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NARRATIVAS SAGRADAS: INDÍGENAS E AFRICANAS Ma. Lilian Bairros GUIA DA DISCIPLINA 1 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 1. UMA BREVE INTRODUÇÃO SOBRE NARRATIVA E A CULTURA POPULAR E RELIGIOSA Objetivo Compreender sobre a construção da importância da narrativa na identidade religiosa e cultural. Introdução É na busca constante pelo sentido da vida que está o poder e a capacidade das narrativas e linguagem e que vão moldando diferentes identidades religiosas e socioculturais, tanto no coletivo como no individual. Assim, os conceitos antropológicos combinam-se com as teorias da linguagem para se tornarem documentos metodológicos de importância decisiva para o estudo da narrativa, do discurso e da linguagem e, de modo particular, especificamente sobre a linguagem religiosa, em que o texto pode ser interpretado e compreendidas com diferentes significados e também a partir de diferentes pontos de vista individuais e coletivos, ou seja, portanto, a linguagem auxilia como ferramenta na construção da memória. Para melhor compreensão, segue a citação: Ao nos referirmos aos conceitos de cultura, religião e identidade no plano das relações e interações étnicas, sociais e culturais, estamos considerando essa realidade como uma construção sociocultural e criações de sentido religioso, que acontecem por meio dos discursos, das narrativas e da linguagem, quando ativados pelo exercício da memória dos diferentes grupos sociais, étnicos e religiosos e que irão definindo suas identidades e recriando consciências. Tais conceitos compõem uma das pautas do debate no contexto das narrativas religiosas de tradição judaico cristãs e no horizonte hermenêutico do sagrado na contemporaneidade. Estabelecem-se, assim, grandes desafios para a revisão dos paradigmas conceituais, incluindo o conceito de história, como também as realidades objetivas, empíricas e as certezas dos fatos que limitam a polissemia dos textos e das narrativas. (IZIDORO, 2016, p.166) As narrativas sagradas referem-se a histórias, mitos ou relatos considerados sagrados ou divinamente inspirados por uma determinada tradição religiosa ou espiritual. Estas narrativas são muitas vezes transmitidas oralmente ou através de textos religiosos e 2 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância desempenham um papel central na formação da identidade religiosa, crenças, valores e práticas de uma comunidade de crentes. Os temas propostos são por exemplo, a criação do universo, a natureza dos deuses, a relação entre humanos e seres divinos, o propósito e significado da vida, o bem e o mal, moralidade, salvação, ou seja, são aspectos da cosmovisão religiosa. Essas narrativas são consideradas sagradas, pois são valorizadas como revelação ou ensinamentos espirituais que fornecem orientação moral, sabedoria e conexão com o divino e o sagrado. 1.1. A importância dos contos populares na construção das narrativas socioculturais Uma parte considerável dos “contos populares” parece provir de mitos arcaicos. Como sabemos, os mitos são, em princípio, histórias sagradas que relatam fatos que teriam ocorrido em um tempo ou mundo anterior ao nosso e que, em geral, tentam explicar a origem e a existência das coisas, como por exemplo, a origem do mundo, das pessoas, costumes, leis, animais, plantas, fenômenos naturais, entre outros. Em outras palavras, ao longo da história, as culturas criaram mitos com o objetivo de tornar compreensível e interpretável a existência humana e tudo o que existe. Portanto, a associação entre histórias míticas e contos populares são bastante utilizadas para tentar explicar tais fenômenos supracitados. Vale ressaltar que, o "conto popular" é sinônimo de "conto de fadas", "conto maravilhoso" ou "conto encantador", contos que no nordeste do Brasil também são conhecidos como o nome de "histórias de trancoso". Em linhas gerais, é possível colocar a questão nos seguintes termos: acredita-se que muitas histórias míticas, das mais diversas culturas, teriam passado por um processo de dessacralização, ou seja, com o passar do tempo, deixaram de ser interpretada com fé religiosa. Algumas delas, por serem muito bonitas, continuaram a ser contadas e, de boca em boca, sofrendo naturalmente toda sorte de alterações e influências - "quem conta uma história ganha um ponto" - tornaram-se o que hoje chamamos de contos populares. Esses contos, vale lembrar, são expressões típicas das culturas orais, ou seja, culturas que não dispõem de recursos para fixar a informação. De narrador para narrador, mantidos ao longo dos séculos na plasticidade da memória e da voz, têm percorrido todo o mundo espalhando-se de boca em boca. Nesse processo, 3 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância sofreram todo tipo de modificações: fusões, acréscimos, cortes, substituições e influências. Em tese, numa simplificação, de um mesmo mito europeu, por exemplo, poderiam surgir infinitas e variadas histórias, marcadas pelas diferentes culturas que cruzaram e recriadas por um número incalculável de contadores de histórias. (AZEVEDO, 2007, p.2) Na maioria das vezes, os contos populares, ou contos de encantar, não obedecem a um princípio moral. Em teoria, a moralidade corresponde a um conjunto de normas comportamentais destinadas a regular as relações entre os indivíduos. Ressaltando que os contos populares têm seu caráter eminentemente narrativo. Ou seja, para entender esse ponto, é preciso abordar, ainda que brevemente, um assunto relevante e muito amplo, embora nem sempre levado em conta: a oralidade, suas características e suas implicações. Sabemos que os contos populares, a princípio, nascem nas culturas orais, ou seja, são histórias criadas, recriadas e preservadas ao longo do tempo – sempre com modificações – por meio da narração e da memória, recursos típicos de culturas que não possuem ferramentas de comunicação. fixação como a escrita. Mesmo nas versões escritas contemporâneas, o conto popular mantém-se marcado pela narrativa oral, uma vez que tende a conservar certas características do discurso falado e assume sempre uma voz narradora e um ouvinte. Mais especificamente entende-se a um escritor que, de certa forma, escreve como se estivesse falando e a um leitor que lê como se estivesse ouvindo. A história é, portanto, em princípio, essencialmente dialógica e tem como substrato, paradigma e hipótese básica, na maioria das vezes sempre uma comunicação entre pessoas realizada face a face, enfim, a partir de um eu que se dirige a um outro situado. Porém, há textos marcados sobretudo pela cultura escrita. Isso significa, em suma, que são fixados e preservados pelo texto, o que garante sua permanência e a possibilidade de serem lidos e interpretados em qualquer lugar, época ou contexto histórico. Um escritor sabe que, mesmo depois de morto, sua obra pode ser lida. 4 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Há textos escritos marcados pela cultura escrita e textos escritos marcados pela cultura oral. Estes últimos sempre tentam encontrar a situação do orador diante de uma audiência, a palavra falada face a face. Textos assim, claros, diretos, concisos e dependentes do público, são exatamente os utilizados pelo escritor de histórias populares. Além da busca pela comunicação imediata, linguagem pública e direta, concisão e temas identificáveis e compartilháveis, um de seus muitos recursos é a narratividade. Claro, o termo "narrativa" é amplo e implica a possibilidade de diferentes abordagens. Vale lembrar que a história é um recurso humano vital e fundamental. Pesquisa-se e reescrevesobre nossas experiências diárias, nosso dia de trabalho, acontecimentos, memórias, sonhos, planos e desejos. Contamos a nós mesmos, mesmo de forma solitária, em pensamento, episódios que aconteceram e que, de uma forma ou de outra, não ficaram claros. Para além de um recurso literário, a narrativa pode ser considerada um dos procedimentos através dos quais tornamos a vida e o mundo interpretáveis. Na verdade, a narrativa sempre foi: Uma tendência definidora do ser humano: da escrita rupestre entremeada de sons guturais à elaboração da linguagem narrativa, observamos que o homem conta a história de si mesmo e do mundo. A necessidade dos ancestrais de reunirem-se à volta do fogo para se guarnecerem do frio e das feras está acompanhada do pressentimento de que algo poderia ser revelado na fala do sacerdote. E, na atualidade, não é com outro pressentimento que o homem rodeia o aparelho de televisão, à espera de um sacerdote dessacralizado da mídia: todos aguardamos notícias, revelações, reconstruções de eventos, através das narrativas1. (GOMES; PEREIRA, 1992, p. 112, apud, AZEVEDO, 2007, p.6) Existem textos narrativos e textos não narrativos, textos marcados pela cultura escrita e textos marcados pela cultura oral, ambos são de suma importância no processo de compreensão sociocultural religiosos ou profano. Ao contrário do que se pensa, o fato 1 GOMES, Núbia P.M. & PEREIRA, Edimi lson P. Mundo encaixado – Signi f icação da cul tura popular . Belo Hor izonte, Mazza Edições, 1992. p. 112. 5 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância de serem fictícios e poderem conter elementos de magia e talismã não desmerece os contos populares por sua extraordinária capacidade de lidar com a vida concreta e até de especular sobre ela. Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há em primeiro lugar uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias; está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura, no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disto, sob estas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história; não há, não há em parte alguma, povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos têm suas narrativas. (BARTHES, 1976, p. 19-20). Por meio dos contos existe a oportunidade de entrar em contato com temas relacionados à condição humana vital e concreta, suas buscas, conflitos, paradoxos, transgressões e incertezas, ou seja, os contos populares, independentemente de rótulos como "cultura popular", "folclore" e outros, podem ser considerados uma excelente introdução à literatura porque apresentam imagens e temas recorrentes na trama, na ficção e na poesia de forma acessível e compartilhável com o leitor. As narrativas, em geral, são elementos significativos da memória coletiva e unidades constituintes das redes de conhecimento que fornecem sentidos e servem, dentre outras funções básicas, para acumulação, armazenamento e transmissão de conhecimentos. Elas são mídias portadoras de experiências e se manifestam por meio da tradição oral, que é alimentada pela troca verbal de informações: “fala-se da boca para o ouvido diretamente” (MENGHI, p. 83), ou por meio da tradição escrita, que é alimentada por documentos e que exigem a capacidade de leitura do código utilizado. Normalmente organizamos nossa experiência e nossa memória através da narrativa, é ela que contribui para a estruturação de nossa experiência humana. (FUMAGALLI, THOMÉ, PORTO, 2014, p. 159). 6 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância IZIDORO, José Luiz. Linguagem e narrativas sagradas e as novas abordagens epistemológicas para as identidades religiosas. Disponível: Vol. 14, No. 42, Abr./Jun. 2016 - Dossiê: Narrativas Sagradas e Linguagens Religiosas https://revistas.ufrj.br/index.php/ph/article/view/22039. Acesso 15 Julho 2023. Publicado em Revista Releitura. Publicação da Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de Belo Horizonte. Abril, nº 21, 2007. ISSN 1980-3354. BARTHES, Roland. Análise estrutural da narrativa. 4.ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1976. DIAS VERDI FUMAGALLI, R. de C.; THOMÉ, C. M.; TEIXEIRA PORTO, L. NARRATIVA ORAL E ESCRITA: ENCONTROS E CONTRAPONTOS SOBRE O MITO “A ORIGEM DOS POVOS INDÍGENAS” NA PERSPECTIVA DE ÍNDIOS E BRANCOS. DOI: 10.5212/MuitasVozes.v.3i1.0009. Muitas Vozes, [S. l.], v. 3, n. 1, p. 153– 169, 2014. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/muitasvozes/article/view/6495. Acesso em: 16 jul. 2023. 7 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 2. ENTRE O MITO E A ORALIDADE DOS POVOS INDÍGENAS Objetivo Depreender sobre a importância da oralidade na construção da História dos povos originários. Introdução As relações entre escrita e oralidade são complexas e amplas, por isso foge ao nosso escopo discuti-las aqui em profundidade. Desde as origens até os dias atuais, o homem sempre esteve ao lado de suas histórias, ao redor do fogo, através da escrita rupestre intercalada com sons guturais até a elaboração da linguagem. Contando a sua própria história e a do mundo, o homem usa a história como um recurso vital e fundamental. Sem ela, a sociabilidade e até a consciência de quem somos sãos seria possível. Ao contarmos as nossas histórias, satisfazemos a necessidade que temos de comunicar com os outros em todas as nossas atividades quotidianas, bem como de exteriorizar o nosso mundo interior, os nossos sentimentos e as nossas emoções, e para isso utilizamos a palavra ou a escrita como forma estética, valor artístico. Histórias escritas e orais não são fontes mutuamente exclusivas, mas se complementam, cada uma contendo características e funções específicas, bem como a exigência de exigir instrumentos próprios de interpretação. As fontes orais não são meros acessórios das formas escritas tradicionais, elas são diferentes em sua constituição interna e utilidade inerente, embora muitas fontes escritas sejam baseadas em fontes orais, assim como muitas fontes orais modernas estão saturadas de escrita. Já, as fontes escritas permitem a transmissão de determinados conteúdos, enquanto as fontes orais se caracterizam pela transmissão de conteúdo. 2.1. O mito e a construção da memória através da oralidade Em relação a História dos povos indígenas, ao escrever e publicar seus mitos, os indígenas materializam o universo de sua cultura, de seus costumes, de suas crenças. O 8 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância que está acontecendo hoje não é um simples processo editorial e literário, mas sim a apropriação de uma nova posição na história e na literatura, ou seja, uma posição mais ativa, coletiva e até política. Através da escrita de seus mitos, os povos originários se apresentam como verdadeiros autores de sua História. Pensando nas narrativas orais como transmissão de conteúdo, enfatizamos as narrativas indígenas que há muito tempo são passadas de geração a geração, não apenas como uma prática cotidiana, mas como um ofício comum, do qual muitos mitos se encarregaram de passar e repassar ensinamentos e lições de vida. Para os indígenas, as narrativas oraisconstituem-se mais do que relatos de um fato, em que aparecem personagens enigmáticos, seres que habitam lugares comuns como os rios e as matas, são narrativas da vida, e são também histórias de vida. São tesouros semeados na mente de quem um dia as ouviu e continua ouvindo. São relatos, memória e poesia contados e cantados pelas vozes poéticas de homens e mulheres (FUMAGALLI, THOMÉ, PORTO, 2014, p. 159). Assim, contar o mito é lutar pela sobrevivência do próprio povo. Superior à História, o significado do mito existe no uso repetitivo por grupos sociais que encontraram sua unidade através de ritos que reproduzem, de forma intangível, o evento original. Os mitos são frequentemente caracterizados por histórias de um passado muito distante, ao mesmo tempo que dão sentido à vida no presente, pois explicam como o mundo, os seres e as coisas surgiram. Os mitos estão relacionados com a vida social, rituais, história e modo de vida, a forma de pensar de cada sociedade deve representar diferentes visões da vida, da morte, do mundo, dos seres sencientes, do tempo, do espaço e do espaço. parte da tradição. de um povo, mas essa tradição está sempre mudando. Isso acontece porque toda vez que um mito é contado, ele pode ser recriado por quem o conta. Para melhor compreensão sobre a importância do mito, segue a citação: A representação concreta da concepção do mundo de comunidades humanas. Dessa forma, a tradição mítica de cada povo constitui um esforço no sentido da representação de si próprio, do que é, do que faz, de como vive, e do estabelecimento de toda uma moral, um ritual, uma mentalidade, baseando-se nessa mitologia. A função social do mito, porém, não exclui a sua função poética ou 9 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância recreativa (ALMEIDA; QUEIROZ, 2004, p. 233, apud, FUMAGALLI, THOMÉ, PORTO, 2014, p. 161). As vivências e acontecimentos considerados importantes no momento da narrativa podem influenciar o narrador, alterando a história. Por esta razão, os mitos estão sempre mudando. E é por isso que existem muitas versões de um mesmo mito, ou seja, existem diferentes formas de contar a mesma história. Portanto, o mito é considerado como uma forma de realizar pensamentos e expressar ideias. Alimentando seus mitos, “as sociedades indígenas conseguem apresentar conhecimentos essenciais, reflexões e verdades em uma linguagem já acessível às crianças. Vale ressaltar que no passado, quando não existia a interferência do homem branco, os indígenas tinham os métodos próprios de ensinarem a seus filhos, por exemplo: As comunidades tinham como referência as pessoas mais velhas, ou seja, os filhos acompanhavam desde pequenos seus pais que lhe passavam seus saberes relacionados à cultura. (FUMAGALLI, THOMÉ, PORTO, 2014, p. 161). Assim, a mitologia mantém uma relação de troca com a história, registra acontecimentos, interpreta, ora reduz a novidade do conhecido ou vice-versa, deixando-se arrebatar pelos acontecimentos, reescrevendo, porém, sem deixar de perder a essência. Quando se trata de explicar a origem das coisas, cada grupo indígena tem suas próprias crenças, histórias e formas de contar. Geralmente os anciãos ensinam que a cultura é de suma importância para preservar a identidade indígena. Cabe mencionar que as culturas indígenas em todo o mundo têm suas próprias narrativas sagradas que desempenham um papel importante em suas tradições culturais e cosmovisões. Essas narrativas são transmitidas oralmente de geração em geração e são consideradas sagradas, pois demonstram ensinamentos espirituais, morais e filosóficos específicos para cada comunidade indígena. As narrativas sagradas indígenas variam amplamente de acordo com as diferentes etnias e regiões, mas, defendem alguns temas comuns como por exemplo: histórias sobre a criação do mundo, os ensinamentos dos deuses e espíritos e a importância da harmonia e equilíbrio na relação entre os seres humanos e a natureza. 10 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 2.2. Um pequeno estudo de caso: o mito da criação dos povos pela narrativa indígena. A valorização da família e respeito ao clã ao qual cada indígena pertence pode ser evidenciada na narrativa oral de um indígena da comunidade Guarita, no município de Tenente Portela. A narrativa recolhida refere-se à origem dos povos originários. Segundo a mensagem do informante, os primeiros desta etnia vêm da terra e por isso têm esta cor. Segue o depoimento: Como surgiu o povo... Os povos indígenas Kaingáng né? Quando se fala em povos não é só Kaingáng. Para nós que tamos estudando, entendemos assim dos povos né? Que cada um tem a sua cultura diferente a sua fala diferente. Então pra nós Kaingáng como surgiu o povo indígena foi em dois grupos, né? Um grupo surgiu da terra os dois grupos surgiram da terra. Tupã que é o Pai criador coloco no alto de uma montanha bem alta bem alta né? Dois irmãos então eles ficaram ali descansando né? Tavam esperando as ordens do Tupã até que um dia Tupã disse que eles eram para acordar, né? Daí eles começaram a cavar a montanha porque queriam sair né? Só que cada um foi para um lado o primeiro deles encontrou muita terra então cavou e cavou e conseguiu sai primeiro né? Ele não tinha nenhum machucadinho nada né? Esse primeiro surgiu quando o sol nasceu clareou o dia apareceu o sol né? Então surgiu o primeiro grupo que foi dado o nome de Kamé [...] Por isso hoje nós temos a Organização Social das raças que tem dois. Esse que nasceu esses que saíram da terra quando o sol nasceu, que apareceu o sol, foi dado o nome do grupo Kamé. Então por isso eles são Kamé o outro irmão Kaingáng encontrou só pedra no caminho enquanto ele tava cavando daí se machuco muito e saiu da montanha com muito machucado na mão ele só saiu da terra à noite no amanhecer daí ele surgiu da terra a noite e foi chamado de Kañerú, então eles pegaram a lua, né? Que é a marca da lua. Hoje eu sou Kañerú, então o meu grupo surgiu de noite, né? No amanhecer. Então por isso que hoje tem dois, dois clãs, né? Que se chamam, que são as marcas. E aí são dois grupos, né? E aí o grupo que nasceu que saiu primeiro era o Kamé eles subiram pra os morros pra cima, nos lugares altos. E o grupo de Kañerú vieram pra baixo, para os lugares baixo. Então o que eles disseram como, como eles eram parentes, o grupo que subiu lá encima, o Kamé eram todos parentes, né? Aí não podia se casar com os mesmos de lá, porque eram do mesmo sangue, do mesmo grupo. Então o que eles disseram – não nós temos que nos reunir com os outros! Então desceram para se reunir com os que estavam nos lugares mais baixos então foi aí que surgiu a família indígena. Podemos ver através do depoimento supracitado da nativa, que a origem mitológica do primeiro deste povo saiu da terra, um grupo saiu durante a noite por isso se chamavam 11 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Kañerú, o outro grupo saiu ao amanhecer, quando o sol estava forte, daí seu nome Kamé. É possível perceber que os indígenas ainda acreditam e transmitem a lenda fundadora da nação às crianças e jovens da comunidade. Esses signos são respeitados na comunidade, por isso não é permitido o casamento entre grupos de mesma origem. Porém, cabe ressaltar que esse mito de origem é a versão desse grupo étnico, o que não corresponde a outros mitos fundadores de outros grupos indígenas. O mito fundador está ligado à questão da natureza e a partir dos indígenas se originaram outros povos sobre a terra. A vivência é um reflexo do cotidiano, ou seja, está intrínseco no ser humano e em relação as etnias indígenas, essa experiência é coletiva. É importante lembrar que existeuma incontável diversidade indígena espalhadas pelo mundo e que etnia possui suas próprias tradições e culturas, ou seja, buscam manter viva a sua religião através da arte, de seus costumes e de sua forma própria de cultuar o Sagrado. Cabe ressaltar que as vivências e a história dos povos originários foram silenciados ou negligenciados pela visão eurocêntrica e pela historiografia. Por séculos a história indígena foi contada pelo homem branco e europeu, muitas vivências foram perdidas ao longo do tempo pelo extermínio dos povos originários, história inteiras foram enterradas com essas etnias. Atualmente, com os novos olhares historiográficos algumas dessas experiências estão sendo resgatas por meio da oralidade, tradição e artefatos históricos, um excelente exemplo dessas novas perspectivas e registros são os livros, palestras, discursos do indígena Ailton Krenak. 12 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância IZIDORO, José Luiz. Linguagem e narrativas sagradas e as novas abordagens epistemológicas para as identidades religiosas. Disponível: Vol. 14, No. 42, Abr./Jun. 2016 - Dossiê: Narrativas Sagradas e Linguagens Religiosas https://revistas.ufrj.br/index.php/ph/article/view/22039. Acesso 15 Julho 2023. Publicado em Revista Releitura. Publicação da Biblioteca. Pública Infantil e Juvenil de Belo Horizonte. Abril, nº 21, 2007. ISSN 1980-3354. BARTHES, Roland. Análise estrutural da narrativa. 4.ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1976. DIAS VERDI FUMAGALLI, R. de C.; THOMÉ, C. M.; TEIXEIRA PORTO, L. NARRATIVA ORAL E ESCRITA: ENCONTROS E CONTRAPONTOS SOBRE O MITO “A ORIGEM DOS POVOS INDÍGENAS” NA PERSPECTIVA DE ÍNDIOS E BRANCOS. DOI: 10.5212/MuitasVozes.v.3i1.0009. Muitas Vozes, [S. l.], v. 3, n. 1, p. 153– 169, 2014. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/muitasvozes/article/view/6495. Acesso em: 16 jul. 2023. 13 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 3. A COSMOVISÃO DOS KRENAKS Objetivo Conhecer como os povos originários se reestruturam com a religião e a natureza. Introdução Como já foi explicado anteriormente, os povos indígenas, como outras sociedades, também transmite seus conhecimentos e experiências por meio de mitos. Por se tratar de populações que até recentemente não registravam seus conhecimentos na forma de textos escritos, o principal meio de transmissão do conhecimento era a oralidade. Ressaltando que os mitos transmitem os pensamentos de um povo sobre vários assuntos. Porém, quando não se conhece bem essas pessoas, seus valores e sua cultura, muitos detalhes presentes nas histórias são mal compreendidos. Para decifrar os mitos é preciso estudar, conhecer os modos de viver e pensar das pessoas que os criaram, para isso, é necessário reaprender a ter alteridade. Para melhor compreensão das narrativas e da importância dos povos originários, o um líder indígena brasileiro e escritor Ailton Krenak é um referencial teórico conceituado que tem desempenhado um papel importante na defesa dos direitos indígenas e na promoção de uma visão de mundo mais sustentável e equilibrado, angariando ideais e valores relação à espiritualidade e à conexão com a natureza, sobretudo, enfatiza a necessidade de respeito mútuo entre o ser humano e o meio ambiente. Ailton Alves Lacerda Krenak nasceu na década de 50, na região do Médio Rio Doce (MG), onde fica localizada a Terra Indígena Krenak. Mudou-se aos 17 anos para o Paraná com sua família e lá foi alfabetizado e tornou-se produtor gráfico e jornalista. Nos anos 80, passou a dedicar-se exclusivamente ao movimento indígena. Em 1985 fundou a ONG Núcleo de Cultura Indígena. Dois anos depois, durante a Assembleia Constituinte, protagonizou uma das cenas mais marcantes da redemocratização. Como forma de protesto ao retrocesso na luta pelos direitos indígenas, Krenak pintou sua face com tinta preta do jenipapo durante seu discurso na tribuna. Para o seu povo, o produto é usado em situações de luto. Em 88, participou da fundação da União dos Povos Indígenas. A organização buscava representar os interesses dos povos no cenário nacional. No ano seguinte, participou da Aliança dos Povos da Floresta, movimento que desejava a demarcação de reservadas naturais da Amazônia onde fosse possível a subsistência econômica através do extrativismo. 14 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Em 2005, co-escreveu a proposta da Unesco que criou a Reserva da Biofera da Serra do Espinhaço, que até hoje é membro do comitê gestor. Em 2017, sua trajetória foi tema do documentário “Ailton Krenak e o sonho de pedra”, do diretor Marco Altberg. Passados os anos, sua voz continuou sempre relevante e ecoante. Em 2019 escreveu o livro Ideias para Adiar o fim do mundo e nos anos seguintes as obras O amanhã não está à venda e A vida não é útil. Disponível: https://www.politize.com.br/ailton-krenak/, acesso 15 Julho 2023. Krenak também levanta questões sobre como a sociedade moderna evoluiu a partir dessa espiritualidade intrínseca e destaca a importância de preservar e preservar os saberes ancestrais e os rituais das comunidades indígenas como forma de se reconectar com a espiritualidade da terra. Ele acredita que a espiritualidade é um elemento central na busca por um mundo mais justo, equilibrado e sustentável Vale lembrar que os povos indígenas têm os mesmos mitos e narrativas sagradas diferentes, ou seja, um mito com a mesma temática pode ter várias versões. Sobretudo, porque existem temas comuns nos mitos dos nativos americanos, porque por milhares de anos eles viveram juntos, trocaram, compartilharam experiências e ideias e assim criaram um conjunto de características comuns. O Brasil é um país com grande diversidade de povos indígenas, e cada etnia tem suas próprias histórias sagradas. Essas histórias ensinam a importância da harmonia com a natureza e a preservação das tradições culturais. Cada grupo étnico possui uma rica tradição oral e cultural, com suas próprias histórias, mitos e ensinamentos espirituais que são fundamentais para sua identidade, visão de mundo e práticas tradicionais. É de suma importância respeitar e proteger a diversidade e o significado dessas histórias indígenas sagradas. 3.1. A espiritualidade dos indígenas Krenak “Quando os índios falam que a Terra é nossa mãe, dizem ‘Eles são tão poéticos, que imagem mais bonita’. Isso não é poesia, é a nossa vida. Estamos colados no corpo da Terra. Somos terminal nervoso dela. Quando alguém fura, machuca ou arranha a Terra, desorganiza o nosso mundo” Ailton Krenak 15 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Os Krenak são os últimos Botocudos do Leste, vítimas de constantes massacres decretados como "guerras justas" pelo governo colonial. Hoje, vivem numa área reduzida reconquistada com grandes dificuldades. Os Krenák pertencem ao grupo linguístico Macro- Jê, falando uma língua denominada Borun. Apenas mulheres com mais de quarenta anos são bilíngues, enquanto homens, jovens e crianças de ambos os sexos falam português. Nos últimos anos, esforços foram feitos para que as crianças falassem Borun novamente. Os Krenák ou Borun constituem-se nos últimos Botocudos do Leste, nome atribuído pelos portugueses no final do século XVIII aos grupos que usavam botoques auriculares e labiais. São conhecidos também por Aimorés, nominação dada pelos Tupí, e por Grén ou Krén, sua autodenominação. O nome Krenák é o do líder do grupo que comandou a cisão dos Gutkrák do rio Pancas, no Espírito Santo, no início do século XX. Disponivel: https://www.pib.socioambiental.org/pt/Povo:Krenak,acesso 16 Julho 2023. Até o primeiro contato, início do século XX, eram predominantemente caçadores- coletores seminômades, com uma organização social caracterizada pela constante divisão do grupo, divisão do trabalho por sexo e idade, e um sistema religioso centrado na figura dos Maréts e os espíritos encantados de seus mortos. O Nanitiong, responsável por engravidar mulheres humanas e emitir avisos de morte. Os Maréts, habitantes das esferas superiores, foram os grandes organizadores dos fenômenos da natureza, e entre eles se destacou o Marét- khamaknian, considerado o grande criador. Outras entidades do panteão religioso dos Botocudos eram os espíritos da natureza - os tokón -, responsáveis por escolher seus intermediários na terra, os xamãs, com quem mantinham contato durante os rituais e que, quase sempre, acumulavam o cargo de lideranças políticas. Havia também almas, espíritos que viviam nos corpos dos humanos, adquiridos a partir dos quatro anos de idade, quando foram implantados os primeiros tampões labiais e auriculares. Eles eram invisíveis para os membros da comunidade presentes na cerimônia. Depois de alguns anos, espíritos benevolentes da esfera superior vieram procurá-los em seu espaço, de onde nunca mais voltaram. https://www.pib.socioambiental.org/pt/Povo:Krenak 16 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Das ossadas dos cadáveres emergiram espíritos que viveriam no submundo, onde o sol brilhava durante a noite terrena. Eram grandes espíritos negros e malignos que percorriam a aldeia atacando os vivos, principalmente as mulheres, desenterrando os mortos, chutando o chão, matando os animais por espancamento. Atualmente, as tradições religiosas ainda fazem parte do cotidiano dos povos indígenas do krenak, o que é importante destacar que os povos indígenas, cultuam o sagrado em intersecção com a terra e a natureza. O maior desafio de Ailton Krenak é exatamente esse contraponto, a resiliência em manter a cultura dos povos originários, o que fica muito claro nesse depoimento do ativista: “Vocês não imaginam como é difícil para as nossas lideranças continuarem firmes ensinando isso paras as novas gerações. Diante de tantas dificuldades, ainda são capazes de se conectar com essa memória da tradição, não como uma representação, mas como uma forma verdadeira de estar vivo aqui na terra. Tradição é aquilo que nos liga com a memória iluminada da nossa presença aqui na terra, no meio de nossos outros irmãos, independente de qual povo que seja. Todos nós ganhamos o presente de estar aqui vivendo nessa terra maravilhosa, podendo compartilhar essa riqueza que a terra propicia para a gente e diminuir a nossa carência, a nossa ânsia interior de ter coisas externas, porque tudo que nós precisamos nós já temos. Acredito que a presença dos vários povos indígenas é como uma semente, uma bênção para este lugar que é o Brasil. Muitas famílias continuam insistindo numa maneira de viver com simplicidade, porque enquanto tiver essa memória, nós vamos continuar vivos.” A religião dos povos indígenas pela visão do ativista é totalmente voltada aos cuidados com a natureza, em vários depoimentos e palestras fica claro que a ganância colonial ainda permite que tratem os povos originários com a mesma visão mercantilista. O que intenciona-se é compreender que a religião e a espiritualidade tem uma forte ligação com a terra e com o criador, o que fica mais evidente nesse depoimento: “O nosso vínculo com toda a cosmogonia e a cosmovisão do mundo é quando Deus criou o mundo e o entregou para nós como seus filhos. Quando nossos parentes Guarani cantam para Nhanderú, estão cantando para o criador. Quando os Krenak cantam para Marét-khamaknian eles estão agradecendo ao criador — pela nossa vida, pelo nosso hálito da terra. 17 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Cada povo, na sua tradição, se remete a uma origem que é a criação desse grande movimento que nós vivemos aqui na terra, que é a fonte da nossa própria existência em profunda comunhão com o criador. Temos que ficar com o nosso espírito e coração confiantes que nós estamos pisando na nossa terra, a terra que nos alimenta, nos guarda e protege.” Ailton Krenak e seus descendentes são profundamente religiosos, relata que pratica a religião, porém, não precisa ir à igreja ou à missa. Têm uma relação com o Criador, com a natureza e com os fundamentos da tradição do meu povo. Numa outra entrevista afirma: “Os Krenak acham que nós somos parte da natureza, as árvores são as nossas irmãs, as montanhas pensam e sentem. Isso faz parte de nossa sabedoria, da memória da criação do mundo”. Aqui emerge a mesma experiência de São Francisco de Assis e nos remete à encíclica sobre a ecologia integral do Papa Francisco. Com coragem, contra o profanismo de nossa modernidade, defende o sagrado que está em todas as coisas . A principal luta de Ailton é a preservação das diversas identidades dos indígenas, seja em seus territórios ou nas áreas urbanas. Infelizmente a sociedade ainda comete os mesmos erros de tentar aculturá-los, para “integrá-los na sociedade, do modo que foi chamado “civilizado”, sem perceber a imensa sabedoria que os antepassados carregam e a profunda comunhão que vivenciam com a natureza e o universo. BOFF, Leonardo Este é o cara, o homem-burum: Ailton Krenak.2017. Disponível: https://franciscanos.org.br/vidacrista/este-e-o-cara-o-homem-burum- ailton-krenak/#gsc.tab=0 acesso 16 Julho 2023. DIAS VERDI FUMAGALLI, R. de C.; THOMÉ, C. M.; TEIXEIRA PORTO, L. NARRATIVA ORAL E ESCRITA: ENCONTROS E CONTRAPONTOS SOBRE O MITO “A ORIGEM DOS POVOS INDÍGENAS” NA PERSPECTIVA DE ÍNDIOS E BRANCOS. DOI: 10.5212/MuitasVozes.v.3i1.0009. Muitas Vozes, [S. l.], v. 3, n. 1, p. 153– 169, 2014. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/muitasvozes/article/view/6495. Acesso em: 16 jul. 2023. BOFF, Leonardo Este é o cara, o homem-burum: Ailton Krenak.2017. Disponível: https://franciscanos.org.br/vidacrista/este-e-o-cara-o-homem- burum-ailton-krenak/#gsc.tab=0 acesso 16 Julho 2023. 18 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 4. PAJELANÇA MARAJOARA Objetivo Depreender sobre a história e a importância da pajelança marajoara e o trabalho da pajé Zeneida Lima e do Instituto Caruanas. Introdução A pajelança marajoara é uma prática espiritual tradicional encontrada na região do Arquipélago de Marajó, no estado brasileiro do Pará. É administrado por povos indígenas e comunidades tradicionais que vivem na área, como os Marajoaras e outras etnias. Ou seja, é um sistema de crenças e práticas xamânicas que inclui comunicação com espíritos, busca de cura, orientação espiritual e harmonia com a natureza. Os pajés, que são xamãs ou curandeiros, são figuras centrais nessa prática. Eles têm conhecimento e habilidades espirituais para se conectar com seres espirituais, realizar rituais, cantar, dançar, usar ervas e outros elementos para realizar curas físicas e espirituais. Nas palavras da pajé Zeneida (1992): A Pajelança é um culto à encantaria, que herdamos da cultura indígena em nossa civilização. Ao incorporar a cultura civilizada sofreu influências das outras culturas colonizadoras e africanas. Perdeu sua pureza de origem. Contudo, eu permaneço fiel aos ensinamentos do pajé que me preparou, mestre Mundico de Maroacá. Os rituais de pajelança marajoara são realizados em ocasiões específicas, como cerimônias de cura, ritos de passagem, celebrações da natureza e outros eventos importantes para a comunidade. Durante esses rituais, os xamãs podem entrar em transe tentando se comunicar diretamente com espíritos ou seres espirituais,como animais de poder ou ancestrais. É uma prática cultural e espiritual profundamente enraizada nas tradições das comunidades do Arquipélago do Marajó. Além de preservar a identidade e a espiritualidade dessas comunidades, desempenha importante papel na busca do equilíbrio, da saúde e do bem-estar individual e coletivo. É uma expressão da rica variedade de práticas xamânicas encontradas nas culturas indígenas brasileiras. 19 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 4.1. A história da pajelança marajoara As origens históricas da pajelança marajoara remontam a séculos atrás, quando os povos indígenas habitavam a região do Arquipélago do Marajó. Através de relatos algumas valiosas descrições de práticas xamânicas e rituais são descritos entre os povos indígenas da região. Porém, antes de entender a origens da pajelança marajoara, é primordial conhecer sobre a mitologia amazônica. Segundo o historiador Luiz Antônio Simas, na Amazônia Marajoara, segundo um mito gerador: Conta-se que no início só existia a água. O mundo era isso: uma grande bola inabitada, cujo fundo jamais poderia ser tocado, sob pena de desarmonizar tudo. Um dia, um ser transparente chamado Auí recebeu a incumbência de criar e liderar um povo. Nas profundezas das aguas, só havia barro e lama, até que apareceu o Girador. Ele tinha uma missão: construir sete cidades sobre as aguas para que o povo de Auí vivesse. O Girador fez o seu trabalho, enquanto o povo de Auí saía das águas para habitar as sete cidades. Um dia Auí, extremamente curioso, tocou o fundo das águas do mundo, coisa que era terminantemente proibida. Ao encostar no barro e na lama, Auí gerou a desarmonia e o desiquilíbrio na Terra, imediatamente, o Girador e o povo de Auí foram transformados em Caruanas e foram morar no fundo das águas, no Encante. Por causa da desordem de Auí, as águas subiram e causaram dois acontecimentos: o primeiro foi de libertar de Anhanga, causadora de males diversos à natureza. A segunda foi a subida das partes sólidas do fundo, criando os continentes atuais. Das setes cidades criadas, seis sucumbiram as águas. Elas formam o mundo místico dos Caruanas, o Patu-Anu. De lá, os Caruanas auxiliam os seres humanos e se preparam para encarnar os corpos dos pajés [...]. Das setes cidades criadas pelo Girador, uma continua entre nós: a Ilha de Marajó[...] (SIMAS, 2022, pp.58-59). O mito relatado conta como surgiu a essência da pajelança marajoara, também conhecida de pajelança cabocla. As origens históricas remontam a séculos atrás, quando os povos indígenas habitavam a região do Arquipélago do Marajó. Além das influências amazônicas, é importante destacar as contribuições culturais locais para a formação da pajelança marajoara, com diversos grupos étnicos, além dos Marajoaras, também os Tapajós e Tupinambás, habitaram a região e deixaram sua marca nas práticas espirituais. Essas culturas contribuíram com suas próprias crenças, rituais e conhecimentos espirituais, que se fundiram com o xamanismo amazônico. 20 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância A pajelança marajoara é uma forma de xamanismo encontrada no Arquipélago do Marajó, conhecida por seus rituais de cura em consonância com o mundo espiritual. A pajelança da Ilha do Marajó é um culto herdado dos indígenas que habitavam essa região. Os mistérios deste culto são transmitidos oralmente de um pajé para outro. Somente um pajé pode identificar o dom em outra pessoa, através de sinais enviados pela própria natureza, que são chamados de Encantados ou Caruanas. As Caruanas ou Encantados são as energias vivas das águas. Essas Entidades Encantadas têm missões que só podem ser cumpridas por meio de um Pajé. O Pajé também tem uma missão que é ser a ponte, o elo com o Mundo dos Encantados. É por meio do Pajé no ritual da Pajelança que os Caruanas conhecem as necessidades dos vivos. É por meio dele que os Encantados produzem curas no corpo físico, equilibram os desvios da mente e cuidam do nosso interior, do nosso princípio vital, o espírito. Por fim, após cumprirem as tarefas impostas pela Natureza, os Caruanas descem uma encantada Escadaria de Corais, onde são gradualmente submetidos a uma transformação decrescente. Ao longo dos séculos, a pajelança marajoara evoluiu e se adaptou às transformações sociais e culturais. Mudanças na demografia, contato com missionários e processos de assimilação cultural influenciaram a prática. No entanto, a pajelança marajoara continua sendo uma parte essencial da identidade cultural e espiritual das comunidades do Arquipélago do Marajó, demonstrando sua resiliência e continuidade ao longo do tempo. Os relatos históricos indicam a presença de práticas xamânicas na região amazônica, elementos como a comunicação com os espíritos, o uso de plantas medicinais e os rituais de cura são encontrados tanto na pajelança marajoara quanto em outras tradições xamânicas amazônicas. Essa conexão sugere uma influência do xamanismo amazônico na formação da pajelança marajoara. 4.2. A Pajé Zeneida e o Instituto Caruanas. Zeneida Lima (Soure, 21 de julho de 1934), é uma pajé, ambientalista e escritora brasileira. Criou a organização não governamental Instituição Caruanas do Marajó (ICMCE), com o objetivo de defender o meio ambiente e levar educação às crianças da Ilha de Marajó. Em 2021, recebeu o título de Doutora Honoris Causa pela 21 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Universidade do Estado do Pará. Escreveu os livros, "O Mundo Místico dos Caruanas e a Revolta de Sua Ave", editado em 1992 (com prefácio da escritora Rachel de Queiroz) e relançado em 2002 como "O Mundo Místico dos Caruanas da Ilha do Marajó", onde relatou seu aprendizado místico, sua trajetória de vida e as práticas aprendidas em sua formação como pajé. Em 1999, no Rio de Janeiro, conjuntamente com a amiga Rachel de Queiroz, Zeneida Lima fundou a ONG Instituição Caruanas do Marajó. O cantor Neguinho da Beija-Flor foi testemunha e também assinou o documento. A pajé retornou então a Marajó, e no ano seguinte começou a estruturar a instituição. Também gravou mais de 150 músicas, tanto de pajelança quanto laicas, cujos registros foram guardados pelo músico Egberto Gismonti, com a condição de não serem utilizadas comercialmente e só serem divulgadas após a morte da pajé.Em 2017, foi lançado um filme de Tizuka Yamasaki, "Encantados", sobre a vida de Zeneida Lima. Disponível: https://pt.wikipedia.org/wiki/Zeneida_Lima#:~:text=Zeneida%20Lima%20(Soure%2 C%2021%20de,crian%C3%A7as%20da%20Ilha%20de%20Maraj%C3%B3. Acesso 20 Julho 2023. A iniciação de Zeneida Lima no Pajéismo foi dada pelo Pajé Mestre Mundico de Maruacá, no município de Salvaterra, na Ilha de Marajó, e durou um ano e 17 dias para que todos os antigos rituais e preceitos fossem cumpridos. Ela descobriu o mundo encantado e seus mistérios, como as sete cidades encantadas que existem no fundo do mar e onde vivem os Caruanas. Mestre Mundico disse a ela que essas cidades são feitas de elementos mágicos que só os xamãs podem conhecer. Ele explicou que Zeneida seria levada a este mundo pelos Sete Peixes Alados Coloridos. Terminada a preparação para se tornar pajé e cumprir sua missão, Zeneida iniciou sua luta diária contra a discriminação e pela preservação do culto. Apesar de exercer seu dom e cumprir sua missão, ela nunca buscou seguidores para seu culto. Foi nomeada a última Pajé Cabocla de Marajó. Não que não existam mais Pajés. Entretanto, hoje, o culto na Ilha passa por um processo gradual de assimilação de outras práticas e crenças, o que vem gerando mudanças nos tradicionais ensinamentos do Pajeísmo. https://pt.wikipedia.org/wiki/Zeneida_Lima#:~:text=Zeneida%20Lima%20(Soure%2C%2021%20de,crian%C3%A7as%20da%20Ilha%20de%20Maraj%C3%B3https://pt.wikipedia.org/wiki/Zeneida_Lima#:~:text=Zeneida%20Lima%20(Soure%2C%2021%20de,crian%C3%A7as%20da%20Ilha%20de%20Maraj%C3%B3 22 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Fotos de Zeneida, Disponível: http://www.caruanasdomarajo.com.br/novo/pagina/sec/198/sel/gp acesso 19 Julho 2023. O Pajeísmo, segundo Zeneida, é o encontro do homem com as energias da Natureza, os Encantados ou Caruanas. O Pajé nada mais é do que um instrumento para a manifestação dos Caruanas, energias vivas sob as águas. É ele quem facilita a chegada dos Encantados à Terra para socorrer os vivos em suas doenças ou dificuldades. Cabe ressaltar que tudo é feito em nome da caridade, os Pajés não podem, por exemplo, cobrar qualquer tipo de pagamento pelo auxílio aos viventes, conforme aprendeu Zeneida de seus mestres. Não há como pedir dinheiro para curar um doente, diz, pois tudo que o Pajé necessita para cumprir sua missão lhe é dado pela natureza. Não há como se pagar pelo ar, pela terra, pelas florestas e pelos animais. De igual modo, também não se paga pelo fato de ver-se curado. A Instituição Beneficente Cultural Caruanas do Marajó foi então criada com o objetivo principal à preocupação é a busca pela preservação da natureza na Ilha de Marajó e a valorização do conhecimento produzido localmente visando estabelecer uma relação respeitosa entre o homem e o meio ambiente. 23 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Disponível: http://www.caruanasdomarajo.com.br/novo/pagina/sec/198/sel/gp acesso 19 Julho 2023. A Associação cresceu, tomou forma e, com importantes projetos sociais, disseminou informações úteis para o desenvolvimento sustentável da ilha, preservando as culturas tradicionais do Marajó e realizando projetos sociais com crianças carentes da região. Um convênio firmado com a Secretaria Estadual de Educação possibilita o acesso à educação para 260 crianças de comunidades carentes do Marajó, dando-lhes uma nova perspectiva de futuro, tirando-as de situações de risco e criando um convívio íntimo e amigável com a natureza. A instituição também firmou convênios com entidades paraenses, como a Fundação Carlos Gomes, que trouxe o projeto de musicalização para o Marajó, e o Detran/PA, que implantou o projeto Pacto Cidadão Pela Vida no Trânsito. Com o apoio de instituições universitárias do Pará e do Rio de Janeiro, a ONG desenvolve oficinas e palestras que levam a comunidade a discutir temas relevantes e propor soluções para os problemas da população de Marajó. http://www.caruanasdomarajo.com.br/novo/pagina/sec/198/sel/gp%20acesso%2019%20Julho%202023 24 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Figura 1: primeira imagem mostra a oficina de libras e a segunda a oficina de grafitti. Disponível: http://www.caruanasdomarajo.com.br/novo/pagina/sec/198/sel/gp acesso 19 Julho 2023. Todos os cursos e palestras são realizados no ambiente da escola Zeneida Lima de Araújo, que conta com uma estrutura de 13 salas totalmente disponíveis para o evento, além de todos os recursos de áudio, vídeo e materiais para o desenvolvimento das atividades oferecidas pelos profissionais. A Instituição Caruanas do Marajó, Cultura e Ecologia tem proporcionado pelos seus profissionais, um legado que transformaram a visão de mundo de centenas de crianças, jovens e adultos que tiveram a oportunidade e o interesse de dedicar um tempo para alterar sua realidade. SIMAS, Luiz Antônio. Umbandas: uma história do Brasil. 5ª Edição- Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022. 25 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 5. A ORIGEM DO CULTO AOS ORIXÁS AFRICANOS Objetivo Depreender sobre a origem ao culto dos orixás africanos no Brasil. Introdução Os orixás são divindades ou entidades espirituais veneradas em diversas religiões de matriz africana, como o Candomblé, a Umbanda e algumas vertentes do Batuque. Eles são parte fundamental das crenças religiosas de várias comunidades afrodescendentes no Brasil e em outras partes do mundo. Designamos como orixás divindades cultuadas na África pelo povo iorubá, que vive principalmente em regiões da Nigéria e Benin. Grandes ancestrais fundadores de clãs familiares, intermediários entre a divindade suprema e inalcançável – Olodumare – e a humanidade, os orixás têm suas histórias exemplares relatadas em longos poemas da criação que compõe o Ifá, um conjunto de sabedorias reveladas de forma oracular. (SIMAS, 2022, p.161) A origem histórica dos orixás remonta aos povos da África Ocidental, particularmente às regiões onde hoje se encontram a Nigéria e Benin. Consideradas divindades cultuadas pelo povo iorubá. Esses povos possuíam crenças espirituais complexas e cultuavam uma variedade de divindades, conhecidas por diferentes nomes em suas línguas e culturas. Com a diáspora forçada do tráfico de escravos entre os séculos XVI e XIX, milhões de africanos foram levados para as Américas, incluindo o Brasil. Os africanos escravizados trouxeram consigo suas crenças religiosas, mitologias e tradições culturais, incluindo o culto aos orixás. Esse processo de sincretismo cultural e religioso deu origem às religiões de matriz africana no Novo Mundo, como o Candomblé no Brasil e a Santeria em Cuba, por exemplo. Para a cosmogonia Iorubá, Olodumaré é o deus supremo, universal, antigo e poderoso, o que está em tudo, presente em cada centelha de vida, no ar, na água, na terra, e no fogo. De acordo com Coleman (2021, p. 387) é “o deus do destino e da misericórdia pelos Iorubás, ele conhece o destino de todos os humanos e pode 26 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância falar com eles em todas as línguas através dos oráculos”. (MARIRO, Blue Mariro, 2021, p.2) As práticas religiosas dos orixás foram adaptadas e preservadas por meio de tradições orais, rituais, cânticos, danças e outras formas de expressão cultural transmitidas pelas gerações subsequentes. As religiões afro-brasileiras, como o Candomblé e a Umbanda, são resultado dessa mistura de crenças africanas, indígenas e europeias, formando religiões sincréticas únicas que têm suas raízes na tradição dos orixás. Os orixás são considerados intermediários entre os seres humanos e o divino, sendo vistos como forças da natureza, ancestrais divinizados ou arquétipos que representam diferentes aspectos da vida, da natureza humana e das energias do universo. Os orixás têm características específicas, atribuições e simbolismos únicos. Cada orixá possui sua própria história e atributos, com paralelos nas religiões africanas de origem, mas também com adaptações e interpretações que refletem a realidade das comunidades afrodescendentes no contexto das Américas. Assim, a origem histórica dos orixás está profundamente conectada às culturas e experiências dos povos africanos e seus descendentes, que trouxeram consigo essas tradições espirituais, e que, ao longo do tempo, as mantiveram vivas e enraizadas em suas identidades culturais e espirituais. Na África ocidental, a religiosidade desenvolveu -se ao longo dos séculos incluindo os cultos de orixás. São incontáveis as variações locais e temporais que coexistem nestes sistemas de mitos, cultos, ritos e suas relações com a sociedade desta região. O orixá de maneira geral, seria um ancestral divinizado que representa as forças que explicam a natureza e organizam a vida humana. O orixá é um ancestral humano que realizou feitos excepcionais e foi assim transformado num ser divinizado por Oludimaré (ou Olorum), o ser superior. Por seus feitosno mundo, este ancestral especial, tornou-se digno de poderes de controle sobre forças da natureza (como trovão, vento, águas doces ou salgadas) ou de domínio de habilidades humanas (caça, trabalho com metais, cura com folhas). O poder (axé) de cada orixá se manifestaria em seus “filhos” em transes de possessão para ajudar a resolver os problemas das comunidades e das pessoas 27 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 5.1 A origem das religiões afro-brasileiras O catolicismo tem sido historicamente a religião majoritária no Brasil, com outras religiões substituindo as religiões minoritárias. Nesse segundo grupo estão as chamadas religiões afro-brasileiras, que até a década de 1930 podiam ser incluídas na categoria de religiões étnicas, religiões que preservam a herança cultural dos ex- escravos africanos e seus descendentes. Essas religiões se originaram em diferentes regiões do Brasil com diferentes cerimônias e nomes locais derivados de diferentes tradições africanas: Candomblé na Bahia, Xangô em Pernambuco e Alagoas, Tambor de Mina no Maranhão e Pará, Batuque no Rio Grande do Sul e Macumba no Rio de Janeiro. O mundo no período final da escravidão se estabeleceu principalmente em cidades e ocupações urbanas, os africanos desse período puderam viver no Brasil em maior contato mútuo, tanto físico quanto social, com maior mobilidade e, de certa forma, liberdade de movimento, em um processo de interação que ainda não conheciam. Esse fato proporcionou condições sociais favoráveis à sobrevivência de algumas religiões africanas, com o surgimento de grupos de culto organizados. Chegando no Brasil escravizados, sobretudo a partir do século XIX, os iorubás trouxeram para cá o culto aos orixás, redefinidos em terras brasileiras a partir da criação do candomblé. Podemos, em linhas gerais, estabelecer que existem três linhas marcantes do candomblé brasileiro, ainda que a de raízes iorubás seja a mais difundida e que entre elas haja bastante interação, inclusive em termos de procedimentos litúrgicos: Ketu, de tradição iorubá, dos povos nagôs; caracterizado pelo culto aos orixás. Jeje, de tradição fon, dos povos jeje; caracterizado pelo culto aos voduns. Angola, de tradição bacongo; caracterizado pelo culto aos inquices. (SIMAS, 2022, p. 162). Por outro lado, algumas denominações protestantes europeias e norte- americanas foram introduzidas no país no final do século passado. O cenário religioso no Brasil hoje é caracterizado por um complexo e dinâmico processo de conversão, com a incorporação e até criação de algumas novas religiões, às vezes com os convertidos passando por diferentes opções de adesão. Os grupos religiosos mais importantes em termos de número de seguidores hoje são: o catolicismo nas versões tradicional e renovada da religião; os evangélicos 28 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância “tradicionais e nova versão, neopentecostal; Espiritistas kardecistas e por último um conjunto diversificado de religiões afro-brasileiras. O Movimento de Renovação Carismática, movimentos que se opõem doutrinariamente: as CEBs são mais políticas e preocupadas com questões de justiça social, os carismáticos são mais preocupados com o indivíduo e rejeitam conservadoramente questões de consciência social. Dessas religiões, a Umbanda tem sido reiteradamente identificada como a religião brasileira por excelência, pois nasceu no Brasil e é resultado do encontro de tradições africanas, espíritas e católicas. A umbanda absorveu do kardecismo um pouco de seu apego às virtudes da caridade e do altruísmo, tornando-a mais ocidentalizada do que outras religiões do espectro afro-brasileiro, mas nunca completou esse processo de ocidentalização. Segundo o historiador Simas, Processo marcado por nuances complexas, o sincretismo tanto pode ser visto como estratégia afrodiaspórica para cultuar as divindades, como pode ser encarado como parte de um processo de conexões ligadas ao acúmulo de forças vitais, em uma encruzilhada sutil entre a africanização de procedimentos católicos e a cristianização de ritualísticas negras e indígenas. Algumas umbandas, que reivindicam uma construção da religião a partir da religião africanas e indígenas e menos com as influências europeias, hoje elaboram reflexões sobre o sincretismo de maneiras mais críticas e contundentes. (SIMAS, 2022, pp. 162-163) Desde o início, as religiões afro-brasileiras se formaram em sincretismo com o catolicismo e, em menor escala, com as religiões indígenas. O culto católico aos santos na dimensão popular politeísta encaixou como uma luva no culto dos panteões africanos. [...] o culto aos orixás, apresenta-se em diversas umbandas – em maior ou menor escala – articulado também a conexões estabelecidas entre eles e as santas e santos do catolicismo (SIMAS, 2022, p. 162). Com a Umbanda, somaram-se ao lado africano as contribuições do kardecismo francês, principalmente a ideia de se comunicar com os espíritos dos mortos através do transe, a fim de praticar a caridade entre os dois mundos, já que os mortos devem ajudar os vivos, sobretudo, os sofredores, como os vivos, devem, segundo a doutrina de 29 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Kardec, ajudar os mortos a encontrar o caminho para a paz eterna, sempre pela prática do amor. O candomblé começou a penetrar no território umbandista bem estabelecido, e os antigos umbandistas começaram a assumir o candomblé, muitos deles deixando os ritos umbandistas para se estabelecerem como pais e mães de santo em formas mais tradicionais, como por exemplo, o culto aos orixás. Nesse movimento, a Umbanda é remetida ao Candomblé, suas antigas e "verdadeiras" raízes originais, que os novos adeptos consideram mais misteriosa, mais forte e mais poderosa que sua descendente moderna e caiada. Além disso, nesse período, importantes movimentos da classe média buscavam o que poderia ser considerado as raízes originárias da cultura brasileira. Intelectuais, poetas, estudantes, escritores e artistas participaram desse esforço, que tantas vezes bateram nas portas dos antigos terreiros baianos. O candomblé encontrou condições sociais, econômicas e culturais muito favoráveis para seu renascimento em um novo território onde até então não se verificava a presença de instituições de origem negra. O termo candomblé refere-se a vários rituais com diferentes ênfases culturais, que os adeptos chamam de "nações". Mas essas origens estão, na verdade, entrelaçadas nas raízes brasileira e africana. Sua linguagem ritual é derivada do iorubá, mas o significado das palavras se perdeu em grande parte com o tempo, e hoje é muito difícil traduzir os versos das cantigas sagradas e é impossível manter uma conversa na língua do candomblé. A "nação" angolana de origem bantu adotou o panteão dos orixás iorubás e também incorporou muitas das práticas iniciáticas. O culto aos caboclos, que são os espíritos dos índios, que os antigos africanos consideravam os verdadeiros ancestrais brasileiros, ou seja, aqueles dignos de culto no novo território onde foram aprisionados. O candomblé de caboclo é uma forma de angola focada em um culto ancestral indígena exclusivo. Possivelmente foi o Candomblé e o Caboclo angolano que deram origem à Umbanda. Existem outras nações menores de origem bantu, como Kongo e Cambinda, hoje quase totalmente absorvidas pela nação angolana. Os povos Jeje-Mahin, da Bahia, e os Jeje-Mina, do Maranhão, derivaram suas tradições e linguagem ritual dos Ewê-Fon, 30 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância ou jejes, como chamavam os nagôs, e têm como entidades centrais osvoduns. As tradições rituais jejes foram muito importantes na formação dos candomblés com predominância iorubá (PRANDI, 1995, p. 16). 5.2. Os Orixás A história dos orixás virou algo que inteira especulação popular, pode-se encontrar listas de orixás com seus tipos psicológicos são frequentemente encontradas em jornais, revistas, sites. Porém, a prevalência dos Orixás não significa a diminuição do preconceito e, em geral, não leva em consideração as tradições religiosas de matriz africana, vivenciadas por inúmeros iniciados, seguidores e fortemente pesquisadas no meio acadêmico. É impossível abranger todo o universo de experiências e pesquisas sobre os Orixás. "Os Orixás são intermediários entre Olodumaré e o povo e receberam parte de sua autoridade por delegação." É assim que os babalawos de Ifá lêem. Na África Ocidental, a religiosidade floresceu ao longo dos séculos, inclusive os cultos aos orixás. Este ancestral particular, por suas ações na terra, tornou-se digno de controle sobre as forças da natureza ou domínio das habilidades humanas. O poder de cada orixá se manifestava em seus "filhos" em transes possessivos para ajudar a resolver os problemas das comunidades e das pessoas. Como os Babalawos colocam, Oludumare é "o deus supremo distante, inacessível e indiferente às orações e ao destino das pessoas. Ele não está preocupado em lidar com assuntos humanos delegados aos orixás, mas com conflitos entre orixás. Oludamare para cuidar do equilíbrio do universo. Também é para eles rezar e cultuá-los. Ao contrário dos santos católicos, os orixás não têm aparência humana. Em seu culto, elas voltam a estar entre os homens, dançam entre seus seguidores, integrando o sagrado e o mundano. Na África, os orixás seriam os ancestrais de uma cidade ou de um país inteiro. Existem muitas variações locais nos cultos de Orixá. "A localização de todos esses orixás depende muito da história da cidade em que aparecem como guardiões". Os Orixás migraram dentro da África, conduzidos em várias direções por seus seguidores. O comércio de escravos para a América devastou cidades, vilas e famílias. 31 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Assim, os orixás deixaram de ser guardiões coletivos, assumindo um caráter individual. No Candomblé no Brasil, cada casa reúne muitos orixás pessoais centrados no orixá do terreiro. Ainda hoje, a palavra "orixá" é lida nos dicionários como se viesse da língua iorubá. Ajayi Crowter é a generalização deste termo para outros povos da região. Ele escreveu seu próprio idioma, o "Dicionário Yoruba", em 1852. A Bíblia foi traduzida para o iorubá como a principal ferramenta para o evangelismo missionário. No entanto, a língua "iorubá" não representava uma unidade étnica ou sociopolítica. Existiam na região vários povos com línguas semelhantes, mas competindo politicamente entre si. A opressão cultural nigeriana, cristã e britânica tornou caótica a situação da população local. Esta unidade fictícia incluía a língua Yoruba e seus "dialetos", uma origem comum em Ile Ife, um herói ancestral, Odudua. A palavra orixá é definida como "Yoruba", uma palavra da língua e uma tradição imaginária. Mas ainda prevalece tanto no discurso dos locais quanto em pesquisas relevantes e literatura popular. O complexo sistema religioso dos Orixás tem sido estudado por pesquisadores de todo o mundo pela riqueza de suas implicações históricas, sociais, políticas, teológicas, artísticas e até pragmáticas. Os mitos dos orixás tentam estabelecer princípios para regular o caos natural e humano: ensinam o que comer, o que vestir, com quem se casar, como respeitar os deuses, como ter ajuda divina para conquistar poderes, como governar outros reinos, como garantir a continuidade da comunidade e também quais cuidados rituais são necessários para garantir o equilíbrio da vida. A generosidade dos deuses, que distribuíram muitos presentes como céu, estrelas, nuvens, arco-íris, terra, água, fogo, ferro, peixes, animais de caça e vegetais que nutrem e curam, é aprendida por meio desses contos. As lendas explicam que os deuses doaram a agricultura para acabar com a fome; o ferro e sua conversão em ferramentas para lavrar a terra e assim produzir mais grãos e fazer armas de guerra mais eficazes e como construir casas e palácios. Os mitos também incluem estratégias 32 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância para equilibrar a comunidade, como expandir o território e como lidar com conflitos entre reinos vizinhos ou distantes. Por fim, as narrativas sobre os orixás mostram a vida familiar dos deuses sem negar suas dificuldades: constroem famílias, trocam de parceiros, tem filhos e descendência. E são protagonistas de dramas amorosos em que não faltam traições, trapaças, intrigas, seduções, quebras de tabus. [...] Como todas as culturas, deuses criam os seres da natureza e os mitos mostram o encantamento dos humanos diante de seres do universo assim como seus perigos. (ALBUQUERQUE, 2017, pp. 8-9). SIMAS, Luiz Antônio. Umbandas: uma história do Brasil. 5ª Edição- Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022. PRANDI, Reginaldo. Deuses africanos no Brasil contemporâneo. Horizontes antropológicos, p. 10-30, 1995. MARIRO, Blue. OLODUMARÉ, EXU E IYÁMI OXORONGÁ. Semana Nacional de Teologia, Filosofia e Estudos de Religião e Colóquio Filosófico . Vol. 3 2021 ISSN 2763-7433. ALBUQUERQUE. Cleidi Marília Caivano Pedroso de. Os Orixás. 2017. Disponível: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/176340 acesso: 20 Jul 2023. 33 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 6. A HISTÓRIA DOS ORIXÁS: OXALÁ E NANÃ Objetivo Depreender sobre as narrativas que relatam a origem dos orixás de origem africana Oxalá e Nanã Buruquê. Introdução Oxalá é uma divindade venerada nas religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda. Na mitologia, é o orixá da paz, sabedoria e criação. Caracterizado como um ancião sábio e pacífico, é frequentemente associado ao branco, simbolizando pureza. Segundo mitos, Oxalá moldou a Terra e os seres humanos . Suas histórias narram sua busca por conhecimento e aprendizado. Nas religiões afro-brasileiras, Oxalá é cultuado em rituais de purificação e iniciação. Sua presença inspira os seguidores a buscar a paz interior, equilíbrio emocional e harmonia com a natureza. A representatividade de Oxalá fortalece a conexão com raízes ancestrais e identidade cultural, transmitindo valores como a paz, sabedoria e respeito à natureza. O estudo dessa divindade enriquece a compreensão da diversidade religiosa e cultural brasileira e destaca a relevância das tradições espirituais e folclóricas na construção da identidade nacional. A orixá Nanã Buruquê é uma divindade venerada nas religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda. Sua origem remonta aos povos da África Ocidental, especialmente às regiões onde hoje se encontram a Nigéria e o Benin. Nanã é considerada uma orixá anciã, representando a matriarca ancestral, a sabedoria e a ancestralidade. Ela é frequentemente associada a águas estagnadas, lama e pântanos, simbolizando a fertilidade e a vida que surge da lama primordial. De acordo com as tradições, Nanã Buruquê foi a primeira esposa de Oxalá, o orixá supremo, e juntos eles tiveram muitos filhos, incluindo Xangô e Iansã. Por ser a mais antiga das esposas, ela é considerada a avó de muitos orixás, sendo respeitada como uma divindade com grande conhecimento e experiência. 34 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância A origem históricade Nanã Buruquê pode ser rastreada nos mitos e narrativas dos povos africanos que cultuavam essa divindade. Com a diáspora africana e o tráfico de escravos para as Américas, as crenças e práticas religiosas dos povos africanos foram levadas para o Brasil, onde se desenvolveram e evoluíram nas religiões de matriz africana. 6.1. Oxalá Oxalá é uma figura central e muito reverenciada nas religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, mas também é cultuado em outras tradições espiritualistas e esotéricas. Representado como um ancião, vestindo roupas brancas que simbolizam a paz, a pureza e a luz. Ele carrega um cajado de prata ou um opaxorô (bastão ornamentado), que representa sua autoridade e sabedoria. Representação de Oxalá africano com opaxorô. Disponível: https://umbandaead.blog.br/2016/12/25/meu-pai-oxala-e-o-rei-venha-me-valer/, acesso 20 Julho 2023. Devido ao processo de sincretismo religioso no Brasil, Oxalá também é associado a outras figuras religiosas, porém vale lembrar que não são todas as casas “sagradas” que seguem o sincretismo. Na religião católica, é sincretizado com Jesus Cristo, e seu dia é comemorado em 25 de dezembro, o mesmo do Natal cristão. Esse sincretismo permitiu a 35 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância continuidade da adoração de Oxalá durante o período da escravidão, quando os africanos foram forçados a esconder suas crenças por meio da associação com santos católicos. No Candomblé, segundo as pesquisas do sociólogo Reginaldo Prandi, Oxalá é considerado o orixá primordial, associado à criação do mundo e da humanidade. É considerado o pai de todos os orixás e, como tal, é reverenciado como uma figura de grande respeito e poder. Segue um dos contos de Oxalá, sobre a origem do mundo: Orixanlá cria a Terra No começo, o mundo era todo pantanoso e cheio d’água, um lugar inóspito, sem nenhuma serventia. Acima dele havia o Céu, onde viviam Olorum e todos os orixás, que às vezes desciam para brincar nos pântanos insalubres. Desciam por teias de aranha penduradas no vazio. Ainda não havia terra firme, nem o homem existia. Um dia Olorum chamou à sua presença Orixanlá, o Grande Orixá. Disse-lhe que queria criar terra firme lá embaixo e pediu-lhe que realizasse tal tarefa. Para a missão, deu- lhe uma concha marinha com terra, uma pomba e uma galinha com pés de cinco dedos. Orixanlá desceu ao pântano e depositou a terra da concha. Sobre a terra pôs a pomba e a galinha e ambas começaram a ciscar. Foram assim espalhando a terra que viera na concha até que terra firme se formou por toda parte. Orixanlá voltou a Olorum e relatou-lhe o sucedido. Olorum enviou um camaleão para inspecionar a obra de Oxalá e ele não pôde andar sobre o solo que ainda não era firme. O camaleão voltou dizendo que a Terra era ampla, mas ainda não suficientemente seca. Numa segunda viagem o camaleão trouxe a notícia de que a Terra era ampla e suficientemente sólida, podendo-se agora viver em sua superfície. O lugar mais tarde foi chamado Ifé, que quer dizer ampla morada. Depois Olorum mandou Orixanlá de volta à Terra para plantar árvores e dar alimentos e riquezas ao homem. E veio a chuva para regar as árvores. Foi assim que tudo começou. Foi ali, em Ifé, durante uma semana de quatro dias, que Orixá Nlá criou o mundo e tudo o que existe nele.(PRANDI, p. 503) Nas casas de Candomblé, as festividades em homenagem a Oxalá são realizadas com grande devoção e cuidado. Na Umbanda, Oxalá é uma entidade de luz e sabedoria, um guia espiritual e protetor, associado à paz e à harmonia. Sua figura é invocada para purificação, cura e busca por equilíbrio e tranquilidade interior. Segue a imagem das duas representações de Oxalá. 36 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Disponível em: https://meuorixa.wordpress.com/2012/05/01/66/ acesso 20 Julho 2023 Uma característica interessante de Oxalá é a dualidade presente em suas representações, “costuma ser cultuado nos candomblés brasileiros ou em sua forma mais jovem, como um guerreiro (Oxaguian), ou como sábio ancião (Oxalufan). Suas vestes são brancas e suas filhas e filhos evitam alimentos de dendê e sal” (SIMAS, 2022, p.171). Segue o mito do Sal Oxalá é proibido de consumir sal. Oxalá foi consultar Ifá. para saber como melhor tocar a vida. Os adivinhos recomendaram que fizesse ebó, que oferecesse aos deuses uma cabaça de sal e um pano branco. Assim Oxalá não passaria por transtornos e não sofreria desonras e outras ofensas morais na Terra. Dando de ombros ao conselho, Oxalá foi dormir sem cumprir o recomendado. De noite Exu entrou na casa de Oxalá. Ele trazia uma cabaça cheia de sal e a amarrou nas costas de Oxalá. Na manhã seguinte Oxalá despertou corcunda. Desde então tornou-se protetor dos corcundas, dos albinos e toda sorte de aleijados. Mas foi para sempre proibido de consumir sal. (PRANDI, 2001, p. 512) O culto a Oxalá desempenha um papel fundamental na cultura afro-brasileira, com grande importância cultural e espiritual para as comunidades afrodescendentes no Brasil e além. Seu culto reflete valores de paz, equilíbrio e respeito à natureza, transmitindo ensinamentos espirituais profundos e fortalecendo a conexão com as raízes ancestrais. A figura de Oxalá representa uma das muitas riquezas da diversidade religiosa e cultural 37 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância brasileira, destacando a importância das tradições espirituais na construção da identidade nacional. 6.2. Nanã Buruquê A orixá Nanã é cultuada entre os africanos a partir do antigo reino do Daomé, entre os chamados povos jejes, como uma entidade primordial da Terra. Nas umbandas mais sincréticas, costuma ser aproximada de Sant’Ana, mãe da Virgem Maria e avó de Jesus, certamente por conta da senioridade. (SIMAS, 2022, p. 169). Nana Buruquê, Buruku, ou Buluku é considerada a orixá da Criação, destemida, muitas vezes intransigente e austera, é respeitada como a mais velha das Yabás. De temperamento brando, ela acolhe e orienta seus filhos, como um grande modelo de grande sabedoria. Representa a velhice, a experiência de vida e o aprendizado mais profundo. Ele usou seu ibiri para tirar a lama do fundo do lago para criar os homens. Segue a mitologia sobre a origem do homem: Nanã fornece a lama para a modelagem do homem. Dizem que quando Olorum encarregou Oxalá de fazer o mundo e modelar o ser humano, o orixá tentou vários caminhos. Tentou fazer o homem de ar, como ele. Não deu certo, pois o homem logo se desvaneceu. Tentou fazer de pau, mas a criatura ficou dura. De pedra ainda a tentativa foi pior. Fez de fogo e o homem se consumiu. Tentou azeite, água e até vinho-de-palma, e nada. Foi então que Nanã Burucu veio em seu socorro. Apontou para o fundo do lago com seu ibiri, seu cetro e arma, e de lá retirou uma porção de lama. Nanã deu a porção de lama a Oxalá, o barro do fundo da lagoa onde morava ela, a lama sob as águas, que é Nanã. Oxalá criou o homem, o modelou no barro. Com o sopro de Olorum ele caminhou. Com a ajuda dos orixás povoou a Terra. Mas tem um dia que o homem morre e seu corpo tem que retornar à terra, voltar à natureza de Nanã Burucu. Nanã deu a matéria no começo mas quer de volta no final tudo o que é seu. (PRANDI, 2001, p. 196) Seu território de atuação são lagos, pântanos, lama e onde os rios encontram o mar. Ela teve dois filhos, Oxumarê, uma criança linda, e Omulu, uma criança feia. Segue o mito sobre essa passagem: 38 Narrativas Sagradas: Indígenas e Africanas Universidade Santa Cecília - Educação a Distância NANÃ ESCONDE O FILHO FEIO E EXIBE O FILHO BELO Conta-se que Nanã teve dois filhos. Oxumarê era
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