aderir a essa conclusão, ain da que por um caminho diverso. Mais que rechaçar o lau do, porque não contava com 100% de certeza, o advogado preocupou-se com um meio eficiente de exteriorizar esse racio cínio e atingir ouvintes específicos, e foi nesse momento que passou, em sentido estrito, a argumentar. Essa é a diferença principal entre fundamentação e ar gumentação que nos autorizou a iniciar o presente capítu lo, afirmando que nem sempre aquele que bem fundamenta faz boa argumentação. Alguns têm prática em exteriorizar seu próprio raciocínio, mas podem não alcançar resulta do prático de persuasão se não estiverem conscientes, a todo momento, de que a argumentação é o modo de atingir o interlocutor. Mas não digamos absurdos: em momento algum se afir ma que aquele que argumenta, no campo jurídico, dispensa a fundamentação. Ele parte dela, adotando teses que contam com sustentabilidade jurídica, para valorizar essas teses por meio de argumentos que devem se concentrar no destina tário. Da mesma forma, a decisão judicial não dispensa ar gumentos, pois o julgador também deve se preocupar em convencer as partes das razões de seu raciocínio, mas é o ra ciocínio próprio, pois ele não busca a adesão das partes em litígio a sua tese. Até porque isso seria impossível: uma das partes (ou ambas!) estará sempre insatisfeita. Conscientizar-se da diferença entre fundamentação e argumentação resulta em mais trabalho ao argumentante, mas também em maior liberdade e em resultados mais efi cientes. E disso que trataremos a seguir. Uma eterna desvantagem: o ponto de vista comprometido E importante uma observação a respeito da atividade de argumentar. Vimos que quem argumenta procura atin gir o leitor, o ouvinte, o destinatário de suas normas, e para isso não basta expor os motivos de seu convencimento. ARGUMENTAÇÃO £ FUNDAMENTAÇÃO 45 Durante algum tempo essa idéia encontrou grande opo sição, como já dissemos no capítulo anterior. Acreditou-se que o bom raciocínio era sempre mais próximo da funda mentação que da argumentação, pois esta levaria à falácia, ao engodo, já que se procuraria a qualquer custo o conven cimento do ouvinte, sem se importar com a verdade. A oposição é válida, mas parte de premissa errada. Nunca se procura, ao argumentar, o convencimento do ou vinte a qualquer custo. A argumentação depara com princí pios éticos válidos e exigíveis, como a proibição de se levar ao engodo ou de se alterar os fatos em sua essência13. O anunciante que divulga qualidades que o produto anuncia do não tem ou o advogado ou promotor que afirma fatos que não existem nos autos abandonam o processo de persua são e caem, agora sim, na falsidade. Com a argumentação pretende-se valorizar um racio cínio para determinado leitor. E o que autoriza o argumen tante a buscar os elementos de persuasão específicos a um interlocutor - aquele a quem se dirigem seus argumentos - é o fato de sua argumentação partir sempre de um ponto de vista comprometido. Expliquemos. Imagine que uma pessoa entre em uma concessionária de automóveis de uma marca específica, interessada em comprar um carro popular. Traz consigo seu filho, de ape nas onze anos de idade. Na concessionária, encontra o vende dor. Como está em dúvida entre o carro que irá comprar, pois o modelo similar - de outra marca - também traz atra tivos, o interessado pergunta ao vendedor, diante do auto móvel ali posto à venda: "Este carro é bom?" O filho, diante da questão levantada pelo pai, olha-o e faz a interpelação: "Que pergunta boba, pai! Que acha que o vendedor vai dizer?" O aparte do filho tem uma razão muito evidente. Em sua imaturidade, fez uma observação pertinente, a de que o 13. Vide Capítulo XIII. 46 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA vendedor, diante daquela questão, somente poderia dar uma resposta: a de que o carro é bom. Por isso a pergunta seria totalmente dispensável, boba mesmo. O que o menino observou ao pai é que a resposta do vendedor era conduzida por um interesse evidente. Tal é a condução de seu interesse que sua resposta é comprometida. Embora pelas várias maneiras diferentes que se possa dar essa resposta, ela somente pode dirigir-se a um sentido úni co: aquele que atende aos interesses pessoais daquele que fala, que no caso é quem quer vender o carro. O vendedor é, portanto, parcial. O que o menino talvez não tenha percebido é que o interesse do vendedor conduz e compromete sua resposta, mas não necessariamente a corrompe. Seu pai, ao perguntar ao vendedor se o veículo que este pretendia vender era bom, não ansiava apenas pela resposta, mas procurava fomentar uma argumentação. Talvez pudesse questionar:por que devo comprar este veículo? Encarregado da venda, o profissional lhe falará sobre as vantagens do carro, e terá de fazê-lo com argumentos, comprovando suas afirmações. Evidentemente, o preten so comprador "filtrará" seus argumentos, ou seja, dará a eles menor crédito a partir do momento em que sabe que não são "mentiras", porém nascem comprometidos com um interesse daquele que fala. Situação diversa ocorreria se esse mesmo comprador encontrasse um amigo de escritório que lhe falasse a res peito das vantagens daquele modelo de automóvel. O dono do automóvel, para convencer o amigo da compra de um modelo idêntico, precisaria de argumentos bem mais exí guos. Por não ter interesse aparente em convencer o amigo a semelhante compra, os fundamentos do dono do veículo parecem dignos de maior crédito. Não é impossível ao vendedor convencer o comprador da aquisição do automóvel, porque talvez este seja mesmo o melhor modelo do mercado e porque os argumentos elen- cados (a economia de combustível, a força do motor, a tec ARGUMENTAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO 47 nologia no painel, o espaço interno...) sejam todos basea dos na mais absoluta correspondência com a verdade. O fato é que o vendedor tem de buscar uma argu mentação mais eficiente para compensar o ponto de vista comprometido que tem. Assim, procura os argumentos que surtirão mais efeito naquele comprador (se tem uma família grande, o espaço interno; se faz um trajeto longo todos os dias, o baixo consumo; se viaja nos fins de semana, o por ta-malas...). Por isso é lícito ao vendedor que busque expor os argu mentos que interessam ao comprador, ainda que não re presentem seus motivos pessoais para a aquisição do veí culo (até porque é possível que, por convicção pessoal, o ven dedor prefira a marca concorrente, mas isso afronta seus interesses naquele momento). O vendedor, porque é parcial, busca, na força dos ar gumentos, a compensação do inevitável desvalor que suas idéias sofrem no ouvinte pelo simples fato de partirem de um ponto de vista comprometido, atrelado a um interesse. No Direito ocorre o mesmo. Para garantir a imparciali dade do juízo, as partes são parciaisu. Aquele que representa uma parte defende um interes se. Esse interesse implica um desvalor a todos os funda mentos lançados. Ao defender seu cliente, o advogado não pode ocultar que seu ponto de vista é comprometido por um sentido argumentativo: aquele que interessa a seu clien te. O mesmo faz o promotor de justiça, na defesa de seu ministério. Esse interesse não faz com que o advogado ou o pro motor, partes enfim, sejam vistos aprioristicamente como dispostos a produzir falácias de raciocínio, em atenção a suas pretensões. Ao contrário, dá-lhes liberdade de buscar 14. Mesas de processo penal, Súmula 5 6 - 0 contraditório, representando o momento dialético do processo, exige a parcialidade das partes, para garan tir a imparcialidade do juiz. Por isso, não configura apenas direito público sub jetivo da parte, mas garantia do legítimo exercício da jurisdição (in: GRINO- VER, Ada Pellegrini et alli. Recursos no processo penal, p. 433). 48 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA nas técnicas argumentativas (e não na pura fundamenta ção) a compensação ao incontestável desvalor a suas idéias que lhe impinge sua parcialidade funcional. Aí fica, então, uma premissa relevantemente válida para nosso estudo: a de que não existe um único caminho corre to na argumentação nem verdade absoluta no Direito. Ra- zoabilidade e força persuasiva: são esses os conceitos prin cipais com que o argumentante deve lidar.
Compartilhar