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População de Rua: políticas públicas, práticas e vivências PATRICE SCHUCH IVALDO GEHLEN SIMONE RITTA DOS SANTOS (ORGANIZADORES) Copyright © Editora CirKula LTDA, 2017. 1° edição - 2017 Revisão, Normatização e Edição: Mauro Meirelles Diagramação e Projeto Gráfico: Mauro Meirelles Revisão Ortográfica: Mônica Eliseu Duarte Editor: Mauro Meirelles Capa: Luciana Hoppe Imagens da Capa: Gabriela Hoppe Impressão: Copiart Tiragem: 2000 exemplares. Todos os direitos reservados a Editora CirKula LTDA. A reprodução não autorizada des- ta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais (Lei 9.610/98). Editora CirKula Avenida Osvaldo Aranha, 522 - Bomfim Porto Alegre - RS - CEP: 90035-190 e-mail: editora@cirkula.com.br Loja Virtual: www.cirkula.com.br 2017 População de Rua: políticas públicas, práticas e vivências PATRICE SCHUCH IVALDO GEHLEN SIMONE RITTA DOS SANTOS (ORGANIZADORES) CONSELHO EDITORIAL César Alessandro Sagrillo Figueiredo José Rogério Lopes Jussara Reis Prá Luciana Hoppe Mauro Meirelles CONSELHO CIENTÍFICO Alejandro Frigerio (Argentina) - Doutor em Antropologia pela Universi- dade da Califórnia, Pesquisador do CONICET e Professor da Universidade Católica Argentina. André Corten (Canadá) - Doutor em Sciences Politiques et Sociales pela Universidade de Louvain e Professor de Ciência Política da Universidade de Quebec em Montreal (UQAM). André Luiz da Silva (Brasil) - Doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor do Programa de Pós-Gradua- ção em Desenvolvimento Humano da Universidade de Taubaté. Antonio David Cattani (Brasil) - Doutor pela Universidade de Paris I - Panthéon-Sorbonne, Pós-Doutor pela Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales e Professor Titular de Sociologia da UFRGS. Arnaud Sales (Canadá) - Doutor d’État pela Universidade de Paris VII e Pro- fessor Titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Montreal. Cíntia Inês Boll (Brasil) - Doutora em Educação e professora no Departa- mento de Estudos Especializados na Faculdade de Educação da UFRGS. Daniel Gustavo Mocelin (Brasil) - Doutor em Sociologia e Professor Ad- junto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Dominique Maingueneau (França) - Doutor em Linguística e Professor na Universidade de Paris IV Paris-Sorbonne. Estela Maris Giordani (Brasil) - Doutora em Educação, Professora Asso- ciada da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e pesquisadora da Antonio Meneghetti Faculdade (AMF). Hilario Wynarczyk (Argentina) - Doutor em Sociologia e Professor Titular da Universidade Nacional de San Martín (UNSAM). José Rogério Lopes (Brasil) - Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Professor Titular II do PPG em Ciên- cias Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Ileizi Luciana Fiorelli Silva (Brasil) - Doutora em Sociologia pela FFLCH- USP e professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Leandro Raizer (Brasil) - Doutor em Sociologia e Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Luís Fernando Santos Corrêa da Silva (Brasil) - Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Professor do Programa de Pós- Graduação Interdisciplinar Ciências Humanas da UFFS. Lygia Costa (Brasil) - Pós-doutora pelo Instituto de Pesquisa e Planejamen- to Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, IPPUR/ UFRJ e professora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Em- presas (EBAPE) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Maria Regina Momesso (Brasil) - Doutora em Letras e Linguística e Pro- fessora da Universidade do Estado de São Paulo (UNESP). Marie Jane Soares Carvalho (Brasil) - Doutora em Educação, Pós-Doutora pela UNED/Madrid e Professora Associada da UFRGS. Mauro Meirelles (Brasil) - Doutor em Antropologia Social e Pesquisador liga- do ao Laboratório Virtual e Interativo de Ciências Sociais (LAVIECS/UFRGS). Simone L. Sperhacke (Brasil) - Doutoranda em Design pela UFRGS. Mes- tre em Design e Tecnologia e graduada em Desenho Industrial. Silvio Roberto Taffarel (Brasil) - Doutor em Engenharia e professor do Programa de Pós-Graduação em Avaliação de Impactos Ambientais em Mi- neração do Unilasalle. Stefania Capone (França) – Doutora em Etnologia pela Universidade de Paris X- Nanterre e Professora da Universidade de Paris X-Nanterre. Thiago Ingrassia Pereira (Brasil) - Doutor em Educação e Professor do Programa de Pós-Graduação Profissional em Educação da UFFS. Wrana Panizzi (Brasil) - Doutora em Urbanisme et Amenagement pela Uni- versite de Paris XII (Paris-Val-de-Marne) e em Science Sociale pela Univer- sité Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) e, também, Professora Titular da Universi- dade Federal do Rio Grande do Sul. Zilá Bernd (Brasil) - Doutora em Letras e Professora do Mestrado em Me- mória Social e Bens Culturais do Unilasalle. Sumário 11 ApreSentAção Marta Borba Silva 13 políticAS públicAS, práticAS e vivênciAS dAS populAçõeS em SituAção de ruA em porto Alegre: umA introdução pArte i - eStudoS 17 dinâmicAS, eStrAtégiAS e mundo dA populAção em SituAção de ruA de porto Alegre Ivaldo Gehlen, Patrice Schuch, Alexandre Silva Virgínio, Melissa de Mattos Pimenta, Mauro Meirelles 45 equipAmentoS, ServiçoS e viSõeS Sobre políticAS públicAS pArA peSSoAS AdultAS em SituAção de ruA em porto Alegre: entre o cuidAdo e A violênciA Patrice Schuch, Ivaldo Gehlen, Heloísa Helena Salvatti Paim, Tiago Martinelli 77 populAção AdultA em SituAção de ruA em porto Alegre: umA SínteSe Patrice Schuch, Ivaldo Gehlen, Alexandre Silva Virgínio, Melissa de Mattos Pimenta, Mauro Meirelles 91 deSAfioS metodológicoS Ao eStudAr A populAção em SituAção de ruA Ivaldo Gehlen, Mauro Meirelles, Patrice Schuch pArte ii - políticAS e experiênciAS inStitucionAiS 109 peSquiSA e intervenção SociAl nA políticA de ASSiStênciA SociAl em porto Alegre: A SituAção de ruA como fenômeno A Ser problemAtizAdo Aline Espindola Dornelles, Rejane Margarete Scherolt Pizzato, Simone Ritta dos Santos 131 A proteção integrAl no SuAS e Acolhimento inStitucionAl pArA fAmíliAS Cleber Candido de Deus, Márcia Santos de Almeida Knorr, Rejane Margarete Scherolt Pizzato 143 experiênciAS dA Ação nA ruA: dA AbordAgem Ao encontro Ana Letícia Fontanive, Aline Sardin Padilla de Oliveira, Charline Pereira dos Santos, Daiana Santos, Daniela Bianchi, Daniela Canabarro, Daniela Soares, Diogo Santos, Fernando Oliveira Júnior, Giane Silveira, Jorge Gomes de Oliveira, Kizzy Assunção, Lirene Finkler, Lisiane do Carmo, Marcos Cabral Borges, Maria Dornelles de Araújo Ribeiro, Mateus Freitas Cunda, Milena Cassal Pereira, Pablo Gonçalves, Roberta da Silva Gomes, Saulo Vieira 157 o retorno doS inviSíveiS A cenA públicA A pArtir dA AtuAção do centro pop 1 Carlos André da Rosa Bittencourt 169 um olhAr Sobre o Acolhimento inStitucionAl A populAção em SituAção de ruA em porto Alegre Lirene Finkler, Mateus Freitas Cunda, Cleber Candido de Deus pArte iii - lutAS políticAS 183 “A lutA é conStAnte”: do movimento AquArelA dA populAção de ruA Ao movimento nAcionAl dA populAção de ruA do rio grAnde do Sul Richard de Campos, Edson de Campos, Carlos Henrique da Silva, José Luiz Straubichen, Alexandre Portuguez, Cícero Adão Gomes, Veridiana Farias Machado, Margarete Vieira 199 “A gente mudou A hiStóriA”: experiênciAS e olhAreS do JornAl bocA de ruA Por seus Integrantes e Colaboradores pArte iv - perSpectivAS 213 violênciA contrA A populAção em SituAção de ruA em porto Alegre: conSiderAçõeS Sobre AS formAS inStitucionAiS e SimbólicAS de opreSSão cotidiAnA Melissa de Mattos Pimenta, José Vicente Tavares dos Santos 229 populAção em SituAção de ruA e imAginário eScolAr: memóriAS dA AntieducAção Alexandre Silva Virgínio, Ivaldo Gehlen, Melissa de Mattos Pimenta, Patrice Schuch, Mauro Meirelles 261doS morAdoreS de ruA AoS Sem domicílio fixo: contrASteS brASil e frAnçA Claudia Turra-Magni 279 A legibilidAde como geStão e inScrição políticA de populAçõeS: notAS etnográficAS Sobre A políticA pArA peSSoAS em SituAção de ruA no brASil Patrice Schuch 309 Sobre oS AutoreS 315 Sobre o Projeto e A PeSquiSA 11 APRESENTAÇÃO Pesquisar implica a busca constante da indagação e da descoberta da realidade. Significa realizar uma aproximação permanente a essa realidade, articulando a teoria e os dados empíricos a partir da inten- cionalidade imprimida ao tema conforme o interesse da pesquisa e seus significados. O tema população em situação de rua encontra visibilidade há vários anos nas pautas da política de assistência social em Porto Ale- gre. Além de executar uma rede de serviços destinadas às pessoas em situação de rua, a Fundação de Assistência Social e Cidadania, órgão gestor da política de assistência social no município, também se apro- xima dessa parcela de sujeitos por meio de estudos de pesquisa que revelam seus perfis. Os estudos têm por objetivo identificar, por meio de censo, os perfis desse universo pesquisado (crianças, adolescentes e adultos em situação de rua) bem como o seu modo de vida. Entende-se que a pes- quisa permite um avanço, significa ampliar as possibilidades de com- preensão da práxis, no intuito de construir uma teoria social que ob- jetive o compromisso com a transformação social. Tarefa fundamental no aperfeiçoamento e no significado da política pública comprometida com seus usuários na busca da efetividade de direitos sociais. A FASC buscou essa parceria, por meio de Edital Público, e esta- beleceu com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (Departamentos de Sociologia e de Antropologia) um contrato para a realização de dois estudos: estudo quantitativo (censo) da população adulta e de crianças e adolescentes; e, estudo qualitativo sobre a população adulta, serviços e trabalhadores, 12 com visitas etnográficas a serviços destinados à população adulta em situação de rua em POA. Os estudos foram executados pela Universidade e acompanha- dos pela FASC, por meio da coordenação da Vigilância Socioassisten- cial com a parceria das áreas técnica, de recursos humanos e jurídica. Compuseram também essa Comissão, representantes do Movimento Nacional da População em Situação de Rua e do Jornal Boca de Rua. Esse olhar conjunto enriquece o debate e aprofunda as questões que se apresentam no processo de pesquisa. O trabalho, por meio das di- versas instâncias que nele se constituem (curso de extensão, pesquisa qualitativa com trabalhadores, pesquisa quantitativa e qualitativa com a população em situação de rua), sempre contou com a participação de diversos segmentos tanto da Universidade, da gestão e seus trabalha- dores quanto da população usuária. Os resultados obtidos nesse trabalho se traduzem no presente livro, o qual também conta em seus artigos a representatividade dessa bela relação interdisciplinar já apontada anteriormente. Acredito que tais contribuições são essenciais no processo de re- flexões, análises, proposições e aperfeiçoamentos necessários na conti- nuidade da oferta da rede de serviços que se apresenta para as pessoas em situação de rua em Porto Alegre. Consolidar o Sistema Único de Assistência Social, como políti- ca pública garantidora de direitos, significa não somente proporcionar serviços e orçamento para efetivá-los, mas principalmente reconhecer seu público e suas demandas com a devida visibilidade que ele tem e com as diversas expressões que ele traz, por meio de sua própria voz. Aí sim a pesquisa encontra relevância para a política pública. Marta Borba Silva Diretora Técnica da FASC 20 de Novembro de 2016 13 POLÍTICAS PÚBLICAS, PRÁTICAS E VIVÊNCIAS DAS POPULAÇÕES EM SITUAÇÃO DE RUA EM PORTO ALEGRE: UMA INTRODUÇÃO Num mundo cada vez mais desigual e individualista em que as pessoas somente se preocupam com o seus problemas e com aquilo que diretamente lhe diz respeito, sem com isso considerar o direito do outro, ganha destaque estudos que se ocupam de grupos e populações humanas tidas como marginais ou invisíveis socialmente. Contudo, di- ferentemente dos antropólogos clássicos – que iam a terras distantes encontrar essas populações para realizar seus estudos – nós, aqui, não precisamos ir muito longe. Pois, parafraseando o que uma vez escreveu Muhammad Yunus em seu livro “O banqueiro dos pobres”, bastou que, para isso, olhássemos pela nossa janela, que saíssemos de casa e olhás- semos para as ruas. Pois, a população de rua, temática com a qual nos ocupamos aqui, não está longe de nós – e convivemos com ela diariamente no vai-e- -vem das grandes, pequenas e médias cidades de nosso país. Cidades de um país marcado pela desigualdade, pela violência, pela vulnerabilida- de social e pelos diferentes graus de acesso que as pessoas possuem a diferentes serviços e direitos básicos. Como é o caso do estudo aqui em voga que tem como objeto as populações que, hoje, vivem em situação de rua em Porto Alegre. Contudo, a temática da população em situação de rua não é algo novo, mas seu estudo, sim, é recente e somente começou a ganhar visi- bilidade há alguns anos atrás impulsionados pela necessidade de pro- posição de políticas públicas para atendimento as suas demandas. Neste sentido, a Fundação de Assistência Social e Cidadania, ór- gão gestor da política de assistência social no município através de parcerias estratégicas com universidades têm levado a cabo estudos e 14 pesquisas que buscam traçar uma perfil dessas populações que vivem em situação de rua. E, sim, nos referimos aqui a populações, no plural – e os dados mostram isso – por entender que existem entre as pessoas em situação de rua, trajetórias bastante diversas que implicam em di- ferentes percepções acerca do Estado, das Políticas de Assistência, dos Serviços destinados a essa população etc. Mas não só, pois no decorrer do estudo também constatou-se que existe entre essas populações diferentes narrativas, histórias e mo- tivações que os levaram a tomar a rua como seu território, como sua casa. As razões para isso são muitas e compreender essa realidade, seu modo de vida – e saber quem são, onde estão, o que fazem – torna-se fundamental para que se possa pensar e produzir políticas públicas a essas populações que cada vez mais ganham volume em nossas cidades. Ganhando assim, maior efetividade. Desta feita, tem-se que compreender as características sociocul- turais, os modos de inserção urbana e as relações com as políticas pú- blicas das pessoas que se configuram como em “situação de rua” na cidade de Porto Alegre, ressaltando a diversidade de composição tor- na-se um desafio imenso. Também não foi fácil reunir num mesmo grupo de trabalho aca- dêmicos, militantes, sujeitos em situação de rua e profissionais traba- lhadores da política frente à multiplicidade de olhares sobre o tema, coadunando os objetivos da pesquisa com os interesses e as informa- ções que buscavam o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) – financiadores da pesquisa – e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, através do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – sob a coordenação dos professores Ivaldo Gehlen e Patrice Schuch – executores da pesquisa. Professores esses que, junto com a FASC, capitanearam a reali- zação de três estudos diferentes que, entre si, encontram-se interco- nectados, a saber: a) o censo e o estudo das características sociais e as relações com as políticas públicas das pessoas em situação de rua na cidade de Porto Alegre; b) a análise das estruturas e modos de fun- cionamento de instituições de assistência social na cidade destinadas a esse público e, por fim, c) a pesquisa acerca dos desafios e expectativas 15 dos profissionais de atendimento acercade seu trabalho e das políticas na área, através do projeto intitulado “Pesquisa Quanti-Qualitativa da População adulta e de crianças e adolescentes em situação de rua da cidade de Porto Alegre”, levada a cabo durante o ano de 2016. Dito isto, tem-se que a coletânea de artigos que aqui reunimos tem como objetivo trazer ao grande público um conjunto de textos que exploram os dados da referida pesquisa e versam sobre um certo conjunto de temáticas relacionadas à população de rua que – nos dias atuais e tendo como pano de fundo o atual cenário nacional – importa considerar com vistas a se alargar os debates que, hoje, tem sido feitos acerca das populações em situação de rua em Porto Alegre. Porto Alegre, 5 de dezembro de 2017. Mauro Meirelles Editor 17 DINÂMICAS, ESTRATÉGIAS E MUNDO DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA DE PORTO ALEGRE ivAldo Gehlen PAtrice Schuch AlexAndre SilvA virGínio MeliSSA de MAttoS PiMentA MAuro MeirelleS Contexto e razões do estudo A população em situação de rua está presente na maioria das grandes e médias cidades do mundo, desde a séculos e em alguns luga- res a milênio, sendo identificada por nomes que variam com o tempo e com as culturas. Nesta perspectiva a construção e as discussões sobre a sociedade na qual vivemos, em suas múltiplas facetas e nas dimensões da justiça social e dos direitos humanos necessariamente deve incor- porar esse universo com toda sua complexidade e com seus desafios. Os diagnósticos recentes mostram que, no Brasil em geral, e em Porto Alegre, em particular, essa população está crescendo demografi- camente e organizativamente, demonstrando crescente consciência de sua condição e de seus direitos. Certamente este crescimento multifa- cetário tem correlação com a sociedade como um todo, suas dinâmicas e, no Brasil, apresenta correlação com o paradigma capitalista neoli- beral, com as mudanças socioculturais decorrentes das transformações globais que atravessamos contemporaneamente e com mudanças de paradigmas nas políticas públicas e sociais que crescentemente se vol- tam para universos sociais historicamente ignorados ou sequer reco- nhecidos em sua existência. Em Porto Alegre, desde 1992 há preocupação do poder público municipal em formular políticas para essa população, através de suas Secretarias, coordenadas pela Fundação de Assistência Social e Cida- 18 dania (FASC), a partir da qual, construiu-se uma rede de atendimento a partir da Iª Conferência Municipal de Assistência Social (1994) e da Nacional (1995). A partir de então são tomadas iniciativas para conhe- cer de forma sistemática a população em situação de rua. Em 1995, a partir de uma parceria da FASC com Faculdade de Serviço Social da PUCRS, foi realizada a primeira contagem censitária dessa população na cidade de Porto Alegre. Na ocasião foi contabilizada uma população de 222 pessoas nessa condição. Entre necessidades e percalços, houve vácuo na produção de co- nhecimentos e de informações sobre este universo entranhado na so- ciedade portoalegrense. Em 2004 realizou-se um Censo e amostra em profundidade, pelo Instituto de Filosofia e Ciência Humanas (IFCH) da UFRGS, com contrato com a FASC, através de entrevistas estrutu- radas e semi-estruturadas com crianças e adolescentes em situação de rua em seis cidades da região Metropolitana: Viamão, Alvorada, Gra- vataí, Cachoeirinha, Canoas e Porto Alegre. Foram contabilizados nes- sas cidades, 825 crianças e adolescentes nessa situação dos quais, 637 encontravam-se em Porto Alegre (ver Tabela I). O conceito usado foi o do ECA (Estatuto da Criança e Adolescente), ou seja, até 12 anos é criança e daí aos 18 é adolescente). Em 2007/8 foram realizados quatro estudos de populações de Porto Alegre, na época denominadas de em situação de vulnerabilidade social: Censo das Crianças e Adolescentes em situação de rua; Censo e Mundo dos Adultos e situação de rua de Porto Alegre, Quilombolas de Porto Alegre e Indígenas de Porto Alegre. Resultou, além dos relatórios disponíveis na FASC, num livro intitulado: “Diversidade e Proteção So- cial: Estudos quanti-qualitativos das populações de Porto Alegre”. Os resultados demográficos mostraram uma forte diminuição da população de crianças e adolescentes de modo que foram cadastradas 383 crianças e adolescentes em situação de rua, pouco mais da metade do censo anterior. Em grande parte, isso resulta das políticas dos mu- nicípios da GRANPAl e em parte de políticas específicas do Ministério de Desenvolvimento Social e da Assistência Social da Prefeitura de Porto Alegre. O Censo, pioneiro pela metodologia, contabilizou 1203 adultos em situação de rua e entrevistou 382, em profundidade (ques- 19 tionário com mais de 70 questões e mais de 200 informações de cada entrevistado), cerca de um terço. Em 2011 a FASC decidiu fazer um novo Censo da População Adulta, com o objetivo de se certificar de in- formações necessárias para definição de políticas específicas para esta população. Foram cadastrados 1347 adultos, Pouco menos de 150 a mais do que menos de quatro anos antes. Em 2015 a FASC decidiu realizar novo Censo e Mundo de crian- ças e adolescentes e de adultos em situação de rua na cidade. O IFCH (UFRGS) foi selecionado para realizar estes dois estudos articulados com dois outros relativos às Instituições e aos Técnicos desse universo social. Estes estão em outro texto. As pesquisas foram realizadas em 2016, e o relatório final somen- te foi finalizado em março de 2017. O longo percurso é uma amostra da complexidade deste tipo de estudo, pouco ou raramente praticado no Brasil. A grande maioria das cidades não possuem estudos, sequer de diagnóstico deste universo social. O próprio MDS discrimina por ta- manho demográfico as cidades, revelando forte discriminação. Popula- ção em situação de rua é diferente segundo população da cidade? Para o MDS é. Cidades com menos de 200 mil habitantes são discriminadas em relação a estas políticas. O resultado é a pressão local para emigrar os que vivem nessa situação para as cidades que recebem apoio federal. Concentração, sem solução. O resultado de ambos os universos, foram bastante surpreenden- tes demograficamente. O resultado dos adultos surpreendeu também pela territorialidade, pelas dinâmicas organizativas e pelas posições que assumem frente à sociedade portoalegrense em relação à eles. Neste texto, apresentamos uma análise dos principais resultados. Os dados expressos em tabelas estão disponíveis no site da FASC. Essa população é considerada vulnerável ou em situação de risco, porém são conceitos a serem repensados, no sentido de que esta classificação basea- da em pressupostos estabelecidos externamente à ela, emerge em sua origem carregada de preconceitos, que justificariam algumas políticas ou posturas. Pode remeter ao assistencialismo, mantenedor da condição. Uma caracterização simplificada dessa população é composta por jovens e adultos, homens e mulheres, idosos, desempregados, pessoas 20 com sofrimento psíquico, migrantes, dependentes químicos, pessoas com deficiência, sem convivência familiar permanente ou com vínculos familiares fragilizados, famílias monoparentais e famílias ampliadas, sem residência fixa ou expulsas de suas comunidades pelo tráfico ou pela violência. Crianças e adolescentes: um significativo resultado das políticas públicas O conceito “crianças e adolescentes em situação de rua” passou a fazer parte do vocabulário público nos primeiros anos desse século 21, representando a diversidade desse universo e as experiências que dão sentidos e usos do espaço que ocupam das e nas ruas. Até então muitos termos eram utilizados para identificar esse universo, conforme desenvolvido por Magni et Al. (2008). Conceito que se legitimou como identificação, quase identidade, para consubstanciar o pertencimento dessa população complexa que ocupa a rua de jeitos e formas variados em caráter também diverso pela situação transitóriaou intermitente- mente ou permanente. Além disso, o termo expressa uma consideração de que as crianças e adolescentes em situação de rua não apenas moram ou sobrevi- vem na rua, mas constituem formas de organização social e signifi- cados particulares para seus atos, criativamente adquirindo conhe- cimentos, novas formas de relacionamentos sociais e geração de renda. A potencial situacionalidade dessa experiência abre brechas para se pensar outras formas de vinculação social como família e comunidade, deslocando a centralidade do espaço social e simbóli- co da “rua” para outras possibilidades de pertencimento, como por exemplo, familiares e comunitárias (GEHLEN et Al., 2016). Essas formas de pertencimento ao universo rua, estão enfraque- cidas, como resultado positivo de políticas públicas e sociais implemen- tadas, sobretudo, a partir do início do século sob responsabilidade da administração pública local, representada pela FASC, confirmando a tese da eficácia da ação do Estado no resgate e garantias de direitos 21 humanos, em relação a estes universos de cidadãos de baixo reconheci- mento social, e de forte visibilidade pelas características específicas de seu modo de vida. A pesquisa consistiu no cadastramento censitário, cujo campo foi realizado entre os dias 8 de setembro de 2016 e 10 de outubro de 2016. O estudo do modo de vida projetado, se inviabilizou em razão da baixa representatividade dessa população em Porto Alegre. Foram cadastradas 27 Crianças e adolescentes em situação de rua na cidade, no período investigado, utilizando-se a mesma metodologia de campo aplicada aos adultos, ou seja as equipes de entrevistadores abordavam concomitantemente adultos, crianças e adolescentes. Observando-se no decorrer da realização do campo, resultado aquém do previamente esperado, reforçou-se a preocupação, o monitoramento e a participação dos facilitadores (representantes da população adulta em situação de rua na pesquisa) para garantir o cadastramento da totalidade. A primeira tabela mostra a situação encontrada em 2004, in- cluindo outros cinco municípios da Região Metropolitana, revelando- -se a quase inexistência de referência local, no sentido do município de origem, em parte explicado por Porto Alegre e Canoas serem na época as duas cidades com políticas específicas. Em 2008 foram cadastradas 383. Diminuição em parte atribuída às políticas municipais, de organizar serviços de assistência social local para essas pessoas de modo que. neste ano, já se mostrava que as polí- ticas estavam gerando impactos positivos. Em 2016 foram cadastradas 27 crianças e adolescentes em situa- ção de rua, em Porto Alegre. Dessas, 48,1% responderam as informa- ções solicitadas e 51,9% foram respondidos por outras pessoas princi- palmente pela pessoa que se apresentou como mãe ou por amigo. De uma maneira geral tem-se que, estes, tendem a se concentra no Centro Histórico de Porto Alegre (14 dos 27) e no bairro Floresta (com 6) nas proximidades da Estação Rodoviária. Os demais se dispersam. Predo- mina entre estes, o gênero masculino com cerca de 60%. Lembrando que entre os adultos o gênero masculino representa quase 85%. 22 TABELA I – Cidade de procedência e cidade onde passam maior parte do tempo. Cidade Geral De e estão em Porto Alegre De e estão em Freq % Freq % Freq % Alvorada 58 7,1 47 7,4 11 5,9 Canoas 68 8,2 7 1,1 61 32,4 Cachoeirinha 21 2,5 6 ,9 15 8,0 Esteio 18 2,2 --- --- 18 9,6 Gravataí 21 2,5 5 0,8 16 8,5 Porto Alegre 502 60,9 499 78,3 3 1,6 Viamão 99 12,1 41 6,4 58 30,9 Outras 25 2,9 19 3,2 6 3,2 Não respondeu 13 1,6 13 2,0 --- --- Total 825 100 637 100 188 100 Fonte: Perfil / mundo das crianças e adolescentes em situação de rua GRANPAL, agosto 2004. TABELA II – Sexo das crianças e adolescentes censados, 2008 e 2016. Sexo cadastrado Ano pesquisa 2007/8 2016 Freq % Freq % Masculino 270 70,5 16 59,3 Feminino 113 29,5 11 40,7 Total 383 100 27 100 Fonte: Censo das crianças e adolescentes em Situação de Rua de Porto Alegre, 2007/2008 e 2016. Chama a atenção no que se refere à idade, a presença de cerca de 53,8% de crianças de até 6 anos e de adolescentes de 13 a 17 anos, de 38,6%. Mostrando haver concentração nos extremos do estrato. O lo- cal de nascimento mostra concentração na cidade de Porto Alegre. Em 23 2004 cerca da metade desse universo não era de Porto Alegre, inclusive boa parte não tinha referência de pertencimento a Porto Alegre, mas à cidades vizinhas. Em 2008 esse perfil mudou muito e a grande maioria se sentia partícipe da cidadania de Porto Alegre, embora percentual significativo tivesse nascido em outras cidades. Em relação ao local de nascimento mantém-se alto o índice de nascidos em Porto Alegre ou região metropolitana e diminui-se o número de migrantes. As crianças e adolescentes em idade escolar, ou seja maiores de seis anos, estão nas escolas. Porém as menores de seis, não frequentam instituições escolares ou creches, e correspondem à metade das que estão na rua. Em relação à religião, os declarantes informaram que a maioria absoluta (68,2%) não tem religião, os demais se dispersam equitati- vamente entre católicos e pentecostais e minoritariamente. alguns se definem como espíritas. Entre os adultos também verificou-se um cres- cente não identificar-se com uma religião. Contudo, o não ter religião não quer dizer que não acreditem na existência de um ser que se iden- tifique com Deus. O local onde passam a noite ou dormem confirma a tendência, verificada no estudo de 2008, de procurarem locais protegidos. Perce- be-se que crianças e adolescentes que ainda permanecem na condição de “rua” vivem situações que contradizem o ECA e a intencionalidade das políticas. Sobre o lugar no qual passa o tempo de acordado, cerca da metade informou que passa em locais adequados ou estruturados para acolhê-los (Centro POP, EPA, Casas convivência), e a outra metade passa pelas ruas e/ou em locais não estruturados para acolhê-los. Segundo informações da FASC, cabe destacar as mudanças ocor- ridas na rede de atendimento da política de assistência social em Por- to Alegre, a partir da aprovação da Política Nacional de Assistência Social em 2004, culminando com a implantação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS. A FASC, gestora da política no município, buscando adequar-se as orientações da política reordenou sua rede de proteção social básica e especial e a estrutura de gestão. Na rede de proteção social básica houve a ampliação da cobertura do atendimento a população de crianças e adolescentes na faixa etária 24 dos 0 aos 17 anos por meio do Serviço de Convivência e Fortalecimen- to de Vínculos – SCFV e do atendimento as famílias nos 22 CRAS e 37 Serviços de Atendimento a Família – SAF. Na rede de Proteção Social Especial de Média Complexidade houve a implantação de 9 CREAS com a oferta do PAEFI, do Serviço de Acompanhamento de Medidas Socioeducativas e do Serviço de Abordagem Social para a população adulta e de crianças e adolescentes em situação de rua e suas famílias. A abordagem das crianças e adolescentes é realizada através de equipes contratadas por meio do convênio Ação Rua, assinado em mar- ço de 2007. Na rede de Proteção Social Especial de Alta complexidade em 2006 houve o reordenamento da rede sócio-assistencial dos servi- ços de acolhimento institucional para crianças e adolescentes através da abertura de novas vagas por meio da implantação de (05) cinco Ca- sas Lares. Em 2008 implantou-se 12 Abrigos Residenciais Municipais dos quais, 02 Abrigos para adolescentes do sexo masculino, totalizando a abertura de 92 vagas na rede própria. A partir de 2010 foram abertas novas vagas até o primeiro semes- tre de 2015. Embora a medida de acolhimento institucional de crian- ças e adolescentes se constitua de caráter excepcional, priorizando-se sua permanência junto à família e comunidade, a existência de uma retaguarda de acolhimento é fundamental para garantia da proteçãointegral dos sujeitos. Diante desse conjunto de mudanças compreende-se a redução do número de crianças e adolescentes em situação de rua, tendo em vista que parte significativa dessa população se encontra inserida na rede de atendimento da política de assistência social municipal. Perfil. Cidadania e Identidade da População Adulta em situação de rua em Porto Alegre A realização do estudo foi do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS, através de contrato com a FASC (Fundação de Assistência Social e Cidadania) da prefeitura de Porto Alegre. Reali- zou-se detalhada preparação com formação para os técnicos da pre- feitura, para os estudantes que participaram do estudo e para repre- 25 sentantes da população em situação de rua, principalmente lideranças do MNPR/RS (Movimento Nacional da População de Rua, seção RS) e pela organização Boca de Rua, que publica um jornal com o mesmo nome. A participação desses representantes foi fundamental para os resultados obtidos e também para validação social do estudo. Através de reuniões conjuntas de todos os envolvidos, deta- lhou-se as demandas e expectativas, construiu-se os instrumentos e realizou-se o mapeamento prévio à realização do campo (cadastros e entrevistas). Seis equipes de campo compostas por um facilitador (nes- te caso, um representante da população de rua), um supervisor e três entrevistadores percorreram durante 30 dias os locais identificados ou informados, sendo que no Centro Histórico e nos bairros próximos (Floresta, Bom Fim e Cidade Baixa) foram feitos pelos menos três per- cursos para cadastro e entrevistas em dias e horários diferentes em cada local. Em bairros como Menino Deus, Santana e Navegantes, pelo menos duas vezes. Nos demais bairros, uma ida ou duas, quando neces- sário, de uma equipe. Características gerais O estudo censitário da população adulta de rua na cidade de Por- to Alegre, realizado entre 8 de setembro e 10 de outubro de 2016, perfazendo rotinas de trabalho de campo que abarcaram percursos previamente mapeados pelas ruas em turnos manhã, tarde e noite. To- dos os locais mapeados, ou seja, marcados como potencialmente sendo acolhedor de pessoas nessa condição, foram visitados por equipes de campo. Equipes constituídas de cinco pessoas, três entrevistadores, um supervisor e um facilitador. Foram identificadas 2.115 pessoas vivendo nessa condição em Porto Alegre, sendo 1758, com informações cadastrais censadas. Os demais 357 foram contabilizados, porque encontrados com registro de local, horário, e algumas características sempre que acessíveis. Através de métodos de controle informacional eliminou-se repetições e casos não comprovados de estarem na condição de rua. Inclui-se neste total os que se recusaram a dar entrevista e os que no momento da aborda- 26 gem apresentavam condições alteradas e/ou não estavam em condição de responder a entrevista. Dos 1785 censados selecionou-se uma amostra de 467 – aproxi- madamente 26% – para responderem uma entrevista em profundida- de, a fim de se obter informações sobre hábitos cotidianos, identidades sociais e étnicas, condições socioeconômicos e culturais, estratégicas de sobrevivência, de trabalho e de renda, formas de sociabilidade, re- presentações sociais, relações e avaliações das instituições e suas prin- cipais demandas. Para esta amostragem, manteve-se na medida do pos- sível a representatividade por gênero, por escolaridade e por idade. A alta amostra, garantiu confiabilidade das informações. Em relação ao total da população em situação de rua em Porto Alegre, verifica-se que ela significa ao redor de 0,14 % do total, dentro da margem de expectativa para as grandes cidades brasileiras (entre 0,1% e 0,15%). Em comparação com o último censo realizado na cidade em 2011 (FASC, 2012), que abarcava a mesma metodologia de pesqui- sa, esse número representa um acréscimo de 57%. Efetivamente houve crescimento real dessa população e, em pequena medida, um aperfei- çoamento metodológico, de mapeamento. Este crescimento contribui com impacto na visibilidade e traz desafios importantes para as políti- cas públicas e sociais. O crescimento está acompanhado de várias mu- danças, sobretudo, territoriais e de comportamentais dessa população, identificados. A distribuição ou ocupação territorial na cidade aponta para no- vas tendências, em especial, de descentralização e de afirmação de sua presença em alguns bairros, mais distantes do Centro Histórico, como a Restinga e o Sarandi. Também se verifica aglomeramento em locais mais protegidos, ou seja, menor dispersão entre eles, talvez por razões ligadas à segurança, sobrevivência e estratégias de luta. Como espera- do a forte concentração continua no Centro Histórico (40%) e bairros próximos ao Centro Histórico. Na sequência os bairros Floresta, Me- nino Deus, Cidade Baixa e Navegantes, conforme mostra a tabela III. 27 TABELA III – Bairro onde foi realizada a entrevista. Bairro 2007 2011 2016 Freq % Freq % freq % Agronomia --- --- 4 0,3 3 0,2 Anchieta --- --- 4 0,3 --- --- Azenha 71 5,9 47 3,5 83 4,7 Bela Vista /Boa Vista --- --- 2 0,2 --- --- Bom Fim 49 4,1 59 4,4 34 1,9 Bom Jesus 47 3,9 45 3,3 25 1,4 Camaquã / Cavalhada --- --- 7 0,5 --- --- Centro histórico 277 23,0 368 27,3 598 39,7 Floresta 70 5,8 --- --- 211 12,0 Chacara das Pedras --- --- 3 0,2 --- ---- Cidade Baixa 111 9,2 67 5,0 98 5,6 Cristo Redentor 4 0,3 12 0,9 6 0.3 Cristal --- --- 13 1,0 --- --- Cruzeiro 5 0,4 13 1,0 --- --- Farroupilha 40 3,3 10 0,7 34 1,9 Floresta 191 15,9 134 10,0 211 12,0 Glória --- --- --- --- 13 0.7 Higienópolis 2 0,2 1 0,1 --- --- Hípica 1 0,1 1 0,1 --- --- Humaitá --- --- --- --- 6 0,3 IAPI --- --- 4 0,3 -- --- Independência 11 0,9 2 0,1 13 0.7 Intercap 2 0,2 6 0,4 --- --- Ipanema 9 0,7 7 0,5 10 0,6 Jardim Botânico 22 1,8 11 0,8 8 0,5 Jardim Itu 2 0,2 6 0,4 --- --- Jardim do Salso --- --- --- --- 3 0,2 28 Jardim Ipiranga/ Sabará --- --- 2 0,1 3 0.2 Jardim Lindóia 4 0,3 5 0,3 17 1,0 Jardim Planalto 2 0,2 1 0,1 --- --- Jardim Leopoldina --- --- 28 2,1 --- --- Lami --- --- --- --- 1 0,1 Lomba do Pinheiro --- --- 1 0,1 6 0,3 Mário Quintana --- --- 1 0,1 --- --- Medianeira --- --- 4 0,3 3 0,2 Menino Deus 141 11,7 104 7,7 131 7,5 Minuano --- --- 1 0,1 --- --- Moinhos de Vento 1 0,1 21 1,6 --- --- Navegantes 34 2,8 102 7,6 102 5,8 Nonoai --- --- 2 0,1 5 0,3 Parque dos Maias 4 0,3 --- --- --- --- Partenon 2 0,2 18 1,3 14 0,8 Passo da Areia 6 0,5 10 0,7 21 1,2 Passo das Pedras --- --- 5 0,4 --- --- Petrópolis / Alto Petrópolis 5 0,4 6 0,4 1 0,1 Porto Seco --- --- 2 0,1 --- --- Praia de Belas 4 0,3 53 3,9 51 2,9 Protásio Alves --- --- 2 0,1 --- --- Restinga 4 0,3 6 0,5 22 1,3 Rio Branco --- --- 14 1,0 4 0,2 Rubem Berta 2 0,2 6 0,4 20 1,1 Santa Cecília --- --- --- --- 4 0,2 29 Santa Tereza --- --- 4 0,3 1 0,1 Santana 11 0,9 62 4,7 60 3,4 Santo Antônio --- --- 2 0,1 --- --- São Geraldo 38 3,2 23 1,7 5 0,3 São João 6 0,5 3 0,2 4 0,2 São Sebastião --- --- 1 0,1 --- --- São José 1 0,1 --- --- 4 0,2 Sarandi 2 0,2 11 0,8 5 0,3 Teresópolis 7 0,6 5 0,4 5 0,3 Três Figueiras --- --- 2 0,1 --- --- Tristeza 6 0,5 6 0,4 2 0,1 Vila Ipiranga --- --- 2 0,1 6 0,3 Vila Jardim --- --- 3 0,2 --- --- Vila Nova --- --- --- --- 10 0,6 Não informado 9 0,7 3 0,2 Total 1203 100 1347 100 1758 100 Fonte: Pesquisa Perfil e Mundo dos Adultos em Situação de Rua de Porto Alegre, 2007 e Cadastro dos Adultos em Situação de Rua de Porto Alegre, 2011 E 2016. O perfil populacional revelado pelos dados de campo, aponta que essa população na cidade de Porto Alegre é majoritariamente masculi- na (85,5%). Na Comparação com o estudo anterior a expectativa de que a representatividade da população feminina, na época 18,2%, atualmen- te 13,8%, não se concretizou. A redução no crescimento do percentual de mulheres mostrou também forte diminuição para 10,5% o aumento desse universo, enquanto o masculino cresceu 52,7%. Isto pode indicar bons resultado de políticasespecíficas para este segmento. Os que nasceram em Porto Alegre ou na região metropolitana (59,1%), são maioria e seu crescimento de cerca de sete por cento, mostra que ela se reproduz crescentemente na cidade. Dos que não nasceram em Porto Alegre, aufere-se que a mobilidade territorial se realizou principal- mente na direção do interior do Estado (32%) para capital. Há também um percentual imigrado de outros estados e alguns poucos de outros países. Leve-se em consideração que 51,1% vive na cidade há mais de 20 anos. 30 O estudo mostrou também haver um envelhecimento da popula- ção de rua nesses últimos anos, pelo aumento dos maiores de 35 anos (61,4%), eram menos de 50% em 2008 e, consequente, uma diminuição no número dos mais jovens. Em sua maioria, possuem o ensino fundamental incompleto (57,4%), porém no geral o perfil de escolaridade é semelhante ao das populações pobres da cidade, alguns possuem curso universitário. A identificação através da posse de documentos importantes, como Iden- tidade (65,4%), CPF (61,4%) e Certidão de nascimento (61,3%) aumen- tou nestes últimos anos. Pois, cada vez mais é necessário estar docu- mentado para aceder a serviços e/ou a algum tipo de benefício social. O pertencimento étnico foi obtido por resposta aberta e a agre- gação posterior mostrou que se autodeclararam negros (24,5%) e par- dos, (12,4%), ou seja, 36,9% dessa população, ao passo que os autode- clarados brancos são 34,3% do total. A participação em organizações e o conhecimento de representa- ções da PopRua melhorou bastante, especialmente do Movimento Na- cional de População de Rua e do Jornal Boca de Rua. Trabalho, Renda e Formação Profissional A população de rua de Porto Alegre majoritariamente exerce al- guma atividade que lhe atribui legitimidade social de pertencimento à cidade. Entre as principais atividades, reconhecidas socialmente como trabalho, por eles citadas, estão: a reciclagem (23,9%), a jardinagem (14%) e a lavação, o cuidado de carros, a flanelinha (12,8). Essas ativi- dades no geral correspondem à sua principal renda. De modo geral, boa parte (42,5%) sustenta ter alguma forma- ção profissional. Alguns afirmaram, possuir mais de uma qualificação. A maioria (57.5%), porém, afirmou não ter no seu currículo nenhuma qualificação específica, o que indica uma demanda a ser observada, aci- ma de tudo se levarmos em conta sua relação com as oportunidades de trabalho e renda. 31 Tabela IV – Principal atividade ocupacional destinada à sobrevivência Rendimento mensal* Freq % Catador mats recicláveis/ reciclagem 106 23,9 Jardinagem 62 14,0 Lava/guarda carros/flanelinha 57 12,8 Pede/achaca 44 9,9 Faz programa/prostituição 39 8,8 Construção civil/pedreiro/pintor 28 6,3 Vendedor de rua 25 5,7 Bico/biscate 22 5,0 Limpeza/faxina 14 3,1 Nada 14 3,1 Distribui panfletos 12 2,7 Artesanato 5 1,1 Carga e descarga 5 1,1 Outro 11 2,5 Total 413 100 Fonte: Pesquisa Perfil e o Mundo dos Adultos em Situação de Rua de Porto Alegre, 2016 (N=413). Como resultante, quase todos possuem alguma renda, mesmo baixa para os indicadores da cidade de Porto Alegre, mas que ajuda a garantir soluções, alternativas e sobrevivências em geral na rua. Mais de um terço (38,2%) percebe até meio salário mínimo e cerca de um terço (31,6%), um salário mínimo, perfazendo um total de 69,8% que recebem até um salário mínimo. Alguns sustentam, como revela a tabe- la, que alcançam renda superior a três salários mínimos. Considerando o bolsa família como referência, constata-se que a maioria da população desse universo possui renda superior à que serve de referência ao bolsa família, pois trata-se, neste caso, de renda individual, não familiar. Essa renda é gasta no cotidiano, quase não há poupança ou investimento patrimonial. 32 Tabela IV – Rendimento mensal em Salários Mínimos (SM). Rendimento mensal* Freq % Até 1/2 SM (Até R$ 440,00) 146 38,2 De mais de ½ a 01SM (De R$ 441,00 a R$ 880,00) 121 31,6 De mais de 01 a 1 ½ SM (De R$ 881,00 a R$1,320,00) 62 16,2 De mais de 1 ½ a 02 SM (De R$ 1.321,00 a R$ 1.760,00) 28 7,3 De mais de 02 a 03 SM ( De R$ 1.761,00 a R$ 2.640,00) 22 5,7 De mais de 03 a 04 SM (De R$ 2.641,00 a R$ 3.520,00) 2 0,5 Mais de 04 SM (Mais de R$ 3.520,00) 2 0,5 Total 451 100 Fonte: Pesquisa Perfil e Mundo dos Adultos em Situação de Rua de Porto Alegre, 2016 (N=451). *Salário Mínimo considerado de R$ 880,00 em vigor no Brasil, em setembro de 2016. A população se autorepresenta afirmativamente em relação à identificação com uma profissão, sendo 81,4% os que afirmam possuí- rem profissão, embora somente cerca de 42% afirmam possuir quali- ficação, como curso, treinamento etc. Este percentual não oscilou se considerarmos os percentuais da pesquisa de 2007/08. Ida à rua e as relações familiares De um modo geral, um quarto (25,2%) da população investigada está há menos de 1 ano na rua. Por outro lado, agregando os dados daqueles que estão há mais de 5 anos na rua, temos quase a metade da população (47,8%), o que revela uma permanência na situação de rua de mais longo prazo. Comparando os dados de 2016 com as pesquisas anteriores, vê-se uma tendência de cronicidade da situação de rua, com crescimento dos percentuais de tempo em faixas temporais de mais de 10 anos aumentando em cerca de 10% entre os que estão na rua a mais de 10 anos. 33 TABELA V – Tempo em que vivem em situação de rua, Porto Alegre. 2008, 2011 e 2016. Tempo em que está na rua 2007-8 2011 2016 % % % Há menos de 1 ano 29,3 22,5 25,3 De 1 a 5 anos 28,3 29,7 26,9 De 5 a 10 anos 18,4 17,8 18,6 De 10 a 20 anos 14,1 16,2 19,3 Mais de 20 anos 5,6 10,0 9,9 NS/NR 4,3 3,8 --- Total 100 100 100 Fonte: Pesquisa Perfil e Mundo dos Adultos em situação de Rua de Porto Alegre, 2007 (N=?), 2011 (N=1347) e 2016 (N=1516). Os motivos para a ida para a rua são muitos diversos. Desde os relacionados à instabilidade afetiva e econômica, a violência familiar, ao uso de álcool/drogas (24%), e outras situações diversas, gerando impactos pessoais. Se considerarmos que as “separações e decepções amorosas”, os “maus tratos na família”, “não se sentir bem com a fa- mília”, a “morte de algum familiar”, o “envolvimento da família com o tráfico de drogas” e o “uso de drogas ou o alcoolismo na família de origem” são situações que envolvem pessoas próximas e/ou do núcleo familiar de origem, verificamos que 32,5% das motivações explicitadas envolveram questões de conflitos de ordem familiar. Neste sentido, a revelação do envolvimento com drogas e/ou ál- cool e à decisão de preservar a família em relação aos danos e conflitos que a dependência aponta para a necessidade de pesquisas futuras para investigar de forma apropriada as correlações existentes entre variá- veis tais como: instabilidade familiar, problemas com dependências e violência. 34 TABELA VI – Motivações para terem ido para a rua Por que / como veio para a rua Freq % Uso de drogas/ Alcoolismo próprio 112 24,9 Conflitos e/ou maus tratos na família (violência) 56 12,5 Separação/decepção amorosa 45 10,0 Desemprego 40 8,9 Por causa da morte de algum familiar 33 7,4 Não tem família / não se sente bem na família 26 5,8 Perda da moradia 23 5,1 Porque gosta / opção 23 5,1 Expulsão de casa 14 3,1 Uso de drogas/Alcoolismo na família de origem 13 2,9 Endividamento/falta de dinheiro 10 2,3 Sofre ameaças / jurado na comunidade 9 2,0 Saída do Sistema Penitenciário (Prisões) 7 1,6 Porque estava doente 5 1,1 Porque a família está envolvida com o tráfico 4 0,9 Saída da FASE/FEBEM 1 0,2 Outro 28 6,2 Total 449 100 Fonte: Pesquisa Perfil e o Mundo dos Adultos em Situação de Rua de Porto Alegre, 2016. (N=449) Mais de 75% informou não ter outro familiar na rua, revelando fraco vínculo familiar ou anterior ao estar na rua, entre eles. As rela- ções com familiares, mostra-se cada vez mais tênue. Aumentou signi- ficativamente o percentual (de 24,5% em 2008 para 39,9% em 2016) daqueles que não mantêm nenhum contatocom a família há mais de 5 anos. Em relação ao relacionamento marital na rua, menos de um 35 quarto tem companheiro(a) fixo(a), percentual bastante semelhante ao estudo anterior. As mulheres assumem mais a vida do tipo conjugal, possivelmente por proteção. No que se refere à existência de prole, 76% declarou ter filhos, dos quais, menos de um terço nasceu quando estava na rua. Seus filhos não vivem na rua. Condições de permanência na rua A maior parte da população estudada dorme cotidianamente e prioritariamente em lugares de risco e improvisados e com forte expo- sição ao ambiente natural (52,1%). A opção por dormir em lugares ins- titucionalizados variou pouco entre uma pesquisa e outra, mostrando a pouca eficácia dessa política. Os espaços institucionalizados para pernoi- tar são usados por pouco mais de um terço (38,8%) dos entrevistados. Constata-se tendência pequena a aumentar o uso de serviços e equipamentos oferecidos a eles, permanecendo no entanto seu baixo uso. Não obstante, mais da metade (52,1%) ainda dorme cotidianamen- te e prioritariamente em lugares de risco e improvisados e com forte exposição ao ambiente natural. É relevante o fato de que esses espaços desprotegidos também aparecem com frequência relativamente eleva- da como segunda opção para dormir (28,1%). Disto, conclui-se que mais de 60% da população adulta de rua em Porto Alegre pode ser caracterizada como “moradora de rua”, já que este é um indicador central. As recentes estratégias que estão adotando como construção de barracas para abrigo noturno, aglomeração em locais me- nos desprotegidos, entre outros, não indica mudança desta condição e pode, inclusive, estar apontando para uma busca de diminuição de riscos, tão somente. Isto porque o que mais chama atenção em relação às carac- terísticas negativas da situação de rua, mais do que a discriminação e a estigmatização, é a sensação de estar vulnerável à violência. Do cotidiano e uso das instituições As companhias diárias na rua, mostram fraca constituição de vínculos entre eles. Menos da metade (44,1%) informou que passam o 36 tempo que não está trabalhando ou ocupado com atividades e obriga- ções formais, com parceiros de rua, colegas de trabalho e amigos em geral. Inclui-se os cerca de 9,5% que passam em espaços institucionais, de acolhida. Os demais passam perambulando, em praças, casas ou ter- renos desocupados. Quase por consequência, as necessidades íntimas e de higiene corresponde aos dados de locais que frequentam, para 40,1%, essas necessidades são realizadas em instituições de acolhida, sejam albergues, abrigos, Centro Pop ou Caps. Banheiros e chuveiros públicos, são utilizados por cerca de 22%. A alimentação, de maneira geral, atende à demanda e mostrou crescimento do uso do Restaurante Popular (48,8%), e cerca de 40% afirmou alimentar-se em locais de distribuição de refeições, chamados de “sopão”. Demais locais como entidades filantrópicas, igrejas, centros espíritas, terreiros etc. são bastante frequentados por quase metade da PopRua. A mesma pessoa por vezes frequenta mais de um desses locais em dias ou turnos diferentes, por isso supera os cem por cento. Os de- mais, cerca de um quarto dessa população se alimentam do que ganham em residências, estabelecimentos comerciais, especialmente restauran- tes, ou compram. A compra não necessariamente é o principal acesso, no geral é complementar. Nota-se um aumento da importância e da confiança nos equipamentos e instituições que ofertam alimentação. A saúde representa crescente preocupação e aumentam os relatos de doenças da população de rua de Porto Alegre, especialmente às as- sociadas ao uso de álcool e de drogas. A melhoria da informação sobre adoecimento e/ou problemas de saúde fez com que se preocupem mais e se diagnostiquem melhor. A tipologia de doenças ou problemas em relação à saúde permanece mais ou menos inalterada, o que se alterou razoavelmente foi a percepção de incidências no sentido de um claro agravamento das condições de saúde. O agravamento maior por eles percebido refere-se à dependência química/álcool, que passou de 40,1% em 2008 para 49,6% em 2011 e 58,1% em 2016. O segundo maior pro- blema de saúde ressaltado, se refere ao dentes ou saúde bucal (47,8%) apresentando pequena diminuição. Na sequência, aparece o que gene- ricamente foi denominado de dores no corpo (43,7%), que manteve um percentual semelhante ao observado em 2011. 37 A violência se constitui num dos mais graves problemas para a população de rua de Porto Alegre. Mais da metade (60,6%) respondeu já ter vivenciado situação de violência, incluindo os 47,5% que viven- ciaram essa situação mais de uma vez. Considerando a violência sim- bólica, cerca de 45% já foi expulso de algum lugar, desse percentual 36,5% foi de locais ou órgãos públicos, como ruas, calçadas, praças, parques, marquises e até mesmo hospitais e postos de saúde. Em esta- belecimentos comerciais, incluindo bancos, 21,1% afirma que já sofreu discriminação. No geral eles percebem que sua presença é indesejada e recebem tratamentos negativos como por exemplo, com desconfiança (82,4%) e com medo (80,7%) dos entrevistados. O preconceito foi apontado por 79,4%, mostrando que essa população tem perfeita consciência do ambiente social em que vivem, produzindo a falta de respeito, esta, apontada por mais da metade dos entrevistados como sendo uma con- sequência do preconceito. Para eles, a pior consequência destas consta- tações de negativização de suas vidas é a sensação de vulnerabilidade, sobretudo, frente à violência. Os dados da pesquisa também apontam para uma maior percep- ção de adoecimento e de problemas de saúde, em relação às anteriores em quase todas as categorias, à exceção das doenças de pele, que dimi- nuíram pela metade e as cardíacas, que se mantiveram estáveis. O uso ou consumo de produtos que podem ser prejudiciais à saúde se mantém elevado, especialmente o cigarro consumido por 51,8% todos os dias, seguido por bebidas alcóolicas, consumidas diariamente por 24,6% e por 36,9% não cotidianamente. As drogas ilícitas mais consumidas são maconha e crack. O aumento na percepção de doenças, sugere a preo- cupação e possivelmente inovações nas políticas públicas. Dinâmicas novas e políticas convencionais Algumas especificidades da população de rua de Porto Alegre re- metem à conclusões a respeito das dinâmicas recentes e questionadoras. Metade dessa população afirmou ter nascido em Porto Alegre, quase 10% maior que em 2007. Houve diminuição do percentual de população 38 feminina de cerca de 20% para cerca de 14% em 2016. O tempo de mo- radia em Porto Alegre aumentou, e o tempo que está na rua, também. O tempo de rua é muito importante para políticas de deman- das, pois quanto maior este tempo, maior o vínculo que estabelecem no sentido de construírem condições e artimanhas de sobrevivência e de segurança. Em alguns anos, perde-se vínculos, sobretudo com seu meio de origem e mudam-se hábitos e vínculos. Com o tempo, aprendem as artimanhas desse modo de vida e se ajustam a elas, e passam a reivin- dicar a partir dessa condição. Os contatos com familiares ou com as pessoas de convivência no período anterior à rua se alongam Mais de um terço (37%), há mais de 10 anos não tem nenhum contato dessa natureza. Não se pode transpor o conceito dominante, de origem cristã, de família. Em Porto Alegre, há algumas experiências de criação de vínculos societários entre eles, com compromisso, que chamam de comunidade. Incipientes ainda, mas podem estar apontando perspectivas interessantes. Há situações de riscos que a situação de rua agrega ao cotidia- no. Por estarem em condições de desabrigo corporal e sofrerem pre- conceito social cotidianamente, os riscos e desafios que enfrentam são proporcionais. Afetam, por exemplo, de forma impactante a saúde tan- to corporal quanto mental. A confissão generalizada de medo de não acordar ou de morrer como que do nada,de não poder utilizar deter- minados espaços ou meios (transporte, praças, áreas de lazer), o alto índice de fumantes, de consumo de álcool ou de drogas, manifesta essas condições ou sensações de risco constante. Refinando melhor a análise, constata-se que a opção por dormir em lugares institucionalizados ou protegidos variou pouco nos últimos oito anos. Os Albergues têm maior procura. É provável que o peque- no incremento da utilização dos albergues como dormitório, possa ter relação com a diminuição do uso de abrigos. Não obstante, mais da metade ainda dorme cotidianamente e prioritariamente em lugares de risco e improvisados e com forte exposição ao ambiente natural. É rele- vante o fato de que esses espaços desprotegidos também aparecem com frequência relativamente elevada como segunda opção. Deste modo, conclui-se que, à semelhança com os resultados de estudos anteriores, 39 cerca de 60% da população estudada pode ser caracterizada como “mo- radora de rua”. Pois, a cidade de Porto Alegre possui atrativos para essa população, como recursos de sobrevivência e renda (classe média que usa seus serviços como segurança, guarda de carros, limpeza, cole- ta de material reciclável etc.) que dá sustentabilidade e reprodução de boa parte dessa população Encruzilhada e futuro complexos O perfil etário da população de rua adulta de Porto Alegre apre- senta tendência ao envelhecimento e se mostra bastante diversificada no que se refere a sua origem étnica e ao seu pertencimento religioso. Predomina o pertencimento católico e alto índice de ateus. No que se refere a escolaridade dessa população tem-se que 70% declara possuir Ensino Fundamental incompleto ou ser analfabeto, percentual esse, se- melhante ao observado entre as populações de baixa renda da cidade. De uma amenizar geral, a maioria obtém algum rendimento pessoal (cerca de 70% até um Salário Mínimo) e cerca de um terço recebe be- nefícios sociais públicos, como bolsa família, no caso remetido à filhos que não vivem na rua. Mais da metade dorme em lugar desprotegido (praças/parques, marquises, pontes etc.) de forma regular. Cerca de 10% também dorme nestes locais intermitentemente, o que significa que, para cerca de 60%, as políticas de acolhimento e proteção não surtem o efeito esperado. O local de dormida é fundamental para caracterizar a condição de estar na rua, pois caracterizaria o conceito de morador de rua, propriamente. Além da exposição aos riscos de segurança e para a saúde. As políticas de alimentação e de vestuário, de maneira geral es- tão atendendo às demandas, sendo estas, aparentemente as únicas que atendem de maneira satisfatória, na perspectiva desse população. Em relação às políticas que se referem a saúde e bem estar, à segurança, ocupação do tempo livre, o estudo mostrou situação crítica, inclusive de piora nos últimos anos, na percepção desses usuários. Atender a essas demandas permanece sendo um dos principais desafios para a sociedade e para a administração de Porto Alegre. 40 Em linhas gerais tem-se que os dados apresentados mostram uma dinâmica de vida marcada pelo reconhecimento da situação de subalter- nidade e de falta de reconhecimento social. Embora haja, de um lado, maior visibilidade política e numérica da população em situação de rua na cidade, o que se percebe através das percepções trazidas pelas pessoas estudadas é uma intensificação de estigmas e atribuições negativas. O uso de serviços oferecidos para esta população continua mar- cando o cotidiano de escassa parte da população estudada, o que cons- titui um desafio para as políticas públicas. E, neste sentido, reconhecer a existência social das pessoas em situação de rua pode ser admitir que o rumo das políticas talvez não seja aquele da simples tentativa de sua supressão através de políticas assistencialistas ou de controle social punitivo, mas atenção e, sobretudo, transformação dos complexos pro- cessos sociais que as configuram, na sua dramaticidade e luta cotidiana. É importante registrar que o sucesso obtido tanto nesta última pesquisa quanto nas anteriores deveu-se em boa medida por estarem pautadas em três princípios fundamentais, rigorosamente respeitados, a saber: a confiança, a responsabilidade e a idoneidade/honestidade. Confiança na equipe com quem se trabalha, o que exige postura vigilante de transparência, evitando constrangimentos, estimulando a liberdade e o engajamento de todos com os resultados e, portanto com o processo. Responsabilidade de todos os participantes no que se refere às tarefas e compromissos. Ser honestos e idôneos para com todos os envolvidos na pesquisa de modo que, inspire confiança e confiabilidade nos resultados convencendo o informante da importância da sua parti- cipação, para si próprios. A experiência da UFRGS nestes últimos 14 anos de parcerias e estudos desse universo social, para além do desafio metodológico – “coisa para louco”, se ouvia lá no começo –, é gratificante observar que seus resultados mobilizam boa parte da cidade, tanto os meios de comunicação, quanto as instituições e a população em geral. Apesar de numericamente pouco expressivo, cerca de 0,0012%, da população da cidade, esta, ocupa um lugar territorial físico e simbólico, importante. Não há quem não tenha vivido alguma experiência, contato, conversa, observação de soslaio ou em forma de desafio, observando seus cachor- 41 ros bem cuidados e fiéis aos donos, trocado algo, parado diante do noti- ciário para ouvir sobre eles, lido uma reportagem ou artigo acadêmico, lamentado a violência gratuita sobre algum deles etc. A presença diu- turna de uma quase negação da existência provoca desacomodações e desperta na população sentimentos humanos. Perceber e mostrar com dados e informações o grau e a profun- didade do pertencimento deles à cidade, o compromisso com a preser- vação ambiental que lhes dá abrigo e sombra, com a coleta dos resíduos recicláveis que produzimos, com a crescente consciência coletiva de uma identidade em construção e de um desafio cotidiano que se expres- sam através de suas precárias condições, que os mantêm vivos, alguns por mais de 30 anos na rua, desafiando essa precariedade. Disto decorre que, tais estudos estudos estão cada vez mais sen- do utilizados por essa população que, através de suas organizações, de mediadores e/ou instituições que atuam junto à eles, por jornalistas, políticos e pessoas do direito institucional para posicionar-se e por ve- zes proporem iniciativas e/ou questionamentos sobre esse tema. É fato que as populações em situação de rua estão presentes em quase todas as sociedades, de forma generalizada na América Latina, nos Estados Unidos e em alguns países da Europa ocidental, dentre outros. Em muitos países como o Brasil, estão presentes em espaços não citadinos ou rurais, como os trecheiros, andarilhos e biscateiros. Contudo, há, no Brasil, uma tendência a se observar uma maior con- centração destes nas regiões metropolitanas, onde há maior disponi- bilidade de recursos garantidores de sobrevivência, de invisibilidade ou anonimato. No Brasil, o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário – MDS contempla com apoio a políticas para essa população às cidades com mais de 200 mil habitantes. Um arbítrio inexplicável, discriminatório, pois burla a isonomia de tratamento entre cidadãos que vivem as mesmas condições. Todavia, a questão central que permanece reside em se oferecer políticas de bem-estar e compensatórias, para garantia de seus direitos de cidadania, sem impor, a estes, uma condição civilizatória. Valorizar as experiências e perscrutar suas demandas, por mais simples que se- jam, como, por exemplo, banheiros abertos 24 horas, acesso fácil a água 42 potável, acesso fácil aos serviços de saúde, políticas de estímulo a ren- da, entre muitas iniciativas que emergem no debate com eles mesmos, são apenas alguns dos caminhos a partir dos quais pode-se construir um novo paradigma em relaçãoa essas populações e as políticas a ela correlatas. Disto, conclui-se que: Reconhecer a existência social de crianças e adolescentes em situação de rua em Porto Alegre, por todos, como cidadãos que integram nosso cotidiano e devam usufruir dos direitos e das condições saudáveis de vida permanece como tarefa comum, de todos nós, além das responsabilidades das instituições. [Pois] A responsabilização não pode ficar adstrita aos órgãos públicos ou instituições que prestam serviços formalmente para essa população (FASC, 2016). E, neste sentido, tem-se que a superação de políticas assistencia- listas, objeto de esforços nas últimas três décadas em Porto Alegre, não pode esmorecer e ser substituída por métodos de controle social puni- tivos ou restritivos, mas devem consolidar-se em cultura da cidade para acompanhar suas demandas e as transformações dos complexos proces- sos sociais que as configuram, na sua dramaticidade e luta cotidiana. 43 Referências FASC. Relatório Final de Pesquisa: Cadastro de Adultos em Situa- ção de Rua de Porto Alegre/RS. Porto Alegre: FASC, 2012. FASC. Relatório Final de Pesquisa: Cadastro de Adultos em Situa- ção de Rua de Porto Alegre/RS. Porto Alegre: FASC, 2012. In: http:// www2.portoalegre.rs.gov.br/fasc/default.php?pg=2&p_secao=120 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Rela- tório final da pesquisa: Cadastro de Adultos em Situação de Rua e Estudo do Mundo da População Adulta em Situação de Rua de Porto Alegre. Porto Alegre, 2008 (Mimeo). GEHLEN, I.; SCHUCH, P.; PIMENTA, M. M.; VIRGÍNIO, A. S.; MEIRELLES, M. Relatório quanti qualitativo, contendo o Cadas- tro censitário e o Modo de vida cotidiana da População Adulta em Situação de Rua de Porto Alegre. IFCH/UFRGS – FASC, 2016, In: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/fasc/default.php?p_secao=120 GEHLEN, I.; SCHUCH, P.; PIMENTA, M. M.; VIRGÍNIO, A. S. Ca- dastro de crianças e adolescentes em situação de rua de Porto Alegre. Relatório pesquisa UFRGS-FASC. Porto Alegre, 2016a (em: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/fasc/default.php?p_secao=120b) GEHLEN, I.; SILVA, S. R.; BORBA, M. (Orgs.). Diversidade e Proteção So- cial: estudos quanti-qualitativos das populações de Porto Alegre: afro- -brasileiros; crianças, adolescentes e adultos em situação de rua; coleti- vos indígenas; remanescentes de quilombos. Porto Alegre, Century, 2008. MAGNI, C. T.; SCHUCH, P.; GEHLEN, I.; DICKEL, I. K. Crianças e adolescentes em situação de rua em Porto Alegre. In: GEHLEN, I.; SILVA, M. B.; SANTOS, S. R. (Orgs.). Diversidade e Proteção So- cial: Estudos quanti-qualitativos das populações de Porto Alegre. Porto Alegre: Century, 2008. Pp. 71-92. 45 EQUIPAMENTOS, SERVIÇOS E VISÕES SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA PESSOAS ADULTAS EM SITUAÇÃO DE RUA EM PORTO ALEGRE: ENTRE O CUIDADO E A VIOLÊNCIA PAtrice Schuch ivAldo Gehlen heloíSA helenA SAlvAtti PAiM tiAGo MArtinelli Os que mais utilizam os albergues, agora, no momento, sem ser as pessoas que são velhas, e as pessoas que não são daqui de Porto Ale- gre, e esse pessoal que trabalha na Cootravipa. Esses acessam bem mais, está entendendo? Não que quem está na rua não possa. Os que estão na rua eles não acessam as casas porque eles são, como o cara falou, humilhados. Por isso que eles estão na rua. E lá é horário para tudo. Tem que calar a boca, tem que tirar o boné, tem que fazer o que eles querem e na rua não. Se tu tiver parado numa fila para pegar uma fichinha para entrar no albergue já tem calar a boca, se tu falar tu é suspenso. Aí tu tem que ficar numa fila, aí de repente o cara tem o dia todo. Tu não pode sentar tem que ficar em pé esperando a tua ficha. Tem que ficar em pé na fila até subir para a hora do banho. Então o que acontece? Por que eu vou ir lá no albergue, ficar lá no albergue sendo que eu posso ficar aqui na Borges? Onde vão trazer a comida, ninguém vai me tirar o boné, ninguém vai pedir nada, eu vou no Harmonia tomar um banho. (Pessoa em situação de rua, narrativa realizada em Grupo Focal) A fala-epígrafe deste texto expõe críticas contundentes aos pro- cedimentos de institucionalização em abrigos, segundo a perspectiva de uma pessoa em situação de rua em Porto Alegre, participante do Boca de Rua. A narrativa expõe um processo em voga que, segundo os usuários dos serviços, mas também segundo trabalhadores e gestores da área, se refere à transformação do perfil de usuários de abrigos e de 46 processos seletivos intensos para ingresso das pessoas nesses serviços. Também assinala a existência de regramentos para sua habitação e, em última instância, destaca a preferência pela vida na rua, frente às configurações do atendimento nos abrigos. A colocação em evidência dessa narrativa não tem a intenção de afirmar a ineficácia das estruturas de atendimento à população de rua, mas de instigar a curiosidade sobre como funcionam e se estruturam. Não é novidade a crítica aos regramentos institucionais, feitas pelas pes- soas em situação de rua, às instituições de abrigo e albergue na cidade que é, inclusive, um dos principais motivos de sua não utilização. Entre- tanto, pouco se sabe acerca dos serviços destinados à população de rua na cidade, para além dessas críticas. Também, a perspectiva dos trabalhado- res e profissionais da área, seus desafios, estruturas de trabalho e visões sobre políticas públicas é algo invisível à discussão sobre a configuração dessas políticas, assim como também é a perspectiva das próprias pes- soas atingidas, como se fossem elementos acessórios ou desimportantes, ao invés de constitutivos de seu modo de existência e funcionamento. Este texto irá apresentar alguns dados que colocam em evidência esses aspectos pouco visíveis dos modos de gestão da população de rua em Porto Alegre: de um lado, as “infraestruturas” dos serviços de abri- go e de albergue destinados a esse público e, de outro lado, a perspec- tiva das pessoas envolvidas, seja na condição de trabalhadores, seja na condição de usuários dos serviços, sobre as políticas públicas da área. Dito isto, tem-se que esse estudo faz parte dos resultados da pes- quisa mais abrangente intitulada: “Pesquisa Quanti-Qualitativa da Po- pulação adulta e de crianças e adolescentes em situação de rua da cidade de Porto Alegre” (UFRGS, 2016), realizado sob a coordenação dos pro- fessores Ivaldo Gehlen e Patrice Schuch. O projeto maior foi composto também pela pesquisa quantitativa, responsável pelo censo e quantifica- ção de dados acerca das características socioculturais da população em situação de rua, bem como pelos dados acerca dos modos de inserção urbana e das relações com as políticas públicas (UFRGS, 2016). A pesquisa qualitativa ora apresentada foi dividida três partes (UFRGS, 2017): a) estudo dos equipamentos, realizado através de “visitas etnográficas” nos abrigos e albergues para população adulta em situação 47 de rua em Porto Alegre, nos Centros Pop e nos CREAS e CRAS da região centro de Porto Alegre; b) estudo das percepções e expectativas de tra- balhadores e público beneficiário, acerca das políticas públicas para popu- lação de rua, realizado através de “grupos focais”; e, c) acompanhamento de eventos e fóruns de discussão sobre as políticas (reuniões, seminários e grupos de trabalho destinados à formação e execução das políticas para pessoas adultas em situação de rua na cidade de Porto Alegre). As atividades de pesquisa foram planejadas para alcançar um ob- jetivo geral mais amplo: conhecer as estruturas e modos de funciona- mento das principais instituições tipificadas como de assistência social de atendimento à população de rua adulta em Porto Alegre, bem como os desafios e as expectativas quanto ao atendimento na percepção de trabalhadores e público atendido, na interface com a formulação das políticas e seu modo de funcionamento. As ações da pesquisa qualitati- va foram realizadas no período de março a novembro de 2016, por uma equipe de pesquisadores que conjugou pesquisadorese professores das áreas da Antropologia, Sociologia e Serviço Social, estudantes de pós- -graduação em Antropologia e em Sociologia e estudantes de gradua- ção em Ciências Sociais1. O estudo dos equipamentos realizado através das “visitas etno- gráficas” ocorreu entre junho e novembro de 2016 e ao todo foram considerados 16 (dezesseis) equipamentos/serviços. Os serviços foram visitados em ao menos 2 (dois) turnos (com exceção de um equipa- mento e do CREAS E CRAS) e, no geral, duas vezes, sendo que cada encontro teve duração em torno de 2 a 3 horas. A pesquisa das per- cepções e vivências de trabalhadores e usuários dos serviços sobre as políticas na área foi realizado através de “grupos focais”, realizados nos 1 A equipe da pesquisa qualitativa foi composta por Patrice Schuch (professora do De- partamento de Antropologia), Alexandre Virgínio (professor do Departamento de So- ciologia), Heloísa Helena Salvatti Paim (antropóloga contratada), Dayana Mezzonato Machado (mestranda em Desenvolvimento Rural na UFRGS) e Caroline Silveira Sar- mento (graduanda em Ciências Sociais na UFRGS). As visitas etnográficas foram rea- lizadas por duplas de pesquisadores que contaram com a supervisão de Patrice Schu- ch e Heloísa Paim, com a participação dos pesquisadores: Caroline Silveira Sarmento, Dayana Mezzonato e Alexandre Virgínio. Os grupos focais foram desenvolvidos por Melissa Pimenta e Tiago Martinelli, sendo que a sua execução foi coordenada por Tia- go Martinelli, com a participação de Bruno Guilhermano Fernandes (graduando em Ciências Sociais). O acompanhamento etnográfico dos eventos e fóruns de discussão sobre as políticas para população de rua foi realizado por Heloísa Salvatti Paim. 48 dias 28, 29 e 30 de setembro e no dia 05 de outubro. Houve a realiza- ção de 4 (quatro) grupos focais, que tiveram a seguinte composição: 1) Trabalhadores de abrigos, albergues e república; 2) Trabalhadores dos Centros POP, Consultório na Rua e EPA; 3) Trabalhadores do CRAS, CREAS e Ação Rua; e, 4) Pessoas em situação de rua que utilizam os serviços públicos destinados a esse público, em Porto Alegre. O trabalho de campo junto aos fóruns institucionais ocorreu en- tre março e outubro de 2016. Notas sobre “Etnografia Pública” A execução da pesquisa qualitativa foi realizada em um cenário que privilegiou os diálogos estabelecidos com trabalhadores da Fun- dação de Assistência Social e Cidadania (FASC) e com integrantes do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), em diferentes momentos. A proposta da pesquisa respondeu a um edital lançado pela FASC, ainda em 2015. Após aprovação do projeto inicial, constituiu-se um coletivo responsável pelo acompanhamento interinstitucional da pesquisa, intitulado “grupo de acompanhamento da pesquisa”, compos- to por pesquisadores da UFRGS (sociologia, antropologia e serviço social), por trabalhadores da FASC (de representantes de diferentes se- tores: proteção básica, especial, recursos humanos, vigilância sócio-as- sistencial, direção técnica, entre outros) e de representantes das pes- soas em situação de rua (MNPR e Boca de Rua). A pesquisa, portanto, contou com a colaboração de um conjunto de debates no qual se faziam presentes pessoas que ocupam posições distintas em relação à proble- mática geral da pesquisa, engajando e implicando muitas pessoas em seu processo de realização. É neste sentido que a execução da pesquisa se inspirou na propos- ta de uma “etnografia pública”, nos moldes descritos pelo antropólogo Didier Fassin (2013), mas que encontra eco importante nas colocações de João Biehl e sua insistência no potencial da antropologia de ser uma “força mobilizadora no mundo” (BIEHL, 2013: 371). Embora com di- ferentes nuances que não cabe neste momento, Biehl e Fassin evocam a impossibilidade da etnografia sem a produção de um “público”. 49 Para Biehl (2013), a prática antropológica solicita um terceiro, um leitor, uma comunidade de algum tipo, que não é reduzida aos persona- gens ou ao escritor, mas que manifestará e levará adiante, portanto, o pró- prio potencial da antropologia em ser uma força mobilizadora no mundo. Para Fassin (2013), por sua vez, esse potencial deveria, inclusive, ser exer- citado em maior potência a partir do que chama de “etnografia pública”: A expressão refere-se simplesmente ao princípio de trazer para vários públicos - além dos círculos acadêmicos – as conclusões de uma etnografia analisada à luz do pensamento crítico, de modo que estes resultados possam ser apreendidos, apropriados, debatidos, contestados e utilizados. Presume-se que tal conversa entre o etnógrafo e seus públicos gera uma circulação de co- nhecimento, reflexão e ação suscetível de contribuir para uma transformação do modo como o mundo é representado e expe- rienciado (FASSIN, 2013: 628). Seria, portanto, na análise da etnografia analisada à luz do pensa- mento crítico e na sua apreensão, contestação e utilização, bem como na circulação de conhecimento, reflexão e ação que evoca, a residência do potencial transformador da antropologia e de sua própria politização. Para Fassin (2013), a produção de uma “etnografia pública” implicaria dois processos: de “popularização”, que tem a ver com modos criativos e estilos de comunicação dirigidos a públicos variados (incluindo-se o acadêmico), e de “politização”, referente exatamente à proposição de mudança e com o potencial de impactar as políticas. Entretanto, como já colocado em Schuch (2016; 2017), a expe- riência dessa pesquisa e de outras realizadas na interface entre acadê- micos, gestores de instituições governamentais e não governamentais e militantes sociais, faz pensar na necessidade de adicionarmos mais um sentido de “público”, que Fassin (2013) parece deixar intocável: o de realizar a pesquisa publicamente. Os dois elementos enfatizados da composição de etnografia pública – a publicação e a politização – pa- recem ser sempre pensados mais como resultados da pesquisa antro- pológica do que processos que a acompanham. Considerada apenas a partir do viés dos resultados, o sentido de uma pesquisa “pública” não 50 permite algo oxigenador e vital ao trabalho antropológico: seu próprio repensar no processo de sua realização, a interlocução – que pode ser bastante tensa, por vezes – com aqueles que estamos estudando. No caso da pesquisa acerca das estruturas de atendimento à popu- lação de rua e das visões e perspectivas dos trabalhadores e pessoas que usufruem desses serviços, houve debates bastante tensos acerca do estu- do, uma vez que poucas vezes pessoas com tão distintas posições sociais se encontraram para configurar uma pesquisa. Tais debates permitiram a formação de “alianças provisórias” produtivas para a realização da pes- quisa e para a configuração de relações mais transversais em um domínio de relações bastante hierarquizado na entidade contratante da pesquisa e fornecedora dos serviços de assistência social na cidade. Nas reuniões do “grupo de acompanhamento da pesquisa”, o estu- do quantitativo assumiu centralidade nos debates, tendo em vista que as repercussões políticas desse tipo de estudo ganham maior visibilidade e repercussão na sociedade como um todo (ver SCHUCH, neste volume). Nesse espaço de interlocuções, os debates entre os participantes produ- ziram o compromisso de que não haveria publicação de resultados de lo- calização das pessoas em situação de rua para além das grandes regiões de diferenciação de locais provenientes do Orçamento Participativo, uma vez que foi reconhecido o perigo de apropriação de dados pelas forças repressivas do Estado. Esta foi uma importante conquista do movimen- to social que, em acordo com os pesquisadores da UFRGS, assinalou a possibilidade de um uso repressivo dos dados do estudo. Já para a pesquisa qualitativa, esses diálogos contribuíram no delineamento de questões e identificação de espaços institucionais e pessoas a serem contatadas, além de ter permitido aproximaçõescom temas significativos como as formas de organização institucional e ló- gicas especificas de trabalho. De forma geral, gestores, pesquisadores e pessoas relacionadas ao movimento social celebraram a possibilida- de das próprias estruturas de atendimento de abrigo e albergue, bem como das formas de governo da população de rua, se tornarem mais visíveis publicamente através do estudo. Também, a visibilidade das perspectivas dos trabalhadores da área, conjugada com o refinamento das expectativas do próprio público 51 atendido, foram considerados avanços nas propostas de pesquisa, uma vez que deslocam a ênfase nos estudos censitários ou de constituição de perfil dos atendidos para abarcar também as mediações institucionais e as vivências das pessoas que constituem as políticas públicas. Essa é, certamente, uma das contribuições fundamentais da antropologia no estudo das políticas públicas: para saber como funcionam as políti- cas, precisamos saber como são formuladas – muitas vezes de maneira ambígua e disputada –, recebidas e experimentadas pelas pessoas que são afetadas por essas, em conjugação com as técnicas, estratégias e procedimentos de governo que lhes dão vida (BIEHL, 2013; BIEHL e PETRYNA, 2013; GUPTA, 2012, SHORE, 2010). As “Infraestruturas” Cotidianas e as Vivências das Pessoas na Análise das Políticas Públicas É nossa expectativa que a pesquisa ora apresentada possa pos- sibilitar o avanço nos processos de visibilidade e produção de direitos para as pessoas em situação de rua na cidade de Porto Alegre. Para tanto, consideramos essencial o conhecimento das características so- cioculturais das pessoas colocadas nessa situação social – que traba- lhamos através do estudo quantitativo –, bem como da conformação de políticas e de práticas cotidianas para seu atendimento e da percepção de como tais práticas e políticas são percebidas pelas pessoas afetadas mais diretamente, os trabalhadores dos serviços de assistência e o pú- blico atendido. Como já escrevemos anteriormente (SCHUCH et Al., 2008; SCHUCH e GEHLEN, 2012), perspectivas essencialistas dirigidas a esse grupo populacional ainda persistem, seja na subtração de direitos ora conquistados, seja nas ameaças que as pessoas em situação de rua sofrem exatamente por utilizarem as ruas como lugar de existência social. A presença de tais posturas justifica a ênfase no conhecimento e visibilidade das formas de existência social e de agência política das pessoas em situação de rua, assim como a possibilidade de fornecimen- to de dados acerca dos serviços de assistência social que lhes são desti- nados, para eventual aperfeiçoamento e transformação. 52 Em trabalho anterior (SCHUCH e GEHLEN 2012), nossa hi- pótese foi de que certa tendência à essencialização da situação de rua como uma problemática social está associada a uma correlação entre di- nâmicas que conjugam duas fortes perspectivas sobre o assunto: àquela pautada pela visão de que estar na rua é um problema que requer inter- venções e práticas de governo determinadas a suprimir tal fenômeno a partir da simples retirada das pessoas da rua e àquela pautada num diagnóstico de causalidades macroestruturais, que subentende as pes- soas em situação de rua como os sujeitos da “falta”. Embora trabalhem com perspectivas de causalidades diferencia- das – a primeira através da individualização da questão e a segunda através de seu deslocamento para a esfera macroestrutural, ambas as abordagens retiram a complexidade da agência dos sujeitos, tornando a rua um espaço ontológico da exclusão por excelência e/ou entendido unicamente a partir da lógica das necessidades de sobrevivência. Como já argumentamos, uma visão complexa da situação de rua requer o di- mensionamento tanto das multicausalidades que estão na origem desse fenômeno, entre as quais devem ser incluídas visões de mundo e práti- cas de sujeitos realizadas na imersão em processos sociais e históricos, mas também tecnologias de governo específicas – meios destinados a consecução de determinados fins, tais como projetos de governo, téc- nicas e formas de atendimento, expertises e modos de gestão (FOU- CAULT, 1979 e FONSECA et Al., 2016). Esse caráter relacional entre determinadas visões de mundo e práticas de sujeitos e modos de sua gestão muitas vezes fica encober- to ou menosprezado nos esforços de intervenção sobre o assunto e mesmo nas pesquisas sobre o tema, cujo interesse principal tem sido a construção de perfis populacionais ou mesmo a busca por causalidades para a situação de rua. O que se enfatiza, nesses casos, são atributos individualizados e não as variadas mediações institucionais, históricas e políticas, que engendram a construção dessa população como uma problemática social (DE LUCCA, 2007). Ao reconhecimento de que a rua é também um espaço de produção de relações sociais e simbólicas, associa-se o nosso entendimento de que o estudo das técnicas e formas em que o governo da população de rua ganha vida é essencial para a 53 compreensão da complexidade da experiência da rua como forma de vida e como uma problemática para o engajamento de profissionais, militantes e pessoas atendidas nesta área das políticas públicas. Nesse sentido, nos adicionamos à perspectiva analítica que leva em conta as tecnologias de poder no estudo dos fenômenos sociais (FONSECA et Al., 2016) e que credita importância à análise dos pro- cedimentos cotidianos e práticas burocráticas de governo, isto é, às suas “infraestruturas” (GUPTA, 2014). Ao mesmo tempo, conjugamos à análise a perspectiva que compreende as políticas públicas como ati- vidades socioculturais profundamente imersas em processos históri- cos, políticos e culturais; é nesse sentido que o seu estudo deve levar em conta as experiências das pessoas e suas interpretações acerca das políticas que por vezes estão em conflito e muitas vezes são bastante disputadas (SHORE, 2010). Sendo assim, acreditamos que a análise contígua das grandes narrativas soberanas de produção de direitos – em que a população de rua no Brasil aparece progressivamente como um agente de destaque e visibilidade nacional a partir da década de 2000 (PIZZATO, 2012 e SCHUCH, neste volume) – com as operações práticas do governo diário das pessoas em situação de rua e com as vivências dos atores que estão implicados em sua conformação e recepção torna o cenário das políticas públicas para esse público bastante ambíguo, marcado por dinâmicas complexas e contíguas de proteção e violência. Equipamentos de Assistência Social para População de Rua em Porto Alegre Para fins de organização deste capítulo, apresentaremos as con- tribuições das atividades que compuseram a pesquisa qualitativa se- paradamente – visitas etnográficas e grupos focais – entendendo que a atividade de participação em eventos e fóruns de debates contribuiu transversalmente ao adensamento analítico dos dados recolhidos nas atividades de pesquisa. No que se refere ao estudo dos serviços de assistência social, o objetivo mais específico foi de compreender a estrutura heterogênea 54 e os modos de funcionamento das instituições tipificadas como de as- sistência social na cidade de Porto Alegre. Neste caso, a metodolo- gia privilegiou o que chamamos de “visitas etnográficas”, que tiveram como foco central os equipamentos de acolhimento (abrigos, albergues, república, casa lar) e alguns serviços, que prestam atendimentos diver- sos a população adulta em situação de rua, desde aqueles em que há solicitação de documentação, benefícios assistenciais até os que possi- bilitam atividades de higiene, alimentação, convivência, entre outros (Centros Pop, Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos – SCFV, CREAS e CRAS). Nesse segundo caso, priorizaram-se aqueles equipamentos situados na região central da cidade, por ser uma área reconhecida como de grande concentração das pessoas em situação de rua. Foram incluídos os equipamentos que estão soba responsabilidade da FASC, seja enquanto executora direta, seja pelos convênios. As visitas etnográficas consistiram na articulação de duas téc- nicas de pesquisa: entrevistas e, em alguns casos, observações partici- pantes. As visitas foram acompanhadas de um roteiro semiestruturado para a caracterização geral do equipamento (a quem se destina, crité- rios de ingresso, exigências para permanência, atividades principais), recursos disponíveis (humanos, infraestrutura, financeiros e materiais), bem como aspectos da rotina institucional. As entrevistas foram rea- lizadas com os coordenadores e/ou com pessoas indicadas por eles. Ao final, participaram das entrevistas pessoas que ocupam diferentes funções nas instituições, como diretores, técnicos (assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros), moni- tores e assistentes administrativos. A maior parte das entrevistas foi gravada, com autorização dos participantes, garantindo-se o uso da gravação apenas para a equipe de pesquisa. Além disso, os pesquisado- res mantiveram diários de campo para registro das visitas. Já as situações a serem observadas foram combinadas entre os entrevistados e as pesquisadoras. Assim, conforme o equipamento, ob- servaram-se as rotinas de entrada nos serviços, refeições, atividades coletivas e assembleias. Foram momentos profícuos para visualizar ro- tinas institucionais, modos de atuação de trabalhadores, relações entre trabalhadores e usuários, relações entre os usuários. 55 Após a primeira sistematização do material produzido através das visitas etnográficas, identificou-se que as informações relativas aos critérios de ingresso dos usuários eram pouco claras para os pesqui- sados nos equipamentos, na medida em que seriam responsabilidade do Núcleo de Acolhimento da FASC. Diante disso, foram realizados dois encontros no Núcleo de Acolhimento, setor da FASC, responsável pelo gerenciamento dessas atividades, para conversar com trabalha- dores que ali atuam. No projeto, foi proposto que, após a realização das visitas etnográficas, seriam selecionados um ou dois equipamentos para realização de observações mais sistemáticas nesses serviços. Em reunião da comissão de acompanhamento da pesquisa foi definido que essas seriam feitas junto à República e ao Albergue Municipal. Quadro 1: Equipamentos Pesquisados e Datas das Visitas Etno- gráficas Nome do serviço Dias das Visitas Abrigo Bom Jesus 21/06/16; 28/06/16 Abrigo Marlene 13/06/16; 11/07/16 Abrigo para Famílias 13/06 /16manhã; 13/06/16 tarde Albergue Dias da Cruz 16/06/16; 29/06/16 Albergue Felipe Diel 29/06/16; 25/07/16 Albergue Municipal 22/06/16; 06/07/16; 14/07/16; 30/11/16 Casa Lilás 21/09/16 manhã; 21/09/16 tarde Casal Lar do Idoso 21/11/16 Centro Pop 1 17/08/16; 05/09/16; 15/09/16 Centro Pop 2 18/08/16; 23/08/16; 28/08/16; 02/09/16 CRAS Centro 24/11/16 CREAS Centro 22/11/16 Lar Emanuel 24/06/16: 19/07/16 Núcleo de Acolhimento 27/09/16; 28/09/16 República Juntos 16/06/16; 18/06/16; 08/09/16; 10/09/16; 13/09/16; 21/09/16; 25/09/16; 19/10/16 Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos 19/05/16; 01/07/16; 29/07/16 56 Recursos Humanos, Tipos e Concepções dos Serviços A rede dos principais equipamentos destinados à população adulta em situação de rua em Porto Alegre é muito heterogênea. Interessa sa- lientar três características: a primeira se refere à coexistência de serviços governamentais e conveniados com diferentes entidades não governa- mentais. A segunda concerne à descentralização dos serviços em diferen- tes regiões do município, executadas por equipes vinculadas a distintas entidades. Por fim, a diferenciação dos serviços quanto as suas finalidades (abordagem, serviço de convivência, núcleo de acolhimento, serviços de abrigamento, serviço de albergamento). Com isso, destaca-se a heteroge- neidade no modo de organização e execução das ações sócio-assistenciais na cidade, que legalmente estão sobre a responsabilidade da FASC, no que se refere à gestão, monitoramento, supervisão e avaliação. A pesquisa apontou que existem uma série de tensões em tor- no das formas de atendimento realizadas, que vão desde um questio- namento em torno da finalidade do trabalho – amparo ou proteção de direitos – até as próprias formas de contratação de funcionários, configurando um ambiente de trabalho em que interagem funcionários celetistas e terceirizados. Há, a percepção de um processo de precari- zação funcional, marcada pelo crescente uso de serviços terceirizados que afetam o cotidiano de trabalho de várias formas: impossibilidade de seleção funcional com perfil específico para trabalho com população de rua, transitoriedade das equipes, heterogeneidade das empresas con- tratadas convivendo em um mesmo espaço e ausência de qualificações profissionais destinadas aos funcionários terceirizados. De outro lado, há uma intensa percepção de mudanças institucionais relacionadas ao ingresso de pessoas adoecidas e idosas, que implica uma reconfigura- ção das necessidades e modos de gestão da população nos abrigos. Amparo ou Proteção de Direitos? O gestor de um albergue conveniado, por exemplo, explica com satisfação que há trabalhadores de muitos anos no albergue. Cita o caso de uma trabalhadora da cozinha que é ex-usuária do albergue e já 57 trabalha há 8 anos naquele. O gestor também refere, orgulhoso, a exis- tência de muitos voluntários, o que é, inclusive, condição para o pleno funcionamento do albergue. Ao falar de sua satisfação em realizar a inserção profissional das pessoas albergadas, refere: O albergue não sustenta ladrão ou vagabundo, aqui é um lugar de amparo. O tempo máximo de permanência é 15 dias, 30 dias para quem está trabalhando. Aí depois tem que ficar 90 dias fora. Há parcerias com Opus, Zaffari, lugares de reciclagem. Estimo que retiramos umas 10 pessoas da rua por ano, através dessas colocações profissionais (Gestor de Albergue Conveniado). Por outro lado, a gestora de um abrigo conveniado, ao falar do modo de seleção dos trabalhadores do serviço, afirma que não aceita voluntários, uma vez que aquele é um espaço de proteção de direitos e não de ajuda: Nem todos conseguem trabalhar aqui. Tem que ter perfil. Eu faço uma conversa com a pessoa, olho no olho, tenho feeling. O perfil que falo é de poder compreender que aqui é um espaço de proteção de direitos. Não trabalho com voluntários (Gestora de Abrigo Conveniado). Embora os dois equipamentos sejam parte da rede conveniada, são muito distintos quanto à forma de compreensão da vinculação das pessoas ao serviço, que podem ser relacionadas às diferenças de enten- dimento do próprio objetivo do serviço: “amparo”, citado por gestor do albergue, e “proteção de direitos”, como destacado pela gestora do abrigo. Entretanto, há semelhanças, entre esses equipamentos, nas crí- ticas dirigidas à FASC quanto à forma de entendimento do sentido de “convênio” e “parceria”, considerando a FASC rígida em suas conside- rações de rubricas de gastos e interferências em visitas avaliativas do serviço. Sobre isso, explica a gestora do abrigo: Nós temos uma discussão com a FASC que é política. Nós temos uma posição política de que é pública e deveria ser provida pelo Estado. No momento em que o Estado não pode prover tudo, então precisa respeitar a parceria. Ai entra o tratamento conos- co. Para convênios há muitas regras. Há muita diferença entre 58 quem está aqui e quem recebe a prestação de contas. Nós não podemos comprar uma medicação para um usuário. Mas quem compra? (Gestora de Abrigo). A Terceirização das Atividades Funcionais e seus Reflexos Outro tipo de diferenciação vivenciada, neste caso, nos equipa- mentos próprios, diz respeito ao processo de terceirização das ativida- des de trabalho desenvolvidas nos abrigos e albergues, o que faz com que convivam, em um mesmo serviço, profissionais com vinculações patronais distintas, remunerações diferenciadas até mesmo para a mes-ma atividade e processos de capacitação funcional bastante desiguais. Foi consenso entre os profissionais dos equipamentos da rede própria a referência às dificuldades de gestão de unidades com até mesmo 5 (cinco) distintas empresas terceirizadas – como referido por dois abri- gos da rede própria da FASC. A referência à constante rotatividade de trabalhadores e, fundamentalmente, a impossibilidade de seleção fun- cional são configurações que são percebidas como dificuldades para a gestão institucional. Disse a gestora de um abrigo da rede própria: [...] a terceirização em si causa um processo instável de traba- lho, volátil. A gente tem que fazer do limão uma limonada. Ao mesmo tempo em que tem este processo de oxigenação, temos funcionários de 21 anos de FASC” (...) Não tem como prever o que a empresa terceirizada vai enviar. Sei que eles pedem o ensi- no médio. Às vezes chega pessoas aqui que não têm noção do que é um abrigo. Teve funcionário que fugiu... literalmente (Gestora de Abrigo da Rede Própria). A profissional refere que, embora não possam selecionar os fun- cionários, o abrigo pode negar a contratação de algum indicado. Im- portante destacar que, na mesma lógica em que a utilização de pessoas voluntárias no atendimento dos serviços conduz aos sentidos mais am- plos da compreensão do próprio papel institucional dos equipamentos, as narrativas sobre os processos de seleção de trabalhadores também revelam concepções interessantes acerca do público atendido. Reti- 59 rando-se os equipamentos da rede própria para os quais a contratação de funcionários terceirizados é realizada sem qualquer referência ou capacitação funcional específica para o serviço, é possível perceber a constante referência às dificuldades em contratação de pessoal, as quais destacam certas características do público atendido e também nos dão pistas interessantes acerca das suas especificidades. A Reconfiguração de Público nos Equipamentos: saúde ou assistência social? Importa considerar também certa recorrência na atribuição de um perfil de trabalhador que cada vez mais deveria ter qualificações próximas aos profissionais da saúde, justamente pelo perfil dos usuá- rios atendidos. O exemplo de um abrigo conveniado é paradigmático: embora o cargo contratado seja de monitoria, é pré-requisito para a contratação neste cargo a formação em técnico em enfermagem. A ges- tora de um abrigo da rede própria da FASC, por sua vez, relaciona as mudanças que o ingresso crescente de pessoas adoecidas na rede de abrigo e albergue ocasiona, tanto em termos de maior tempo de per- manência, como na promoção de novas necessidades: Estamos recebendo usuários cada vez mais debilitados, por con- ta da insuficiência do nosso serviço de saúde. Idealmente, as pes- soas deveriam ficar no abrigo por 1, 2 anos. Mas temos usuários que ficam mais do que isso, tem usuários muito debilitados que precisam de mais tempo. Como delimitar isso? (Gestora de Abri- go da Rede Própria da FASC). Para os interlocutores de outro abrigo da rede própria, a caracte- rística principal da mudança percebida no seu próprio serviço refere-se justamente a presença de usuários com importantes problemas de saú- de, tanto do ponto de vista “físico”, quanto “mental”, que exigem cui- dados específicos no âmbito da saúde. Eles identificam modificações na metodologia de trabalho, nas regras internas em função das caracterís- ticas atuais das pessoas que usam o serviço; entretanto, tais mudanças são vistas como contrariando os propósitos institucionais e sem uma 60 adequada reestruturação da instituição do ponto de vista das condições físicas e de capacitação dos recursos humanos. Em relação ao cotidiano de trabalho, contam que houve mudanças nas regras para se adaptar aos atuais abrigados. Por exemplo, uma pro- fissional menciona que antes havia uma regra de que os quartos eram fechados as 8:30h da manhã, para que as pessoas não permanecessem ali. No entanto, tendo em vista as presenças de pessoas adoecidas e idosas essa norma foi abolida, uma vez que geraria conflitos administrar regu- lações distintas. Um dos profissionais desse abrigo aponta que, diante do “perfil” dos atuais moradores dessa entidade, é preciso pensar o “desliga- mento dos usuários” de outra forma. Em suas palavras: Uma das coisas que eu quero falar é do desligamento... a falta do apoio de saúde, que é essa rede da saída para essas pessoas como que eu te falei [...]. Nós temos uma lista de pessoas para resi- dencial terapêutico, mas elas continuam aqui. Diria que é sem propósito elas estarem aqui, porque a nossa parte já foi feita, mas só está na manutenção, está na espera quando tiver para onde ir. Esse é o estrangulamento da saúde com a assistência. Para nós é um nó, não vai abrir vaga, não tem onde colocar. A gente não tem varinha de condão (Profissional de Abrigo da Rede Própria). A identificação das novas demandas e as alterações decorrentes delas geram debates nos serviços e os trabalhadores se veem diante de dilemas de difícil solução. Isso pode ser visualizado em relação a ques- tão da organização das camas. Tendo em vista que há beliches nos ser- viços, as vagas nos serviços são diferenciadas entre “camas superiores” e “camas inferiores”. Essa distinção é feita em nome de evitar riscos aos usuários, isto é, considera-se que determinados usuários não podem ocupar as camas superiores em função de alguns critérios, por exemplo, aqueles que fazem uso de certas medicações, os que têm convulsões, os que fizeram uso de álcool ou outras drogas (caso de um albergue da rede própria) ou os idosos debilitados. Para além das modificações na própria tipologia das vagas, há também a identificação, pelos trabalhadores, de mudanças em relação ao tempo de permanência das pessoas nos equipamentos. Uma profis- 61 sional de abrigo da rede própria da FASC há mais de 10 anos conta que, quando chegou à instituição, havia mais trânsito de pessoas, as razões para ingressar no albergue eram mais pontuais (por exemplo, diz a profissional: um alcoolista que estava tentando se manter afastado do uso de bebida, alguém que teve seus documentos perdidos e não que- ria estar na rua sem eles). Hoje, a profissional salienta que o tempo de permanência nas instituições de abrigo é alto, pois, segundo ela, leva-se um tempo para conseguir ter acesso a rede de saúde, seja CAPS, seja CAIS Mental. Posteriormente, o tempo dos tratamentos para depen- dência química e álcool não são curtos, fazendo com que a permanência se amplie. Também nos casos de solicitação dos benefícios assistenciais ou aposentadorias, refere a funcionária, o tempo não costuma ser curto. Modos de Acolhimento e Recepção das Pessoas Outra dimensão analítica ressaltada durante as visitas etnográfi- cas refere-se aos modos de acolhimento e recepção das pessoas. Diante do número limitado de vagas, são criados meios de organizar a entrada das pessoas nos serviços: 1. categorias prioritárias de atendimento: mulheres, idosos e adoecidos têm prioridade nas filas de atendimento, para o in- gresso nas instituições anterior às demais pessoas; 2. reserva de vagas: casos considerados excepcionais, em que, fundamentalmente, pessoas trabalhadoras podem perma- necer mais tempo em abrigos e albergues do que o tempo padrão definido para o acolhimento. Nesse caso, pode haver também flexibilidades nos horários de ingresso e saída das instituições, bem como nos horários de alimentação. Há tam- bém os casos de atendimento de saúde, os quais flexibilizam os períodos e regimentos de cronogramas de atividades, den- tro de abrigos e albergues; 3. filas para entrada e distribuição de fichas; 62 4. rotatividade de ingresso: a qual se destina a regular o uso regular do mesmo serviço, fazendo que haja uma circulação de usuários pela rede de abrigos e albergues, visando apro- veitamento das vagas por números maiores de usuários. Essa política evidencia uma aposta na transitoriedadeda situação de rua que, percebe-se, tem limites importantes para o acolhi- mento de pessoas com longa permanência na situação de rua que, por outro lado, é uma parte importante da consideração do perfil da “população em situação de rua”; 5. cadastramento e exigência de documentação de identificação oficial: essas exigências visam, de um lado, estimular a docu- mentação dos usuários e, de outro lado, coibir a entrada de “desconhecidos” e de pessoas potencialmente “perigosas”; 6. guarda volumes: os quais têm uma função de armazenamen- to de objetos, mas também de evitação da entrada de objetos “perigosos” no cotidiano de abrigos e albergues, como facas e objetos de valor, que podem gerar roubos e conflitos internos; 7. revista corporal: a qual, associada com outras práticas, como a colocação de porta anti-metais, também visa evitar a entra- da de objetos perigosos nas instituições. Salienta-se que os modos de acolhimento e procedimentos para recepção de pessoas informam não apenas sobre a diferencial organi- zação do atendimento de forma a permitir o maior aproveitamento das vagas, mas também acerca da percepção sobre as pessoas em situação de rua que é constituinte da organização dos serviços. Neste caso, duas conclusões são possíveis: a primeira, referente à forma de organiza- ção dos equipamentos, que privilegia o foco no indivíduo em situação de rua, não em famílias ou outros coletivos possíveis. Há apenas um equipamento destinado às famílias e outro equipamento que permite o ingresso de mães com filhos. Nesses dois casos a centralidade não é da família, mas o determinante na entrada é a centralidade da criança. 63 Essa forma de organização é importante de ser refletida, uma vez que a orientação das políticas mais gerais de assistência social é de valori- zar a família; nos serviços de abrigo e albergue, ao contrário, ela não é institucionalmente estimulada e, ao contrário, em algumas situações as instituições trabalham para o seu desfazer no cotidiano, uma vez que não dispõem de estruturas de acolhimento às famílias. Em segundo lugar, ressalta-se uma percepção sobre situação de rua que, muitas vezes, é construída de forma a se contrapor com outras problemáticas, como a da migração, da procura do trabalho e a situa- ção de saúde. Há também distinção entre “população de rua”, que está associada à longa permanência na rua, e um público mais transitório que utiliza também os serviços disponíveis. Em todo o caso, há uma percepção de que a ausência de lar ou o fato de não estar domiciliado não constitui a “situação de rua”, muitas vezes constituída como uma situação de desvinculação de laços sociais, familiares e de trabalho. Regras e Modos de Funcionamento Coletivo dos Equipamentos No que se refere às regras e modos de funcionamento coletivo nos equipamentos, percebe-se uma existência heterogênea de regula- ções e regramentos, estabelecidos localmente pelas instituições e, in- clusive, formalizadas de forma escrita em manuais de procedimentos. Tais regras são justificadas tanto em termos de uma garantia de boa organização coletiva do atendimento, quanto vistas como fundamen- tais para o auto crescimento pessoal das pessoas atendidas. Nesse âmbito, chama atenção a existência de modos de disciplina em que a própria suspensão ao uso do serviço é a forma disciplinar. Essa dinâmica pode impedir que, na prática, haja o acesso aos serviços previstos legalmente no campo da assistência à população de rua. Os discursos indubitavelmente recorrentes são os que enfatizam a importância do estabelecimento de regras que rompam com práticas e relações que são consideradas comuns ao “mundo da rua” para que os serviços possam cumprir suas atribuições em condições definidas como adequadas. Como afirma um trabalhador: 64 E principalmente se há uma lei, alguma coisa em relação a lá fora, não digo de todos, mas de uma parte, que [...] é calcada na ‘lei do mais forte’, que isso não entre pra cá. Isso tem que estar bem claro para eles. Esse espaço é um espaço de convívio. Pois se tu tiveres essas relações de poder, afeta e dai (Profissional de Albergue da Rede Própria). A partir da observação das relações cotidianas no espaço insti- tucional, os entrevistados ficam atentos a situações nas quais algumas pessoas podem utilizar métodos intimidatórios para obter vantagens sobre outros, algo considerado comum nas experiências das pessoas em situação de rua. Diante disso, alguns serviços criam regras específi- cas para tentar evitá-las. Em um albergue da rede própria da FASC, foi estabelecida que, durante as refeições, um usuário não pode entregar o seu alimento para outro e, no dormitório, cada pessoa tem direito a no máximo 3 cobertores, para evitar situações em que as pessoas possam ser coagidas a cederem seus cobertores. Em um abrigo da rede própria da FASC, não é possível a permanência de cartões financeiros ou obje- tos de valor dentro dos quartos, para se evitar roubos e conflitos inter- nos. A impossibilidade de entrar nas instituições como alimentos, pre- sente em alguns serviços, também é justificada de tal forma a impedir atritos. Em suma, algumas regras visam impedir que relações de poder e hierarquias externas se atualizem no âmbito das instituições. Em al- guma medida, essa precaução também se estende a impossibilidade de entrar com os objetos pessoais, que devem ficar no guarda-volumes. Em todos os serviços foi mencionada a proibição de agressões ver- bais ou físicas como forma de resolução de conflitos no âmbito institucio- nal, seja entre usuários, seja em relação aos trabalhadores, como indicado anteriormente pela preocupação da entrada de facas ou outros objetos cortantes. Quando há descumprimento dessas regras são previstas sus- pensões, que giram em torno de 90 dias, na maioria dos serviços. Esse modo de regulação das condutas através do impedimento do próprio acesso aos serviços é muito significativo e recorrente nos equipamentos. Em várias instituições, há regras claras e procedimentos de dis- ciplina estabelecidos e escritos em manuais dos serviços, os quais va- riam de acordo com a natureza dos atos cometidos. Tais regras são 65 decididas localmente, com maior ou menor participação dos usuários, e existem para além de qualquer tipo de regulação em sua constituição e generalização, por parte da FASC ou mesmo de amparo nas próprias políticas mais amplas de oferecimento de serviços de assistência social de abrigo e de albergue, embora sejam justificadas, segundo os traba- lhadores, em nome do coletivo. Como disse uma profissional vinculada a um abrigo conveniado trabalhadora, tais medidas: “não são punições, mas procedimentos disciplinares que visam possibilitar a convivência no coletivo” (profissional de um abrigo conveniado). Outro tema que é objeto de regulações se refere aos usuários estarem alcoolizados ou sobre efeitos de substâncias consideradas ilí- citas para o ingresso nos serviços. Conforme as informações coletadas, nenhum serviço permite o uso de álcool e drogas ilícitas dentro dos equipamentos. Muitos serviços explicitamente não aceitam o ingresso de pessoas com sinais de terem feito uso dessas substâncias, embora haja um albergue municipal que é reconhecido por permitir o ingresso em tal situação. Diferentes dos albergues que funcionam à noite e tem como fun- ção primordial garantir o alojamento, os Centros Pops são serviços diurnos nos quais são disponibilizados diferentes recursos que podem ser utilizados pelos usuários conforme seus interesses, como banho, lavagem de roupas e alimentação. Além das proibições de agressões, uso de drogas mencionadas antes, nos Centros Pops não é permitido dormir, tendo em vista que pretende propiciar o atendimento de neces- sidades mínimas, mas também estimular processos de “autonomia” e “superação da situação de rua”. Segundo os entrevistados, as dificulda- des e inseguranças de dormir na rua faz com que alguns vejam nesse local a possibilidadede descansar de forma mais protegida. Frente a isso, o cumprimento dessa regra exige muita atenção dos educadores. Observa-se, desta forma, a tentativa de marcar a presença de regras como algo generalizado em espaços coletivos. Entretanto, é importante frisar que as regras são pensadas, pelos trabalhadores, em sua dimensão pedagógica. As regras são vistas como importantes para o funcionamen- to da instituição, mas também são percebidas como uma dimensão para a própria valorização do serviço e de sua finalidade; a existência de regras 66 relacionadas ao autocuidado, como os horários de banho e seu eventual caráter compulsório, bem como de regras relacionadas à limpeza de es- paços utilizados pelos usuários, como quartos e banheiros, podem tam- bém ser atribuídas a essa razão pedagógica das regras. Neste caso, há um encontro importante entre o autocuidado e crescimento pessoal e a colaboração para a gestão coletiva dos equipamentos. Desafios Institucionais No que diz respeito aos desafios institucionais, destacam-se àque- les referentes à: a) configuração da própria rede de atendimento, tais como as demandas de assistência à saúde, à saúde mental, às políticas de habitação e qualificação profissional de usuários e trabalhadores; b) às estruturas internas dos equipamentos, como aquela referida pelas configurações de quadro de funcionários, horários de atendimento dos serviços, falta de equipamentos, inexistência de espaços para determi- nados públicos (transexuais e pessoas com deficiência); e, c) às caracte- rísticas do público atendimento (histórias familiares que se refletiriam em baixa autoestima, população adoecida e/ou idosos, com histórico de uso de crack e mais “arredia” aos serviços etc.). Salienta-se que, se os profissionais foram profícuos para a colo- cação de desafios institucionais, também há uma valorização do aten- dimento prestado que se evidencia em respostas com valorações muito positivas quanto ao trabalho desenvolvido. Veja-se, por exemplo, as falas da gestora de um abrigo da rede própria da FASC: Aqui é um espaço de acolhimento, cuidado, afeto e reconstrução de vida. Isso funciona muito bem. Aqui é um espaço de afeto. Eu já trabalhei em espaços pouco receptivos onde tudo era novinho, mas as pessoas não ficavam. Os usuários pedem para vir para cá. Aqui as pessoas se olham, a nossa arquitetura permite que as pessoas se olhem, todos os dias. O afeto é maior, as relações de cuidado são2. É possível destacar, neste âmbito, tanto as respostas que acionam valorizações de certos aspectos singulares das instituições – a preser- 2 Na citação, o nome do abrigo referido pela pesquisada foi substituída pela palavra “aqui”, para não identificação do serviço, como acordado durante a pesquisa. 67 vação da autonomia, a cozinha acolhedora, a “maternagem” etc. – quan- to o próprio acolhimento institucional e o consequente oferecimento de comida, vestuário e local de pernoite já é visto como o cumprimento da missão do equipamento. Nesta direção, o ingresso e a permanência em instituições de abrigo e de albergue é contrastada com a realidade das ruas. A gestora de um abrigo da rede própria aponta as dificuldades da vida na rua, quando coloca que: “A maior questão é a da sobrevivência. Tem a questão de saúde e a questão de não terem as condições mínimas de dignidade humana”. Em razão dessa situação apontada, de despos- sessão de dignidade, a oportunidade de receber comida, alimentos e um local temporário para dormir se reveste de grande importância. Percepções e Expectativas de Trabalhadores e Público Atendido acerca das Políticas Públicas para População de Rua Os desafios institucionais percebidos nas atividades das visitas et- nográficas, foram consenso também entre os profissionais pesquisados através dos Grupos Focais, cuja realização teve como objetivo investigar as percepções dos profissionais sobre o perfil das pessoas em situação de rua e expectativas quanto à formulação e implementação de políticas públicas na área, assim como de um grupo de usuários das políticas. Foi definido, em conjunto com o “grupo de acompanhamento à pesquisa”, a realização de quatro grupos focais, de modo a contar com a heterogeneidade dos principais serviços que compõem a rede de atendi- mento à população de rua em Porto Alegre. Os grupos tiveram a seguin- te composição3: 1) Trabalhadores de abrigos, albergues e república, que contou com a participação de 08 integrantes dos serviços; 2) Trabalha- dores dos Centros POP, Consultório na Rua e EPA, em que participaram 08 integrantes dos serviços, dentre estes Assistentes Sociais, Médico, Psicólogos, Educador Social e Professor; 3) Trabalhadores do CRAS, CREAS e Ação Rua, grupo que foi realizado com 12 integrantes dos ser- 3 A cada início de atividade os participantes foram consultados sobre a gravação do grupo focal e então foi realizado o registro oral do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para Grupos Focais. Este registro compõe-se do nome, cargo ou função, onde trabalha e há quanto tempo trabalha. Foram utilizados roteiros semiestrutura- dos durante a realização do grupo focal. 68 viços, dentre estes Assistentes Sociais, Psicólogos, Educadores Sociais; e, 4) Pessoas em situação de rua que utilizam os serviços públicos destina- dos a esse público, em Porto Alegre, grupo que teve 4 participantes liga- dos ao Movimento da População em Situação de Rua e ao Boca de Rua. A análise dos grupos focais evidencia que, com relação aos pro- fissionais dos serviços de abrigo, albergue e república, nota-se a preo- cupação com a precarização dos recursos humanos e a absorção de uma população com algum tipo de problema de saúde, destacando-se a questão da saúde mental e da saúde do idoso, que foram já destacados também nas visitas etnográficas. Os trabalhadores acentuaram as dificuldades de se trabalhar em equipamentos e serviços para população de rua que talvez estejam pro- jetados atendendo uma imagem de população de rua como aquela ex- clusivamente definida como “sem abrigo”, mas que, na prática, atendem populações que possuem heterogeneidades de situações de saúde e de idade que exigem um conjunto de especializações de estruturas e de funções por parte dos equipamentos, como camas e banheiros adequa- dos, além de infraestrutura de recursos humanos e de redes de serviço. Como finalidades associadas ao desenvolvimento do trabalho, tem-se o estímulo à “autonomia” e à “organização”, de um lado, e a pró- pria acolhida e os cuidados de saúde, de outro lado, sendo ressaltados por esses trabalhadores. Desta forma, em termos de concepção sobre o seu próprio papel, os trabalhadores de abrigos, albergues e república evidenciaram, sobretudo, duas principais atribuições: a) o estímulo aos processos de conquista da “organização” e da “autonomia”; e, b) a aco- lhida e os cuidados de saúde. Para os trabalhadores de CRAS, CREAS e Ação Rua, há clareza dos papéis institucionais dos serviços, mas uma percepção de indefini- ção de funções na prática, uma vez que há impossibilidades reais de que os serviços contem com a “retaguarda” necessária para sua boa efeti- vação, isto é, uma rede de serviços para encaminhamentos na área de assistência social e políticas mais amplas. Foram acentuadas as críticas a uma ampliação das equipes de abordagem sem uma retaguarda insti- tucional para tanto, bem como demandada uma maior descentralização de serviços em Porto Alegre. 69 Essa condição de trabalho em que se é obrigado a “abordar” e “orientar” pessoas para busca de seus direitos de acolhida institucional, de saúde e de documentação e cidadania, sem possibilidades de acesso a tais recursos pela população atendida, foi percebida como extrema- mente frustrante pelos trabalhadores, impossibilitados de realizarem encaminhamentos para além do “abraço”, como expressaram. Há gene- ralizada percepção de que apenas o “abraço” não basta e que é preciso contar com uma rede de proteção eficientePode-se salientar também o debate em torno das especificidades dos serviços de “ponta” e sua percebida invisibilidade institucional, o que de certa forma permite evocar certa equiparação entre precarie- dades – dos serviços oferecidos à população de rua (percebida pelos trabalhadores) e precariedade das condições de trabalho para profissio- nais que atendem tal população. Esta precarização apareceu, no grupo focal, nas manifestações de crítica a processos de burocratização que engessam o trabalho das equipes, mas, sobretudo, na falta de recursos de infraestrutura para o trabalho, como internet, salas e espaços apro- priados de trabalho, carro e relações com outros âmbitos de proteção, como saúde, educação, habitação e inserção profissional, para além da- quele relacionado à assistência social. Há, por fim, uma percepção dos trabalhadores acerca da condi- ção de oferecimento de serviços que realizam que, de forma crítica, aproxima tal oferecimento de recursos e serviços como mecanismos de produção da violência estatal. Esta associação, relacionada às já referi- das visões de frustração profissional pela falta de retaguarda, evidencia uma produção de sentidos sobre a sua própria atuação profissional bas- tante singular, na medida em que oscila entre proteção e violação de direitos, dadas as condições estruturais em que o trabalho é realizado. Com relação aos trabalhadores do Consultório na Rua, EPA e Centros POP, foi mais uma vez acentuada a deficiência dos serviços de saúde, especialmente referentes à saúde mental, e também foi con- sensual a maior necessidade de trabalho em redes de atendimento, vis- tas como bastante precárias, atualmente. Como condições de trabalho marcantes para estes profissionais está a percepção de uma redução da problemática da população de rua à uma questão de assistência social 70 e, de outro lado, a crescente utilização das instituições de assistência social por populações que deveriam, na perspectiva dos trabalhadores, estar atendidas por serviços de saúde. Essa situação conduz a uma sen- sação de acréscimo de demandas, sem um correspondente inter-rela- cionamento com outros âmbitos da rede de proteção, como habitação, saúde e educação. Apareceu também uma percepção de precarização dos serviços, dada não apenas pelas estruturas físicas e de recursos humanos defi- cientes, mas, sobretudo, pela falta de opções de encaminhamento para políticas mais amplas que conduzam a uma problematização da situa- ção de rua das pessoas atendidas. Essa redução de possibilidades de encaminhamento para opões de programas e políticas mais amplas do que aquelas da assistência social conduzem a percepção de um círculo de dependência do usuário em relação à assistência social que é per- cebida como produzida pela própria estruturação dos serviços. Esta percepção é relevante, uma vez que conduz a problematizar a própria produção da dependência assistencial pelo Estado, através de sua for- ma de estruturação em políticas e programas. Por fim, o grupo focal com pessoas em situação de rua apontou grande similaridade das temáticas abordadas tanto nas visitas etnográ- ficas, quanto nos grupos focais com trabalhadores. Com relação às expe- riências institucionais, as pessoas em situação de rua, participantes dos grupos focais, acentuaram a complexidade da existência de prioridades de atendimento a certas categorias, principalmente idosos e adoecidos e o quanto isso impede o acesso de outros públicos às instituições. Os pesquisados assinalaram que essas dificuldades de acesso aos ser- viços produzem uma espécie de ciclo de dependência das instituições de assistência social, dadas por uma precarização das instituições em termos de formas de atendimento interno, mas também de capacidades de enca- minhamentos a outras políticas, para além daquelas referentes à assistên- cia social. Esta menção ao ciclo de dependência institucional foi marcante também nas falas daqueles que assinalaram a precarização dos serviços de assistência social na cidade, associada a uma espécie de “labirinto”. Como disse um participante do grupo focal: “Eles botam o cara, na real, num labirinto, porque só tem um final, que é procurar eles 71 novamente”. Isto porque tais instituições não conseguiriam constituir relações com outras políticas mais amplas para que fosse possível a constituição de laços de trabalho e geração de renda, de educação e de habitação que permitissem a não dependência da assistência social. De forma mais ampla, foram trazidos como importantes a visão reativa de moradores de Porto Alegre com relação às pessoas em situa- ção de rua e, também, a falta de equipamentos públicos como banhei- ros, que possibilitem melhorias nas condições de vida das pessoas em situação de rua. Políticas assistenciais de mais longo prazo também fo- ram referidas, de forma a permitir a estabilização laboral e de moradia. Como demandas de melhorias no atendimento tem-se que essas poderiam ser distinguidas, a partir das falas dos usuários, em termos de: 1. ampliação e melhoria na rede de serviços e políticas para pes- soas em situação de rua, em que se destacam as sugestões de criação de um espaço de “passagem” que permitisse o uso por pessoas em situação de rua que precisariam de um local para depositar roupas e outros pertences e que precisem de um local para higienização, sem necessariamente tornarem-se institucionalizados, ampliação de vagas de abrigo, albergue e Centros POP em outras regiões da cidade, que não aquelas mais centrais; e, 2. qualificação de funcionários, com melhoria na oferta de ser- viços de saúde dentro das instituições e maior conhecimento das especificidades de vida da população de rua e da composi- ção da rede de atendimento. É possível destacar, para concluir, que para o caso dos grupos fo- cais realizados entre pessoas em situação de rua, uma grande similari- dade entre as demandas das pessoas em situação de rua com as deman- das dos funcionários participantes dos grupos focais, como também foi possível de se perceber nos relatos da própria configuração da rede de atendimento, como as peculiaridades dos ingressos via prioridades, a percepção de uma dificuldade de trabalho em redes e escassez de po- 72 líticas mais amplas de educação, saúde, habitação e geração de renda. Trata-se de destacar o quanto, então, as problemáticas vivenciadas no cotidiano do atendimento afetam tanto os trabalhadores quanto usuá- rios dos serviços. Considerações finais: as dinâmicas contíguas de proteção e violação de direitos Como vimos, os dados da pesquisa mostram um cenário de pro- fundas transformações nas instituições de abrigo e de albergue, as quais têm a ver com o crescimento da visibilidade da população de rua no contexto político e social e uma transformação no chamado “per- fil” de atendidos. Essa modificação relaciona-se com um incremento de demandas pela institucionalização de pessoas com problemas de saúde e de pessoas idosas e migrantes, realizada em um cenário de terceiri- zação progressiva dos serviços e sem uma efetiva transformação dos aparatos de atendimento e procedimentos técnicos de gestão dessa po- pulação, nas instituições. Por outro lado, a vivência dos trabalhadores e dos beneficiários das políticas mostra a necessidade de seleção constante de acessos aos serviços, que é vivida e percebida, tanto por gestores e trabalhadores como pelo público atendido, como parte de um processo de isolamento das políticas de assistência social das demais políticas. Como se percebe, as pessoas afetadas – gestores, trabalhadores e público atendido – produzem práticas efetivas de luta por inclusão social e cidadania das pessoas em situação de rua, mas também experienciam mecanismos de gestão dessa população em que é marcante a seletividade do acesso aos serviços, a escassez de recursos, a existência de regramen- tos institucionais formalizados, mas invisíveis ao controle externo e a aposta na provisoriedadee individualidade da situação de rua. Inseridos e participantes em tal cenário, as pessoas afetadas (ges- tores, profissionais e público atendido) vivenciam tal processo como marcado por dinâmicas tensas que associam proteção e violação de di- reitos, práticas simultâneas de cuidado e de violência. Trata-se isso, pois, de uma problemática vivenciada no cotidiano do atendimento que 73 afeta igualmente, embora de formas diferenciadas, tanto trabalhadores quanto usuários dos serviços, o que revela a importância de uma refle- xão e atenção por parte do poder público. Ao associar as infraestruturas cotidianas do governo da popu- lação de rua nos equipamentos de assistência social de Porto Alegre, com as visões, saberes, tensões e expectativas sobre as políticas públi- cas nessa área de atores envolvidos em sua produção, implementação e utilização, essa pesquisa é um passo nessa direção, pois permitiu dar visibilidade a um cenário marcado por dinâmicas complexas e, mais do que isso, contíguas, de proteção e violência. 74 Referências BIEHL, J. Vita: life in a zone of social abandonment. Updated with a new afterword and photo essay. Photographs by Torben Eskerod. Berkeley: University of California Press, 2013. BIEHL, J.; PETRYNA, A. (Eds.). When people come first: critical studies in global health. Princeton: Princeton University Press, 2013. DE LUCCA, D. A Rua em movimento – experiências urbanas e jogos sociais em torno da população de rua. [Dissertação de Mes- trado]. USP, 2007. FASSIN, D. Why ethnography matters: on anthropology and its publi- cs. 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Diversidade e Proteção Social: estudos quanti-qualitativos das po- pulações de Porto Alegre: afro-brasileiros; crianças, adolescentes e 75 adultos em situação de rua; coletivos indígenas; remanescentes de quilombos. Porto Alegre: Century, 2008. Pp. 13-30. SCHUCH, P.; GEHLEN, I. A Situação de rua para além de determinis- mos: explorações conceituais. In: DORNELES, A.; OBST, J.; SILVA, M. (Orgs.). A Rua em Movimento: debates acerca da população adulta em situação de rua na cidade de Porto Alegre. Belo Hori- zonte: Didática Editora do Brasil, 2012. p. 11-25. SCHUCH, P. Antropologia Pública - a ética da inquietude no trabalho de Didier Fassin. In: DINIZ, D. (Org.). Didier Fassin. Entrevistado por Débora Diniz. Coleção Pensamento Contemporâneo, n. 14. Rio de Janeiro, EDUERJ, 2016a. Pp. 81-119. SCHUCH, P. Antropologia Pública: notas para um debate. In: Cidada- nia e Direitos Humanos: pontos de vista antropológicos. Salvador, Edufba: ABA Publicações, 2017 (No Prelo). SCHUCH, P. “A Legibilidade como Gestão e Inscrição Política de Po- pulações: notas etnográficas sobre a política para pessoas em situação de rua no Brasil”. Neste volume. SHORE, C. “La antropologia y el estudio de la política pública: refle- xiones sobre la “formulación” de las políticas”. Antipoda - Revista de Antropologia y Arqueologia, Bogotá, n. 10, pp. 21-49, 2010. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Rela- tório Final da Pesquisa Quantitativa. Porto Alegre, 2016 (Mimeo). UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Relató- rio Final da Pesquisa Qualitativa. Porto Alegre, 2016 (Mimeo). http://lattes.cnpq.br/1747539632586169 77 POPULAÇÃO ADULTA EM SITUAÇÃO DE RUA EM PORTO ALEGRE: UMA SÍNTESE PAtrice Schuch ivAldo Gehlen AlexAndre SilvA virGínio MeliSSA de MAttoS PiMentA MAuro MeirelleS Apresentação A pesquisa quali-quantitativa visou compreender as caracterís- ticas socioculturais, os modos de inserção urbana e as relações com as políticas públicas das pessoas que se configuram como em “situação de rua” na cidade de Porto Alegre, a partir de uma pesquisa quantitativa. Tal pesquisa privilegiou um estudo de tipo censitário, que cadastrou os adultos em situação de rua na cidade entre os dias de 08 de setembro de 2016 e 10 de outubro de 2016. Foram encontrados 2115 adultos em situação de rua na cidade, no período investigado; desses, 1758 aceita- ram participar da pesquisa e tiveram seus dados cadastrados. A diferença entre esses números refere-se às pessoas apenas con- tadas para fins de contabilização da população, mas por diversos mo- tivos – pela recusa de participação no estudo, pela impossibilidade de responder à pesquisa devido a alterações psicológicas e/ou comporta- mentais ou pelo fato de estarem dormindo – não puderam responder ao cadastro. A pesquisa também trabalhou simultaneamente com uma amostra quantitativa da população investigada, que perfez o total de 467 pessoas. A amostra possibilitou compreender em maior detalhe as condições de vida das pessoas em situação de rua, suas práticas co- tidianas, seus modos de inserção urbana, suas condições de saúde, o modo como lidam com a violência, suas expectativas para o futuro e as relações destes com as políticas públicas. 78 O estudo amostral e censitário segue a metodologia de pesquisas anteriores realizadas sobre o assunto em Porto Alegre: a pesquisa de 2007, que contou também com o estudo amostral sobre as característi- cas de vida da população de rua na cidade (UFRGS, 2008) e a pesquisa de 2011, quando foi realizado somente o censo da população adulta em Porto Alegre (FASC, 2012). A pesquisa censitária e amostral de 2016 é parte de um estudo mais amplo, que abarcou também as características dos equipamentos de abrigo e albergue para a população adulta em si- tuação de rua e as expectativas e desafios dos trabalhadores da rede de atendimento à população adulta em situação de rua em Porto Alegre, finalizado em março de 2017. O universo da pesquisa Definiu-se como pessoas a serem pesquisadas durante o período do estudo, todos os adultos que se encontrassem em abrigos e alber- gues destinados ao acolhimento e/ou ao abrigo temporário, intermi- tente ou definitivamente, assim como aqueles que se encontrassem em atividades de perambulação/circulação pelas ruas e/ou que dissessem fazer da rua seu local de existência e habitação, mesmo que tempora- riamente. Assim, o universo de pesquisa conjugou uma diversidade de fatores, entre os quais se destacam: 1. os modos de utilização do espaço da rua ou de territórios subvertidos em sua utilização (casas abandonadas, viadutos, parques etc.) – em habitação, perambulação, permanência ou outra forma de existência social, mesmo que situacional; 2. o uso dos serviços destinados ao acolhimento de pessoas que necessitem de abrigo temporário, intermitente ou definitiva- mente; e, 3. a aparência e a cultura material dos pesquisados. 79 Do método Para realização da pesquisa em tela foram seguidos os seguintes procedimentos metodológicos: 1. A constituição de “Grupo de Acompanhamento”, que acompa- nhou a organização e execução da pesquisa e reuniu os pesqui- sadores da UFRGS, profissionais da Prefeitura de Porto Ale- gre, um representante do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) e um representante do Jornal Boca de Rua; 2. A constituição das equipes do trabalho de campo: participa- ram da pesquisa de campo dois coordenadores do trabalho de campo, ambos professores do Departamento de Sociologiada UFRGS, 7 facilitadores de campo (seis pessoas em situação de rua e um profissional da intervenção social), 6 supervi- sores das equipes de campo (estudantes de graduação e de pós-graduação da UFRGS) e 22 entrevistadores (estudantes de graduação e de pós-graduação da UFRGS); 3. A realização de curso de extensão intitulado “População em Situação de Rua: Lutas, Políticas e Desafios para as Políti- cas Públicas”, realizado pelo Departamento de Sociologia e o Departamento de Antropologia da UFRGS, que reuniu estu- dantes, pessoas em situação de rua e profissionais da Prefei- tura de Porto Alegre; 4. A elaboração dos instrumentos de pesquisa, que foram cons- truídos tomando por base os instrumentos já elaborados, tes- tados e utilizados nas pesquisas de 2007-8 e 2011 (UFRGS, 2008 e FASC, 2012) e também com base nas discussões do “Grupo de Acompanhamento” e no curso de extensão. Especificamente, para realização da presente pesquisa foram uti- lizados os seguintes instrumentos utilizados: 80 1. O Cadastro dos Adultos em Situação de Rua de Porto Ale- gre: contemplando dados da entrevista (data e local da entre- vista, horário, turno em que foi aplicado, bem como dados do entrevistador e do supervisor), dados do entrevistado (nome, apelido, data de nascimento, nome da mãe e idade) e 10 per- guntas (informações demográficas e hábitos do cotidiano do entrevistado). 2. O Questionário Amostral: contemplando dados da entre- vista (data e local da entrevista, horário, turno em que foi aplicado, bem como dados do entrevistador e do supervisor), dados do entrevistado (nome, apelido, data de nascimento, nome da mãe e idade) e 67 perguntas, nas quais foram incluí- das: informações demográficas, hábitos do cotidiano, renda e trabalho, relações familiares, saúde, sexualidade, violência e relação com instituições, perspectivas de futuro. 3. O Mapeamento do Campo: realizado a partir do mapea- mento da distribuição da população em situação de rua pelo espaço urbano de Porto Alegre, e que foi objeto do Censo e Mundo, foi realizado com base no cruzamento de informa- ções obtidas junto à FASC, aos facilitadores (representantes do universo social estudado), durante o trabalho de campo, e visitas de reconhecimento do campo realizadas pela equipe de pesquisa, particularmente nos bairros mais distantes do cen- tro de Porto Alegre. As informações fornecidas pela FASC foram complementadas por registros dos estudos anteriores e atualizadas pelas equipes de abordagem social da popula- ção adulta em situação de rua, durante reuniões previamente agendadas com as coordenações das equipes. Quanto aos procedimentos de trabalho, a equipe de pesquisa res- ponsável pelo mapeamento elaborou cópias do mapa da planta urbana do município de Porto Alegre, divididas segundo as regiões do Orça- mento Participativo e revisou, junto com os coordenadores e técnicos 81 de cada equipe de abordagem social da FASC, os locais onde pessoas em situação de rua organizaram estruturas de moradia, faziam uso do espaço público para pernoite, os locais utilizados para a realização de atividades de trabalho e de circulação, bem como locais de distribuição de alimentos, pesagem e de materiais recicláveis recolhidos e vendidos. Essas informações foram revistas e, como já referido, posterior- mente, atualizadas pelos facilitadores, que orientaram as saídas a cam- po, com base na sua experiência e conhecimento, bem como suas redes de sociabilidade. Também foram complementadas pelas próprias pes- soas em situação de rua entrevistadas, que indicaram onde as equipes poderiam encontrar outras pessoas em situação de rua nas proximi- dades. Finalmente, foram integradas ao mapeamento as informações fornecidas por moradores, comerciantes, lideranças locais, coordena- dores de instituições conveniadas e outros prestadores de serviços que atuavam junto a essa população, obtidas durante as visitas de reconhe- cimento nos bairros. A participação das Pessoas em Situação de Rua na Pesquisa A participação das pessoas em situação de rua se deu através de diversas formas: 1. Como participantes do “Grupo de Acompanhamento” da pes- quisa, que contou com a representação do Jornal Boca de Rua e do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR); 2. Como facilitadores de campo, isto é, pessoas que acompanha- vam as equipes de pesquisa nos locais de aplicação do ques- tionário, para auxiliar no acesso aos entrevistados; e, 3. Como palestrantes e participantes no curso de extensão pro- movido pelo Departamento de Sociologia e o Departamento de Antropologia da UFRGS, intitulado “População em Situ- ação de Rua: Lutas, Políticas e Desafios para as Políticas Pú- blicas”, cujo eixo central foi a discussão dos elementos antro- 82 pológicos, políticos e históricos da problemática das pessoas em situação de rua. Cronograma das Aplicações A realização do campo teve início no dia 8/09/2016, pelas ins- tituições que acolhem parcela desta população em turnos agendados com as respectivas direções. Na sequência, durante duas semanas, as seis equipes percorreram as ruas da região central, previamente pro- gramadas através de reunião conjunta entre supervisores de campo, fa- cilitadores e equipe técnica da pesquisa. Os locais apontados como mais relevantes foram visitados pelo menos três vezes em horários diversos e geralmente por equipes diferentes. Nas duas semanas finais da pesquisa de campo (encerrada no dia 10 de outubro de 2016), as equipes foram deslocadas para as demais regiões do OP, seguindo os roteiros de campo previamente construídos pela equipe técnica de pesquisa. Ao final do trabalho foi realizada uma reunião com a coordenação da pesquisa, com a equipe técnica, super- visores de campo e entrevistadores, durante a qual foram definidos os locais que precisavam ser revisitados. A finalização do trabalho de campo se realizou no dia 10 de outu- bro de 2016. Como previsto, a região de maior concentração de pessoas pesquisadas foi o Centro (39,7%), Floresta (12%), Menino Deus (7%), o que totaliza o percentual de 58,7% dos pesquisados. Caracterizações gerais da população estudada O estudo censitário da população de rua na cidade de Porto Ale- gre, realizado entre 08 de setembro e 10 de outubro de 2016, perfez rotinas de trabalho de campo que abarcaram turnos diversos de estudo (manhã, tarde e noite) e percorrendo toda a capital, apontou a existên- cia de 2115 pessoas adultas em situação de rua. Em comparação com o último censo sobre o assunto realizado na cidade, datado de 2011 (FASC, 2012), que abarcava a mesma metodologia de pesquisa, esse 83 número representa um acréscimo de 57% de pessoas. Este crescimento aponta para uma maior visibilidade dessas pessoas na cidade e traz desafios importantes para as políticas públicas de sua gestão. Foram dados importantes: Perfil demográfico O perfil populacional possível de ser constituído pelos dados de campo aponta que a população de rua na cidade de Porto Alegre é majoritariamente masculina (85,5%), nasceu em Porto Alegre ou na região metropolitana da cidade (59,1%) e que, em geral, tem mais de 35 anos (61,4%). Em sua maioria, estes, possuem o ensino fundamental incompleto (57,4%). Os autodeclarados negros (24,5%) e pardos (12,4%) consti- tuem 36,9% da população, ao passo que os autodeclarados brancos são 34,3% dos casos. Das análises dos que não nasceram em Porto Alegre, é possível indicar a existência de mobilidade territorial re- alizada principalmente na direção do interior do estado para capital e a consolidação da moradia em Porto Alegre entre grande parte da população adulta em situação de rua, na medida em que 51,1% vive na cidade há mais de 20 anos. Trabalho, Renda e Formação profissional As atividades de trabalho mais citadas entre os entrevistados foram a reciclagem (23,9%), jardinagem (14%) e lavação de carros/ flanelinha (12,8). Possuem renda até meio salário mínimo (38,2%) e um salário mínimo (31,6%), o que perfazum total acumulado de 69,8% da população estudada recebendo até um salário mínimo. De modo geral, uma boa parte da população (42,5%) sustenta ter alguma formação profissional. Alguns dos entrevistados afirma- ram, inclusive, possuir mais de um curso de qualificação. Pelo contrá- rio, 57,5% afirmou não ter frequentado nenhum curso de qualificação, o que indica uma demanda a ser observada, acima de tudo se levarmos em conta sua relação com as oportunidades de trabalho e renda. 84 No mais, tem-se que a população se auto-representa afirmativa- mente em relação à identificação com uma profissão, sendo 81,4% os que afirmam possuírem profissão. Este percentual não oscilou se con- siderarmos os percentuais da pesquisa de 2007. Relações familiares Mais de 70% (75,1%) destaca não ter outro familiar em situação de rua, embora relatem a presença de filhos em 75,9% dos casos. Aumen- tou significativamente o percentual daqueles que não têm contato com a família há mais de 5 anos, passando de 24,5% em 2007-8 para 39,9% na atual pesquisa. Em 2016, aqueles que disseram ter companheiro(a) fixo(a) representam 22,4%, menos de 5 pontos percentuais em relação à pesquisa de 2007-8. Há uma diferenciação de gênero importante, pois 59,5% do total de mulheres assumiu ter companheiro(a) fixo(a) na atua- lidade. Do total de homens, somente 15,0% encontra-se nesta condição. No que se refere à existência de prole, em 2007-8, 29,1% afirma- ram não ter filhos, enquanto 70,2% declararam tê-los. Em 2016 esta relação alterou-se em favor daqueles que manifestaram ter filhos. Eles são hoje 75,9% da população, contra 24,1% que sustentaram não ter filhos. Destes, apenas 27,3% nasceram quando o respondente se encon- trava em situação de rua. Tempo e Motivo de ida para a rua De uma maneira geral, tem-se que 25,2% da população investiga- da está há menos de 1 ano na rua. Por outro lado, agregando os dados daqueles que estão há mais de 5 anos na rua, temos quase a metade da população (47,8%), o que revela uma permanência na situação de rua de mais longo prazo. Comparando aos dados de 2016 com as pesquisas anteriores, vê-se uma tendência de cronicidade da situação de rua, com crescimento dos percentuais de tempo em faixas temporais de mais de 10 anos de rua. Na pesquisa de 2007-8, o percentual de pessoas com mais de 10 anos de rua era de 19,1%; este percentual representa, hoje, 29,2% da população investigada. 85 Os principais motivos para a ida para a rua foram aqueles relacio- nados ao uso de álcool/drogas (24%), motivo mais citado, e situações diversas relacionadas à instabilidade familiar (32,5%). Se considerar- mos que as “separações e decepções amorosas”, os “maus tratos na fa- mília”, “não se sentir bem com a família”, a “morte de algum familiar”, o “envolvimento da família com o tráfico de drogas” e o “uso de drogas ou o alcoolismo na família de origem” são situações que envolvem pessoas próximas e/ou do núcleo familiar de origem, verificamos que 32,5% das motivações explicitadas pelos entrevistados para terem ido para a rua envolveram questões e conflitos familiares. Pernoite A maior parte da população estudada dorme cotidianamente e prio- ritariamente em lugares de risco e improvisados e com forte exposição ao ambiente natural (52,1%). A opção por dormir em lugares institucionali- zados variou pouco entre uma pesquisa e outra. Em 2007-8, os percentu- ais foram de 35,8% em primeiro lugar e 16,9% em segundo lugar. Naquela oportunidade a paragem era preferencialmente em albergues (18,9% e 6,7%), abrigos, hotéis ou pensões – em geral pagos pela prefeitura – (9,3% e 5,9%), casa própria ou de parentes e amigos (7,6% e 4,3%). Na atualidade, o uso dos espaços institucionalizados para pernoitar é a primeira opção para 38,8% dos entrevistados e segunda para 22,7%. Neste âmbito, os albergues foram objeto de maior procura pela popula- ção, tanto na primeira quanto na segunda opção (23,7% e 10,3%). Existe uma tendência pequena à intensificação do uso de serviços, que também se verifica dentre os equipamentos de pernoite disponíveis à população, mantendo-se o padrão preferencial da maior parte da população que não os utiliza. Enquanto que, em 2007-8, 39,3 %, da amostragem afirmava frequentar albergues, este percentual chega a 49,0% em 2016. Entretanto, quando solicitados sobre o local onde dormem com mais frequência, apenas 23,3% apontaram os albergues, mesmo que este número seja superior aquele revelado pela pesquisa anterior, qual seja, 18,9%. Inversamente, os abrigos registraram uma queda em sua procura e utilização. No passado recente, 32,2 % dizia servir-se de abri- 86 gos e agora somente 28,8% assume isto. Em acréscimo, enquanto que no final da década passada 6,1% indicavam os abrigos como primeira alternativa este percentual, na atualidade, corresponde somente à 4,0% dos entrevistados. Cotidiano e Uso de instituições Grande parte dos que responderam ao questionário sobre com quem passam a maior parte do tempo na rua revelou que a maioria (44,1%) sustenta estar com parceiros de rua, colegas de trabalho e ami- gos em geral. Ao se analisar onde passam a maior parte do tempo quan- do estão acordados, os equipamentos institucionais foram apontados, em por apenas 9,5% dos entrevistados, como primeira opção. Saliente-se que esses equipamentos são espaços de acolhida e não de trabalho remune- rado, o que contrasta com a resposta de 17,8% dos entrevistados que disseram trabalhar, pedir nas esquinas ou atividades afins, priorizando a atividade exercida em detrimento do local onde a exercem – o que indica também o caráter informal e itinerante dessas atividades. Dentre os serviços/locais de uso diurno, o Centro POP é buscado com frequência por 43,8% dos entrevistados, enquanto 56,2% não fa- zem uso deste serviço. Menos da metade da população estudada (40,1%) afirma fazer a suas necessidades íntimas em instituições assistenciais previstas especialmente para a sua acolhida, sejam albergues, abrigos, Centro Pop ou Caps. Banheiros e chuveiros públicos previstos para essas finalidades, sem serem destinados exclusivamente para esse segmento da população, constituem a segunda resposta mais assinalada (22,5 %). Com relação ao uso de serviços, pode-se perceber um ligeiro crescimento no uso dos serviços, caso consideremos os dados coleta- dos em 2007-8. É o caso do Restaurante Popular, que atendia 46,9 % do universo em questão e que os dados atuais apontam para 48,8%, ainda que mais da metade, 51,2%, afirme não frequentá-lo. Outro local de distribuição de comida é o Sopão Ramiro d’Ávila, usado por 30,4 % dos entrevistados na pesquisa anterior e agora por 39,8%, embora 60,2% siga não fazendo uso dessa entidade tradicional da cidade. Centros re- ligiosos que prestam assistência à população em situação de rua, como 87 igrejas, centros espíritas e/ou terreiros, são buscados por 48,9% contra 42,7% dos informantes em 2007, além do que, 51,1% do total disse não recorrer a seus préstimos na atualidade. Em consequência, nota-se um crescimento da importância destes estabelecimentos; não obstante, es- ses diversos conjuntos de serviços permanecem como não sendo aces- sados por grande parte da população adulta em situação de rua. Locais de alimentação: Os dados coletados na atualidade indicam que 52% dos informantes recorrem a alguma organização pública ou particular, leiga ou religiosa, destinada para a distribuição de comida junto a pessoas necessitadas. Em seguida, com 24,9% de incidência, é mencionada a comida que ganham das pessoas (pedido em residências, estabelecimentos comerciais ou cozinhas) como recurso principal para saciar a fome. O percentual de 16,2 % das respostas indica a compra de alimentos com seus próprios recursos e/ou em troca de trabalho. Doze pessoas (2,9 %) apresentaram outras formas de obter comida. Saliente- -se que, em comparação com a pesquisa de 2007-8, houve um aumen- to da procura pelo restaurante popular cujafrequência, que foi 13,1% naquele estudo, alcança 22,0% em 2016. Inversamente, o percentual de população que depende do resultado do que ganham das pessoas diminuiu. No intervalo entre uma pesquisa e outra este índice diminuiu dez pontos percentuais. Isto pode sinalizar, ademais, uma diminuição da solidariedade espontânea para como esta população. Saúde: Apontou-se também na pesquisa um crescimento do relato de doenças e/ou problemas de saúde associadas ao uso de álcool e drogas e um crescimento da informação sobre adoecimento e/ou problemas de saúde que pode informar a necessidade de maior investimento pú- blico nesta área. Em comparação com os resultados das pesquisas an- teriores, destacamos que não houve diferença em relação à tipologia de doenças ou problemas que os entrevistados(as) disseram possuir, mas uma percepção de agravamento significativo no percentual da doen- ça ou problema que atinge a grande maioria da população investiga- da: a “dependência química/álcool”, que abrangeu em 2016 o total de 58,1% de respostas positivas. Em 2007-8 esta variável recebeu 40,1% 88 das respostas positivas e em 2011 o percentual de 49,6% de respostas positivas. Em segundo lugar foi ressaltado o “problemas nos dentes”, com 47,8% de respostas “sim” e, em terceiro lugar, aparecem as “dores no corpo”, com 43,7%, que se mantiveram relativamente estáveis na comparação entre os dados de 2011 e 2016, mas que aumentaram tam- bém em relação aos dados de 2007-8. Estes dados apontam para uma maior percepção de adoecimento e de posse de problemas de saúde, em relação às pesquisas anteriores. Esta interpretação é corroborada pelo aumento da percepção de doenças ou problemas de saúde em quase todas as categorias investigadas, à exceção das doenças de pele, que diminuíram percentualmente quase 50% em comparação com os dados de 2007-8 e de doenças cardíacas, que se mantiveram estáveis desde a pesquisa de 2007-8. Uso de produtos prejudiciais à saúde: Com relação à questão sobre o uso de produtos que podem ser prejudiciais à saúde, o produto mais utilizado foi o cigarro, consumido por 51,8% dos entrevistados todos os dias e 13,7% de vez em quando. Em seguida, as bebidas alcóolicas, consumidas todos os idas por 24,6% e de vez em quando por 36,9% dos entrevistados, respectivamente. Entre as drogas ilícitas mais consumi- das estão a maconha e o crack. Participação política: Mais de 60% da população estudada afirmam possuir documentos importantes como Carteira de Identidade (65,4%), CPF (61,4%) e Certidão de nascimento (61,3%). Há um crescimento na posse de documentação, provavelmente relacionada à maior inserção dessa população em benefícios sociais. 34,2% afirmar receber o Bolsa Família. A participação e conhecimento do Jornal Boca de Rua e do Movimento Nacional de População de Rua mostrou-se significativo. Violência: Quando questionados se alguma vez foram vítimas de al- gum tipo de violência, a grande maioria dos entrevistados (60,6%) res- pondeu positivamente, sendo que 47,5% sofreu violência mais de uma vez em sua vida. Cerca de 45% dos entrevistados afirmaram já terem sido expulsos de algum lugar, sendo que 36,5% se referiam a locais e 89 órgãos públicos, como ruas, calçadas, praças, parques, marquises e até mesmo hospitais e postos de saúde. Em seguida, figuram os estabeleci- mentos comerciais, incluindo bancos (21,1%). Com relação à percepção do modo de tratamento da população da cidade de Porto Alegre, os tra- tamentos negativos foram consideravelmente mais frequentes que os tratamentos positivos. As categorias “com desconfiança” e “com medo” foram indicadas por 82,4% e 80,7%, respectivamente, dos entrevista- dos. O preconceito em relação a essa população também é bastante elevado, aparecendo em 79,4% das respostas positivas. Mais da metade, 51,8%, afirmou serem tratados “sem respeito”. Considerações Finais Os dados apresentados mostram uma dinâmica de vida marcada pelo reconhecimento da situação de subalternidade e de falta de reco- nhecimento social. Embora haja, de um lado, maior visibilidade política e numérica da população em situação de rua na cidade, o que se percebe através das percepções trazidas pelas pessoas estudadas é uma inten- sificação de estigmas e atribuições negativas. O uso de serviços ofere- cidos para esta população continua marcando o cotidiano de escassa parte da população estudada, o que constitui um desafio para as políti- cas públicas. Como escrevemos anteriormente, reconhecer a existência social das pessoas em situação de rua pode ser admitir que o rumo das políticas talvez não seja aquele da simples tentativa de sua supressão através de políticas assistencialistas ou de controle social punitivo, mas atenção e, sobretudo, transformação dos complexos processos sociais que as configuram, na sua dramaticidade e luta cotidiana. 90 Referências FASC. Relatório Final de Pesquisa: Cadastro de Adultos em Situa- ção de Rua de Porto Alegre/RS. Porto Alegre: FASC, 2012 (Mimeo). UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, Rela- tório final da pesquisa: Cadastro de Adultos em Situação de Rua e Estudo do Mundo da População Adulta em Situação de Rua de Porto Alegre. Porto Alegre, 2008 (Mimeo). 91 DESAFIOS METODOLÓGICOS AO ESTUDAR A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA ivAldo Gehlen MAuro MeirelleS PAtrice Schuch O presente texto tem como finalidade explorar e apontar algu- mas particularidades metodológicas que envolvem o estudo da popu- lação em situação de rua. População essa tida como particular e que guarda certa similitude com outros estudos na sociologia e na antro- pologia de populações nômades, migrantes sazonais entre outras que, no geral, tem em comum um baixo reconhecimento de cidadania e, portanto, usufruem de forma limitada senão sofrida dos serviços e di- reitos de cidadãos. Estas populações mantêm no território no qual se movem física e culturalmente, relações relativamente frágeis e dissonantes na inte- ração com o outro em condições similares e relações de dependência ou de estranhamento com o outro que não compartilha seu território, seu “modus vivendi” (MARTINS, 1997). As reflexões aqui presentes se assentam, para além de estudos com outros segmentos sociais, sobre- tudo, em experiências metodológicas através de estudos realizados nos últimos 15 anos com pessoas em situação de rua na cidade de Porto Alegre. O estudo realizado em 2016, denominado de “estudo quanti- -qualitativo da população em situação de rua em Porto Alegre”, por demanda da FASC é a principal referência. Esse estudo incorpora ex- periências anteriores, desde 2004, pelo IFCH (UFRGS), sempre em parceria com a FASC e, portanto, este artigo acumula toda essa traje- tória metodológica. Nesse sentido, tanto a construção do projeto de estudo e sua execução, quanto os procedimentos utilizados, se legitimaram ante- riormente. A primeira delas constituída por cadastro tipo censitário e estudo do mundo das crianças e adolescentes em situação de Rua de 92 Porto Alegre e de outras seis cidades da Região Metropolitana, através de entrevistas estruturadas (questionário), em 2014, no contexto do Projeto GRANPAL. Estudo pioneiro, no que se refere à abrangência e profundidade e por consequência como experiência teórica e meto- dológica. A segunda, no segundo semestre de 2007 e início de 2008, refez o cadastro de crianças e adolescentes de Porto Alegre e incluiu o cadastramento censitário e o mundo cotidiano da população adulta em situação de rua da cidade. Realizada pela mesma unidade da UFRGS e com repetição de alguns pesquisadores, apropriou-se tanto de ins- trumentos quanto procedimentos empíricos já utilizados na pesquisa anterior da anterior. A terceira precursora foi o Censo da população adulta em dezembro de 2011, executado pela FASC com consultoria de professores do IFCH/UFRGS. Estas experiências proporcionaram a criação e testagem de me- todologias e instrumentos que se procuram evidenciar neste texto. O aquidenominado de “mundo” dessa população corresponde ao modus vivendi expresso em práticas e experiências, permeado de mobilidades territoriais, onde inclui-se o social e o cultural, e também de rupturas, que no dia a dia marcam as vidas dos que vivem nessa condição. Esta condição de rua é resultado de processos históricos complexos, mul- ticausais, incluindo subjetividades, seu início, muitas vezes, resulta de ruptura(s) nas dimensões afetiva, profissional, social, familiar e, outras vezes, é promovido por imponderáveis relativos à saúde ou à dependên- cia de produtos diversos, como álcool, remédios ou drogas. Capturar esta realidade na sua importância quantitativa, diag- nóstica, necessária para definir políticas específicas e na sua importân- cia pessoal e existencial, que expresse qualidades, constitui muitas ve- zes dilemas metodológicos. Além do caráter de nomadismo (MAGNI, 2006), alguns apresentam características de hábitos cotidianos indivi- dualizados e de vida solitária. Levando em conta tais características, optou-se por uma amostragem relativamente alta para os padrões de estudos acadêmicos, ou seja, ao invés de 30%, na pesquisa de 2016, utilizou-se uma amostragem de cerca de 25% compensada por um uni- verso total maior em mais de 50% da população em relação a pesquisa anterior. A amostragem alta foi para compensar dificuldades pelo ca- 93 ráter nômade, pela inviabilidade de alguns selecionados responderem as perguntas do questionário e pela indefinição do universo antes da ida à campo. Além disso a dispersão de respostas em algumas questões é bastante significativa de modo que, uma amostra maior acaba por compensar eventuais desvios. A experiência de pesquisar um universo social marcado pela in- visibilidade e vulnerabilidade na cidade de Porto Alegre vai além dos registros formais em banco de dados e relatórios. Significados e repre- sentações são registrados nas experiências e narrativas de quem vive o processo em qualquer dos lados. A aproximação, desconstrução de preconceitos sociais e a ambivalência na relação entre sujeitos díspa- res, até então distantes, embora muitas vezes vivendo próximos e se encontrando anonimamente nas perambulações pelas ruas, uns para ir e vir, outros porque essa é sua condição cotidiana, é resultado estra- tégico para os pesquisadores e participantes da pesquisa. Do lado dos que fazem da rua sua “casa” e/ou nela circulam e habitam socialmente, estes, se sentem partícipes da cidadania que esse encontro desvela. Do lado daqueles que realizam a pesquisa, ao explicar as razões do estudo tem-se que, estes, ao irem de encontro a uma abertura e aceitação por parte do universo social estudado, informando-lhe por que está sendo entrevistado e a finalidade do estudo, acabam por viver um processo de estranhamento que lhe enseja um compromisso ético e pedagógico que inspira responsabilidade de modo que, tanto nós quanto eles não pas- samos incólumes por essa vivência e experiência singular que a própria metodologia da pesquisa nos impõe. Contudo, a devolução, através da entrega/apresentação dos re- sultados, tem se mostrado de suma importância na medida em que instrumentaliza tantos os geradores, quanto os executores, quanto os beneficiários de políticas e enseja a realização de estudos posteriores. Mas, também propicia o autoconhecimento, levando a que tanto a po- pulação em situação de rua quanto os trabalhadores que atuam junto a eles e/ou ainda, os próprios pesquisadores, salientado nas avaliações, a se reconhecerem melhor no mundo e na sociedade em que vivem. 94 A pesquisa/estudo das populações em situação de rua: uma breve digressão É recente a incorporação do universo social da população em si- tuação de rua nos estudos acadêmicos e mesmo nos diagnósticos para fins de formulação de políticas de atendimento e de inclusão social no Brasil. Já se observa resultados positivos desses estudos, na formulação de políticas e na criação e implementação de programas específicos, especialmente no que se refere ao universo infanto-juvenil, em Porto Alegre e no Brasil em geral, segundo relatos. As informações quanti- tativas possibilitam avaliar e monitorar a abrangência e as mudanças provocadas pelas ações proativas. Já as informações qualitativas possi- bilitam compreender melhor o seu modo de vida e, portanto, construir com eles estratégias de médio e longo prazo com vistas a que possamos qualificar cada vez mais a prática profissional daqueles que, direta ou indiretamente, atuam junto a esse segmento específico da população. Essas mudanças resultam de três “movimentos”, estreitamente vinculados ao processo de produção de conhecimento e à maneira ou metodologia para isto. Um, se origina do Estado enquanto ente público responsável primeiro pela superação das desigualdades e da discriminação social. Uma vez que, aos poucos é possível conhecer melhor o universo, mas também se apropriar de metodologias geradoras de informações, sis- tematizações e análise, possibilitando o aperfeiçoamento e o monitora- mento das políticas e iniciativas. Nos estudos que servem de referência aqui, houve forte preocupação de integrar os entes públicos envolvidos, através da inclusão de seus técnicos no processo de estudo e no próprio estudo em si. Contudo, até hoje a população em situação de rua não foi recenseada nacionalmente, embora essa tenha presença marcante nas cidades, esta, não “existe” demograficamente. E, neste sentido, Por- to Alegre tem sido pioneira no estudo aprofundado da população em situação de rua de modo que, aos poucos, se produzem programas e projetos sintonizados com a realidade. Mas, ainda assim há um percur- so significativo a ser desenvolvido neste âmbito, sobretudo a partir da produção de pesquisas mais atentas à heterogeneidade deste universo. 95 O segundo movimento é o dos próprios atores sociais (popula- ção em situação de rua) que aos poucos se organizam e se mobilizam para produzirem e lutarem por reinvindicações específicas. Estão or- ganizados inclusive nacionalmente e parte das políticas atuais resul- ta dessa organização. Com apoio de técnicos e de organizações geram informações e as difundem, de forma relativamente sistemática. Em Porto Alegre, há várias experiências, as quais contam geralmente com a participação de instituições com qualificação de apoiá-los metodolo- gicamente, dentre essas instituições citam-se os centros universitários. O terceiro movimento é da sociedade civil, que informada e aler- tada pelos resultados de estudos e de debates, aos poucos desconstrói olhares preconceituosos, quando não estigmatizados, e incorpora-os como cidadãos. Isto altera também o reconhecimento e o respeito a um “novo lugar” desse segmento social no uso dos recursos da cidade e no acesso aos serviços. O reconhecimento de pertencimento à mesma cidade que nós – no caso os outros em relação a eles – predispõe a que se passe a compatibilizar os recursos, a reconhecê-los como detentores de direitos humanos inalienáveis. Com isto, há a possibilidade de uma maior aceitação da população – e mesmo do poder público – da inver- são de investimentos em estrutura, serviços e espaços físicos e simbóli- cos que os dignifiquem, reconhecendo-se as inúmeras tarefas que estes desempenham no espaço urbano. Todos esses movimentos permitem aperfeiçoar a metodologia das pesquisas, com a constatação de mudanças bastante significativas da quantidade de pessoas em situação de rua. Entre os mais jovens, aparece uma forte diminuição em menos de uma década e entre os de mais idade aparece o contrário. No caso da população infanto-juvenil da População de Rua de Porto Alegre, a diminuição representou sua quase extinção. Foram encontradas 27 pessoas menores de 18 anos. Certamente deve-se aos três movimentos acima explicitados, sobretu- do, às políticas de sucesso. A pesquisa foi o melhor instrumento para mostrar isto, conforme atestam os relatórios e depoimentos. O mesmo parece aplicar-separa os adultos-jovens, ou seja, menores de 30 anos, e para as mulheres em que a pesquisa mostrou com clareza a tendência à diminuição proporcional em relação aos homens na rua, no censo de 96 2016. Esta diminuição também é atribuída principalmente às políticas específicas. Entre os mais idosos há um acréscimo real, tanto em número quanto pela maior permanência na rua, nos estratos mais altos de ida- de. E, neste sentido, sugere-se a realização de estudos continuados de modo a que se possa melhorar o atendimento a essa população e a compreender os motivos que os levam a continuar nessa condição? Certamente, também resultou em parte do aperfeiçoamento metodoló- gico do mapeamento, realizado com informações mais precisas e abran- gentes dos serviços da FASC e com informações da população através de reuniões e de técnicas aplicadas pelos entrevistadores. Certamente contribuiu o refinamento conceitual que disciplinou e orientou os olha- res dos pesquisadores/entrevistadores, facilitando o encontro e a visi- bilidade de uma parte que não era reconhecida ou não era conhecida. Outro desafio para garantir rigor metodológico é identificar ou absorver a complexa mobilidade social, tanto de chegada ou ingresso e saída da condição “de rua”, quanto de construção de prestígio, status e identidades na rua, processos com os quais, os pesquisadores não estão familiarizados. Há, nesse caso, a necessidade de uma retroalimentação que induza mudanças de olhares e de comportamentos. A constatação da heterogeneidade desse universo gera como desafio a aprimoramen- to das metodologias existentes e a utilização de outros métodos de co- nhecê-los e também deles se reconhecerem. A constatação de melhora no auto e hetero reconhecimento por parte da População de Rua, os instrumentaliza para organizar suas pautas e suas demandas, inclusive com apoio nos resultados dos estudos. Os dados de identificação, mos- tram claramente que o conjunto da População de Rua, mutatis mutantis, reproduz a sociedade geral na qual se insere. No estudo realizado em 2004 teve-se uma preocupação bastante acentuada com os riscos de entronizar-se nesse universo, tanto do pon- to de vista da possível ineficácia metodológica, pela não receptividade ou pela falsificação de informações, quanto do ponto de vista de pos- síveis ameaças à integridade dos pesquisadores, pois, era experiência inédita no Brasil, sobretudo, no que tange a sua amplitude e profundi- dade. Nas pesquisas subsequentes foi melhor trabalhado e maturado, 97 diminuindo ansiedade e insegurança. Em 2016 acresceu-se, porém, um ingrediente a complicar, no que se refere à sensação de segurança tanto dos pesquisadores, quanto dos pesquisados, decorrente do momento político de Porto Alegre e do País. Houve maior recusa em participar da pesquisa por conta do mal-estar em relação à mudanças políticas – período do impeachment e eleitoral municipal – e por conta da sensação de insegurança na cidade que obrigou o governo do Estado e demandar a presença da Força Nacional de Segurança. No entanto nenhum inci- dente relevante aconteceu na relação com a População de Rua. Tal atitude era parte de uma cultura de referência negativa que, sempre impregnou esse campo de estudo, mas que, a partir de um for- te exercício de vigilância epistemológica, trabalhado cognitivamente, tanto na etapa de planejar e de organizar a pesquisa, sobretudo o cam- po, quanto na fase de coletar dados através de entrevistas. Em que o contato é presencial. Constatou-se que tal postura foi fundamental para o êxito desta etapa, garantindo a receptividade, acolhimento e disponi- bilidade para colaborar. Outra estratégia metodológica que se mostrou eficiente foi a criação de espaços e momentos de interação, através da participação de pessoas representativa da População de Rua em atividades e reuniões relacionadas aos estudos. Em 2016 a participação deu-se em todas as etapas da pesquisa, da adequação do Projeto, à elaboração dos instru- mentos, da realização do campo, até o encerramento com a apresenta- ção/devolução dos resultados. Foi decisivo para legitimação do proces- so e dos resultados junto ao universo estudado. Para além de elogios pela identificação dos dados e análises com a realidade, passaram a uti- lizar os resultados para fortificarem suas demandas e discussões no interior de suas formas associativas. Responsabilidade proativa do processo metodológico O estudo se constitui em uma ação do Plano Municipal de En- frentamento à Situação de Rua, para reconhecer a diversidade de situa- ções podendo, com isso, atualizar e desmistificar os diferentes números circulantes na mídia de pessoas adultas nessa situação. Contudo, é im- 98 portante lembrar que uma das principais dificuldades, neste processo, foi a própria definição conceitual daquilo que seria entendido e com- preendido no decorrer do estudo como “pessoas em situação de rua”. Como foi possível notar a partir da análise de diversas pesquisas reali- zadas no Brasil sobre essa problemática, não há unidade conceitual que embase os estudos. Isso impossibilita contagem precisas no país. Para evitar disparidade, em Porto Alegre, os estudos realizados desde 2004, utilizam basicamente a mesma definição conceitual. Assim, definiu-se que fariam parte do universo do estudo, todas as pessoas que se encontrassem em abrigos e albergues destinados ao acolhimento e/ou abrigo temporário, intermitente ou definitivamente, bem como aquelas que se encontrassem em atividades de perambula- ção/circulação pelas ruas e/ou que dissessem fazer da rua seu local de existência e habitação, mesmo que temporariamente. Assim, o univer- so de pesquisa conjugou uma diversidade de fatores, entre os quais se destacaram: 1. os modos de utilização do espaço da rua ou de territórios subvertidos em sua utilização (casas abandonadas, viadutos, parques, etc.) – habitação, perambulação, permanência ou ou- tra forma de existência social, mesmo que situacional; 2. o uso dos serviços destinados ao acolhimento de pessoas que necessitem de abrigo temporário, intermitente ou definitiva- mente; e, 3. a aparência e cultura material dos pesquisados. Tendo em vista a procura de uma definição mais ampla das pes- soas em “situação de rua” para além da utilização da rua como dormi- tório – numa aproximação com o entendimento do habitar a rua como uma forma de inserção urbana – as pesquisas não se restringiram ao período noturno. Pois, isto poderia não se coadunar com as práticas co- tidianas de muitas pessoas colocadas nessa situação social, isto é, com seu modo de ocupação do espaço e com o uso de concepções do tempo 99 (MAGNI, 1994; KASPER, 2006). A rua aparece, nesse sentido, como um espaço de relações sociais e simbólicas, as quais não se reduzem a um significado puramente pragmático de resposta a fins específicos (trabalho, dormitório etc.) e/ou respondem puramente a necessidades básicas de vida. Tal como apontado anteriormente (UFRGS, 2008), estudos de contagem e cadastramento de populações, quando não partem somente de uma auto-atribuição dos pesquisados, devem redobrar sua atenção no esclarecimento de tais aspectos, uma vez que trabalham com um conjunto de atributos que são construídos para a construção de uma “população” que, necessariamente, não se reconhece como tal. Nesse caso, as categorias de classificação que definem o grupo de pessoas a ser potencialmente estudado se reflete diretamente nos dados apre- sentados ou perfil a ser construído sobre a população pesquisada. O mesmo é válido para a apresentação da metodologia de pesquisa utili- zada, que se relaciona diretamente com o resultado a ser alcançado e, nos casos de contagem e/ou cadastro de populações – em que a super e/ou subestimativa pode ter graves efeitos políticos e sociais – requer cuidado esmerado. Metodologia da estruturação e execução da pesquisa Vários aspectos precisam ser observados ao se planejar um estu- do de populações e/outemas que não tão tradicionais na academia ou nas instituições geradoras e difusoras de conhecimento. Além da cla- reza do foco e dos objetivos, é fundamental definir os conceitos que lhe dão suporte. Os conceitos definem a metodologia e as técnicas do estu- do e orientam decisivamente as análises dos dados e informações. Esta etapa tem se constituído no momento mais importante do processo, tanto pela contribuição para o debate e para a formulação de políticas e programas quanto pela centralidade na definição do universo social e na operacionalização do estudo. Uma vez que, é a partir dos conceitos que se define também o que se chama unidade de análise, ou seja, qual a referência básica a ser considerada para interpretar os dados empíri- cos. Por exemplo, no estudo de quilombolas, geralmente a unidade de 100 análise é a família, em relação à população de rua é o indivíduo, mesmo que se agregue a outras redes, essas, não tem co-referência na tomada de decisão cotidiana destes. Outro aspecto importante reside também na definição de quem vai realizar a pesquisa, quem é responsável pelo que, definindo-se as- sim certa hierarquia de reponsabilidades, com previsão do tempo ne- cessário em horas/dias/semanas/meses para executar o todo e cada parte. Todos os participantes precisam ter claro as suas funções, ta- refas e o cronograma. No caso de haver remuneração, essa, também precisa estar definida com clareza antes mesmo de qualificar para a função/tarefas aqueles que a cumprirão. Junto às equipes de execução atuam os monitores, os que avaliam se o estudo está andando conforme a demanda, em aspectos de mérito e técnicos. O organograma segue modelo semelhante nos diversos estudos: coordenação geral por um ou dois profissionais com formação e ex- periência em estudos empíricos de natureza semelhante, uma equipe técnica que acompanha a coordenação na maioria das decisões e é res- ponsável pela concepção, planejamento e execução do estudo, inclu- sive do mapeamento e do relatório final, os quais, têm também como atribuição a função de apoiar a divulgação dos resultados para fora das instituições específicas, no caso, além da Prefeitura, junto à mídia. Esta atividade de divulgação junto com a instituição demandante, no caso a FASC, é importante para esclarecer, tanto questões metodológicas quanto de análise e o significado dos dados e informações. Essa equipe técnica também identifica e engaja consultores, em geral um de apoio metodológico, no caso estatístico, um de apoio à discussão conceitual e um de apoio pedagógico. A parte operativa da execução especialmente a realização do ma- peamento, da coleta de dados, de informações e a sistematização dos dados, ficam à cargo de dois ou três profissionais denominados de apoio técnico. Para o mapeamento, são utilizadas informações escritas e orais da FASC e de outras fontes, dentre elas os estudos anteriores e os pro- fissionais que têm atividades junto à esta população e as informações coletadas diretamente com a População de Rua. Uma equipe especial- mente constituída faz a revisão crítica dos questionários após preen- 101 chimento, e realiza a digitação sob a supervisão da Equipe Técnica e a de apoio técnico. Uma equipe de seis supervisores de campo, um para cada equipe de três entrevistadores, constituiu o elo fundamental entre a coorde- nação e População de Rua para a realização dos cadastros e das entre- vistas, seguindo e fazendo cumprir rigorosamente as informações do manual e as orientações da coordenação. A maioria dos supervisores nesses estudos foram de estudantes, preferencialmente de pós-gradua- ção da área de humanas. A maioria dos entrevistadores eram estudan- tes de graduação. O número de equipes depende do cronograma e do tipo de estudo. Se for cadastramento censitário, a produtividade por turno/entrevista- dor é praticamente o dobro da que inclua entrevistas em profundidade ou amostral. Pode-se diminuir a duração do tempo, aumentando o nú- mero de equipes. Estratégia adotada em 2016, em razão do calendário e que demorou o mesmo que em 2007-8, ou seja, um mês. Os entrevistadores foram selecionados entre estudantes de gra- duação e de pós-graduação da Universidade. Como já assinalado, for- mam equipes de três com um Supervisor e atuam em conjunto. Desne- cessário referir que o treinamento, com teste de campo e o manual são absolutamente essenciais para padronização da realização de coleta e para a qualidade dos dados e informações. Crescentemente se verificou a fundamental presença de pessoas que vivem a condição da rua e, por isso, conhecem bem esse universo da cidade. Participaram do Curso de Extensão que aconteceu no decor- rer da pesquisa e seis deles foram selecionados para a função de facili- tadores, ou seja. Apoiadores para o mapeamento e para acompanhar as equipes de campo facilitando o acesso às pessoas para cadastramento e entrevistas. Não participaram diretamente das entrevistas, mas loca- lizaram locais e condições de chegada e de realização dos cadastros e das entrevistas. Para se realizar o campo é necessário previamente construir os instrumentos, com maior participação possível: dos serviços públicos, dos técnicos que executam as políticas, dos estudantes que irão à campo, da equipe de pesquisadores e dos representantes da População de Rua. 102 Estas parcerias, garantem a qualidade dos instrumentos e, portanto, dos dados coletados para respondam aos objetivos e expectativas de saberes. Nesse sentido, no decorrer das quatro pesquisas realizadas, a experiên- cia mostrou que quanto mais participativa esta etapa, mais ajustado e melhor será o atendimento dos interesses dos diversos grupos que com- põem essa população pois, isto, implica em negociação, no aproveitamen- to de experiências pessoais de indivíduos que a compõem e, também, de especialistas que têm seu labor ligado à referida população. Em relação ao monitoramento de todo o processo, foi constituído um grupo de trabalho gestor da pesquisa, composto por técnicos da FASC, coordenação por parte da UFRGS, às vezes toda a equipe técni- ca participava e representantes da População de Rua. A FASC delegou uma profissional da entidade como representante junto à equipe técni- ca, que acompanhou diuturnamente o processo e monitorou o cumpri- mento do Projeto. A pesquisa de 2016, portanto, se caracterizou como um estudo quali-quanti que seguiu os moldes da pesquisa realizada em 2007/2008 uma vez que, buscou-se explorar alguns elementos fundamentais sobre as dinâmicas de vida dessa população e sua relação com o aparato téc- nico-burocrático-institucional, ligado a FASC. Os dados quantitativos extraídos do instrumento foram agrupados em banco de dados espe- cífico utilizando-se o software Statistics Package Social Science (SPSS), programa estatístico especial para a área de Ciências Sociais, através do qual também foram processados. As equipes de campo, incluindo-se supervisores, entrevistadores e facilitadores, foram treinadas a esclarecer os entrevistados dos objetivos e finalidades da pesquisa, se identificando através de crachás e, se neces- sário, apresentar documento, instruindo a pessoa abordada do direito de participar voluntariamente da pesquisa. O Cadastro, porém, tinha ca- ráter de compulsoriedade e, no caso de negativa ou incapacidade, eram contabilizados, com descrição sumária no instrumento de dados como local, sexo, turno e dia da semana. Sempre que possível o entrevistador obtinha as informações de alguém próximo ou amigo da pessoa. 103 Estratégias operativas do campo Conforme acima referido, a realização do campo contou com os pesquisadores, todos professores da UFRGS, com uma equipe de Secre- taria sediada nas dependências da Universidade. A execução do campo, conforme descrito acima, foi realizada por seis equipes formadas cada uma delas por um supervisor de campo, que participou das reuniões de mapeamento e definições de roteiros diários, recebia e devolvia juntoà Secretaria os registros do campo e controlava as despesas de passagem e de alimentação. Ao supervisor cabia a responsabilidade pelo cumpri- mento de metas e garantir percursos em todos os locais mapeados ou levantados durante os percursos. Também definia quem deveria ser entrevistado segundo critérios da amostragem. Coube também ao Su- pervisor efetuar o registro dos turnos trabalhados por cada entrevista- dor e facilitador. A remuneração de todos os que realizaram o campo, exceto a equipe de técnica, foi por turno trabalhado combinado com o cumprimento mínimo de metas. A intermediação por parte dos facili- tadores foi fundamental para a presença das equipes nos territórios, especialmente aqueles controlados por grupos ou facções. Os percursos dos entrevistadores, foi regido por um cronograma diário, elaborado com antecedência, em reuniões semanais, com base nas informações da FASC, de estudos anteriores, e em informações da População de Rua através dos facilitadores e dos entrevistados. Os des- locamentos das equipes até o roteiro previsto para o dia, foram realiza- dos a pé, na região central, de ônibus, nos bairros próximos ao Centro da cidade e de automóvel, nos bairros mais distantes. As recusas em responder aos entrevistadores se deram especial- mente por aqueles que estavam trabalhando no momento da abordagem, haviam consumido e estavam sob efeito de drogas ou álcool, por pessoas que não queriam se expor e também por alguns foragidos. Essas pessoas que se recusaram a responder, foram contadas, anotando-se o horário, o local, o sexo, a idade provável e a cor/raça da pessoa, sempre que possível. Isto para fins de controle de repetição de contagem. Essas informações não foram utilizadas para análise dos resultados, sem prejuízo para o es- tudo, pois estatisticamente a probabilidade de indução a erro é remota. 104 Entretanto, os relatos trazidos durante o processo de planejamen- to e também do trabalho de campo, pelos representantes da População de Rua, informaram um cenário bastante hostil na rua, difícil para a realização da pesquisa. Os facilitadores alertavam constantemente para os conflitos, perigos e violências na rua, ao que se somava a presença da Força de Segurança Nacional no policiamento de Porto Alegre, no período do estudo, como fatores de possível hostilidade da população de rua com as equipes de pesquisa. Estes relatos contribuíram para um ambiente de receios, por parte dos estudantes, principalmente antes do início do trabalho de campo. Felizmente estas expectativas não se veri- ficaram no decorrer do campo, que ocorreu sem incidente que mereça registro. Normalmente os entrevistados manifestaram interesse pela pesquisa e respeito aos entrevistadores. A realização do campo ou coleta de dados primários junto às populações “nômades” ou dispersas sobre às quais pouco se conhece em seus hábitos territoriais e de ocupação de espaço, exige um esforço particular de mapeamento prévio, identificando os principais pontos e turnos de concentração. Optou-se por realizar as entrevistas primeira- mente com os albergados, públicos ou conveniados. Este contato serviu também para divulgar o estudo, seus objetivos e finalidades entre o universo social estudado. As entrevistas nas ruas da cidade de Porto Alegre foram precedidas por levantamento que constatou forte concentração no centro da cidade e em ruas ou bairros adjacentes. A segunda maior concentração, nos eixos formados por avenidas que iniciam na região central e destinam-se ao Sul, Leste e Norte da cidade. Porto Alegre não tem Oeste habitado pois é o Rio Guaíba e o centro fica numa ponta de terra que avança pelo rio. Daí a decisão de realizar a tarefa na região central em primeiro lugar, utilizan- do-se de todas as equipes aí, de forma coordenada e repetindo itinerários em dias, horários e equipes diferentes. A continuidade foi nos bairros pró- ximos ao Centro e ao longo dos eixos correspondentes às principais ave- nidas do centro para a periferia. Por último os bairros distantes do centro, em que se havia identificado presença dessa população. Diariamente registrava-se o nome dos entrevistados e das res- pectivas mães para, de posse destas listas se evitar duplicidade. Mesmo 105 assim ocorreram muitos casos, especialmente entre os não cadastros, os quais, após análises comparativas, foram eliminados. A última etapa do campo constitui-se um retorno a vários luga- res considerados estratégicos, para verificar, numa espécie de monito- ramento, se havia pessoas que não haviam sido entrevistadas. Reunião com os entrevistadores e supervisores, que livremente expressaram suas impressões e avaliações, encerrou esta fase de campo. Sintetizando o processo de estudo relativo ao cadastro e mundo da População de Rua de Porto Alegre, saliente-se alguns procedimentos estratégicos utilizados e que garantiram o sucesso do estudo, são eles: 1. A realização de um curso de extensão de 40h intitulado “Po- pulação em Situação de Rua: Lutas, Políticas e Desafios para as Políticas Públicas”, no decorrer da pesquisa, com maior concentração antes de sua execução, sob responsabilidade da pela Equipe Técnica e do IFCH/UFRGS que reuniu estu- dantes, pessoas em situação de rua e profissionais da Prefei- tura de Porto Alegre, num total aproximado de 80 pessoas. 2. A elaboração de um formulário de cadastro censitário e de um questionário para as entrevistas em profundidade, amostral, contemplando todos os indicadores apontados previamente como sendo importantes de se obter dados quantitativos e qualitativos, foi a principal tarefa preparatória ao campo pro- priamente dito. 3. A realização do mapeamento prévio da distribuição dessa po- pulação na cidade. Para isto, a equipe responsável pelo ma- peamento, utilizou um mapa da planta urbana do município de Porto Alegre, dividido segundo as regiões do Orçamento Participativo. Revisou com os coordenadores e técnicos das equipes de abordagem social da FASC, os locais onde pessoas em situação de rua organizaram estruturas de moradia, fa- ziam uso do espaço público para pernoite, os locais utilizados para a realização de atividades de trabalho e de circulação, 106 bem como locais de distribuição de alimentos, pesagem e co- letas para reciclagem, entre outras informações. Tais infor- mações foram checadas e complementadas pelos facilitadores, com base na sua experiência, seu conhecimento e suas redes de sociabilidade. Também foram checadas e complementadas pelos entrevistadores, por informações que recebiam dos en- trevistados. Finalmente, foram integradas ao mapeamento, informações fornecidas por moradores nos bairros, por co- merciantes, lideranças locais, coordenadores de instituições conveniadas com a FASC e outros prestadores de serviços que atuavam junto a essa população, obtidas durante as visi- tas de reconhecimento nos bairros. Da difusão e razões de sucesso do estudo A difusão dos resultados é sempre esperada com alguma ansie- dade pelas instituições, especialmente Secretarias e órgãos da Prefei- tura Municipal e por parte de setores da mídia, pela População de Rua, dentre outros, de modo que, a difusão dos dados buscou ser sempre feita de modo objetivo, planejado e com bastante cuidado e acuidade. A responsabilidade da difusão é da demandante, no caso a FASC, com a participação dos pesquisadores da Universidade, especialmente dos membros da equipe técnica e consultorias. No período subsequente há sempre demanda de participação em debates, de entrevistas, de exposi- ção dos resultados para entidades etc. Normalmente os pesquisadores da Universidade tem participado desses eventos, com o apoio da De- mandante FASC. Dificuldades encontradas ao estudar as populações que estão em situação de rua A pesquisa realizada visou compreender as características socio- culturais, os modos de inserção urbana e as relações com as políticas públicas, das pessoas que se configuram como em situação de rua na cidade dePorto Alegre. No estudo da População de Rua de Porto Ale- 107 gre, optou-se pelos conceitos do Estatuto do Idoso e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para estabelecer faixas etárias, pelos conceitos relativos a esse universo social adotados pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDS). Definiu-se como perten- centes ao universo estudado, todos os adultos que se encontrassem em abrigos e albergues destinados ao acolhimento e/ou ao abrigo tempo- rário, intermitente ou definitivamente, assim como aqueles que se en- contrassem em atividades de perambulação/circulação pelas ruas e/ou que dissessem fazer da rua seu local de existência e habitação, mesmo que temporariamente. Outros desafios metodológicos são: o mapeamento prévio à ida a campo, decisivo para precisão da abordagem e para eficiência dos re- cursos humanos e financeiros; a qualificação e treinamento de todos os envolvidos; a difusão aos que serão entrevistados da pesquisa e sua finalidade; o controle para evitar repetições ou ausências e, por fim, cuidados na análise, os dados nem sempre podem ser tratados analiti- camente da mesma forma que os relativos a outros universos sociais. O aspecto mais importante para o sucesso em estudos de popula- ção de natureza heterogênea, dispersa territorialmente, nômade e sem endereço, é construir um ambiente de confiança entre todos, deman- dante, executante e beneficiários, com objetivos e metodologia claros para dar legitimidade aos procedimentos e aos resultados. Concluindo, cabe lembrar que o uso de instrumentos metodológi- cos adequados é sempre um fator decisivo para se alcançar os objetivos propostos em qualquer pesquisa e que, o rigor científico é a pedra basilar de qualquer estudo – seja esse acadêmico ou não – quando se necessita de dados para se projetar estratégias de mudanças e/ou a promoção de políticas voltadas a uma população específica que, no presente estudo, são aqueles que hoje vivem em situação de rua em Porto Alegre. http://www.ihu.unisinos.br/521191-legislacao-social-limites-e-conquistas-para-a-sua-efetivacao http://www.ihu.unisinos.br/169-noticias-2015/544855-estatuto-da-crianca-e-adolescente-25-anos-depois http://www.ihu.unisinos.br/169-noticias-2015/544855-estatuto-da-crianca-e-adolescente-25-anos-depois 108 Referências FASC. Relatório Final de Pesquisa: Cadastro de Adultos em Situa- ção de Rua de Porto Alegre/RS. Porto Alegre: FASC, 2012. [Mimeo]. KASPER, C. P. Habitar a Rua. [Tese de Doutorado]. UNICAMP, 2006. MAGNI, C. T. Nomadismo urbano: uma etnografia sobre mora- dores de rua em Porto Alegre. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2006. MARTINS, J. S. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humanos. São Paulo, Hucitec, 1997 UFRGS. Relatório final da pesquisa: Cadastro de Adultos em Si- tuação de Rua e Estudo do Mundo da População Adulta em Situ- ação de Rua de Porto Alegre. Porto Alegre: FASC, 2008. [Mimeo]. 109 PESQUISA E INTERVENÇÃO SOCIAL NA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM PORTO ALEGRE: A SITUAÇÃO DE RUA COMO FENÔMENO A SER PROBLEMATIZADO Aline eSPindolA dornelleS rejAne MArGArete Scherolt PizzAto SiMone rittA doS SAntoS Introdução As últimas três décadas foram marcadas por mudanças signifi- cativas no campo da política pública de assistência social desde sua inclusão como política de seguridade social na Constituição Federal. A partir da década de noventa a política de assistência social passou por um intenso processo de regulação com a aprovação da Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS (1993), da Política Nacional de Assistência Social – PNAS (2004), do Sistema Único de Assistência Social – SUAS (2005), da Tipificação dos Serviços Socioassistenciais e de um amplo conjunto de legislações – CNAS (2009)1 que tiveram papel importante na sua estruturação. O contexto atual, contudo, é de incerteza quanto a garantia das conquistas na cobertura da proteção social. Constata-se o avanço da ideologia neoliberal na retirada de direitos trabalhistas e previdenciários anunciando um cenário preocupante no campo da se- guridade social para a população brasileira. A implantação da Política de Assistência Social em Porto Ale- gre iniciou em 1994, quando a Prefeitura Municipal por meio da Fun- dação de Educação Social e Comunitária – FESC2 assumiu a gestão desta política na cidade. A implantação da política exigiu a realização 1 Política da Criança e do Adolescente, da Pessoa com Deficiência, do Idoso, contra a violência de gênero, Política Nacional para a população em situação de rua. 2 A Fundação passou a denominar-se FASC – Fundação de Assistência Social e Cidadania, através da Lei 8509, de junho de 2000. 110 de concursos públicos, estruturação da gestão e dos serviços socioas- sistenciais3. A implantação dos serviços ocorrida na década de noventa e início dos anos dois mil foi reordenada a partir de 2010, com a aprovação do SUAS em 2005, e da Tipificação Nacional dos Serviços Socioassisten- ciais, em 2009. As demandas da população em situação de rua, organi- zadas nacionalmente, a partir do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, foram inseridas no Decreto nº 7053 de 23 de dezembro de 2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da política em âmbito municipal e estadual. E, neste sentido, O documento é considerado um avanço por acolher expressões e vontades de vários sujeitos que compartilham o mundo da rua, seja ele por sua inserção profissional ou mesmo protagonista dessas vi- vências, portanto, momento sócio-histórico importante que demar- ca a luta pela não violação de direitos (MACHADO, 2012, p. 70). Concomitante ao processo de regulação instituíram-se mudan- ças sociais, políticas e econômicas no país. A população em situação de 3 Em relação ao acolhimento institucional, apresentamos o histórico de implantação da rede de serviços na década de 1990 até 2001. O Abrigo Municipal Bom Jesus foi implantado em 1987 como Albergue e administrado pela Secretaria Municipal da Saúde até 1993; em 1994 sua gestão passa para a FESC e em 1997 é reordenado e passa a funcionar como um Abrigo (AMBJ). O Albergue Municipal, criado em 2000, com a parceria do Governo do Estado, iniciou como Casa de Inverno oferecendo albergagem durante o período de inverno; em outubro de 2001 foi implantado em caráter permanente de atendimento. Nesta mesma década, foram estabelecidos convênios com o Albergue Felipe Diehl e Dias da Cruz. O Abrivivência, foi implantado em 1995, como abrigo e casa de convivência para a população adulta em situação de rua. Em 1996 é criado o Serviço de Abordagem Social, executado no mesmo espaço, o qual em 1997 é reordenado e passa a ser chamado de Atendimento Social de Rua. Em 2001 o Abrivivência é reordenado em Abrigo Municipal Marlene e, em outro espaço, é aberta Casa de Convivência, executada junto com o ASR. Para o atendimento de criança e adolescente, cria-se a Casa de Passagem, em 1994, para crianças de 07 a 12 anos vítimas de violência intrafamiliar; em 1995 é reordenado o Abrigo Municipal Ingá Britta, para atendimento a adolescentes em situação de rua, do sexo masculino, de 14 a 18 anos, com vínculos familiares rompidos; nessa década é constituído o serviço de educação social de rua, para abordagem de criança e adolescentes em situação de rua; em 2000 é implantada a Casa de Acolhimento para crianças de 07 a 12 anos, e adolescentes de 14 a 18 anos do sexo feminino, em situação de rua; em 2001 é implantada a Casa de Acolhimento Noturno, para adolescentes de 14 a 18 anos em situação de rua. Ao longo da primeira década dos anos 2000, alguns desses serviços passam a ser reordenados. 111 rua organizou-se politicamente, houve uma ampliação e diversificação dos trabalhadores no SUAS, ocorreram mudanças na gestão munici- pal e federal. Nesse cenário complexo e multifacetado de formulação da política de atendimento observou-se uma preocupaçãopor parte da instituição, assim como dos trabalhadores, na realização de estudos e pesquisas sobre a situação de rua. A problematização desta questão surgia pela necessidade de refletir sobre os processos de intervenção e produção do conhecimento. A contratação das universidades objetiva- va estabelecer um rigor conceitual e metodológico, tendo em vista os vários atores inseridos no contexto. Pois, como afirma Shore: A compreensão das políticas públicas implica estudá-las a partir das instituições, dos funcionários que as formulam, dos contex- tos institucionais e socioculturais mais amplos, das regras do jogo que orientam a conduta dos formuladores de políticas, pois a maneira de entendê-las depende do próprio entendimento do que estamos propondo-nos a discutir (2010, p. 36). Havia por parte dos atores institucionais a preocupação que o processo de pesquisa de fato contribuísse para o conhecimento do tema, na medida em que se abriam serviços e definiam-se metodolo- gias de atendimento. Esse entendimento, pautava-se na crença que a formulação das políticas públicas pode contribuir para ampliar o “co- nhecimento sobre a intervenção e as lógicas culturais que impulsionam a ação dos sujeitos” (SHORE, 2010, p. 36), na medida em que a propo- sição de uma política de atendimento incide na vida da população e dos trabalhadores que compõem a rede de serviços. Frente a este conjunto de questões o texto que se apresenta tem por objetivo analisar a política de atendimento à população em situa- ção de rua na cidade de Porto Alegre, no período de 1994 a 2011. Está estruturado da seguinte maneira: em um primeiro momento, um le- vantamento documental das pesquisas realizadas na instituição desde a década de 1990, seus objetivos e principais resultados, em seguida, o campo de intervenção dos serviços da Política de Assistência Social, na cidade; e, encerra-se com as considerações finais. 112 A trajetória das pesquisas na Instituição O levantamento de documentos mostra que a instituição desde a década de 1990 pautou-se pela organização e sistematização de infor- mações sobre a população em situação de rua. Somente na década de 1990, foram realizados três estudos (1994, 1995, 1996) executados ou contratados pela instituição, buscando identificar, quantificar e conhe- cer o modo de vida da população em situação de rua da cidade, tanto de crianças e adolescentes como adultos e famílias. O primeiro estudo, realizado em 1994 pelos trabalhadores da instituição, identificou por meio de um levantamento 229 crianças e adolescentes pedintes nas sinaleiras, denominado: “Perfil dos meninos e meninas pedintes nas sinaleiras de Porto Alegre”. O estudo tinha por objetivo conhecer o perfil das crianças e adolescentes e quantificá- -los de modo a estabelecer políticas de atendimento. O perfil do grupo estudado naquele período mostrava que as crianças e adolescentes se encontravam nas ruas, trabalhando junto com os pais. As mulheres e as crianças se localizavam nas sinaleiras em áreas de grande movimenta- ção para pedir dinheiro e obter ganhos. Além desse trabalho, as crian- ças intermediavam suas atividades de ajuda com a família por meio da lavação de carros e catação. As atividades eram exercidas, em sua maio- ria, com a presença dos adultos da família, especialmente a mulher e outros adultos do bairro em que moravam, nas regiões mais pobres da cidade. O estudo iniciou o processo de descentralização do atendimen- to à família na cidade, por meio da criação do Núcleo de Apoio Sócio Familiar – NASF, em 1996. O NASF era o programa responsável pelo atendimento social com transferência de renda às famílias com crianças e adolescentes em situação de rua, de forma descentralizada na cidade4. Em 1995, a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, através da Faculdade de Serviço Social, foi contrata- 4 O atendimento as famílias iniciou com o Projeto Sinal Verde, em 1994, que atendia famílias com crianças e/ou adolescentes em situação de mendicância. Em 1996, passou a denominar-se NASF – Núcleo de Apoio Sócio Familiar, cujas famílias atendidas, recebiam mensalmente uma cesta básica. Em 1997, o programa reordena novamente para Programa Família, Apoio e Proteção, que se caracterizava pela transferência de renda as famílias, por um período máximo de 18 meses. O programa era executado em nove centros regionais, 12 módulos descentralizados e 18 entidades não governamentais até o ano 2000. 113 da para realizar uma pesquisa quanti-qualitativa com a população em situação de rua da cidade, intitulada “A Realidade do morador de rua de Porto Alegre/RS5”, que identificou 222 indivíduos, na sua maioria homens (77%), com idade entre 36 a 45 anos (31,9%) e 29 a 35 anos (20,3%). A maioria da população se encontrava na região central da cidade, trabalhando como guardadores e/ou lavadores de carro, convi- vendo o período na rua com o grupo de amigos e demais companhei- ros de rua (55,4%) ou sozinho (28%). Os motivos para morar na rua como espaço de moradia foram problemas de relacionamento familiar (28,8%) e a dependência de álcool e drogas (22,5%). Com relação à avaliação da população sobre os serviços existentes na cidade, consta- ta-se que 56,3% acessava os serviços, enquanto 43,7% não os acessava. O Albergue (40,1%) e o Sopão (37,8%) foram os serviços mais citados pela população. Dessa população usuária dos serviços, 40,1% os ava- liavam como bom, 25,2% como ruim e 34,7% disseram não ter opinião (PUCRS, 1996)6. O período da pesquisa realizada pela PUCRS marca o início da construção de uma política direcionada à população adulta em situa- ção de rua na cidade, por parte da gestão municipal. Fica explícito no relatório uma preocupação com o processo de abordagem social a esse segmento da população. Na ocasião, já aconteciam atendimentos pon- tuais a pessoas que ocupavam o espaço da rua, a partir de solicitações de transeuntes ao poder público. A instituição FESC defendia que as abordagens fossem “realizadas por estudantes de serviço social, melhor qualificados para este fim e suas expectativas com relação ao estudo e encaminhamento de alternativas para subsídio de políticas sociais” (PUCRS, 1995, p. 17). Em 1996, inicia-se sistematicamente a aborda- gem de rua com uma assistente social e estagiários do Serviço Social. Alguns encontros com a população adulta em situação de rua daquele período e o poder público aconteceram, e buscaram, pensar os serviços e a metodologia de atendimento. Em 1996, a Faculdade de Serviço So- cial foi novamente contratada para realizar o estudo “Meninos e meni- 5 Cabe destacar que a pesquisa considerou como grupo etário pessoas com idade a partir de 14 anos. 6 Foi realizada uma pesquisa quantiqualitativa, porém a documentação existente na instituição conta apenas com um relatório com dados quantitativos. 114 nas em situação de rua – quem são? Qual seu modo de vida?”, que na época identificou 197 crianças e adolescentes. Em 1999, a pesquisa intitulada: “Condições Sociais e de Saúde Mental de Moradores de Rua Adultos”, realizada através do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre População de Rua – NESPRUA do Hospital de Clínicas de Porto Alegre em parceria com a FASC, contabilizou 207 pessoas em situação de rua, na cidade. A partir de 2000, foram realizados novos estudos e pesquisas (2002, 2004, 2008, 2011) com o mesmo tema. Em 2002, a instituição realizou um levantamento identificando 625 crianças e adolescentes7 em situação de rua. Em 2004, a instituição contratou a Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Laboratório de Observação Social/LABORS para rea- lização de um estudo intitulado “Perfis e mundo das crianças e adoles- centes em situação de rua na grande Porto Alegre”. O censo identificou um universo total de 825 crianças e adolescentes na capital e demais ci- dades, sendo 637 crianças e adolescentes em situação de rua em POA e 188 nas demais cidades da região metropolitana. O censomostrou um perfil com predominância de indivíduos do sexo masculino acima dos 6 anos, estando a maioria (64,4%) na faixa dos 12 aos 18 anos (incom- pletos). Dentre os principais motivos apontados pelo grupo pesquisado para ingressar na “vida da rua” são em ordem decrescente: ajudar a família (48%), porque gosta ou por opção (19,4%) e como fuga de maus tratos na família (6,9%). Quanto aos lugares para dormir, a casa ou fa- mília (por eles identificada) é o mais usual para dormir (77,8%) seguido pelos mocós (11,7%) e abrigos (7,7%). O local de dormir revela uma 7 “O termo ‘crianças e adolescentes em situação de rua’ tomou conta do vocabulário público nos anos 2000. Esse termo está, atualmente, legitimado como uma classificação instituída acerca de uma população plural que pode estar ocupando a rua de uma variedade de jeitos e formas, permanente, transitória ou intermitentemente. Além disso, o termo expressa uma consideração de que as crianças e adolescentes em situação de rua não apenas moram ou sobrevivem na rua, mas constituem formas de organização social e significados particulares para seus atos, criativamente adquirindo conhecimentos, novas formas de relacionamentos sociais e geração de renda. A potencial situacionalidade dessa experiência abre brechas para se pensar outras formas de vinculação social como família e comunidade, deslocando a centralidade do espaço social e simbólico da “rua” para outras possibilidades de pertencimento, como por exemplo, familiares e comunitárias. Essas formas de pertencimento podem estar circunstancialmente enfraquecidas, dando uma complexidade especial para a experiência de crianças e adolescentes em situação de rua” (UFRGS, 2008, p. 17). 115 vinculação com a família ou ambiente familiar percentualmente alto. Cerca de um quinto da população pesquisada participava de programas de atendimento, sendo maior em Porto Alegre (21,7%) e menos nas demais cidades (15,3%). Chama a atenção que 76,6% nunca participou de atividades socioeducativas. Os programas mais indicados pela popu- lação pesquisada foram o Acolhimento Noturno/Lar Dom Bosco/Casa da Harmonia (21,7%) e o Programa de Atenção Integral a Criança e ao Adolescente em Situação de Rua – PAICA-RUA (10,9%) (UFRGS/ LABORS, 2004). Em 2007/2008, a UFRGS foi novamente contratada para reali- zação de pesquisa quanti-qualitativa: “Cadastro e Estudo do Mundo da População Adulta em Situação de Rua de Porto Alegre/RS” sobre a po- pulação em situação de rua (crianças, adolescentes e adultos), incluin- do, além deste, estudos sobre: grupos afro-brasileiros, comunidades quilombolas e povos indígenas. Foi realizado um Censo com a popu- lação de crianças e adolescentes com o objetivo de recensear e mapear os locais de utilização por parte deste público na cidade e uma pesquisa com a população adulta que tinha como finalidade, além de realizar o censo, também conhecer as especificidades da formação antropológica desta população, identificando seus dados étnicos, socioeconômicos e culturais, estratégias de trabalho e geração de renda, formas de socia- bilidade, identidade e representações sociais, formas de relação com instituições e demandas para as políticas públicas. Foram encontradas 383 crianças e adolescentes especialmente na região central da cidade, preponderantemente do sexo masculino (70,5%), entre os 12 e 17 anos (49,5%), uma prevalência de adolescen- tes, procedentes das regiões Centro (20,4%), Centro Sul (12,6%), Lom- ba do Pinheiro (12%) e Partenon (11,9%), alto percentual fora da escola (24,5%), a maioria (31,9%) encontrava-se junto com outros jovens e crianças em situação de rua, enquanto 26% estavam junto com outros adultos, jovens e crianças em situação de rua e mais 15,1% estavam com outros adultos em situação de rua. Um percentual ainda menor encontrava-se com a família, abarcando 5,7% das situações. Em relação à população adulta, foram entrevistadas 356 pessoas dentro dos abrigos/albergues e 847 nas ruas e logradouros da cidade, 116 totalizando 1203 pessoas em sua maioria na região central da cida- de (Centro, Floresta, Menino Deus, Cidade Baixa e Azenha). Destes 81,8% eram do sexo masculino e 18,2% feminino, com uma relativa concentração etária nas faixas mais jovens da população cadastrada. Cerca de 60% dessa população dormia cotidianamente e prioritaria- mente em lugares de risco e improvisados e com forte exposição ao ambiente natural. Foi relativamente baixo o número de pessoas que dormiam em lugares institucionalizados, 35,8% em primeiro lugar e 16,9% em segundo lugar. Esses lugares eram preferencialmente: al- bergues (18,9% e 6,7%), abrigos, hotéis ou pensões – em geral pagos pela prefeitura – (9,3% e 5,9%), casa própria ou de parentes e amigos (7,6% e 4,3%). Os declarados naturais de Porto Alegre ou da região metropolitana perfez 52%, os migrantes de outras cidades contabili- zou 35% e 28% sempre moraram na cidade. A grande maioria do seg- mento populacional (86,4% da amostragem) explicitou ou deu indícios que confirmam a ideia de afastamento, ruptura ou desagregação dos elos familiares e/ou conjugais, seja por fatores objetivos ou relacionais (MAGNI et al, 2012). O estudo qualitativo com a população adulta em situação de rua mostrou que a relação com os cidadãos da cidade eram permeadas pela discriminação e desigualdade social. O grupo compartilhava um sen- timento de despertencimento da “sociedade” e de não reconhecimento social por parte da população. A sociedade estabelecia uma relação am- bígua com o grupo, pois ao mesmo tempo em que eram desrespeitados e discriminados, também haviam ações de apoio por meio de doações diversas orientadas por valores cristãos. A rede de atendimento era pouco utilizada pelo grupo estudado em virtude das normas e regras internas das instituições, pois gera- vam uma sensação de “aprisionamento”. A relação com as instituições era difícil, conturbada e perpassava a discriminação e o preconceito. A relação com a Brigada Militar era especialmente tensa, com discrimi- nação social e outras formas de violências até mesmo agressões físicas e insultos morais. Em 2011, a FASC realizou um novo Cadastro Censitário intitu- lado “Cadastro da População Adulta em situação de rua na cidade de 117 Porto Alegre”, por meio de sua equipe técnica, e contou, também, com a contratação de profissionais consultores qualificados para o processo de análise e interpretação dos dados. Os dados já existentes, do extinto Serviço de Atendimento Social de Rua (ASR), assim como os apresen- tados pelas equipes de abordagem social descentralizada, pelos CREAS a partir de 2011, possibilitou o mapeamento na cidade, dos pontos de maior concentração de pessoas em situação de rua. Também contribuí- ram para o mapeamento da pesquisa um grupo de pessoas em situação de rua – pesquisadores sociais – representantes dos serviços da rede de atendimento, de Fóruns e Movimentos Sociais de pessoas em situação de rua de Porto Alegre, que foram acompanhadas pela FASC e por con- sultoria contratada ao longo dos meses de abril a dezembro de 2011. O resultado do censo identificou 1347 pessoas em situação de rua na cidade no período. Desse total, 345 pessoas foram entrevistadas dentro dos serviços, e 1002 nas ruas e logradouros da cidade localizados em sua maior parte na região central da cidade (45%) distribuída entre os bairros Centro (27,3%), Floresta (10%) e Menino Deus (7,7%). No que se refere a sua distribuição por sexo, tem-se que 81,7% eram do sexo masculino e 17,1% do feminino. O restante não declarou. A distribuição por faixa etária mostrou uma dispersão ou distri- buição dos pesquisados, principalmente entre 25 e 59 anos. Em relação ao estudo anterior, percebe-se uma diminuição na faixa menor idade, ou seja, dos 18 anos 24 anos, e aumento significativo (duplicando) na faixa dos idosos, 60 anos ou mais (DORNELLES et al, 2012, p. 47). O estudo chama a atenção para a diminuição do número de ado-lescentes nas ruas, mas adverte para o processo de envelhecimento da população, decorrentes do aumento da expectativa de vida da população em geral. O estudo mostra que 60% da população dorme em locais de risco ou desprotegidos, como calçadas, praças ou parques (39,3%); os de- mais se recolhem embaixo de pontes ou viadutos, em casas abandonadas e outros locais, em lugares ou ambientes desabrigados. Entre os que se protegem em albergues, abrigos e hotéis/pensões, soma-se o percentil de 28,3%. Os lugares em que passam a maior parte do tempo durante o dia 118 são os espaços públicos, em geral abertos, com pouca proteção. Conside- rando praças, ruas, calçadas e locais semelhantes, são aproximadamente 60% os que aí passam a maior parte do tempo, apontado como primeiro lugar; como segundo lugar, esses mesmos espaços foram apontados por cerca de 30%, porém, mais de um terço (37,1%) não respondeu. As Casas de Convivência e os Abrigos aparecem nas escolhas em segundo e terceiro lugar como preferência para passar o dia, com um per- centual relativamente alto, comparando-se com os demais locais (17,9%). Em relação a 2007, percebem-se algumas alterações, sem que se possa constatar alguma tendência por busca de locais mais protegidos. As pra- ças e os parques que acolhiam 31,9% em 2007, agora, acolhem 21%. O perambular pelas ruas aumentou de 17,5% para 30,1% nes- se período. Esse dado pode estar revelando maiores controles e coerções à permanência da população estudada em praças e parques, deslocando-os para espaços ainda menos seguros e de maior risco, que são as ruas. Os serviços de atendimento ofe- recidos pela política de assistência social, por meio da FASC, permanecem estáveis na comparação entre os dois estudos, em percentuais (DORNELLES et al, 2012, p. 50). Em relação aos novos serviços ofertados pela Política de Assis- tência Social, como os CRAS – Centro de Referência de Assistência Social, e CREAS – Centros de Referência Especializado em Assistên- cia Social, a pesquisa revela que: apenas 23% da população investigada referiu já ter acessado o CRAS, e 26% ter acessado o CREAS. As Ca- sas de Convivência, serviços que já existiam, foram mencionados por 56,1% dos entrevistados (DORNELLES et al, 2012). Ao analisarmos o percurso dos estudos realizados pela FASC desde 1994, a partir da análise documental, se observam mudanças importantes no perfil da população adulta e de crianças e adolescen- tes, mas também mudanças metodológicas na forma de realização das pesquisas. O uso do conceito “população em situação de rua”8, utilizado 8 A definição conceitual que orientou os estudos desde 2004 fundamenta-se em uma perspectiva que compreende que a representação social sobre as pessoas em situação de rua deve romper com determinismos contrários a visão essencialista sobre as pessoas colocadas nessa situação social, como sua oposição a qualquer determinismo na explicação desse fenômeno (DORNELLES et al, 2012). 119 nos estudos desenvolvidos pela UFRGS a partir de 2004, permitiu es- tabelecer análises comparativas entre eles. As pesquisas realizadas com a população formada por crianças e adolescentes mostram a presença das famílias e a questão do trabalho como um elemento importante na condição de rua. Por outro lado, as pesquisas com a população adulta revelam alterações etárias no perfil do grupo, indicando seu processo de envelhecimento, embora o grupo seja formado em sua maioria, por homens adultos. Sua relação com os serviços ocorre de forma reduzida, pois apenas 28% acessa a rede de serviços. Cabe questionar os fatores que levam a esse dado. Os dados ins- titucionais mostram que, a cobertura dos serviços é insuficiente para a demanda. Conforme demonstrado no último censo de 2011, havia 1347 indivíduos em situação de rua e uma capacidade de atendimento de 613 vagas em 20169. Porém, outros motivos concorrem para isso, desde o regramento para acesso aos serviços, as relações que estabelecem na cidade, as forças coercitivas da ação policial, às próprias escolhas dos sujeitos em não acessar a rede. As pesquisas demonstram que a população em situação de rua da cidade é heterogênea, tem um modo de vida complexo, permeado por tensões, conflitos, violência, preconceito e estigmatização. A normatização e regras existentes na rede de serviços, muitas vezes acabam sendo critérios de exclusão ou impeditivos para o ingresso nos mesmos. Parte da população que não acessa os serviços e permanece nas ruas, perfaz um universo importante que estabelece suas relações com uma ampla gama de instituições públicas, privadas, religiosas e de pessoas que lhes garantem condições de alimentação e abrigo. Os serviços das políticas de saúde, habitação, educação, transporte, cultura, lazer, trabalho e renda, esporte, entre outras, apresentam frequen- temente dificuldades em dialogar com a população em situação de rua, no sentido de ofertar políticas e atendimentos que acolham este segmento da população, permitindo seu acesso e participação nos serviços. Estas questões impõem desafios complexos na obtenção dos direitos sociais da 9 O comparativo da taxa de crescimento em relação ao número de metas para população adulta no serviço de acolhimento institucional (albergue) da rede própria e conveniada foi de 109% entre 2003, quando havia 170 metas, e 2014, quando havia 355 metas (PMPA/FASC, junho de 2015). 120 população em situação de rua, bem como, na articulação das políticas pelo poder público. A respeito da intersetorialidade e do reconhecimento do modo de vida da população em situação de rua “a recente Política Na- cional para Inclusão Social da População em Situação de Rua aponta e orienta ações que devem ser efetivadas no âmbito das diversas políticas não restringindo só a Assistência Social” (PIZZATO, 2011, p. 82). No cotidiano do trabalho e dos atendimentos realizados pelos ser- viços da rede socioassistencial, muitas vezes, competências e responsabi- lidades das demais políticas são atribuídas à Assistência Social. A pesquisa permite ampliar nossa aproximação com o universo so- cial da população em situação de rua, contribuindo para o estabelecimento de relações menos hierarquizadas e, também, identificando as percepções da população sobre os serviços ofertados. As dificuldades intersetoriais da Assistência Social com a população em situação de rua e a pequena utiliza- ção dos serviços, identificados nos estudos de 2008 e 2011, demonstram entraves e dificuldades ainda existentes no acolhimento a esta população, questão importante e que merece aprofundamento. No próximo item, contextualiza-se a política de atendimento do município e o cotidiano do atendimento por meio dos serviços e dos trabalhadores. A política de atendimento na cidade de Porto Alegre O processo de regulação da Política de Assistência Social iniciado após sua inclusão no tripé da seguridade social, assegurada na Consti- tuição Federal de 1988, acentuou-se a partir de 2003. As políticas de transferência de renda (tal como o Programa Bolsa Família) e os investi- mentos na rede de serviços socioassistenciais por meio da estruturação e organização dos mesmos e do processo de educação permanente dos tra- balhadores, marcou o processo de implantação do SUAS de 2003 a 2016. Em Porto Alegre, o reordenamento dos serviços iniciou em 200910 trazendo um impacto importante na política de atendimento da cidade com a implantação da rede de serviços de Proteção Social Básica e Espe- cial. Na rede de proteção social básica foram implantados os 22 CRAS, reordenado o Serviço de Apoio Sócio Educativo – SASE para o Serviço 10 Porto Alegre aderiu ao SUAS em 2005 e, a partir de 2009, implantou o SUAS, reordenando a rede de serviços socioassistenciais e implantando novos serviços. 121 de Convivência e Fortalecimento de Vínculos – SCFV e o antigo Núcleo de Apoio Sócio Familiar foi reordenado pelo Programa de Atenção In- tegral a Família – PAIF e o Serviço de Atendimentoa Família – SAF11. Na rede de Proteção Social Especial de média complexidade fo- ram implantados 02 Centros Dia do Idoso (2002-2012), 09 CREAS (2009) e reordenado as 02 Casas de Convivência em dois Centros Pop (2012 e 2014). Em 2007 houve um incremento importante nas equi- pes de abordagem para crianças e adolescentes com a contratação de equipes de trabalhadores pertencentes a entidades da sociedade civil. Em 2011, foi descentralizado o Serviço de Abordagem Social para as regiões junto aos 09 CREAS da cidade e, em 2015, as equipes de abor- dagem para a população adulta foram ampliadas, possibilitando uma qualificação desse atendimento em Porto Alegre. Na rede de Proteção Social Especial de alta complexidade foi rea- lizado o reordenamento dos serviços de acolhimento para crianças e adolescentes já existentes e conveniados, além da abertura de novas vagas através da implantação de serviços nas modalidades Casa Lar e Abrigo Institucional. De 2010 a 2016, a rede se ampliou e atualmente conta com um total de 832 vagas. Cabe destacar que a maior parte das vagas são executadas em parceria com a rede conveniada. A rede de acolhimento para a população adulta em situação de rua, no período de 1994 a 2009 criou vagas na rede de albergues, hotéis e abrigos. A partir de 2009 essa rede foi reordenada com estruturas menores em termos de número de acolhidos e um maior grau de espe- cialização em termos de vulnerabilidades e riscos, tais como mulheres vítimas de violência (Casa Lilás, 2010), famílias (Abrigo de Família, 2012), jovens e adultos egressos da rede de acolhimento com maior autonomia (República, 2013), idosos em situação de rua (Casa Lar do Idoso, 2015). Conta em 2016 com um total de 227 vagas para adultos em situação de rua, entre serviços próprios e conveniados, além de va- gas para Instituições de Longa Permanência para Idosos – ILPI. Estes serviços são ofertados por meio de equipamentos municipais ou por entidades não governamentais conveniadas com a instituição. O campo da intervenção é formado por gestores governamentais, dirigen- 11 O PAIF é ofertado nos 22 CRAS e o SAF é ofertado por meio de 37 Núcleos de Atendimento a Família. 122 tes das entidades da sociedade civil, movimentos sociais, trabalhadores12 e usuários. Essa configuração do campo da Assistência Social no mu- nicípio, mostra-se heterogênea não apenas no formato das instituições que ofertam os serviços, uma vez que muitas delas tem caráter religioso, filantrópico ou laico. Mas também, quanto aos trabalhadores e suas dife- rentes categorias profissionais, relações de trabalho, concepção da polí- tica e entendimentos sobre a intervenção social. Embora os serviços na Política de Assistência Social estejam tipificados, ou seja, devem obede- cer a uma estrutura padrão definida pela política pública, ainda assim, essas concepções são objeto de disputa entre os diferentes atores. Os trabalhadores da Assistência Social também sofreram um impac- to importante no processo de formulação da política de atendimento na cidade. Foi diversificado o número de profissionais que atuam na política, inicialmente formada em sua grande maioria, por profissionais do Servi- ço Social. A partir de 2000 ampliam-se as categorias profissionais, para o campo da psicologia, do direito e da pedagogia, entre outras. Embora essa ampliação das categorias profissionais tenha permitido desenvolver um caráter multidisciplinar, as condições de trabalho têm se constituído de forma precária, com vínculos trabalhistas diversos, ocasionando baixa qualificação, rotatividade, dificuldade no trabalho em equipe e insegurança nas relações de trabalho. Ao mesmo tempo, os trabalhadores têm se orga- nizado por meio das lutas sindicais e de categoria (Conselhos de Classe, Fórum Municipal e Estadual de Trabalhadores da Assistência Social etc.). A população usuária dos serviços tem assento no Conselho Mu- nicipal de Assistência Social – CMAS junto com as entidades da socie- dade civil. Com relação a situação de rua o tema é objeto de discussão e acompanhamento tanto por parte dos Conselhos e Fóruns da Criança e do Adolescente na cidade, quanto pelo CMAS. A população adulta em situação de rua tem se organizado por meio do Jornal Boca de Rua, do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, do Comitê Municipal de Acompanhamento e Monitoramento das Políticas para População em Situação de Rua (Comitê Pop Rua), e outros fóruns. 12 Os trabalhadores da Política de Assistência Social são formados, em sua grande maioria, por profissionais de nível superior de diferentes campos do conhecimento como: Serviço Social, Psicologia, Pedagogia, Ciências Sociais, entre outros, e, educadores sociais com cargo de nível médio, mas em sua maioria com formação superior. 123 A visibilidade na região central de Porto Alegre, nos últimos anos, de um crescente número de pessoas adultas em situação de rua, ocupando o espaço público, calçadas, mocós, praças, viadutos, terrenos baldios, espa- ços sob viadutos e pontes passou a imprimir ao poder público, tanto por parte da população em geral como da mídia, providências e ampliação dos serviços públicos no atendimento a esse segmento populacional da cidade. Em 2014, a prefeitura municipal de Porto Alegre assinou Termo de Adesão à Política Nacional para População em Situação de Rua. O Decreto Municipal, nº 19.087 de 22 de julho de 2015, instituiu o Co- mitê Municipal Intersetorial de Monitoramento e Acompanhamento à Política para População em Situação de Rua13, sob a coordenação da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e não mais da Assistência Social, conforme orientação da Política Nacional. Em 2015 foi apresen- tado pelo governo municipal novo Plano de Atenção Pop Rua, para ser executado de forma intersetorial nos anos de 2015-2016, com ênfase na região central da cidade. Dentre as ações previstas estão algumas não realizadas no plano anterior (2011-2014)14. 13 Órgão colegiado e paritário composto por dezoito representantes, sendo nove(9) do governo e nove(9) representantes da sociedade civil e do Movimento Nacional da População em Situação de Rua. Dentre as secretarias estão: Secretaria Municipal de Direitos Humanos (SMDH), Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC), Secretaria Municipal de Educação (SMED), Secretaria Municipal de Saúde (SMS), Secretaria Municipal de Segurança (SMSEG), Departamento Municipal de Habitação(DEMHAB), Secretaria Municipal de Trabalho e Emprego (SMTE), Secretaria Municipal de Esportes (SME) e Secretaria Municipal de Cultura( SMC). 14 Ações para a FASC: Ampliação das metas de acolhimento em albergues na Operação Inverno; das equipes de abordagem social nas nove regiões dos CREAS; Implantação de um novo albergue com 90 metas; Serviço de hospedagem (150 diárias/mês); SCFV para à população adulta em situação de Rua, na região central da cidade; mais um abrigo de Famílias; mais duas Repúblicas; Aumento do valor destinado a compra de passagens; reordenamento do albergue municipal; reforma do abrigo Bom Jesus; Nova edição do projeto Facilitadores Sociais; Realização de nova Pesquisa sobre a população em situação de Rua; Para a Secretaria de Saúde: Implantação do CAPS AD Centro, equipe de Redução de Danos; Consultório na Rua da Restinga; Complementação das equipes dos consultórios na rua do Centro; Inclusão de Acompanhantes Terapêuticos junto a equipe do CAPS 2- Centro, de saúde mental; Leitos de Longa Permanência; Implantação de Unidades de Acolhimento, pós internação, em tratamento para dependência química; Ações para habitação: aluguel social, com 50 metas/mês; inclusão de 3% da população nos empreendimentos habitacionais construídos na cidade, no Programa Minha Casa Minha Vida; Implantação de núcleo de inclusão produtiva; Criação de cotas nas terceirizadas, contratadas pela prefeitura; implementação de espaços de Higiene na cidade (banheiros públicos); cozinhas comunitárias e Restaurante Popular. 124 Nessecontexto cabe mencionar a gestão municipal e os interes- ses locais e o cenário nacional no processo de financiamento das ações. Do ponto de vista do município, houve mudanças de gestão, de 1994 a 2004 a prefeitura foi governada pelo Partido dos Trabalhadores – PT, de 2005 a 2012 pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB e de 2013 a 2016 pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT. No âmbito nacional, a administração manteve-se de 2003 a 2016 com o PT. Essa configuração traz implicações na gestão das políticas públi- cas, pois dependem do cofinanciamento municipal, estadual e federal. Destaca-se o frágil papel do governo do estado do RS no cofinancia- mento da Política de Assistência Social. A seguir tecemos as considerações finais tendo como pano de fundo as pesquisas realizadas e a trajetória de formulação da política de atendimento na cidade. Considerações Finais A escrita do presente texto permitiu uma análise sobre a cons- tituição da Política de Atendimento e Assistência Social à população em situação de rua na cidade de Porto Alegre. Por meio da leitura dos documentos e pesquisas realizados ao longo dos últimos vinte anos, foi possível percorrer a trajetória da população em situação de rua na cidade e suas múltiplas expressões em termos quantitativos, do perfil heterogêneo e modo de vida, mas também das demais políticas e dos serviços socioassistenciais. A análise realizada buscou iluminar os diversos fatores implicados no processo de formulação da política nesse período, dentre os quais se destacam os marcos regulatórios tais como: o SUAS, a Tipificação Na- cional dos Serviços Socioassistenciais, a Política Nacional da População em Situação de Rua, e no município, o Plano Municipal de Enfrenta- mento a Situação de Rua; Comitê Municipal Intersetorial de Monito- ramento e Acompanhamento à Política para População em Situação de Rua; o Plano de Atenção à População em Situação de rua – 2015/2016. Além deste, a constituição da rede de atendimento com ênfase no pro- cesso de precarização dos serviços em termos de estruturas físicas e das 125 condições de trabalho dos profissionais da política, assim como, colocou em evidência, a ampliação da rede conveniada e a redução dos serviços próprios que sofreram um processo de desgaste ao longo dos últimos anos. Observa-se ainda, a organização das pessoas em situação de rua, enquanto movimento social, na disputa pelo direito à cidade. Nesse contexto, a instituição buscou subsidiar-se por meio da pesquisa do tema situação de rua, o que também teve impacto na for- mulação da política de atendimento. A FASC conta atualmente com um acervo importante de informações sobre a população em situação de rua, em termos censitários, modo de vida e relação com o poder público. Neste sentido, tem-se que a pesquisa da realidade social no cam- po da Assistência Social contribuiu para refletir sobre o cotidiano dos serviços e do atendimento à população com distanciamento. Instigan- do-nos a pensar sobre o “outro”, ultrapassando visões essencialistas e homogêneas da população por meio do reconhecimento das suas diferenças e singularidades. Entende-se, contudo, que os estudos rea- lizados foram pouco aprofundados pelos trabalhadores, pelas demais políticas setoriais, pelo movimento social, usuários dos serviços e so- ciedade como um todo. Essa reflexão é importante, pois marca a finalização da oitava pes- quisa contratada sobre o tema, sendo que em parceria com a UFRGS, desde 2004. Nesse ano, foi contratado um censo para a população como um todo, ou seja, para crianças, adolescentes, adultos e famílias e um estudo qualitativo da população adulta, dos serviços e dos trabalhado- res. O acompanhamento do processo da pesquisa, realizado no período de março a dezembro de 2016, foi feito através de uma Comissão com- posta por representantes dos trabalhadores, dos movimentos sociais da população em situação de rua e universidade15. 15 A Comissão foi coordenada pela Assessoria de Vigilância Socioassistencial – Simone Ritta dos Santos. Demais membros da Comissão: Miriam Thomaz, também da Assessoria de Vigilância Socioassistencial; Lirene Finkler e Mateus Cunda, pela Coordenação de Proteção Social Especial; Aline Rocha da Silva, da Proteção Social Básica; Aline Dornelles, da Coordenação de Recursos Humanos; Rogério Ferreira, da Assessoria Jurídica e Rejane M. S. Pizzato , da Assessoria da Direção Técnica da FASC. Do movimento das pessoas em situação de rua contamos com representação do Movimento Nacional da População em Situação de Rua e do Jornal Boca de Rua, e também com representantes da Universidade. 126 Com relação à política de atendimento convém salientar que a análise dos documentos mostrou que a década de noventa marca a cons- tituição da Política de Assistência Social enquanto direito social na cida- de de Porto Alegre, instituindo serviços especializados para a população em situação de rua (albergues, serviço de abordagem social, inserção em atividade produtiva, cursos profissionalizantes com incentivo a econo- mia solidária, inclusão em casas de emergência, casa de convivência, abrigos) e na década seguinte com o advento da implantação do SUAS foram reordenados alguns e abertas novas modalidades de serviços. A política de atendimento à população adulta em situação de rua na cidade mostra inicialmente, que a cobertura é insuficiente para a quantidade de pessoas identificadas pelos censos, seja o de 2008, seja o de 2011. Desde 1994, na rede de serviços de crianças e adolescentes, identifica-se um crescimento, embora os estudos tenham apontado a redução das crian- ças e adolescentes em situação de rua no período. Os fatores que podem ter contribuído para o fato são vários, des- de a implantação do SUAS que aposta em um processo de especializa- ção dos serviços em unidades menores conforme as vulnerabilidades e riscos da população, na retração dos investimentos junto a população adulta, na pressão exercida pelo poder judiciário, no caso das crianças e adolescentes, que torna possível a abertura de novas vagas. Os serviços apontam, ainda, que há uma redução na capacida- de de atendimento por parte dos trabalhadores, devido a mudança do perfil da população atendida em termos de adoecimento (acamados, de- pendentes), do uso de substâncias psicoativas, do envelhecimento e da agudização da violência urbana. Associado à precarização das estruturas físicas dos serviços, de- vido aos poucos investimentos, assiste-se a um cenário de tensões e conflitos permanentes nos serviços, com reflexo nos usuários e tam- bém nos trabalhadores, que tem registrado uma ampliação no adoeci- mento por meio de afastamentos com licenças de saúde. Essa multiplicidade de questões repercute no processo de formu- lação da política de atendimento, refletindo um campo perpassado por múltiplos interesses e atores sociais, que contribuem e interferem no processo de constituição da política de modo que, o reconhecimento da 127 multiplicidade de questões do campo da Assistência Social na cidade exige uma permanente reflexão sobre a realidade social em sua dina- micidade por meio da pesquisa, da discussão, do diálogo com o outro em sua diversidade. 128 Referências DORNELLES, A. E.; SILVA, M. B.; GEHLEN, I.; SCHUCH, P. O Re- trato censitário da população adulta em situação de rua em Porto Ale- gre. In: DORNELLES, A. E.; OBST, J.; SILVA, M. B. (Orgs.). A rua em movimento. Debates acerca da população em situação de rua na cidade de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora do Brasil, 2012. DORNELLES, A. E.; OBST, J.; SILVA, M. B. (Orgs.). A rua em movi- mento. Debates acerca da população em situação de rua na cidade de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora do Brasil, 2012. MACHADO, S. A. O processo de rualização e o Sistema Único de Assistência Social/SUAS: uma interlocução necessária entre Pro- teção Social Básica e Proteção Social Especial. [Dissertação de Mestrado]. Faculdade de ServiçoSocial, Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, PUCRS, Porto Alegre, 2012. MAGNI, C. T.; DICKEL, I. K.; GEHLEN, I.; SCHUCH, P. População adulta em situação de rua em Porto Alegre: especificidades sócio-an- tropológicas. In: GEHLEN, I.; SILVA, M. B.; SANTOS, S. R. (Orgs.). Diversidade e Proteção Social: estudos quanti-qualitativos das populações de Porto Alegre: afro-brasileiros; crianças, adolescen- tes e adultos em situação de rua; coletivos indígenas; remanescen- tes de quilombos. Porto Alegre: Centhury, 2008. PIZZATO, R. M. S. No olho da Rua: o serviço de atendimento so- cial de rua em Porto Alegre. Abordagem social de rua na socie- dade contemporânea. [Dissertação de Mestrado]. 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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Institu- to de Filosofia e Ciências Humanas. Laboratório de observação social. Relatório final Projeto Granpal: Pesquisa dos Perfis e Mundo das crianças e adolescentes em situação de rua da Grande Porto Ale- gre. Setembro de 2004. SHORE, C. La Antropologia y el estudio de la política pública: refle- xiones sobre la “formulación” de las políticas. Antípoda, n. 10, pp. 21-49, 2010. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Insti- tuto de Filosofia e Ciências Humanas. Relatório Final. Cadastro de crianças, adolescentes e adultos em situação de rua e estudo do mundo da população adulta em situação de rua de Porto Alegre/ RS. Porto Alegre, junho de 2008. 131 A PROTEÇÃO INTEGRAL NO SUAS E ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL PARA FAMÍLIAS cleber cAndido de deuS MárciA SAntoS de AlMeidA Knorr rejAne MArGArete Scherolt PizzAto Introdução O presente texto se propõe a relatar o atendimento social reali- zado no Serviço de Acolhimento Institucional para Famílias1, Abrigo de Famílias I, que compõe a rede de serviços de acolhimento institu- cional da Proteção Social Especial, da Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC), em Porto Alegre. A implantação do abrigo se deu em 2012 com o atendimento a núcleos familiares em situação de vulnerabilidade social e/ou risco so- cial em unidade de pequeno porte, com características residenciais, no intuito de garantir o acolhimento de famílias nas suas diversas com- posições. A experiência construída até então, motivou a construção desse texto que apresenta aspectos conceituais e metodológicos implicados no processo de trabalho dessa modalidade de acolhimento, assim como, dados quanti-qualitativos sobre as famílias acolhidas, no período com- preendido entre fevereiro de 2012 e outubro de 2016. Ao final, se propõe algumas considerações a respeito desse es- tudo, na perspectiva de contribuir com reflexões sobre o acolhimento institucional de famílias em situação de vulnerabilidade e/ou risco so- cial em Porto Alegre. 1 Segundo a Tipificação do MDS, os Serviços de Acolhimento Institucional se des- tinam a famílias e/ou indivíduos com vínculos familiares rompidos ou fragilizados, a fim de garantir proteção integral. Pela resolução, o atendimento nesse tipo de serviço deve ser personalizado, realizado em pequenos grupos e favorecer o convívio familiar e comunitário, bem como a utilização dos equipamentos e serviços disponíveis na comunidade local. 132 Preceitos legais e trajetória O artigo 203 da Constituição Federal de 1988 dispõe que: “A as- sistência social será prestada a quem dela necessitar, independente de contribuição à seguridade social”. Nesse mesmo artigo consta como um dos objetivos, a proteção à família, à maternidade, à infância e a ve- lhice. Segundo Pereira (2006, p. 26), “desde a crise econômica mundial dos fins dos anos 1970, a família vem sendo redescoberta como um importante agente privado de proteção social”. É atribuída à família a reprodução da vida material e social de seus componentes ao mesmo tempo em que incide nessa, o cotidiano da desproteção social, ou seja, sua exposição aos processos de vulnerabilidades e riscos sociais decor- rentes da desigualdade social, marco da sociedade capitalista. Em Porto Alegre, a Fundação de Assistência Social e Cidadania – FASC é responsável pela execução da política de assistência social na cidade e a partir de 2005 inicia o processo de avaliação institucional para a implantação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS na Proteção Social Especial – PSE, e entre 2009 e 2011, trabalhou no reordenamento de sua rede existente, conforme previsto na Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais2. Assim, em 2011 foi implan- tado o SUAS no Município, através do Decreto nº 17.256 de 05 de setembro de 2011. Em 2013 foi aprovado o Regimento Geral e Novo Organograma da FASC, através do Decreto 18.198 de 1º de fevereiro de 2013 (FASC, 2016). O Estado na condução das políticas sociais tem a matricialidade sociofamiliar como diretriz principal. Sendo assim, o SUAS percebe e orienta a família na centralidade dos serviços, programas, projetos e benefícios ofertados. Conforme Pereira (2006, p. 26), atualmente há “um amplo arco de políticas, articuladoras de um expressivo contin- gente de atores e recursos, contemplando a família”. A implantação, em Porto Alegre, de uma nova modalidade de acolhimento institucional, orientada na Tipificação Nacional de servi- ços, destinada às famílias que, mediante uma avaliação técnica, neces- 2 Resolução N° 109 do Conselho Nacional de Assistência Social, de 11 de novembro de 2009, que organiza em âmbito Nacional os serviços socioassistenciais do Sistema Único de Assistência Social - SUAS por níveis de complexidade. 133 sitam de uma proteção integral do Estado, constituiu-se em 2012, no Abrigo de Famílias. Espaço destinado a acolher quatro núcleos fami- liares, onde além da proteção terão seus hábitos de vida e necessidades básicas atendidas. Algumas dificuldades de convivência e escolhas, co- tidianamente monitorados e avaliados por agentes estatais. Neste es- paço, são realizadas intervenções diárias de acordo com as regras de convivência estabelecidas anteriormente pelo próprio grupo, que são retomadas sempre que necessário, pois muitas vezes são esquecidas ou simplesmente desrespeitadas. Em geral, há dificuldade na compreensão de certa limitação da liberdade na relação com o outro no que tange aos direitos e deveres de cada indivíduo, ou seja, onde há prejuízo de outrem, a liberdade é discutível. A vida privada na verdade não é totalmente privada como se estivesse em moradia própria. E, neste sentido, cabe ao Estado, re- presentado pela equipe de trabalho, exercer o controle. Controle esse realizado pela equipe e que busca, ao mesmo tempo em que traz a essa população a proteção do Estado, também, desenvolver um trabalho que potencialize o exercício da autonomia e da emancipação. Em função disso, tem-se que para Mioto (2006, p. 45) o surgi- mento do Estado, contemporâneo ao nascimento da família moderna, não significou apenas a separação de esfera, mas também o estabeleci- mento de uma relação até hoje conflituosa e contraditória. Pois, como escreve a referida autora, tem-se que aconstrução histórica da relação Estado/Família foi sempre permeada pela ideologia de que as famílias, independente de suas condições objetivas de vida e das próprias vicis- situdes da convivência familiar, devem ser capazes de proteger e cuidar de seus membros. Crença essa tida como um dos pilares da construção dos processos de assistência às famílias e que permitiu ao Estado es- tabelecer uma distinção entre famílias capazes e incapazes, segundo Mioto (2006). Neste sentido, tem-se que os vínculos relacionais de afetividade, proteção e socialização da família são consequentemente afetados por este contexto vivido, impondo muitas vezes sua reconfiguração. À fa- mília e seus integrantes, muitas vezes recai a responsabilização pelo seu estado de pobreza material e fragilização de seus vínculos relacio- 134 nais, desconectada das causas estruturais da organização societária e sua reprodução social na medida em que, como escreve Pereira (2006, p. 26-27): A família como toda e qualquer instituição social, deve ser en- carada como uma unidade simultaneamente forte e fraca. Forte, porque ela é de fato um locus privilegiado de solidariedades, no qual os indivíduos podem encontrar refúgios contra o desam- paro e a insegurança da existência. Forte, ainda, porque é nela que se dá, de regra, a reprodução humana, a socialização das crianças e a transmissão de ensinamentos que perduram pela vida inteira das pessoas. Mas ela também é frágil, pelo fato de não estar livre de despotismos, violências, desencontros e ruptu- ras. Tais rupturas, por sua vez, podem gerar inseguranças, mas também podem abrir portas para a emancipação e bem-estar de indivíduos historicamente oprimidos no seio da família, como mulheres, crianças, jovens, idosos. Portanto, tem-se que a instituição social “família” passa por mo- dificações inerentes ao processo de organização da sociedade capitalis- ta que ao mesmo tempo em que fragiliza a sua função protetiva, atribui a ela a responsabilidade pela sua manutenção. Indo nesta direção, e para além do atendimento das necessidades básicas, o serviço de acolhimento para famílias objetiva problematizar a situação de exclusão social e total ausência de direitos sociais bási- cos, de bens e serviços demandados de modo que, o trabalho social desenvolvido com as famílias deve sempre se pautar na reflexão quan- to à função das políticas públicas enquanto responsáveis pela provisão das necessidades de educação, trabalho, moradia, dentre outras, assim como, da situação de violência intrafamiliar, dentre as vulnerabilidades sociais, e das possibilidades de superação de forma autônoma e eman- cipatória. Pois, antes da cidade contar com um serviço de acolhimento es- pecífico para famílias, estas eram acolhidas em espaços comuns à po- pulação adulta em situação de vulnerabilidade e/ou risco social. E, a circulação em área comum de famílias e indivíduos tornava mais susce- tíveis as crianças e adolescentes a situações de risco, tendo em alguns momentos seus direitos violados no espaço que deveria ser de proteção. 135 No Abrigo de Famílias3, os critérios para ingresso compreendem: a existência de vagas; o encaminhamento pelo Núcleo de Acolhimento da Proteção Social Especial; a família estar em situação de risco e/ou vulnerabilidade social; os pais e/ou responsáveis terem acima de 18 anos; estar em condições clínicas, no momento do ingresso, não possuir dependência dos cuidados de enfermagem para hábitos de vida diária; não apresentar sinais e sintomas de alguma doença que seja de risco iminente de vida. O serviço acolhe a família na sua diversidade. Não há restrição na composição de parentalidade, gênero, idade e orientação sexual. A metodologia de trabalho compreende a realização de acolhi- mentos, atendimentos individuais ou em grupo, acompanhamentos, as- sembleias, reuniões de equipe, atividades recreativas e oficinas, assim como outras estratégias de intervenção tais como: ensaios fotográficos, chás de fraldas, passeios, celebrações, batismos e qualquer outra ativi- dade que de forma subjetiva contribua no processo de acompanhamen- to. As regras de convivência são construídas em conjunto com as fa- mílias acolhidas e são, aprovadas, em assembleias. Estas regras sofrem alterações com o cotidiano do acolhimento que também se altera de acordo com o conjunto das famílias acolhidas e a realidade social. O processo de trabalho do Abrigo de Famílias foi construído tec- nicamente de forma interdisciplinar, contando inicialmente com téc- nicos do Serviço Social e da Terapia Ocupacional. Profissionais estes que compõem uma equipe técnica fortalecida e atuante na garantia dos direitos individuais fundamentais e sociais das famílias acolhidas. Pro- cesso esse que prioriza, essencialmente, a construção de um espaço per- 3 O Abrigo de Famílias funciona em uma casa locada no bairro Santana, localizado na região central de Porto Alegre e com privilegiada localização no acesso a equipamen- tos urbanos e serviços públicos de saúde, educação, transporte, lazer, esporte, etc. O serviço tem capacidade para atender quatro famílias, tendo como meta 20 indivíduos. A casa possui quatro quartos, dois banheiros para as famílias, refeitório, cozinha, lavanderia, brinquedoteca, área externa e duas salas para o serviço de atendimento e administrativo. O projeto técnico prevê um quadro recursos humanos composto por: 1 Coordenador, 1 Assistente Administrativo, 10 Educadores sociais, 1 Oficineiro, 1 Técnico Social Assistente Social,1 Técnico de enfermagem, 1 Auxiliar de serviços gerais, 2 Cozinheiras e 2 Vigilantes. Atualmente a equipe de trabalho é composta por Coordenador, Assistente de Coordenação, 2 Técnicos Sociais, 1 Enfermeira,1 Técnico de Nutrição, 13 Educadores Sociais, 2 Cozinheiras, 3 Auxiliares de Serviços Gerais, 2 Vigilantes, 2 Porteiros, 1 Motorista, além de contar com a Supervisão de 1 Assistente Social e 1 Nutricionista. 136 manente de discussão e elaboração de um plano de trabalho em equipe num formato, deveras, inovador. E, neste sentido, o trabalho social se constitui como o próprio veículo viabilizador da participação coletiva e democrática das famílias na construção de um espaço de garantia de di- reitos, de deveres e de um plano emancipatório, através da valorização da escuta qualificada e do diálogo, bem como, da construção conjunta de um Plano de Acompanhamento Familiar. Assim, a proteção integral no acolhimento para núcleos familia- res possibilita a cada componente familiar ser visto enquanto sujeito de direitos em todos os seus aspectos. Para tanto, são assegurados os direitos da mulher, da criança e do adolescente previstos em lei espe- cífica, como a Lei Maria da Penha, o Estatuto da Criança e do Adoles- cente, entre outras. Dessa forma, o trabalho social com famílias requer sempre uma articulação intersetorial no atendimento às diversas ne- cessidades e demandas postas pelos diferentes núcleos familiares e seus membros. Para tanto, parcerias são buscadas através da rede existente, por meio de contatos com organizações governamentais e não governa- mentais. As governamentais, através das políticas públicas existentes, serviços, programas e benefícios da própria política de Assistência So- cial, os serviços de saúde pública, programas de habitação, educação e trabalho. Pois, a possibilidade de acesso dessas famílias a essas políticas possibilita a superação das condições de vulnerabilidade que as leva- ram ao acolhimento. O processo de acolhimento institucional para famílias O trabalho social no acolhimento para famílias busca além do atendimento às necessidades básicas das famílias e seus componentes, garantir os direitos individuais e sociais, ultrapassando as questões objetivas e preocupando-se também com as questões subjetivas dos sujeitos implicados. Existe um cuidado com os indivíduos de cada nú- cleo familiar. Mesmo antes do nascimento é incentivada a realização de pré-natal, e após o nascimento,as consultas pediátricas, o incentivo à amamentação, e assim, a assistência em todas as fases da infância 137 até a fase adulta. É realizada constante avaliação das necessidades da criança e do adolescente, da inclusão à educação infantil, a atividades esportivas, artísticas, de fortalecimento de vínculos com a frequência em atividades extraclasse, a inserção ao ensino regular, em projetos como o de preparação para o mundo do trabalho, o Pró Jovem, Jovem Aprendiz etc. E, neste sentido, o Serviço conta os educadores sociais na viabilização destes encaminhamentos. Sendo assim, tem-se então que o serviço de acolhimento no Abri- go de Famílias serve como um suporte importante num momento em que a família deixa de contar com a estrutura material e emocional com a qual contava. Além disto, são feitos contatos com ONGs para que, estas, possam prestar atendimentos de saúde, como psicoterapia individual, de casal e de família com gratuidade. Os núcleos familiares apresentam questões de saúde extrema- mente específicas e complexas, como o sofrimento psíquico em comor- bidade com situações de dependência química de modo que, neste caso, a equipe de trabalho precisa encaminhar e acompanhar estes indiví- duos, que muitas vezes apresentam diagnósticos graves, aos serviços de saúde, além de mediar às situações de conflitos presentes nas re- lações familiares. Acompanhamento técnico este que é compartilhado com a equipe de referência da região de origem da família e com a rede ampliada intersetorial ligada aos Conselhos de Saúde, de Direito e Tu- telar. Dito isto, tem-se que de fevereiro de 2012 a outubro de 2016, 40 famílias ingressaram no serviço, sendo que três delas tiveram um reingresso cada, porém as mulheres ingressaram sem os companhei- ros. Do total de famílias acolhidas 13 eram compostas por mãe e filhos, uma composta por pai e filho e 26 famílias por casal com filhos, sendo um homo-afetivo. Através dos dados percebe-se as transformações da configuração familiar que, segundo Sodré (2014, p. 72), denota que “a família nuclear foi substituída pelo modelo “solto”, flexível, sem ordem, sem laços en- tre consanguíneos, questionando a centralidade do patriarca, com lon- gevidade estendida e, muitas vezes, pautada por valores de consumo e acostumada à intervenção do Estado em seus hábitos mais domés- 138 ticos”. Nesse período de quatro anos os núcleos familiares acolhidos apresentam composições diversas, o que nos reporta a diversidade des- ta instituição social na atualidade. Nesse mesmo período, 152 pessoas foram acolhidas, 88 do sexo feminino e 64 do sexo masculino, sendo destes 65 pais ou responsáveis e 87 filhos. A média de filhos das famílias acolhidas é de 2,17, sendo que sete nasceram enquanto a família estava acolhida. O período médio de abrigagem das famílias que já foram desligadas foi de cinco meses. Do total de famílias acolhidas, 18 foram encaminhadas pelos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), 5 pelos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), 6 por outros Serviços de Acolhimento Institucional, 5 pelos Conselhos Tutelares, 4 pelos Centros POP e outras duas pela Delegacia da Mulher e Albergue Dias da Cruz. Considerando a principal motivação que levou as famílias a se- rem acolhidas identificou-se que: 21 delas estavam em situação de rua e, neste sentido, tem-se que a ausência de recursos materiais/habita- ção e/ou a expulsão da moradia pelo tráfico, se constituiu no motivo de acolhimento destas no caso de, pelo menos, 6 famílias. Outrossim, tem-se também que a maioria dos casos de acolhimento motivados pela situação de rua foram de mulheres gestantes ou que haviam dado à luz recentemente. Dessa forma, percebe-se que, por si só, a situação de rua não se constitui como critério para o encaminhamento de uma família para o acolhimento institucional, pois na avaliação dos técnicos nesses casos a proteção da infância foi um fator relevante. A presença do Estado na família, através das mais diferentes for- mas de intervenção, não possui apenas uma face, ou uma inten- ção. Pois, ao mesmo tempo que defende as crianças da violência doméstica, impõe a família normas socialmente definidas. Ao de- fender a família pode descuidar dos direitos individuais. Enfim, ao fornecer recursos e sustentação às famílias se colocam em movimento estratégias de controle (MIOTO, 2006, p. 45). Assim como as expressões da questão social, múltiplas são as vulnerabilidades que resultam na avaliação de que uma família deve ser acolhida. Embora no gráfico abaixo sejam elencadas somente as prin- 139 cipais motivações, fatores como a fragilização dos vínculos familiares e comunitários, o desemprego e a baixa escolaridade são comuns em to- dos os casos analisados. Em grande parte, o uso abusivo de substâncias psicoativas por um ou mais membros, também constitui-se num fator que é levado em conta na avaliação dos técnicos. Gráfico 1 – Motivo que levou a família a ingressar no serviço de aco- lhimento institucional. No Abrigo de Famílias, todo o acompanhamento realizado visa o processo de desligamento, a partir do momento em que são reverti- das gradativamente as vulnerabilidades que levaram ao acolhimento da família. Dessa forma, em cada situação apresentada é discutida a necessidade de articulação com os serviços da rede. No cotidiano de trabalho com as famílias o processo de desligamento também compre- ende a busca de residência, mobiliário, transporte para mudança, além da referência/contra-referência, geralmente em uma nova região da cidade. 140 Gráfico 2 – Motivo que levou a saída da família do serviço de acolhi- mento institucional Quando quantificamos os motivos que levaram ao desligamento das 37 famílias que já haviam passado pelo serviço até outubro de 2016 percebe-se que 20 delas cumpriram o plano de intervenção construído em conjunto com a equipe, 17 foram desligadas por evasão, mudança e/ ou desistência do plano/acolhimento, entre outros. E, por fim, tem-se que nos casos considerados como interrupção de plano, estão incluídas situações de descumprimento das regras de convivência. Considerações Finais Quando o abrigo iniciou suas atividades em 2012, a equipe do serviço apresentou dificuldades no desenvolvimento do processo me- todológico de intervenção com as famílias, já que tal modalidade de acolhimento representava algo novo para os trabalhadores, assim como um desafio diante da complexidade inerente a este acompanhamento. O serviço foi aberto com um quadro deficitário de educadores sociais e sem a formação necessária para este trabalho. 141 As intervenções junto às famílias partiam muito mais de con- cepções pessoais dos trabalhadores de como estas deveriam agir ou se portar, sendo a forma que estas criavam os filhos o principal motivador para determinar a “incapacidade” da família em manter a função prote- tiva, atribuindo juízos de valor as mesmas. No decorrer do processo de trabalho foi possível, através prin- cipalmente das reuniões de equipe, travar discussões a respeito das questões implicadas no processo de acompanhamento, nos objetivos do trabalho, nas atividades a serem desenvolvidas no cotidiano, assim como, nas atribuições da equipe e do papel de cada setor da equipe multidisciplinar. É possível perceber na trajetória do acolhimento modificações nos procedimentos metodológicos do acompanhamento cotidiano. Suspen- sões frequentes, manejos inadequados, posicionamentos a partir de expe- riências e vivências pessoais estão sendo superadas à medida que são re- tomadas e rediscutidas tendo em vista a realidade das famílias atendidas. A falta de condições objetivas e subjetivas para a proteção e o cui- dado de seus membros deixou de ser um fator de culpabilização, para se tornar um objeto da intervenção de todos os profissionais comprometi- dos com o acompanhamento das famílias acolhidas. Dessa forma, novas possibilidades de intervenção buscam valorizare fortalecer os vínculos e as potencialidades dos núcleos familiares. Hoje é possível avaliar que os entraves para a superação da situ- ação de acolhimento das famílias se devem a questões macroestrutu- rais, como a garantia das demais políticas públicas principalmente no cumprimento do direito à moradia e de questões de ordem subjetiva, principalmente, no que se refere a questões que envolvem condições de saúde biopsicossociais, ou mesmo de aspectos mais complexos neu- ro-cognitivo-emocionais. Quanto às questões macroestruturais tem-se que as famílias dependem das políticas públicas existentes. E quanto às questões de ordem subjetiva, estas, dependem essencialmente das condições de saúde e de recursos internos para a conscientização, pos- sibilidade de reflexão, elaboração, construção e cumprimento de um plano ou projeto de vida, que são vencidas respeitando o momento de vida na qual o sujeito se encontra. 142 Referências BRASIL. Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais.Re- solução n 109, de 11 de novembro de 2009. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Secretaria Nacional de Assistência Social. Política Nacional de As- sistência Social – PNAS. Brasília, DF, 2004. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil, DF: Senado Federal,1988. FASC. Projeto Técnico Acolhimento Institucional – Modalidade Para Famílias em Situação de risco Social. Porto Alegre, 2011. MIOTO, R. C. T. Novas propostas e velhos princípios: a assistência às famílias no contexto de programas de orientação e apoio Sócio Fami- liar. In: MIONE, A. S.; MATOS, M. C.; LEAL, M. C. (Orgs.). Política Social, Família e Juventude: uma questão de direitos. São Paulo: Cortez, 2006. PEREIRA, P. A. Mudanças estruturais, política social e papel da famí- lia: crítica ao pluralismo de bem-estar. In: MIONE, A. S.; MATOS, M. C.; LEAL, M. C. (Orgs.). Política Social, Família e Juventude: uma questão de direitos. São Paulo: Cortez, 2006. SODRE, F. O Serviço Social entre a prevenção e a promoção da saúde: tradução, vínculo e acolhimento. Serviço Social & Sociedade, n. 117, pp. 69-83, 2014. 143 EXPERIÊNCIAS DA AÇÃO NA RUA: DA ABORDAGEM AO ENCONTRO AnA letíciA FontAnive, Aline SArdin PAdillA de oliveirA, chArline PereirA doS SAntoS, dAiAnA SAntoS, dAnielA biAnchi, dAnielA cAnAbArro, dAnielA SoAreS, dioGo SAntoS, FernAndo oliveirA júnior, GiAne SilveirA, jorGe GoMeS de oliveirA, Kizzy ASSunção, lirene FinKler, liSiAne do cArMo, MArcoS cAbrAl borGeS, MAriA dornelleS de ArAújo ribeiro, MAteuS FreitAS cundA, MilenA cASSAl PereirA, PAblo GonçAlveS, robertA dA SilvA GoMeS, SAulo vieirA De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta mara- vilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas. Ítalo Calvino, As cidades invisíveis Introdução Este texto se constitui em um escrito de autoria coletiva dos trabalhadores do Serviço de Abordagem Social na cidade de Porto Ale- gre. Neste sentido, tem-se que o trabalho de abordagem, atendimento, acompanhamento, de encontro com as pessoas em situação de rua pela Política de Assistência Social na cidade de Porto Alegre data da déca- da de 1990 (Serviço de Educação Social de Rua - SESRUA, dirigido a crianças e adolescentes e Atendimento Social de Rua - ASR, dirigido a adultos e famílias). Esses serviços eram realizados através de equipe própria, abrangendo toda a cidade. Assim, antes mesmo da formaliza- ção do SUAS, Porto Alegre já desenvolvia serviços de referência para a população em situação de rua. Com a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, o trabalho com a rua ficou situado no Serviço Especializado de Abor- 144 dagem Social, com a finalidade de “assegurar trabalho social de abor- dagem e busca ativa que identifique, nos territórios, a incidência de trabalho infantil, exploração sexual de crianças e adolescentes, situa- ção de rua, dentre outras” (BRASIL, 2009, p. 31). A Resolução nº 9 do Conselho Nacional de Assistência Social, de 18 de abril de 2013, dispõe que este serviço pode ser ofertado ou pelos Centros de Referên- cia Especializados de Assistência Social (CREAS), ou pelos Centros de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua (CENTRO POP) ou por Unidade Específica referenciada ao CREAS. Porto Alegre já realizava o Serviço de Abordagem Social, no re- corte geracional de crianças e adolescentes e suas famílias, desde o ano de 2007, através de convênio com um conjunto de entidades da socie- dade civil, sob o projeto conhecido como Ação Rua. No ano de 2016, este convênio foi ampliado também para a popu- lação adulta e idosa em situação de rua, com a contratação de equipes específicas para esse trabalho. O Serviço de Abordagem Social que vi- nha sendo executado diretamente pelos CREAS (no período de 2011 a 2015), passa então a ser realizado a partir de convênio com organiza- ções da sociedade civil, tendo caráter público e não estatal, e estando as equipes referenciadas aos nove CREAS da cidade. O relato que segue refere-se à experiência de trabalho dessas no- vas equipes, ao longo do ano de 2016, no contato com as pessoas que habitam as ruas de Porto Alegre, problematizando a posição interven- tora da “Abordagem Social”, identificando potências e fragilidades do trabalho cotidiano com essa população. O texto está organizado de modo a desvelar a paisagem em que ocorrem os encontros, (des)encontros, vivências e violências que per- passam o trabalho na rua, excertos de relatos e experiências são trazi- dos e constroem uma reflexão sobre o cotidiano das equipes do Serviço de Abordagem Social. 145 A paisagem O inesperado acontece Uma paisagem em cada olhar, Um olhar em cada paisagem. Um caminho que nada tem Destino brilho de que tudo lá existe. As flores... Os pássaros... Os Estados… O tráfego com seus ensaiados movimentos O tráfico e seus engasgados sentimentos A lomba... (Suas curvas) Na subida ofegante Descida Confortante De baixo admira-se as montanhas Em cima, sou mais um dentre outros seres e suas façanhas. Pablo Gonçalves Escrever sobre o encontro com a população adulta em situação de rua exige um olhar destituído de fluxos, encaminhamentos, limites impostos nos diferentes territórios da cidade, além das ausências e res- ponsabilidades do Estado. Independente do nosso trabalho, essas pes- soas em situação de rua já vivenciavam o processo de invisibilidade aos olhos da sociedade, sendo a Abordagem Social uma estratégia vincula- da à Política de Assistência Social que articularia os demais recursos de outras políticas e/ou programas e projetos desenvolvidos por ONGs e sociedade civil, para olhar e interferir nesse processo de invisibilidade. Em parte, essa experiência nos mostra a importância/necessida- de de algo/alguém que nomeie o desconhecido, o até então invisível, para que, este, possa ser conhecido e reconhecido pelo imaginário so- cial, atribuindo a condição de existência e também de direitos. Eis um ponto a destacar que serve de pano de fundo para diver- sos processos presentes no trabalho com a população em situação de rua: a contradição de quem é reconhecido na relação com aquele que não é ou não está reconhecido na sua história de vida, ou, dito de outra 146 maneira, que tangenciam os valores e exigências do modelo de socie- dade capitalista. Historicamente as relações desiguais de poder e autoridade mar- cam os processos de exclusão e marginalidade, fortalecendo assim o discurso criado a partir dessas relações. Não há pretensão aqui de abordar esses processos históricos, mas sim, no decorrer deste texto, localizar algumas destas relações e quem produz esses discursos de identidade e diferença. A possibilidade do trabalho com essa população, que nasua maioria não são atravessados pelos deveres e papéis do Estado, nos desacomoda, pois para além do trabalho de transformação da realidade, somos em alguma medida, atravessados por conteúdos de exclusão e preconceitos manifestos ou ocultos nas diferenças políticas ou agentes desses serviços. Dentro desse contexto, estão também inseridas outras estraté- gias de produção de cuidado e proteção social, buscando no diálogo com os serviços obter uma maior qualidade de vida. Essas pessoas cos- tumam se organizar em associações de bairros, clubes de mães e comu- nidades afins, com intuito de suprir a presença do Estado no que tange aos serviços públicos e espaços para o lazer. A rua é ressignificada, diferenciando os entendimentos do que é cada lugar pelos habitantes destes espaços, traçando novos roteiros em seus percursos sensoriais, modificando os sentidos das redes usuais da cidade. Aqueles que, por algum motivo, não estão inseridos nos grupos instituídos pelo atual modelo de sociedade, acabam vivendo à margem dela. É o caso de muitas pessoas que estão em situação de rua, que per- tencem a algum território e tem neste sua identidade e pertencimento. Têm suas redes de convívio formais e informais e buscam seu espaço em meio a essa disputa de poder. Estar na rua é um direito de todos (LEFEBVRE, 2001), mas é preciso que esse direito seja acompanhado com o mínimo de respaldo por parte dos gestores e atores envolvidos na mobilidade urbana e, em geral, nas políticas públicas. É preciso reconhecer os diversos proces- sos de exclusão enfrentados pela população em situação de rua, por meio de indicadores sociais, censos, cartografias, mapeamento da área, 147 ou seja, diferentes dispositivos e mecanismos para que se possa iden- tificar quem são as pessoas em situação de rua, onde elas costumam ficar, como se relacionam com a comunidade, com os serviços públicos e estabelecimentos privados, quais as formas de acesso aos programas assistenciais, quais são as dificuldades que apresentam, quais os recur- sos comunitários disponíveis e que parcerias intersetoriais e interinsti- tucionais podem ser firmadas. Entendemos que sob o conceito “Pessoa em Situação de Rua” en- globa-se um conjunto de experiências e de formas de ser/estar na rua. Trabalhar no marco de uma política de inclusão social direcionada para este recorte populacional requer frisar a complexidade do fenômeno e reconhecer o processo de exclusão social que sobrepõe estruturas de dominação de classe, raça e gênero. Algo que, torna fundamental o re- conhecimento desta multiplicidade de vivências por parte das equipes de abordagem social no encontro com esse outro/outra. Assim, ao longo do texto, dialogamos com os termos “aborda- gem”, “usuário”, “pessoa em situação de rua”, “casos”, de modo a evi- denciar, por outro lado, a dimensão dessa escrita partindo da ideia do encontro com as pessoas que habitam a rua, suas histórias de vida, o cenário da cidade, a paisagem que acompanha. O Encontro Não havíamos marcado hora, não havíamos marcado lugar. E, na infinita possibilidade de lugares, na infini- ta possibilidade de tempos, nossos tempos e nossos lugares coincidiram. E deu-se o encontro. Rubem Alves Que encontros são estes e em que momentos ocorrem? A palavra “Encontro” não é identificada nas bibliografias “técnicas” e norteado- ras da Política de Assistência Social. O mais próximo deste conceito, proposto neste texto e em construção, seria o acompanhamento, mas por que não utilizamos este último? Pretende-se explicar como a troca da expressão atendimento/abordagem social por encontro pode aproximar 148 a realidade da prática com as pessoas que estão residindo e/ou moran- do na rua. Os desafios enfrentados diariamente pelos trabalhadores são atravessados pela escassez de recursos de infraestrutura, precarização de outras políticas públicas, equipes reduzidas e a resistência por parte da sociedade em romper os modelos já cristalizados de viver e/ou ex- perienciar o espaço da rua. No momento em que entramos em contato com os testemunhos destes trabalhadores, percebe-se a contradição e mesmo certa perversidade do discurso que lança essas equipes para esse campo de atuação. Mesmo ao entrar em contato com estas e outras dificuldades, resistências e outros atravessamentos, esses trabalhadores permanecem diariamente buscando no espaço da rua… o encontro. A palavra acompanhamento traz consigo alguns significados, mas o conceito mais próximo, encontrado em dicionário de língua portuguesa, remete à “assistência ou supervisão dada por profissional (psicólogo, pe- dagogo, fonoaudiólogo, assistente social, educador social etc.) a alguém que esteve sob seus cuidados ou orientação”. Nesse significado, encontra- mos algumas palavras chave que convidam à problematização e quebra de paradigma. O ato de dar assistência ou supervisão demonstra a relação de poder destes profissionais para com as pessoas que são automaticamente instituídas num lugar de cuidado e/ou orientação. Conforme mencionado anteriormente, fica evidente não somente a relação de poder, mas a vir- tualidade ou ficção destes acompanhamentos. No momento que são cons- truídos os planos de acompanhamento, mesmo que sejam compostos pelo discurso da co-participação das pessoas, operam numa virtualidade e/ou ficção que não existe. O desenvolvimento desse acompanhamento sofrerá diversos atravessamentos que envolvem os trabalhadores, a relação com a comunidade, o Estado, diferentes políticas públicas, entre outros fatores. Alguns profissionais acreditam que estão apropriados desta virtualidade, mas que devem operar de alguma forma para que o trabalho seja realiza- do. Reconhecemos e acreditamos nesta justificativa por estarmos cientes da rotina e contexto da prática. Entretanto, é exatamente essa justificati- va que possibilita o rompimento do diálogo. Ao inserir o diálogo, o convidamos a repensar esta palavra e a buscar o genuíno que se perdeu. Este diálogo genuíno busca procurar a 149 verdade e fomentar o conhecimento sem preconceitos, mas que envolve duas pessoas ou mais. É complicado falarmos de “verdade”, mas pode- mos subverter este conceito para que seja a “verdade do sujeito”. A ver- dade que é sustentada pelo desejo do sujeito, mas que precisa da escuta do outro para existir. Essa escuta só ocorre no momento do encontro. Ao tomarmos o conceito de encontro para desenhar a discus- são sobre o que seria o trabalho das equipes de abordagem social, co- locamos os atores deste processo em um mesmo patamar, buscando desconstruir o processo de hierarquização na prática da Abordagem Social. Muitas vezes, na cena de trabalho, os trabalhadores são toma- dos (ou se colocam) como detentores do saber sobre o sujeito que está em situação de rua. No encontro, esses atores são tomados na mesma posição sobre a cena, amplia-se o olhar para dois sujeitos (ou mais) que ali se encontram. A ótica do trabalhador que se lança no trabalho da Abordagem So- cial deve sempre estar atenta para uma visão além do discurso “norma- tizado”. No trabalho na rua, o vínculo se torna potente quando o traba- lhador lança mão do dispositivo da escuta, que vai além da “mediação na garantia de direitos”. Percebemos a potência transformadora do trabalho quando nos despimos desse discurso e nos deixamos ser levados pelo encontro e pelo percurso desses sujeitos, testemunhamos suas histórias e apostamos que ali há um desejo de vida, não de norma social. O diálogo, o lugar de fala na cena do encontro, deve ser uma costura entre a história e os desejos da pessoa em situação de rua e as ferramentas que o trabalhador dispõe para escutá-lo, tecendo outras possibilidades de caminhos a serem trilhados em conjunto. A impor- tância do “trabalhador da rua” neste encontro é potencializar o sujeito de desejos, direitos, deveres, evidenciar seus percursos e desestabilizar as relações de poder vivenciadas na rua. Ressaltamos que a intervenção na direçãodo sistema de garantia de direitos e acesso às políticas públicas é essencial para o trabalho, mas aqui provocamos um olhar além. Pontuamos a potência do tra- balho no invisível, na inutilidade, no que não pode ser quantificado. A abordagem social muitas vezes se desdobra no acompanhamento da- quele sujeito pela cidade, pelos serviços. O ato de caminhar, para De 150 Certeau (1998) é um processo de apropriação do sistema topográfico pelo pedestre. Ao caminhar, mesmo por espaços proibidos, como por exemplo, um muro que o impede de seguir, o caminhante inventa e des- loca as possibilidades de uma ordem espacial. O usuário da cidade em seus passos exploratórios no dia-a-dia “faz outras coisas com a mesma coisa e ultrapassa os limites que as determinações do objeto fixam para seu uso” (CERTEAU, 1998, p. 178). Podemos pensar que no trajeto até a Unidade Básica de Saúde mais próxima o mais importante desta ação é garantir o acesso do cidadão ao atendimento de saúde. Este pode ser um dos objetivos. Mas há outros, que se identificam no trajeto, na caminhada, na passagem pelos muros, pelos olhares da cidade, ao percorrer este trajeto que parece ser por outra cidade, aquela que só habitamos quando estamos acompanhando, quando estamos juntos às pessoas em situação de rua. Aí encontram-se grandes potências do trabalho: o encontro, o diálogo, o percurso. De encontros, (des)encontros, vivências e violências: retalhos de relatos e experiências Através da aventura de escrever um texto com muitas mãos, per- cebemos que alguns elementos atravessam nossa prática em todos os territórios de Porto Alegre, da Zona Norte ao Extremo Sul. Difícil elencar um único eixo como base para escrita e, portanto, iniciamos a árdua missão de encontrar um “entre” que desse conta dos nossos anseios e, principalmente, que retratasse o trabalho das equipes do Ser- viço de Abordagem Social de Rua - Ação Rua. Nos encontros que realizamos para dialogar e construir essa es- crita coletiva percebemos que, se fotografássemos a situação de rua em Porto Alegre, as pessoas ali retratadas seriam majoritariamente negras. Reconhecendo essa característica inerente aos territórios de Porto Alegre, afirmamos que o trabalho com as pessoas em situação de rua é cotidianamente permeado por outros dois elementos: a saúde mental e a violência. Cabe ressaltar que esses elementos estão essencialmente conec- tados. Impossível falar sobre exclusão social sem falar na questão ra- 151 cial, na violência com que essa exclusão acontece e no sofrimento psí- quico que isso acarreta. A Cor da Rua Propomos uma breve reflexão sobre o perfil da população de rua, mais especificamente, sobre a cor da rua. Nesse sentido, na Política Nacional para a População em Situação de Rua (BRASIL, 2009), está instituída uma definição para esse público: Considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de mora- dia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória. Dentro dessa definição, há vários termos que poderiam ser apro- fundados, mas selecionamos aqui a expressão: “grupo populacional hete- rogêneo”, com ênfase na questão da heterogeneidade; em outras palavras, que não pode ser definido sob uma mesma característica. Portanto, cha- mamos à reflexão: o que se esconde detrás dessa heterogeneidade? Durante os primeiros meses de atuação do Serviço de Aborda- gem Social pelo convênio com as Organizações da Sociedade Civil no município de Porto Alegre, realizamos o mapeamento das regiões para traçar um primeiro diagnóstico sobre o território. O instrumento uti- lizado contém os quesitos raça/cor, faixa etária, sexo, entre outros. É importante mencionar que o quesito raça/cor não foi auto declarativo. Verificamos que parte significativa das pessoas encontradas em situa- ção de rua são homens negros ou pardos. Durante um acompanhamento de um usuário até um dos alber- gues da cidade, enquanto aguardávamos na fila organizada por ordem de chegada para o acesso, bastou um simples olhar para constatar que quase a totalidade de provavelmente 80 ou 100 homens eram negros ou pardos. A falta de política pública da assistência social voltada para a 152 população negra em situação de rua deixa à margem as especificidades que surgem dessa característica. A Assistência Social como Política Pública tem como um de seus objetivos a defesa da dignidade de minorias excluídas historicamente, como no caso da população negra. Porém, percebemos a ausência de programas ou projetos que unifiquem os recortes de população negra e situação de rua. E, neste sentido, questionamos: Quais as consequên- cias disto? A Loucura Existe uma ideia construída socialmente da loucura como um outro radical, diferente, permanentemente marginalizado. “Loucura” e “rua”, historicamente estão de mãos dadas, e os “loucos”, os “anormais”, permanentemente estigmatizados. E hoje? Será que é diferente? A primeira vez que vimos o “amigão”, estava chovendo e fazia muito frio. Encontrava-se embaixo de uma marquise enrolado num cobertor molhado, os dedos enrugados, o cabelo úmido, o rosto pinta- do de batom vermelho, bebendo cachaça. Logo que nos aproximamos sentimos o forte cheiro de álcool e urina. Na troca de olhares combina- mos, implicitamente, numa linguagem construída na caminhada e par- ceria com os colegas, que deveríamos ser muito cuidadosos em nossa intervenção, mas, mesmo assim, ante essa situação, não conseguimos conter-nos de sugerir alguns encaminhamentos respaldados na nossa própria visão de mundo, nos nossos próprios sentires. Como estava muito frio, a primeira sugestão foi um lugar para passar a noite: albergue, estava molhado; segunda sugestão: alguma estratégia para secar-se e trocar de roupa – banho no Centro Pop. Ne- nhuma das duas foi aceita. Percebemos que o único efeito dessa “manei- ra de chegar” era afastar-nos, então, uma vez superada a primeira fase do estranhamento, partimos para a troca de ideias. Ele nos relatou um pouco da sua história, numa fala não linear, cheia de idas e voltas, de não ditos, de fixações em ideias. Aqui apresen- tou-se o primeiro desafio desse encontro: tentar compreender uma “ou- tra lógica” para conseguir fazer uso de nossos principais instrumentos 153 de trabalho: a escuta sensível, a palavra, o diálogo baseado no respeito da biografia do sujeito, refletindo sempre sobre nossos próprios posi- cionamentos e interpretações, vigilando nossas próprias ideias precon- cebidas. Trabalhar a partir do vínculo, construindo pontes, mediações, catalisando desejos. O trabalho das equipes de abordagem social, pautado na educa- ção popular, é desafiador por si só num contexto social que não acolhe as diferenças. Mas, quando as equipes vão ao encontro destes tipos de situações mais “complexas” (por não encontrar outra palavra), os/ as trabalhadores/as se veem diante de um desafio ainda maior, que os interpela e os deixa em conflito. A própria subjetividade dos/das trabalhadores/as é desafiada, desacomodada. Como lidar com as sensa- ções e sentimentos que provoca o fato de observar o sofrimento físico e psíquico de uma pessoa que, à primeira vista, não teria as ferramentas internas e as habilidades sociais consideradas “normais” (no sentido de estar dentro da norma, do que é esperado/demandado) para lidar com a vida? Como propor ações que saiam do encaminhamento básico que é comumente sugerido para este tipo de situação (a internação com- pulsória)? Como trabalhar com os parceiros da rede, especialmente da área da saúde, para convidá-los a desacomodar-se e pensar conjunta- mente estratégias de atendimento mais comunitárias e inclusivas? No caso que estamos falando,construímos uma parceria muito interessante com a Unidade de Saúde que o nosso “amigão” acessou em algumas ocasiões, mas ainda não conseguimos dialogar e muito menos estabelecer uma parceria com a saúde mental. Em tempos de desmani- comialização, muitas vezes, os próprios equipamentos de atendimento descentralizado acabam seguindo a lógica manicomial, colocando em gavetas as pessoas e não conseguindo enxergar o todo. Nesse contexto, os desafios apresentados são de índole diversa, os pessoais/subjetivos de cada trabalhador/a, de conciliar o trabalho desde a pedagogia social, ao mesmo tempo em que se percebe o serviço como um dispositivo de clínica ampliada e de mediação para a garantia de direitos, e os interinstitucionais e de co-responsabilização de outras políticas públicas, para construir intersetorialmente o atendimento para essas pessoas. 154 Violências de Estado O processo de violência com a população em situação de rua pode ser analisado por diferentes perspectivas, pelo não reconhecimento como sujeitos sociais e suas necessidades específicas, pela falta de polí- ticas públicas permanentes de atendimento a essa população, pela não garantia de direitos básicos como saúde, educação, segurança, habita- ção e assistência. A não garantia dos direitos da população em situação de rua mar- ginaliza, culpabiliza e agrava a situação de vulnerabilidade social em que se encontram. Quando o sujeito não consegue acessar uma consul- ta, uma vaga em albergue, realizar um acompanhamento sistemático de saúde mental, quando o Estado negligencia a garantia de direitos, é mais uma violência que a pessoa em situação de rua sofre. Ao mesmo tempo, a rua não deve ser vista somente como lugar de circulação entre espaços privados, uma espécie de limbo entre situa- ções reconhecidas, mas como espaço em si, tão abarcador e produtor de realidades como qualquer outro. Estar na rua é ocupá-la, não como violação do espaço limpo e vazio. É preciso desconstruir a bipolaridade ontológica entre normal e anormal colocada para as pessoas em situa- ção de rua, considerando a produção e reprodução de identidades so- ciais dentro mesmo do que Gregori (2000) conceitua como circulação entre espaços e papéis sociais. Segundo Foucault (2008), o Estado também opera intervenções sobre as populações com objetivo controlar o risco, mantendo assim um funcionamento social aceitável para um determinado sistema social, no caso atual podemos pensar que esse “funcionamento social aceitável” seria aquele que garanta a reprodução do capital e a manutenção dos privilégios de uma elite. A questão seria: como manter um fenômeno “indesejado” – dentro de um ideal de sociedade – nos limites que sejam social e economicamente aceitáveis? Neste sentido podemos pensar que todas as políticas sociais têm um viés de gerenciamento do risco, uma função de controle, mesmo que no papel as fundamentações dos programas e serviços se pautem na garantia de direitos. Tal lógica é, muitas vezes, constatada por nós, 155 trabalhadores do Serviço de Abordagem Social, quando chegam de- mandas de “higienização social”, por vezes partindo do poder público, mas também dos cidadãos. Isto que gera sofrimento pelo fato de enxer- gar-nos dentro de uma aparente contradição. Aparente contradição a nossos olhos, pois temos que lembrar que, mesmo na ausência destas demandas “pontuais”, o próprio serviço tem uma faceta de controle e gestão do “risco”. É necessário que as equipes possam refletir sobre esta questão para trabalhar em prol da construção de práticas de resis- tência que permitam subverter, em alguma medida, este viés normati- zador e controlador. Considerações Finais O campo de trabalho do Serviço de Abordagem Social possui dimensões que apenas se visibilizam no encontro com a população que vive nas ruas de Porto Alegre. Dimensões que vão para além dos tex- tos tipificados ou das resoluções protocolares sobre o trabalho. Mais que isso, objetivamos trazer para o centro da discussão o momento do encontro com a pessoa da rua, identificando as redes de cuidado e proteção que se estabelecem independente da ação de uma política pública; mas, sobretudo, visibilizando as formas de exclusão e estigmas que atrelam o sujeito a uma posição marginalizada, manten- do as violências perpetradas pelo Estado em sua relação com as vidas desviantes da norma. 156 Referências BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Conselho Nacional de Assistência Social; Conferência Nacional de As- sistência Social, VII. Tipificação Nacional dos Serviços Socioassis- tenciais – Resolução nº 109 de 2009. BRASIL. Casa Civil. Decreto Nº 7053 de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento e dá ou- tras providências. Diário Oficial da União de 24 de dezembro de 2009. CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1998. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População. Curso dado no Collège de France (1977-1978). Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2008. GREGORI, M. F. Viração: Experiências de meninos nas ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. LEFEBVRE. H. Direito a cidade. São Paulo: Centauro, 2001. 157 O RETORNO DOS INVISÍVEIS A CENA PÚBLICA A PARTIR DA ATUAÇÃO DO CENTRO POP 1 cArloS André dA roSA bittencourt Introdução A população em situação de rua tem como característica a circu- lação em diversos territórios da cidade. No entanto, percebe-se o não pertencimento destes atores sociais a nenhum local específico. Ape- sar de estarem presentes em todos os espaços, permanecem invisíveis para os demais segmentos sociais, uma vez que, como escreve Bourdieu (1997 p. 164) “os que não possuem capital são mantidos à distância, seja física, seja simbolicamente, dos bens socialmente mais raros e con- denados a estar ao lado das pessoas ou dos bens mais indesejáveis e menos raros” de modo que “a falta de capital intensifica a experiência da finitude: ela prende a um lugar”. A constatação da invisibilidade dessa população é um dos temas trabalhados no Centro Pop 1 que, por meio de atividades diversas, bus- ca integrar essa população. Neste sentido, o Centro Pop 1 define-se como um serviço ofertado para as pessoas adultas, idosas e famílias que utilizam as ruas como espaço de moradia ou sobrevivência, a fim de servir de referência aos usuários, possibilitar atendimento e atividades de convivência com vistas a oportunizar a esse segmento da população a possibilidade de repensar seus projetos de vida e permitir que, estes, se tornem protagonistas de sua própria história. É assegurado a essa população um acompanhamento especializado através de atividades di- recionadas ao desenvolvimento de sociabilidades e ao fortalecimento e/ou construção de novos vínculos interpessoais e/ou familiares. Dado o exposto, no presente texto buscamos demonstrar como as atividades coletivas desenvolvidas pela Equipe de Trabalho do Cen- tro de Referência Especializado para a População em Situação de Rua – Centro Pop 1 – favorecem ações que buscam legitimar o protagonismo 158 desses atores sociais em atividades que estão previstas e abertas para a participação da sociedade porto-alegrense, mas que no entanto discri- minam e excluem este público. O trabalho desenvolvido no Centro Pop 1 No Centro Pop 1 trabalha-se no intuito de contribuir para res- taurar e preservar a integridade e a autonomia da população em situa- ção de rua, operando-se conjuntamente com a rede de proteção social e demais políticas públicas, bem como o Sistema de Garantia de Direi- tos. Neste, incentiva-se a participação e mobilização social com vistas a desenvolver processos críticos de enfrentamento coletivo da situação vivenciada e, a partir disto, permitir a reinserção familiar e/ou comu- nitária dessa população. A metodologia de atendimento parte do reconhecimento da po- pulação em situação de rua como sujeitode direitos, em processo his- tórico, que necessita de uma ação pautada no estabelecimento de víncu- los, configurando o acolhimento. No Centro Pop 1, os usuários podem permanecer no espaço durante todo o horário de funcionamento e par- ticipar de atividades grupais, oficinas socioeducativas, de terapia ocu- pacional, de cultura, assembleias, oficina de vídeo, debate, entre outros. Trabalho este que desenvolve de forma interdisciplinar, onde, to- dos fazem a acolhida, o atendimento e o acompanhamento dos usuários. Pois, A interdisciplinaridade representa uma tentativa de interpretação global da existência humana; apresenta-se como remédio para a fragmentação das disciplinas deixadas pelas especialidades, porém com uma atitude que impede o estabelecimento da supremacia de certa ciência em detrimento de outras. No dia a dia ela se manifes- ta na integração e reciprocidade dos conhecimentos das diversas áreas e no esforço em reconstruir a unidade do paciente que nos apresenta fragilizado no seu corpo, nas suas relações pessoais e sociais, na sua emoção [...] ( FOSP, 1997, p. 23) Outros serviços oferecidos são as oficinas definidas conforme a necessidade do serviço, as quais, ocorrem nos turnos de atendimento 159 do Centro Pop 1. Neste sentido, busca-se a partir das demandas dos usuários, desenvolver atividades coletivas lúdicas e educativas que pro- blematizem a sua condição de vida e que possam oferecer a essa popu- lação subsídios que lhes permitam intervir em sua própria realidade. A finalidade é fortalecer a sua autonomia, sua inserção social e cultu- ral na cidade, para que se reconheçam enquanto sujeitos de direitos além de possibilitar o acesso aos espaços culturais da cidade de modo a ressignificar esses espaços e as relações institucionais que nestes se desenvolvem. A participação nas atividades desenvolvidas são formas de aco- lher que contribuem para que os usuários se sintam membros de um coletivo e fortaleçam seus vínculos de pertencimento. Representam ainda importante recurso para trocas de experiências, discussão so- bre as situações vivenciadas e apoio mútuo. Nessa direção as oficinas e atividades coletivas de convívio e socialização podem contribuir para a reflexão, a ampliação de conhecimentos, o desenvolvimento de ha- bilidades e potencialidades que facilitem e consolidem o processo de inserção social dessa população. A busca da visibilidade: um relato a partir de experiências A ideia das atividades externas parte da construção coletiva dos saberes da Equipe de Trabalho, junto com os usuários que participam das atividades, que são desenvolvidas ao longo do ano, de acordo com o perfil do público atendido. O almoço no Piquete foi lançado pelo ofi- cineiro de música e o Bloco Carnavalesco surgiu dos usuários a partir da apresentação do Bloco do Areal da Baronesa em uma das atividades da Semana da Consciência Negra. Neste sentido, aqui, busca-se trazer um breve relato das ativida- des que foram desenvolvidas pelo Centro Pop 1 com vistas a se colo- car em evidência a importância desse trabalho e o quão positivo essas iniciativas têm sido no seio dessa população e daqueles que, destas, participam. 160 Atividade Cultural da Semana Farroupilha Para a atividade na Semana Farroupilha, foi discutida na Reunião de Equipe a ideia de levar os usuários para almoçar num dos Piquetes visto que estes atores sociais são retirados do Parque Harmonia, local que utilizam como moradia ao longo do ano, para a montagem dos galpões. Foi feito contato com alguns Centros de Tradições Gaúchas, na figura dos Patrões que são os Presidentes destas Sociedades, que buscam divulgar as tradições e o folclore da cultura gaúcha e ao defi- nir-se o local, se estabeleceu uma data, comunicada aos usuários com antecedência, para melhor organização conforme interesse. A atividade realizada contou com a participação de todos os fun- cionários e usuários do Centro Pop 1 que, neste dia, desenvolveram suas atividades no turno da manhã. Foi feita uma organização com a Nutrição, pois todos os itens utilizados para o preparo e organização do almoço no Piquete foram os mesmos que seriam usados para a ela- boração do almoço no próprio Centro Pop. Essa organização prévia se fez necessária para que os alimentos estivessem adequados ao cardápio campeiro, como por exemplo, a carne bovina para o preparo do arroz de carreteiro. Uma parte da Equipe se deslocou para o Parque Harmonia com antecedência, levando o material para a organização das mesas como pratos e talheres. A funcionária da cozinha foi responsável pelo preparo da refeição, contando com o auxílio de colegas que se dispuseram a essa função. Pois, no momento da chegada dos usuários ao Piquete tudo deveria estar organizado e pronto para atendê-los. O transporte até o Parque Harmonia se deu com o veículo pró- prio do Centro Pop 1 e os usuários foram chegando em grupos, acom- panhados de funcionários da Equipe. Houve uma recepção feita pelo pessoal do Piquete, inclusive o Patrão. Quando o grupo estava com- pleto foi servido o almoço para todos os implicados na atividade, de uma forma integrada, onde usuários, membros da Equipe e membros do Piquete permaneceram em interação, sentados lado a lado, conver- sando e relatando fatos de suas vidas. Nesse momento, alguns usuá- rios verbalizaram experiências relacionadas à Cultura Tradicionalista https://pt.wikipedia.org/wiki/Tradi%C3%A7%C3%B5es https://pt.wikipedia.org/wiki/Folclore https://pt.wikipedia.org/wiki/Cultura https://pt.wikipedia.org/wiki/Ga%C3%BAcha 161 em suas vidas, pois são oriundos de cidades em que o tradicionalismo gaúcho é presente. Outros relataram suas experiências no trabalho em sítios e fazendas, locais muito ligados à vida campeira, principalmente em época de colheitas, como forma de conseguir renda. Após o almoço foi organizada uma roda de conversa onde o Pa- trão explicou a Cultura Tradicionalista, expôs sobre a Guerra dos Farrapos e sobre a importância da Semana Farroupilha, onde, há uma congregação entre os piquetes de diversas regiões como forma de ce- lebrar, cultuar e preservar estes costumes e tradições. Houve também abertura para que os presentes se colocassem e surgiram as mais diver- sas formas de manifestação através de relatos, de danças, de músicas e da declamação de poesias. Imagem 1 - Visita ao Piquete na Semana Farroupilha. O objetivo dessa atividade foi reverter a lógica mencionada por Bourdieu quando esse destaca que “a reunião num mesmo lugar de uma população homogênea na despossessão tem também como efeito redobrar a despossessão, principalmente em matéria de cultura e de prática cultural” (1997, p.166). 162 Destaca-se aqui, ainda, a possibilidade dada a estes usuários de se colocarem como protagonistas, valorizando suas vivências e abrindo espaço para que esses pudessem trocar experiências com outras pes- soas que estão para além de suas relações de convívio mais imediatas, sentindo-se pertencentes àquele espaço e cultura. Desta forma, eviden- cia-se o sujeito de direito, que neste momento encontra-se em situação de rua, o que não exclui seus saberes e potencialidades. Atividade Cultural Carnaval de Rua O Bloco Carnavalesco “Peregrinos do Samba” surgiu a partir de uma apresentação do Bloco Carnavalesco Areal da Baronesa, composto por pessoas que residem nas proximidades do Centro Pop 1, numa área denominada Quilombo do Areal da Baronesa. Durante os trabalhos da Semana da Consciência Negra de 2012, os usuários assistiram à apre- sentação deste Bloco, podendo interagir com seus integrantes, dançan- do, cantando e tocando na bateria. E, a partir dessa experiência, sugeriram a criação de um Bloco Carnavalesco do Centro Pop 1. A proposta foi acolhida pelo Oficineiro de Música que levou para a Reunião de Equipe, sendo aceita pelo grupo de trabalho de modo que, passamos a planejar como seria executada a criação de um Bloco Carnavalesco formado por usuários e funcionários e o modo comose daria a divulgação desta intenção nas atividades co- letivas realizadas no Centro Pop 1. Demonstrado interesse pelos usuários em dar seguimento ao Projeto, começamos a ensaiar músicas de Carnaval montando um re- pertório. Durante as Oficinas de Música alguns usuários passaram a ter orientações de como tocar os instrumentos necessários para a bate- ria, tanto dos Oficineiros, quanto de outros usuários que já tinham este conhecimento. Outros, que demonstravam aptidão ou interesse pelo canto, ensaiavam as letras das canções que buscávamos pela internet. Além disso, houve as Oficinas de confecção de adereços, fantasias e máscaras. Organizou-se, assim, um Desfile pelas calçadas do bairro, saindo da frente do Centro Pop 1, na rua Álvaro Alberto da Motta e Silva, 163 passando pela Avenida Getúlio Vargas e retornando pela Avenida Éri- co Veríssimo, contando com a atenção e participação de alguns tran- seuntes e abrindo os festejos de Momo de 2013, já que aconteceu na sexta-feira à tarde, antecedendo o feriado de Carnaval. Imagem 2 - Oficina de confecção de máscaras Imagem 3 - Desfile pelas ruas próximas ao Centro Pop 1 164 Para o ano de 2014, a organização foi diferente, pois com a re- percussão da atividade do ano anterior, fomos chamados pelo Gabinete da Fundação de Assistência Social e Cidadania – FASC – que havia sido convidada para levar um Bloco Carnavalesco para se apresentar no Carnaval de Rua da Cidade Baixa. Sabendo de nosso Projeto, su- geriram que o mesmo fosse ampliado, com a participação dos demais Serviços que atendem a população adulta em situação de rua e que demonstrassem interesse em compor esta parceria. Foi feito contato com os Serviços da Rede Própria e o grupo de trabalho foi formado pelo Centro Pop 1, Centro Pop 2, Abrigo Marlene e Abrigo Bom Jesus. Participamos de diversas reuniões que buscaram planejar e organizar a apresentação do Bloco e, no decorrer destas reu- niões, cada Serviço elencou sugestões de nomes para o Bloco. O nome escolhido através de votação com os usuários foi “Peregrinos do Samba”. Posterior a isto foi criado um logotipo que representasse a popu- lação adulta em situação de rua, que foi impresso em camisetas que ser- viram como parte das fantasias para a apresentação. Além disso, foram utilizados guarda-chuvas, símbolo da FASC, como adereços, estilizados pelos usuários do Abrigo Bom Jesus e máscaras confeccionadas pelos usuários do Centro Pop 1 e do Abrigo Marlene. O Centro Pop 2, pro- duziu o estandarte utilizado no desfile. Também foram realizados vários encontros entre os Serviços, visando à vinculação, a interação e a integração dos usuários dos di- ferentes Setores. Ensaiava-se o canto e o toque da bateria buscando uma harmonia entre esses elementos. Em alguns momentos, os ensaios eram reforçados pelo Bloco Carnavalesco do Areal da Baronesa que também compôs a apresentação. No dia 15 de março, todos se reuniram no Centro Pop 1, onde fo- ram distribuídos lanches, camisetas e adereços. Depois se deslocaram, alguns a pé e outros com os veículos dos Equipamentos para o Lar- go Zumbi dos Palmares, onde, os “Peregrinos do Samba” fizeram sua passagem à frente da comunidade que ali se encontrava para assistir o Bloco passar. 165 Imagem 4 - Apresentação do Bloco Peregrinos do Samba no Carnaval da Cidade Baixa Durante todo o processo, mas especialmente no dia da apresen- tação, os usuários demonstravam motivação e alegria por estarem in- seridos neste processo cultural da cidade, onde estão acostumados a circular de forma “invisível” como guardadores de carros ou catadores de latinhas. Neste sentido, como enfatiza Azevedo, tem-se que Nas sociedades desenvolvidas as alavancas mais eficientes de dis- tinção são as posses de capital econômico e de capital cultural. Logo, os sujeitos ocuparão espaços mais próximos quanto mais similar for a quantidade e a espécie de capitais que detiverem, 166 em contrapartida, os agentes estarão mais distantes no campo social quanto mais díspar for o volume e tipo de capitais. Assim, pode-se dizer que a riqueza econômica (capital econômico) e a cultura acumulada (capital cultural) geram internalizações de disposições (habitus) que diferenciam os espaços a serem ocupa- dos pelos homens (2003, sp.). Mais uma vez foi possível perceber a importância de criarmos ações que possibilitem o protagonismo desta população. Pois, dando visibilidade a estes atores sociais proporcionamos um sentimento de pertencimento ao espaço e à cultura que perpassa aquele território, mas que usualmente segrega este segmento social. Considerações Finais A segregação espacial é o resultado da exclusão social gerada pelo capitalismo periférico, que em muitas situações é agravado pelas políticas públicas do Estado, através de um modelo de gestão urba- na e programas insuficientes para atender as necessidades da maioria da população. Estes instrumentos promovem a segregação espacial e dificultam o acesso de alguns segmentos da população aos serviços e infraestrutura básicos, no caso das camadas sociais mais carentes. A expressão segregação pode ser empregada, aqui, no sentido de que há uma separação forçada e institucionalizada de um determina- do grupo por motivos étnicos, econômicos, culturais, espaciais etc. de modo que, dessa forma, a elite intelectualizada pensa a formatação do espaço urbano, produz suas residências, seus locais de lazer e trabalho, enfim toda a estrutura urbana, voltada principalmente para os seus in- teresses próprios. Pois, é fato, como escreve Bourdieu (1990, p. 74) que, As representações do mundo social assim constituídas, que clas- sificam a realidade e atribuem valores, no caso, ao espaço, à ci- dade, à rua, aos bairros, aos habitantes da urbe, não é neutra, nem reflexa ou puramente objetiva, mas implica atribuições de sentidos em consonância com relações sociais e de poder. 167 Razão essa pela qual a existência histórica da população em situ- ação de rua deve ser considerada na construção e nas discussões acerca da nossa sociedade, especificamente falando, na busca de uma socie- dade justa e de direitos. Pois, essa parcela da população vem sofrendo diretamente as consequências de um mundo globalizado, regido pelos princípios do referencial neoliberal, sendo assim excludente em todos os sentidos – econômico, político, cultural e social – de modo que, a ex- clusão social está dada e se faz presente, intrinsecamente, no modo de produção da vida social, nas relações de trabalho e entre pessoas, que cotidianamente vivemos . As reflexões de Bourdieu, neste sentido, contribuem para o en- tendimento deste processo de segregação sócio-espacial, em especial, quando este destaca que: A capacidade de dominar o espaço, sobretudo apropriando-se (material ou simbolicamente) de bens raros (públicos ou priva- dos) que se encontram distribuídos, depende do capital que se possui. O capital permite manter à distância as pessoas e as coi- sas indesejáveis ao mesmo tempo que aproximar-se de pessoas e coisas desejáveis [...] (1997, p. 163). Portanto, é necessário que a sociedade perceba que a população em situação de rua é formada por sujeitos sociais, dignos de respeito e que utilizam os espaços da rua como estratégia de sobrevivência, exis- tência e moradia. População esta, que reflete subjetivamente a lógi- ca perversa do sistema capitalista que produz e reproduz mecanismos para manter a concentração de renda, miséria, violência e desigualda- des, ou seja, a acumulação do capital. 168 Referências AZEVEDO, M. L. N. Espaço Social, Campo Social, Habitus e Concei- to de Classe Social em Pierre Bourdie. In Revista Espaço Acadêmi- co, Internet, 2003 – Disponível em // www.espacoacademico.com.br . Acesso em: 02/10/16 BOURDIEU, P. A Miséria do Mundo. Petrópolis: Vozes, 1997. ______. Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. FASC – Fundação de Assistência Social e Cidadania. Projeto Técnico Centro Pop. Porto Alegre, 2012. FOSP – FundaçãoOncocentro de São Paulo. Serviço Social em On- cologia. Comitê de Serviço Social em Oncologia. São Paulo, 1997. http://www.espacoacademico.com.br 169 UM OLHAR SOBRE O ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA EM PORTO ALEGRE lirene FinKler MAteuS FreitAS cundA cleber cAndido de deuS Introdução O presente texto apresenta algumas reflexões sobre a questão do acolhimento institucional a partir da perspectiva do Núcleo de Acolhi- mento da Proteção Social Especial/FASC. Esse núcleo é o responsável por gerenciar as solicitações de acolhimento institucional, recebendo e encaminhando estas demandas para as vagas da rede de acolhimento própria e conveniada, para todos os grupos etários. O texto está organizado inicialmente em uma breve contextuali- zação quanto à forma como está organizado o Núcleo de Acolhimento no contexto da Proteção Social Especial - PSE. A seguir, são apresen- tadas as modalidades de acolhimento institucional e serviços existen- tes em Porto Alegre, na perspectiva da população adulta em situação de rua. Por fim, é apresentada uma leitura das solicitações de acolhi- mento do ano de 2016, problematizando-se as duas principais funções do Núcleo de Acolhimento: reconhecer a demanda e gerenciar / arti- cular / matriciar os casos. No final de 2015 a FASC reestruturou sua área técnica, reunindo sob uma mesma coordenação de Proteção Social Especial - PSE os servi- ços de Média e Alta Complexidades. Mais do que uma reorganização de gestão, tal iniciativa teve como objetivo principal promover maior inte- gração técnica do acolhimento institucional com o conjunto dos serviços de Proteção Básica e Especial de Média Complexidade, já reordenados 170 desde 2010 em Porto Alegre. Assim, todo o sistema da Política de Assis- tência Social local, próprio e conveniado, é desafiado a se reorganizar de modo a incluir as especificidades do acolhimento institucional, com suas diversas modalidades e públicos atendidos, nos processos de trabalho e de gestão já constituídos na perspectiva do território. Tal reorganização sistêmica é atravessada por diversos fatores, um dos quais é o fato de que as unidades de acolhimento institucional não estão regionalizadas, acolhem demandas de toda a cidade, enquanto os demais serviços atuam a partir de um modo de gestão baseado no territó- rio. Os espaços de gestão constituídos territorialmente, tais como comi- tês gestores, reuniões de referência e contra-referência, reuniões de rede, micro-redes, fóruns regionais diversos, ainda não estão ajustados em seu formato para incorporar os tempos e ritmos dos serviços de acolhimento. Como forma de gestão da demanda, a PSE tem buscado organi- zar seus processos de trabalho na perspectiva de um Núcleo Porta de Entrada, composto por três equipes com atribuições interligadas: 1. Núcleo de Processos - responsável por acolher as demandas que che- gam da rede interinstitucional através de ofícios e processos diver- sos - MP, Juizados, Disque 100; 2. Central de Abordagem - responsável por receber, gerenciar e repas- sar para o Serviço de Abordagem Social dos CREAS as solicitações de abordagem advindas da comunidade e da rede de proteção; 3. Núcleo de Acolhimento - responsável por mediar as demandas para acolhimento institucional para os Serviços de Acolhimento Institu- cional próprios e conveniados. Ainda que o Núcleo Porta de Entrada trabalhe com todos os gru- pos etários, iremos focar no presente texto a gestão do Núcleo de Aco- lhimento relacionada à população adulta em situação de rua. A reestruturação da PSE repercutiu na proposta então vigen- te de Núcleo de Acolhimento. Instaurado com o Plano Municipal de Enfrentamento à Situação de Rua (PMPA, 2011), o Núcleo teria como 171 objetivo ser uma “central de recebimento, encaminhamento e monito- ramento das demandas de acolhimento institucional da rede de Prote- ção Especial de Alta Complexidade, de crianças, adolescentes, adultos e idosos”. O fomento à alimentação de fluxos contínuos de informação e interação entre os componentes da rede sócio-assistencial deve ser fortalecido pelo órgão gestor da Política de Assistência Social. Assim, compondo o modo de gestão da PSE, vislumbra-se que o Núcleo de Acolhimento agregue ao menos duas funções principais: reconhecimento das demandas de acolhimento institucional de toda a cidade, e gerenciamento / articulação / matriciamento dos proces- sos de trabalho relacionados ao ingresso na Alta Complexidade. Pois, tais funções tornam-se indispensáveis para a ampliação das relações de parceria e a constituição de uma rede articulada nos territórios, que possa favorecer a continuidade do plano de acompanhamento entre os níveis de proteção e entre diferentes políticas públicas. Uma ideia de núcleo, de central, remete exatamente a uma ideia de regulação da demanda. No entanto, mais que isso, o Núcleo de Aco- lhimento funciona como um meio por onde se reconhece a população em situação de rua na cidade. Por essa razão, sua função extrapola a distribuição da demanda e a articulação com a oferta dos serviços. Uma análise do que chega na Porta de Entrada da Proteção Social Especial revela diversas dimensões das necessidades das pessoas da rua, bem como da relação da cidade com elas. Por um lado, o que chega via Central de Abordagem tem a necessidade constante de diálogo com uma cidade que, em grande parcela, compreende que a pessoa em situação de rua deve ser retirada de seu olhar. De outro lado, a demanda que advém dos equipamentos de saúde, como Hospitais, Centros de Atenção Psi- cossocial - CAPS, Consultórios na Rua, revela uma população adoecida que não possui lugar nas redes de atendimento especializadas, tampouco ancora-se nas redes de apoio da rua. Para além, portanto, dos serviços destinados à população adulta dentro da Assistência Social, a demanda fala de uma cidade que tem dificuldades em acolher a loucura, os idosos, os portadores de necessidades especiais, as pessoas em situação de rua, as pessoas com o uso problemático de drogas, enfim, com a diferença em relação a um determinado modelo de vida esperada. 172 Acolhimento institucional Enquanto a rede de Alta Complexidade modificou-se e ampliou- -se significativamente nos últimos 20 anos em relação ao público de crianças e adolescentes, já buscando atender as orientações advindas da implantação do SUAS, o reordenamento e ampliação da rede adulta tem se mostrado mais lento. O crescimento do número de vagas de acolhimento institucional para adultos não acompanhou o aumento na população em situação de rua, além disso, o perfil das demandas modi- ficou-se: há mais famílias necessitando de acolhimento, há mais idosos (que não conseguem ingresso nas Instituições de Longa Permanên- cia conveniadas com a FASC devido aos critérios rigorosos de ingres- so), há mais pessoas com quadros bastante agravados de saúde física e mental necessitando acolhimento. A oferta de vagas nos serviços de Acolhimento Institucional, conforme a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (BRA- SIL, 2009), e de acordo com o recorte geracional e de necessidades especiais, está distribuída nos seguintes serviços tipificados: Crianças (Casa Lar, Abrigo Institucional e Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora); Adultos e Famílias (Abrigo Institucional, Casa de Passa- gem e Serviço de Acolhimento em República); Mulheres em situação de violência (Abrigo Institucional); Jovens e Adultos com deficiência (Resi- dência Inclusiva); Idoso (Casa Lar e Abrigo Institucional - Instituição de Longa Permanência para Idosos - ILPI). Além disso, a Tipificação prevê a possibilidade de Serviço de Acolhimento em Situações de Cala- midades Públicas ou Emergências. Dentro de tal Tipificação, Porto Alegre possui uma organização de serviços composta por serviços próprios e conveniados. Para crian- ças e adolescentes há um total de 832 vagas distribuídas em 21 Abrigos Residenciais e 46 Casas Lar para Criançase Adolescentes. Além disso existe convênio com 03 Abrigos Institucionais para Crianças e Ado- lescentes com deficiência (neurolesionados). Para a população adulta em situação de rua a rede existente oferece 227 vagas, através de 03 Abrigos Institucionais e 02 Repúblicas para Indivíduos Adultos; 02 Abrigos Institucionais para Famílias (um deles exclusivo para mulhe- 173 res e seus filhos); e, 02 Casas Lar para idosos com história de rua. Além disso, existe convênio com 04 Instituições de Longa Permanência para Idosos - ILPI. A cidade conta também com 03 Albergues, que oferecem 355 vagas de acolhimento noturno, e o Serviço de Hospedagem, ambos não tipificados. Há, por outro lado, lacunas na previsão dos serviços socioassistenciais, como a Residência Inclusiva e a Casa de Passagem. O Núcleo regula 227 vagas voltadas para pessoas adultas e famí- lias em situação de rua, distribuídas nas seguintes modalidades, descri- tas na Tabela 1: Tabela 1 - Vagas de Acolhimento Institucional para Adultos e Famílias1. Modalidade Serviço Gestão Vagas por Serviço Abrigo Institucional para Indivíduos Abrigo Municipal Marlene Própria 60 Abrigo Municipal Bom Jesus Própria 60 Abrigo Lar Emanuel - Feminino Conveniada 40 Abrigo Institucional para Famílias Casa Lilás Conveniada 10 famílias (até 30 pessoas) Abrigo de Famílias Própria 4 famílias (até 20 pessoas) Casa Lar para Idosos Casa Lar – Idoso (com história de rua) Conveniada 24 Serviço de Acolhimento em República República Junto Conveniada 24 Serviço de Hospedagem Pousada Maranata Contrato 5 diárias TOTAL 227 Fonte: Núcleo de Acolhimento - PSE/FASC. Conforme orientações do “Texto de orientação para o reordena- mento do serviço de acolhimento para a população adulta e famílias em 1 Não estão incluídas neste artigo a) vagas de ILPI - Instituições de Longa Perma- nência para Idosos, ainda que eventualmente sejam acolhidos idosos com histórico de rua; b) vagas em Albergue, pois o acesso é por demanda espontânea; c) vagas para crianças e adolescentes. 174 situação de rua” (BRASIL, 2014), os equipamentos de Alta Complexidade devem acolher “pessoas adultas ou grupo familiar com ou sem crianças, que se encontram em situação de rua e desabrigo por abandono, migração e ausência de residência ou ainda pessoas em trânsito e sem condições de autossustento” . O acolhimento deve ser provisório (prevê-se um tempo médio de 6 meses), em equipamento com características residenciais, in- serida na comunidade, que tenha um ambiente acolhedor e que respeite as condições de dignidade dos seus usuários. Ainda que nem todos os ser- viços existentes contemplem tais características na totalidade, é nessa di- reção que se pensa seu reordenamento e a implantação de novos serviços. O fato dos abrigos Marlene e AMBJ disporem de beliches delimita condições para que os usuários possam ser acolhidos. Uma parcela das pessoas não pode ser acolhida em cama superior nos beliches, pelo agra- vamento de saúde, pelo uso de medicações psicotrópicas e pela própria fragilização do corpo pelas vicissitudes da vivência na rua. Tal situação faz com que a condição de acessar uma cama superior ou inferior em um beliche tenha que ser levada em conta na definição de quem poderá ocu- par determinada vaga. Da mesma forma, o acesso à República pressupõe alguma renda, pois a alimentação é cotizada entre os moradores, e o aco- lhimento na modalidade Hospedagem também tem como critério uma maior independência e transitoriedade na necessidade de acolhimento. Assim, além dos projetos técnicos que diferenciam e especificam carac- terísticas de cada um dos serviços, há as situações concretas vividas por cada serviço que precisam ser levadas em consideração. Reconhecimento da demanda O processo de gerenciamento das vagas de acolhimento para adultos tem acontecido a partir de discussões semanais por equipe multidisciplinar, a partir de instrumentos como formulário e planilha de registro das solicitações. A equipe tem buscado constituir critérios para ingresso que envolvam discussão prévia dos casos, e que consi- derem a relevância do acompanhamento técnico por serviços da assis- tência social. Nesse cotidiano, percebe-se que a situação de rua por si só não se constitui como um critério para o acolhimento, pois são con- 175 siderados outros fatores relacionados aos agravos de saúde, tratamen- tos em dependência química, a condição de gestante, dentre outros, na priorização dos indivíduos para as vagas. De janeiro a outubro de 2016 o Núcleo de Acolhimento recebeu 508 solicitações para acolhimento de adultos, idosos e famílias. Desse total, 166 referem-se a solicitações para ILPI, e não serão detalhadas neste texto. Entretanto, deve-se registrar que 04 idosos desse grupo foram acolhidos em Abrigo Institucional para Indivíduos nesse perío- do. Além disso, 06 solicitações demandaram Residencial Terapêutico, serviço da Política de Saúde Mental, e foram negadas, pela impossibili- dade de acolhimento. As demais 336 solicitações referem-se a pessoas em situação de rua, e estão detalhadas na Tabela 2: Tabela 2 - Solicitações de acolhimento 2016. Modalidade de acolhimento Modalidade de Vaga Total de Solicitações Acolhidas Canceladas Demanda Reprimida Abrigo Institucional para Indivíduos* Cama superior- masculina 141 60 60 21 Cama inferior - masculina 39 17 10 12 Cama superior - feminina 40 20 19 1 Cama inferior - feminina 12 3 8 1 Abrigo Institucional para Famílias Casais e filhos 18 4 10 4 Homem e filhos 2 1 1 0 Mulher e filhos 39 16 23 0 Serviço de Acolhimento em República Masculina 30 13 16 1 Feminina 4 3 1 0 Serviço de Hospedagem Masculino 7 7 0 0 Feminino 4 3 1 0 TOTAL 336 147 149 40 Fonte: Núcleo de Acolhimento - PSE/FASC. Dados de Janeiro a Outubro 2016. * Cama superior e inferior referem-se a beliches, tipo de cama disponível nos abrigos para indivíduos. 176 A partir da Tabela 2 percebe-se que 43,7% (n=147) das solicita- ções foram acolhidas em algum dos serviços da rede; 44,3% (n=149) foram canceladas, suspensas ou negadas, ou seja, após tempo de espera, quando a vaga foi disponibilizada, o serviço solicitante informou não ser mais necessário o acolhimento, por motivos que serão discutidos a seguir; e 12% (n=40) estão em lista de espera aguardando acolhimento, caracterizando demanda reprimida. Em relação à origem das 336 demandas para acolhimento de pes- soas em situação de rua, identifica-se que 56,5% (n=190) das solicita- ções foram realizadas por serviços da Política de Assistência Social; 40% (n=134) por serviços da Política de Saúde; e 3,5% (n=12) por ou- tros Serviços do Sistema de Garantia de Direitos (Secretaria Municipal de Direitos Humanos, Conselho Tutelar e FASE). Percebe-se o grande volume de solicitações de acolhimento advindas da Política de Saúde (40% do total), sendo que 60% destas originam-se especificamente de Serviços de Saúde Mental. As demandas advindas dos serviços de saúde nos falam de uma população extremamente adoecida. A vivência na rua expõe a popula- ção a diversas doenças, favorece sua cronificação, dificulta a continui- dade dos tratamentos. Muitas altas hospitalares recomendam que os cuidados sejam continuados “em casa”, mas como fazer com quem não tem casa? Além disso, a população em situação de rua está submetida a um contexto de maior violência urbana, que deixa marcas concretas no corpo. As questões de saúde mental e o uso problemático de drogas se somam aos demais problemas de saúde. O fato é que o processo de Reforma Psiquiátrica trouxe para as ruas, e para a convivência com a sociedade, uma população que permanecia oculta. Uma vez que a implantação dos serviços substitutivos encontra-se muito aquém das necessidades da população, os reflexos disso impactam a Política de Assistência Social. Aos novos loucos foram impostas novas formas de institucionalização: nas internações sequenciais de 21 dias, nas comu- nidades terapêuticas,no acolhimento institucional. E, neste sentido, constata-se que os “loucos de rua”, muitas vezes sem nome e sem pas- sado conhecido, não se encaixam nos critérios de ingresso para o Ser- 177 viço Residencial Terapêutico (vinculado à Política de Saúde), serviço substitutivo ao modelo manicomial e asilar. Dessa forma, percebe-se que um pouco da lógica manicomial foi deslocada para os abrigos da Política de Assistência. A centralização de situações de saúde mental graves e persistentes nos serviços de acolhimento modifica seu coti- diano, desafia os profissionais que ali trabalham e inviabiliza a transi- toriedade do acolhimento. Estas situações, em particular, mostram-se extremamente complexas, pois acaba por reproduzir-se nos espaços de acolhimento institucional “imagens” e um contexto semelhante ao manicomial, que tanto se busca superar. Neste sentido, tem-se que o Núcleo de Acolhimento tem busca- do estimular a articulação prévia de serviços de saúde e assistência, e trabalhar para que o acolhimento seja apenas uma etapa de um plano de acompanhamento constituído não somente com o usuário, mas de forma conjunta por uma rede articulada de serviços vinculados aos territórios. Ainda não é assim, pois por vezes o pedido de acolhimento surge como uma solução emergencial, para casos não acompanhados, e sem uma verdadeira clareza do serviço solicitante quanto aos limites e potências da proteção social oferecida no acolhimento institucional. Devido à demora até o surgimento de vagas de acolhimento, mui- tos dos indivíduos não serão acolhidos, pois até a disponibilização das vagas outras alternativas serão encontradas ou mesmo os indivíduos não estarão mais em acompanhamento pelas equipes demandantes, si- tuações essas podem levar ao registro de cancelamento da solicitação como verificado em 44% das solicitações (n=149). Assim, a ideia de “demanda reprimida” não pode considerar somente os 12% (n=40) que aguardam vaga, mas também uma parcela dos cancelamentos. Uma vez que, por vezes, o “momento oportuno” se perdeu. Tendo em vista o fato de que há uma demanda por acolhimento muito maior do que as vagas que são disponibilizadas, é constantemen- te necessário que as equipes que acompanham indivíduos ou famílias em situação de rua que aguardam vagas de acolhimento constituam planos alternativos de acompanhamento no contexto da rua. Pois, há diversas situações em que, como forma de proteção, recorre-se ao que podemos chamar de “circuito de espera”. Nesses casos os indivíduos ou 178 famílias que aguardam vaga de acolhimento acessam, durante o dia, os Centros Pop e, à noite, os albergues. Esse formato apresenta suas pró- prias dificuldades, relacionadas tanto à descontinuidade no horário de abertura e fechamento dos serviços, quanto à condição de deslocamen- to e alimentação dos usuários. Em algumas situações mais agravadas, especialmente, quando envolve famílias com crianças muito pequenas, migrantes e pessoas com transtornos mentais mais graves, o que faz com que as equipes organizem toda uma logística de deslocamentos, o que implica em disponibilização de educador e articulação com veí- culos que prestam serviços às unidades. Nesses casos, a proteção em tempo integral, ordinariamente prevista para ocorrer no contexto do acolhimento institucional, acaba por ser “articulada” no contexto de serviços de média e alta complexidade. E, esse “circuito de espera” aca- ba por ter que ser sustentado por semanas, e mostra-se muitas vezes iatrogênico, sobrecarregando as equipes e promovendo uma forma de proteção ambígua e contraditória. Gerenciamento / Articulação / Matriciamento Como potencializar o intercâmbio entre as experiências vividas por diferentes equipes no trabalho com um mesmo usuário, em dife- rentes momentos de sua vida e a partir de diferentes níveis de proteção social? É com essa questão de fundo que a PSE passou a discutir os formatos de gerenciamento / articulação / matriciamento. A implementação do SUAS apoia-se também em experiências já viven- ciadas no contexto do SUS. Inspirados no modelo de apoio matricial (CAMPOS, 1999; CHIAVERINI, 2011) que tem sido o norteador de experiências de articulação e cuidado colaborativo em saúde mental de modo que, visualizou-se para o Núcleo de Acolhimento uma função se- melhante, mas adaptada ao contexto da Política de Assistência Social. Distintos são os serviços e as equipes que solicitam vagas de acolhimento, assim como são diversificados os entendimentos e as concepções que levam à essas solicitações. O apoio matricial proposto neste contexto objetiva assegurar espaços de discussão de caso entre as equipes que solicitam vagas de acolhimento e as equipes que irão 179 acolher o caso. Pretende oferecer suporte técnico-pedagógico às equi- pes de referência para, a partir da discussão conjunta do caso, construir alternativas de intervenção e de encaminhamentos que favoreçam o plano de acompanhamento durante o acolhimento institucional ou que potencializem as formas de proteção na impossibilidade do acolhimen- to a curto prazo. “Apoio matricial e equipe de referência são, ao mesmo tempo, ar- ranjos organizacionais e uma metodologia para a gestão do trabalho” (CAMPOS; DOMITTI, 2007, p. 400), que objetiva ampliar as possibi- lidades de diálogo entre diferentes especialidades, profissões e até mes- mo níveis de cuidado e/ou atenção. O lugar do Núcleo de Acolhimento é entre equipes, potencializando essa passagem e o reconhecimento das diferenças nos processos de trabalho, nas realidades dos serviços da rua e nos serviços de acolhimento institucional. Há um processo de mediação que é favorecido pela existência de uma equipe colocada em um lugar “neutro” ou “intermediário” que favorece o reconhecimento das diferenças entre o trabalho realizado pelas equipes. Esta metodologia de trabalho possibilita que profissionais das equipes de referência, tanto solicitante, quando do serviço de acolhimen- to pretendido, e apoiadores matriciais (equipe do Núcleo de Acolhimen- to) mantenham uma relação horizontal, e não apenas vertical como na tradição dos sistemas. Trata-se de uma tentativa de atenuar a rigidez dos sistemas quando planejados de maneira muito estrita segundo as diretrizes clássicas de hierarquização e regionalização. Entre outros ar- ranjos, também o apoio matricial pode ser relevante para racionalizar o acesso e o uso de recursos especializados (acolhimento institucional) e ainda, alterar a ordenação sequencial do sistema (básica, média e alta complexidade), intervenções relacionadas à política de saúde ou outras articulações interinstitucionais que possam ser relevantes. Pretende-se que a equipe do Núcleo de Acolhimento possa, a par- tir da experiência de gerenciamento de casos de acolhimento institu- cional, constituir saberes e práticas relevantes para agregar recursos e mesmo contribuir com intervenções que aumentem a capacidade de resolver problemas da equipe primariamente responsável pelo caso. Nesse processo, é importante identificar as necessidades, demandas, 180 vulnerabilidades e potencialidades mais relevantes de quem busca aju- da, seja do caso, seja da equipe em si. Pois, “valorizar as potencialidades permite a ativação de recursos terapêuticos que deslocam respostas estereotipadas, favorecendo a emergência de novos territórios existen- ciais e a reconfiguração daqueles já vigentes” (BRASIL, 2013, p. 56). O apoio matricial procura, assim, construir e ativar um espaço para comunicação ativa e para o compartilhamento de conhecimento entre profissionais. Salienta-se que a ação proposta é “inspirada” no modelo do apoio matricial, uma vez que enfatiza a troca de conhecimento e de orientações entre equipes e Núcleo. E, neste sentido, há de se considerar que múltiplas são as expres- sões da questão social vivenciadas por essa população de modo que, espera-se, através do modelo proposto, constituir, cada vez mais, uma maior articulação entre os serviçosque atuam com a população em situação de rua. O Núcleo de Acolhimento propõe-se a ser parte dessa construção de modo que uma reflexão conjunta quanto ao lugar da Alta Complexidade no Sistema Único de Assistência Social, e os novos “lugares” que lhe são destinados no imaginário social mostra-se ne- cessária e, precisa, também, dos olhares e atenções de todos os níveis de proteção social. Pois, somente isso, possibilitará uma maior apro- priação coletiva da demanda existente, co-responsabilização essa, em relação ao acompanhamento no contexto da rua, algo que, acaba por desmistificar a ideia de que o acolhimento institucional é uma forma de “solução” para a situação de rua. 181 Referências BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Tipificação de Serviços Socioassistenciais. Brasília, DF, 2009. BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Texto de orientação para o reordenamento do serviço de acolhi- mento para a população adulta e famílias em situação de rua. Bra- sília, DF, 2014. BRASIL, Ministério da Saúde. Saúde Mental. Cadernos de Atenção Básica, Nº 34. Brasília: Ministério da Saúde, 2013. CAMPOS, G. W. S. Equipes de referência e apoio especializado matri- cial: uma proposta de reorganização do trabalho em saúde. Ciência e Saúde Coletiva, n. 4, pp. 393-404, 1999. CAMPOS, G. W. S.; DOMITTI, A. C. Apoio matricial e equipe de re- ferência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cadernos de Saúde Pública, v. 23, n. 2, pp. 399-407, 2007. CHIAVERINI, D. H. (Org.). Guia prático de matriciamento em saú- de mental. Centro de Estudo e Pesquisa em Saúde Coletiva. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2011. PMPA. Plano Municipal de Enfrentamento à Situação de Rua. Porto Alegre, 2011. 183 “A LUTA É CONSTANTE”: DO MOVIMENTO AQUARELA DA POPULAÇÃO DE RUA AO MOVIMENTO NACIONAL DA POPULAÇÃO DE RUA DO RIO GRANDE DO SUL richArd de cAMPoS edSon de cAMPoS cArloS henrique dA SilvA joSé luiz StrAubichen AlexAndre PortuGuez cícero Adão GoMeS veridiAnA FAriAS MAchAdo MArGArete vieirA Nas intempéries do tempo, no sol e na chuva, acredita na luta, diz que a briga é sua!. Kalunga Quilombola Introdução O trabalho aqui proposto visa divulgar, contar a história, dar im- portância à trajetória de organização política do Movimento Nacional das Pessoas em Situação de Rua (PSR) no Rio Grande do Sul, (MNPR). Movimento esse que milita, luta e reivindica direitos humanos, melhor acesso às políticas públicas e o direito ao uso democrático dos territó- rios nas cidades por onde se organiza. Pretende também se ocupar das relações políticas que o movi- mento tem construído com pessoas apoiadoras, sindicatos, trabalha- dores e outros, origem do nascimento dessa organização no RS. Vem dizer do caráter de luta que tem tomado, ao longo desses anos, das potencias, das conquistas, dos avanços e das dificuldades, assim como, da construção da sua identidade, da busca por autonomia desse público para falar com sua própria voz. 184 Para tanto, esse texto foi construído a partir de encontros sema- nais entre alguns militantes do movimento e apoiadores que caminham juntos, já há alguns anos, ombro a ombro, nessa construção. Nesses encontros, um grupo de pessoas com trajetória ou em situação de rua teve participação ativa na escolha dos títulos, dos itens a serem tratados, do conteúdo e de sua revisão, a partir das suas vi- vências e memórias da história do movimento de modo que, este texto segue alinhado com trabalho em conjunto, que a organização política das PSR, no espaço e tempo que configuram o movimento no RS, tem buscado se constituir. O Censo das Pessoas em Situação de Rua em Porto Alegre no ano de 2016 e a relação com o MNPR do RS Através da parceria com a Fundação de Assistência Social e Ci- dadania e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, hoje acontece uma nova pesquisa sobre a população em situação de rua na capital do RS. Militantes do MNPR, pessoas que estão ou já estiveram em situa- ção de rua, participam como facilitadores do censo, da contagem desse público na cidade. Colaboram, dessa forma, com a facilitação do vín- culo nas aproximações entre pesquisadores, trabalhadores, estudantes, professores e pessoas as quais se destinam a pesquisa, já que possuem a experiência sobre tal realidade, a partir das suas próprias vivências nos territórios. Os facilitadores recebem remuneração por isso, ação que torna possível uma fonte de renda e de valorização do saber desses indivíduos, estimulando o sentimento de pertencimento e de inclusão dos atores em questão. Essa participação, de tais militantes na pesquisa, é fruto também da ocupação feita pelo movimento de algumas instâncias institucionais, das reivindicações junto aos gestores no Comitê Municipal de Acom- panhamento e de Monitoramento das Políticas para as PSR, conquista também feita pelos militantes e seus apoiadores, ao tensionarem para que o prefeito José Fortunati pedisse o aceite à Política Nacional para a População em Situação de Rua em 2014. Política essa que foi instituí- da através da luta do MNPR em nível nacional e assinada através do 185 decreto 7053/2009, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, possibilitando, assim, a formação dos CIAMPsRUA, os Comitês In- tersetoriais de Acompanhamento e Monitoramento das Políticas para as PSR, tanto em nível Nacional, quanto nas instâncias estaduais e municipais. Hoje, existem dois comitês instituídos no RS, um em Porto Alegre e outro Estadual e foi o movimento que reivindicou e participou da formulação dos mesmos. Cabe ressaltar que esses comitês cumprem um papel de contro- le social, já que legitimam a participação paritária de militantes do movimento, de representantes de entidades que o apoiam, escolhidos por eles, com a participação intersetorial de representantes de diver- sas secretarias, municipal ou estadual, pela parte dos governos. Nessas instâncias, em reuniões mensais, são discutidas, encaminhadas e soli- citadas providências aos gestores, relacionadas às pautas pertinentes aos interesses comuns das PSR que, geralmente chegam às reuniões semanais do movimento como forma de reivindicações, representan- do, assim, parte desse público. Também chegam através de demandas trazidas nas reuniões de base nas cidades onde o movimento tem se organizado e, nesse caso, são levadas para o comitê estadual. As PSR, militantes do MNPR do RS, entendem e consideram que as pesquisas qualitativas e quantitativas, feitas para saber quem são e qual o número aproximado de pessoas que vivem em situação de rua nas cidades, podem ser relevantes para a construção de políticas públi- cas mais eficazes ao acolhimento e acompanhamento desse público nos serviços. Também podem servir como um instrumento de diálogo com a população e com os governos, trazendo tão necessária visibilidade sobre os modos diferenciados de vida, os direitos, as singularidades, a importância da equidade e sobre a não criminalização dos indivíduos pela sua própria condição de extrema pobreza, que é preciso existir a fim de se aproximar dessa parcela da população. Neste sentido, quanto mais fidedignas à realidade dessas pessoas tais pesquisam forem, melhores indicadores e subsídios terão os repre- sentantes do movimento social, para fazer suas reivindicações. Há que se chamar atenção, também, para a inexistência da contagem dessas pessoas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, 186 em âmbito nacional, o que torna mais relevante ainda os censos regio- nais. São esses os motivos pelos quais os militantes participantes dessa pesquisa resolveram compor a mesma. O ano de 2008 e o nascimento do Movimento Aquarela da População em Situação de Rua O ano de 2008 foi um tempo de extrema austeridade para quem vivia a Situação de Rua em Porto Alegre. Chegavam relatos bastante graves de pessoas atendidas pelos trabalhadores da Casa de Convivên-cia, espaço da Fundação de Assistência Social e Cidadania. Traziam denúncias sobre violência, torturas e diversas violações de direitos hu- manos, praticadas, principalmente, por agentes do próprio poder públi- co, especialmente, agentes da segurança pública, contra as pessoas em situação de rua na cidade. Os serviços da assistência social para a população adulta ainda não se constituíam conforme preconiza o Sistema Único de Assistência So- cial, o SUAS. Não existiam os Centros Pop, nem os Centros de Referência Especializados de Assistência Social, os CREAS e outros como existem hoje. Já havia os dois abrigos e os três albergues para acolhimento desse público. E, o serviço de Atendimento Social de Rua era feito pela mesma equipe que atendia a Casa de Convivência, pela manhã, e saia à tarde para fazer as aproximações e acompanhamentos nas ruas, as chamadas: “abordagens” sociais. Existia uma forte concepção higienista, tanto por parte do Município quanto por parte do Estado, de governos que tinham muita afinidade em “orquestrar” metodologias bastante agressivas no tratamento ao público atendido na Casa de Convivência, que tinha ende- reço na Rua João Alfredo, no bairro Cidade Baixa. Nesse sentido, não forma poucas as vezes que os trabalhadores do local se deparavam com pessoas atendidas que haviam sido bastante machucadas, por terem sofrido agressões na noite anterior, por esses agentes da segurança pública. Outras violações e violências diversas chamavam atenção para a necessidade de se fazer algo que pudesse enfrentá-las. Elas, inclusive, eram postas em prática por secretarias do próprio município como a do meio ambiente, da guarda municipal, da 187 própria FASC, principalmente, através de cargos de confiança e do de- partamento de limpeza urbana. Aqui estamos falando da cidade como se estabelece através das suas diversas dinâmicas e produção de exclu- são, de violência e de desigualdades: Afora a ordem comercial que orienta a conquista do espaço a par- tir da circulação, os elementos que compõem uma ordem subver- siva com práticas não previstas pelo Estado expressam a tensão dos lugares na cidade. A multiplicidade de sujeitos e atividades que se cruzam apresenta práticas localizadas para além do impe- rativo da circulação. Trata-se de atividades não contidas, não pla- nejadas, como as dos camelôs que se espalham pela cidade; as dos vendedores de vales-transportes, a dos hippies com seus produtos artesanais; a dos artistas de rua; dos traficantes; das prostitutas, dos michês, dos guardadores de carros, dos “pedintes” em portas de restaurantes. Sujeitos e atividades que permanecem nos inters- tícios, nas sombras, na penumbra entre os bicos de luz, tolerados sob a condição de ameaça constante da intervenção estatal e da violência legitimada (LEMÕES, 2013, p. 109). A época, por isso e por outras questões, também trazia uma con- juntura difícil para aquela equipe da Casa de Convivência e Atendi- mento Social de Rua. Muitos atravessamentos se intensificavam em consequência das mudanças na concepção de governo no município, em relação ao tratamento com as PSR e com a forma como se constituía o processo de trabalho da equipe. Isso teve consequências drásticas para o andamento do trabalho, para os funcionários e para o público aten- dido. Os trabalhadores municipais haviam recomeçado a luta sindical em 2006 e retomado o Sindicato dos Municipários de Porto Alegre, o SIMPA, como instrumento de sua organização política. No serviço em questão, eram realizados grupos de acolhimento coletivos e assembleias, espaços onde a população atendida podia ser escutada em suas queixas, sugestões e questionamentos, assim como, a própria equipe podia falar das suas dificuldades, do que era possível mudar, dos seus limites, enquanto serviço de atendimento e de outros assuntos mais gerais. Na verdade, era de política mesmo que aqueles espaços tratavam. 188 A Casa de Convivência foi precursora do Centro Pop, serviço do Sistema Único de Assistência Social, que traz como um dos objetivos o estímulo à participação política das pessoas atendidas. A tipificação desse serviço caracteriza o Centro Pop como espaço de referência fundamen- tal ao convívio salutar e grupal, imprescindível ao desenvolvimento de vínculos de solidariedade, respeito, afeto e autonomia. Nesse sentido, o Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua, deve promover as condições necessárias para o alcance da autonomia e estimular a orga- nização, a mobilização e a participação social (BRASIL, 2014). Dito isto e diante de todas as violações de direitos humanos e violências diversas contra as pessoas atendidas na Casa de Convivên- cia, surge em uma das assembleias semanais, entre as pessoas e a equi- pe, a ideia de fortalecimento de um coletivo. Naquele momento, cria-se uma comissão de cinco pessoas, entre PSR e trabalhadores, que foram até o SIMPA, solicitar apoio para esse fortalecimento e o espaço do sin- dicato para reuniões semanais do coletivo. Entendia-se a importância de uma distância maior da organização política do coletivo em relação ao próprio serviço. O apoio é dado pelo SIMPA e as reuniões semanais passam a acontecer naquele sindicato, que também se situa na Rua João Alfredo, portanto, essa região se refere a uma das regiões mais centrais de Porto Alegre, onde o coletivo formado começa a atuar. A Construção da identidade A partir dessa etapa concluída, o grupo se depara com a neces- sidade da construção de uma identidade, de um nome para o coletivo. Em uma das primeiras reuniões no sindicato uma das pautas é essa. No final do debate, as PSR que ali se encontravam, decidem que trariam para a próxima reunião, as ideias de nomes a darem para o que já havia ficado decidido que seria um movimento, uma organização política de caráter reivindicatório, apoiado por pessoas e entidades que quisessem somar na luta. Dessa forma, na reunião seguinte houve uma votação, seis nomes foram levados e um deles foi escolhido para identificar o coletivo. Um dos militantes da época, chamado Sérgio Carvalho Bor- ges, levou o nome: Aquarela da População de Rua. Justificou a deno- 189 minação pela diversidade que existe entre as pessoas em situação de rua e que isso além de, simbolicamente, ter relação com cores, no caso, por isso uma aquarela, ainda lembrava algo que pudesse trazer alegria quando falasse no movimento, diferente do olhar “sombrio” que a so- ciedade costuma ter em relação a esse público. Foi essa justificativa que fez com que fosse escolhido o nome pelos demais na reunião. Dado o nome, decidiram construir símbolos: bandeiras e cores para a construção dessa identidade. A bandeira também foi feita, a di- versas mãos, no espaço de oficina de arte na Casa de Convivência. Ela era parecida com a bandeira do Brasil, foi costurada por uma militante e desenhada por outro, várias mãos foram marcadas nela para sim- bolizar o coletivo. O pano para fazer a bandeira foi comprado através da coletivização financeira pelo grupo e arrecadado em uma caixinha. Todas essas etapas foram extremamente significativas e constituíram algo novo como possibilidade de potência, de protagonismo, de perten- cimento e de luta coletiva, que nascia naquele momento. Pois, Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opres- sor, e se engajam na luta organizada por sua libertação, come- çam a crer em si mesmos, superando, assim, sua “convivência” com o regime opressor. Se esta descoberta não pode ser feita em nível puramente intelectual, mas da ação, o que nos parece fundamental é que esta não se cinja a mero ativismo, mas este- ja associada a sério empenho de reflexão, para que seja práxis (FREIRE, 2013, p. 72). Alguns trabalhadores da Casa de Convivência continuaram no apoio à organização política das pessoas atendidas, até a transformação daquele serviço em outro. Muitas pessoas saíram da equipe, outras en- traram e o serviço mudou de local. Estagiários de serviçosocial, de psi- cologia e de outros campos, assim como, oficineiros, monitores, técnicos e outros, inseridos na política de assistência social, também sempre foram bastante importantes nesse apoio. Por outro lado, ainda persiste muita resistência da maioria das equipes, em considerar a importância da orga- nização política das pessoas atendidas no acolhimento institucional. Isso tem sido ponto constante de discussão nas reuniões do movimento, pois, 190 muitas vezes, a impressão que quem se organiza tem, é a de que muitos trabalhadores ainda veem o movimento como uma possível ameaça, já que dentre uma das funções do mesmo, está a de criticar os processos de trabalho quando não estão satisfatórios, a partir da opinião de quem acessa os mesmos. É, porque, é consciência crítica sobre o mundo que os cerca que tais militantes desenvolvem quando passam a pensar suas rea- lidades. Isso pode trazer certa desacomodação, mas, esta deveria servir para reflexões sobre que tipo de serviço está se prestando ao público que se atende e qual o papel desse trabalhador. Agora, fato é que as intervenções feitas, não tem se resumido somente às críticas e, sim, tem sido transformadas em luta por melho- rias pelo movimento. É importante dizer que quando se realizam as conquistas, geralmente, vão favorecer à população atendida e aos tra- balhadores também, pois, elas são, na sua maioria, de interesse comum a todos. Isso se dá para além dos trabalhadores e dos serviços, porque é mais amplo, é de políticas públicas de direito a que se refere, é de direito à vida e ao bem estar das pessoas. E, dessa forma, envolvem outros ato- res como governos e a própria sociedade, na visibilidade e na disputa que o movimento tem dado e tem feito pelo uso democrático dos ter- ritórios, pela inclusão e qualificação nos/dos serviços, por direitos hu- manos fundamentais e por outras tantas pautas relevantes nas cidades onde se organiza. Sobre isso, Paulo Freire em Pedagogia da Esperança disse: “precisamos da esperança crítica, como o peixe necessita da água despoluída” (FREIRE, 2011, p. 15). Um pouco das relações políticas com outros movimentos, organizações, as descobertas nacionais e o nascimento do Movimento Nacional da População de Rua no RS O Movimento Aquarela da População de Rua - MAPR foi lan- çado no largo Zumbi dos Palmares, em um ato público, no dia 15 de agosto de 2008. Sua bandeira já estava pronta, foi hasteada, foram fei- tos cartazes e diálogo com a população que passava através do carro de som do SIMPA. Houve um momento cultural ensaiado na oficina de música da Casa de Convivência e apresentado lá. 191 Após essa etapa, o coletivo começa a pensar sua relação com outros movimentos sociais. Na época, estava para ser votado na câmara de verea- dores um projeto de lei de autoria do vereador Sebastião Melo, do PMDB, que proibiria os veículos de tração animal de circularem pelas ruas da cidade e estavam aventando a possibilidade de estender a proibição aos chamados carrinheiros, pessoas que utilizam carrinhos para coletar mate- riais recicláveis para a venda. Muitas pessoas em situação de rua exercem essa atividade como forma de prover seus sustentos. Dessa forma, os mi- litantes resolveram chamar representantes do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, o MNCR, para discutir melhor esse assunto e ver o que seria possível fazer juntos, a fim de resistir. Houve um seminário entre os militantes dos dois movimentos onde foi discutido sobre isso, também foi falado dos megaeventos: a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas, que o Brasil seria país sede e as possíveis consequências dos mesmos para as pessoas em situação de rua. Nessa interlocução, com o MNCR, descobriu-se que existia um Movimento Nacional das Pessoas em Situação de Rua, que já estava or- ganizado em alguns estados do Brasil. Havia começado a se constituir na região sudeste, em função do que ficou famoso e conhecido como Massacre da Sé, em 2004, na cidade de São Paulo1. Esse crime até hoje se encontra impune. Os representantes dos catadores passaram os con- tatos de pessoas envolvidas com esse movimento nacional e começou a articulação do Movimento Aquarela com pessoas em situação de rua e apoiadores de Belo Horizonte, Curitiba e depois com outros estados. Alguns encontros de representantes do movimento Aquarela começaram a acontecer entre os estados e um primeiro seminário da região sul foi organizado pelos militantes e apoiadores em Curitiba. Houve certo estranhamento em relação ao nome Movimento Aquarela da População de Rua com essa descoberta, mas, isso não chegou a ser problema. Na verdade, as dificuldades começaram a aparecer quando os militantes do Rio Grande do Sul descobrem que o movimento na- cional tinha na sua metodologia representativa a figura de um coor- denador nacional. Aqui, o movimento não funcionava assim, pois, as 1 O episódio se deu quando um grupo de quinze pessoas em situação de rua, que naquela praça dormia, foi brutalmente atacado por policiais que formavam uma milícia e sete dessas pessoas haviam morrido, pelo simples fato de estarem dormindo na rua. 192 tarefas eram distribuídas, eram feitas de forma mais coletiva, a fim de que todos e todas pudessem exercer suas potencialidades. Acontece que, em todos os encontros e tarefas nacionais, era sempre exigido que cada estado indicasse o coordenador para ir. Dessa forma, o movimento Aquarela da População de Rua vota e indica o militante Sérgio Carva- lho Borges para essas tarefas. O mesmo foi representante de 2008 até 2010 e a experiência, as consequências oriundas de dificuldades que esse modelo trouxe e outras fragilidades fazem com que o movimento se desarticule totalmente, deixando de atuar por dois anos. A retomada Durante esse tempo que o movimento se desarticulou, pode-se perceber a importância que os dois anos de luta e início da organiza- ção tiveram, pelo fato da cobrança que muitas das próprias pessoas em situação de rua faziam para que o movimento fosse retomado. Final- mente pelo esforço de um militante e duas apoiadoras, em agosto de 2013, o movimento retoma suas atividades de novo no SIMPA. Começa com um seminário onde muitas pessoas em situação de rua se fazem presentes e alguns trabalhadores dos serviços. Da parte do movimento nacional da população de rua, havia uma insistência para que fosse re- tomada a organização do movimento no RS, pois, tinham conseguido conquistar um projeto de Centro de Defesa de Direitos Humanos da População de Rua e dos Catadores e que Porto Alegre estava como uma das capitais a implantar o centro. Um dos critérios para tal é que tives- se o movimento organizado e que pessoas militantes ou que apoiassem levassem adiante o projeto em conjunto. Nessa retomada, se decide que o nome do Movimento seria então Movimento Nacional da População em Situação de Rua do Rio Gran- de do Sul, pois, se incorporaria ao movimento nacional já existente. Também é abolida pelo coletivo a figura de um coordenador e volta-se a atuar com distribuição de tarefas e decisões coletivas, o que retoma um caráter mais horizontal nas relações. Essa decisão é comunicada ao movimento nacional através de um documento feito e assinado pelo coletivo. 193 O Centro Nacional de Defesa da População de Rua e dos Cata- dores, o CNDH, foi, então, implantado ainda em 2013. Tinha uma es- trutura pequena, funcionava junto com os catadores, fazia parte do seu quadro de trabalhadores um militante da própria população de rua e do movimento como agente de direitos humanos. Recebia salário, carteira assinada e não somente era um contrato como muito acontece a esse público quando lhe é oferecido trabalho por algum órgão da prefeitura. O centro exerceu suas funções por um ano e meio, mas, teve grande importância no levantamento, nos registros e encaminhamentos de violências, violações de direitos humanos contra esse público. Aproxi- mou órgãos como Ministério Público, DefensoriaPública, setores de direitos humanos como comissões da Câmara de Vereadores e outros, às pautas referentes à População em Situação de Rua em Porto Alegre e em algumas cidades do interior do RS. Foi fruto da articulação do CNDH do RS com esses órgãos, o grupo Patrulha de Direitos Humanos que conseguiu formar um “guarda chuva” de proteção aos grupos em situação de rua, nos terri- tórios, na época da copa do mundo na cidade de Porto Alegre. Veículos das Defensorias Públicas, junto com a promotoria de direitos humanos do MP, visitaram os grupos nas ruas mais centrais, junto com mili- tantes do MNPR, entregando telefones da Patrulha às pessoas para as situações de violações que se deparassem. Poderiam ligar 24 horas e a cobrar para qualquer um daqueles números. O CNDH tinha ligação direta com o DISQUE 100, no ramal para acolher denúncias sobre a população em situação de rua. Mui- tas notícias dos embates dessas ações saíram na mídia, o que também proporcionou visibilidade ao movimento que se fez em diálogo com a população. Para além dessa rede institucional, a parceria com outros movi- mentos de luta sempre foi fundamental. Por exemplo, com militantes do Utopia e Luta que moram no prédio localizado na Av. Borges de Medeiros, chamado Assentamento Urbano, fruto da luta autônoma por moradia, teve também papel fundamental como local de apoio para co- municação de violências para a rede de proteção formada. 194 Conquistas históricas: frutos da luta!!! Todo o acúmulo dessa época para o movimento serviu para con- quistas muito importantes. Em 2014 o governo Fortunati/Sebastião Melo informou que fecharia o projeto da Escola Porto Alegre, a EPA, que atende as Pessoas em Situação de Rua há vinte anos na cidade. Tem um método voltado para a dinâmica dessas pessoas, trabalha com práticas que consideram a linha ética da Redução de Danos, tem tra- balhos com arte e geração de renda e outras metodologias de inclusão importantes para esse público. O MNPR do RS, junto com os estudantes da escola, professores e apoiadores, então, começaram a fazer uma grande luta política de rua na cidade, com atos públicos em frente à Secretaria de Educação e Pre- feitura, na feira do livro e outros tantos lugares e, também, chama au- diências públicas conseguindo com isso que a Defensoria Pública ajui- zasse uma ação contra o município. Isso resulta, então, em pareceres favoráveis da justiça à permanência da escola, que além de estar aberta, ganha um grande reconhecimento junto à comunidade. Paralelamente a isso, havia também uma luta pela reabertura do restaurante popular que estava fechado há mais de três anos no município. Em 2016, o Restaurante Popular foi reaberto pela pressão que o MNPR do RS fez aos dois governos: estado e município. Os gritos de ordem na junção dessas duas pautas pelas ruas eram: ô, ô, ô, ô, morador de rua também quer virar doutor! Queremos a abertura do Restaurante popular! O MNPR do RS também conquistou uma campanha feita com verba da saúde para divulgar a portaria 940/2011, que fala da inclusão das pessoas em situação de rua nos serviços de saúde sem a exigência de ter que apresentar comprovante de endereço e documentos para a confecção do cartão nacional do Sistema Único de Saúde. Militantes do movimento apareceram por alguns meses em fotos nos ônibus da cida- de onde dizia: Sou Morador de Rua e tenho direito à saúde. Também foram distribuídas placas com a portaria em cada unidade de saúde, a fim de que os trabalhadores a conheçam, assim como, apresentado um teatro com a participação de militantes do movimento para falar da 195 questão em locais de atendimento de saúde. A negativa ao acesso da saúde para esse público ainda é uma constante e por isso a importância dessa campanha. A constituição dos comitês, através da pressão do movimento para que os governos se comprometam com a Política Nacional para as Pessoas em Situação de Rua também são conquistas do movimento no estado. O reconhecimento que hoje a população tem por essa orga- nização, a interlocução com as universidades, com outros movimentos de luta, com grupos culturais que apoiam os atos e atividades do movi- mento como o grupo Kalunga Quilombola, que inclusive fez a música chamada: Peregrinos, falando das PSR, o grupo Front LR e outros são grandes conquistas dessa caminhada de modo que, hoje, o MNPR do RS já tem bases constituídas em Gravataí e em Canoas, assim como, se encontra atualmente em fase de constituir um fundo solidário que dará autonomia financeira para o fortalecimento das bases no interior. Também sediará o IV Congresso Nacional do MNPR no estado do RS no ano de 2018, recebendo todas as delegações dos 13 estados onde o movimento se organiza. Em nível nacional também são muitas as con- quistas que a luta das pessoas em situação de rua vem realizando em vários âmbitos: institucionais ou não. Considerações finais É notória e reconhecida a importância que a organização das pes- soas em situação de rua hoje tem através do movimento para a garantia de alguns direitos e a luta constante por outros. Muito embora, tanto ainda se tenha a avançar para uma sociedade que se estabeleça de uma forma menos desigual, essa busca deve ser constante. Necessário se faz entender as pessoas que fazem uso das ruas como moradia, que cons- troem outras possibilidades de laços e redes, para além da forma como a sociedade enxerga que deva ser o mundo. Sabe-se que faltam muitas políticas e distribuição mais igualitá- ria de recursos no Brasil e no mundo, mas, também deve-se considerar que ainda que todas as mazelas do nosso mundo fossem resolvidas, teriam mesmo assim, pessoas que não se identificam com estar em uma 196 casa, com a família de origem, mas que constroem, no lugar disso, ou- tras possibilidades de afetos, de trocas, de gestar a vida e as cidades devem avançar na inclusão e no acolhimento dessas pessoas em seus territórios. Tais gentes são gentes e trazem consigo desejos, laços de afetos, potencialidades. A rua não é um lugar fora do nosso mundo, nela exis- te violência, cooperação, competição, animosidades, amizades, amores, partilhas e tudo que há na vida de quem mora em casas e “a-par-ta- -mentos”. O território é vida, têm dinâmicas, estabelece regras, códigos e vivências que precisam ser traduzidas para que haja inclusão, para que as políticas cheguem de forma mais humana e qualificada, para des- construir preconceitos, para que não haja mais tanta violência e cri- minalização dessas pessoas pela sua própria condição, condição essa produzida pela forma como constituímos nossa sociedade. 197 Referências LEMOES, T. A família, a rua e os afetos: uma etnografia da cons- trução de vínculos entre homens e mulheres em situação de rua. São Paulo: Edições Acadêmicas, 2013. FREIRE, P. Pedagogia da Esperança. Um reencontro com a peda- gogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2011. ______. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013. BRASIL. Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, 2014. Disponível em: http://www.mds.gov.br/webarquivos/publica- cao/assistencia_social/Normativas/tipificacao.pdf 199 “A GENTE MUDOU A HISTÓRIA”: EXPERIÊNCIAS E OLHARES DO JORNAL BOCA DE RUA Por SeuS inteGrAnteS e colAborAdoreS Neste texto, destacamos experiências diversas e situadas, que fazem parte da produção do jornal Boca de Rua, feito, desde os anos 2000, com e por pessoas em situação de rua na cidade de Porto Alegre. A partir de vivências variadas, apresentamos percepções sobre os históricos e os en- volvimentos com a temática da “situação de rua” e no Jornal Boca de Rua. O jornal, apoiado e vinculado à Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação (a ONG ALICE), é produzido, semanalmente, e vendido pelos próprios integrantes, seus jornalistas e jornaleiros. Este periódico trimestral conta com a colaboração de apoiadores, como jor- nalistas da ALICE, estudantes universitários, pesquisadorese fotógra- fos. O ganho obtido sempre é revertido aos integrantes do jornal, que contam com este apoio econômico em sua renda semanal. Elaboramos um texto com uma proposta diferenciada, mesclan- do estilos e temáticas. Num primeiro instante, uma apresentação tex- tual e breve do jornal é exposta. Em seguida, registramos uma entre- vista realizada com integrantes do Boca de Rua. Por fim, passeamos e cartografamos duas histórias que marcaram os 16 anos deste projeto. Apresentação [Por Rosina Duarte, jornalista e coordenadora do projeto] O projeto Boca de Rua gera uma publicação que prioriza a voz das pessoas em situação de rua e risco social que vivem na cidade de Porto Alegre. O “Boca” existe desde agosto de 2000, e é composto por um jornal trimestral, o Boca de Rua, incluindo o suplemento in- fanto-juvenil, o Boquinha. Adultos e crianças produzem textos, fotos, ilustrações, mas apenas os mais velhos – adultos – vendem o jornal, tendo a renda revertida integralmente para si. Além disso, participam 200 de oficinas de vídeo, expressão e escrita livre, tendo realizado, ao longo de sua história, dois documentários - Carta de Porto Alegre e Ali na Capa tá eu -, além do livro Histórias de mim. Sob a orientação de um fotógrafo profissional e de outros apoiadores, os integrantes produzem, ainda, as imagens que ilustraram o jornal, que compuseram também duas expo- sições: Faces da rua e As duas faces da rua. Todas as regras vigentes e a forma de trabalhar foram montadas de maneira participativa pelos membros do grupo, sejam eles técnicos ou comunicadores populares. O respeito – nas suas diferentes formas – é o primeiro mandamento desta lei vigente no Boca de Rua. A relação proposta é a de trabalho focado na prática da comuni- cação ética e humanista. Ou seja: o Boca não pratica o assistencialismo, não recebe e nem faz doações. Tampouco se tem a pretensão de res- gatar os participantes da rua ou da droga, embora isso, logicamente, seja desejado e trabalhado pela equipe na produção do conteúdo jor- nalístico. Os técnicos não fazem papel de médicos, assistentes sociais, enfermeiros, guarda-parques ou policiais. Para atender as demandas surgidas, o grupo atua em rede com os organismos públicos encarre- gados de atender o cidadão e a cidadã nas diversas áreas e também com entidades, ONG’s e instituições parceiras. Dentro deste caráter emancipatório, incentiva-se a participação grupal, não competitiva e o debate da realidade. Desta forma, preten- de-se que os integrantes tomem consciência da reivindicação de seus direitos, comecem a expressar-se por meio da escrita, voltem a estu- dar, tratem da saúde, estabeleçam outra relação com a cidade, lutem por moradia e mudem a sua autoimagem. De “vagabundos, drogados, ex-presidiários, aidéticos” – como frequentemente se definiam – passa- ram a trabalhadores e cidadãos participantes de um grupo organizado. O afeto e a honestidade são componentes importantes na cons- trução do sentimento de coletividade. Olhar nos olhos e conseguir expressar uma contrariedade com clareza, respeito e calma são con- siderados avanços tão importantes quanto o retorno ao colégio, ou a conquista de uma moradia. Mais do que falar apenas dos próprios problemas, das próprias chagas, o jornal se propõe a mostrar o cotidiano das ruas, sem o com- 201 promisso de ser “porta-voz” exclusivamente de moradores de rua. A possibilidade de experimentação é estimulada e, para isso, são válidos exercícios literários (técnicas de construção de personagem, método de criação, colagem de textos), fotográficos, cênicos, de filmagem etc. Os participantes devem buscar força suficiente como grupo para garantir os atendimentos necessários e não se conformar com uma cer- ta condição de vítima. Assim, são feitas não apenas denúncias, mas tam- bém propostas coletivas, encaminhadas a quem tem poder decisório. O jornal não se limita, portanto, a noticiar ressentimentos, mas propõe e força mudanças sociais. O fato de terem a oportunidade de se expressar sem intermediários externos os torna parte integrante de uma socie- dade que os excluiu, colocando-os como sujeitos da sua história. O jornal Boca de Rua é membro da Rede Internacional de Publi- cações de Rua (International Network of Street Papers – INSP), entidade com sede na Escócia, que reúne jornais e revistas vendidos por popula- ções em situação de risco de 28 países. Ele é o único desta rede que tem conteúdo produzido integralmente pelos próprios vendedores. Entrevista com integrantes do jornal: históricos, envolvimentos e mudanças A seguir, expomos uma entrevista coletiva feita com os integrantes do jornal, em novembro de 2016. A contribuição precisa e inspiradora de todos foi fundamental, especialmente daqueles que participaram falando de suas vivências. São eles: Alexandre, Carlos, Demétrio, Édisson, Jorge, José Luiz, Michel, Michelle, Paulo e Paulinho (cartunista). Essa entrevis- ta foi realizada pelos apoiadores Bruno Fernandes e Caroline Sarmento, em uma reunião na Escola Municipal Porto Alegre (EPA). Ressaltamos, assim, o caráter polifônico desta produção discursi- va e interativa, que considera os estilos e singularidades de cada envol- vido. Com suas experiências e inquietações, mostraram como é possí- vel escrever, ou ainda mais, falar criticamente de mudanças na história. Algumas percepções sobre a pesquisa quali-quantitativa da população em situação de rua, realizada em Porto Alegre no ano de 2016, também foram expostas, já que alguns integrantes participaram como facilita- 202 dores na elaboração e coleta de dados do censo. No mais, envolvimen- tos, interesses e identificações foram abordados nas diferentes falas e formas de vivenciar a participação neste projeto. Bruno: Bom gente, neste primeiro instante, seria interessante vocês comentarem um pouco da história do Boca de Rua e da importância do jornal pra cada um. Carlos: Uma coisa importante nesta história do jornal Boca de Rua é que eu sou ex-presidiário e aquela coisa toda que eu fazia – que eu rou- bava, eu fazia maldade pras outras pessoas – eu acabei deixando isso, pra vender meu jornal. Não é uma coisa que me dá um sustento de um salário nem nada, mas me ajuda, também, nas minhas caminhadas, pra me alimentar, pra me vestir e eu não precisar roubar. Acho que isso é uma coisa importante que aconteceu pra mim. Sobre o Boca, eu acho que conheço o Boca desde 2003, mais ou menos, e muita coisa mudou de lá pra cá. Não somente o jornal: a cor e o valor dele. Mas é que nem fala aqui na nossa edição de 15 anos: “A gente mudou a história”. Até então, algumas coisas que a gente não tinha antes, a gente adquiriu através de denúncias no jornal, através de reuniões com pessoas im- portantes. Fomos adquirindo uma mudança, alguma diferença nesta nossa sociedade. A sociedade que também nos discriminava e achava que todo morador de rua é vagabundo, cachaceiro e drogado, viu que não. Eles viram que a gente também é trabalhador. O jornal também não é muita coisa, mas é um trabalho pra nós. Não é uma coisa que a gente chega aqui e brinca de fazer jornal. Não. É um negócio muito sério, com horário, com regras, com deveres e direitos. Alexandre (Português): Eu adoro muito o jornal e vendo jornal mais que todos aqui (risos). Paulo: Desafio este vendedor a nós irmos, a qualquer momento, pro semáforo pra gente ver quem vende mais... (risos). O jornal é impor- tante pra mim, também, porque eu, com certeza, faturo 60 reais toda a semana. 203 Bruno: Que tipo de mudança o jornal provoca na vida de cada um? Paulo: O jornal Boca de Rua, pra mim, volta a mesma coisa que te falei antes, ele me dá 240 reais no mês, que ajuda no café, ajuda no Bandejão (Restaurante Popular), ajuda na gasolina [...] O Boca de Rua é simples- mente uma fonte de renda, simples e completa ao que falta. José Luiz: O Boca de Rua pra mim representa um novo começo de vida, porque eu saí de dentro de casa, de uma família na periferia evim pra rua. Até então, cheguei e iniciei um trabalho de reciclagem, isto é, “enfiando a cara na lixeira” – que nem eu sempre digo –, e hoje estou aqui, participando da reunião, uma das últimas do ano. Já fazem 6 anos que estou no Boca de Rua. O que melhorou pra mim foi que, há um tempo, neste horário estava saindo pra reciclar, com carrinho de papelão. E hoje estou aqui, numa reunião, não esquecendo de dizer que, eu saía pra reciclar com um carrinho de papelão e mais uma garrafa de cachaça dentro do carrinho. E hoje estou aqui, sóbrio, há dois dias sem beber nada, pra participar da reunião. Acho que isso aí é um meio de vida que me beneficiou bastante. Bruno: Jorge, o que acha que o jornal mudou na tua vida? Há quanto tempo está no jornal? Como foi tua entrada e o que mudou? Jorge: Eu, dos guris que estão aqui, sou o mais novo. E o Boca de Rua pra mim é tudo. É um projeto interessante, porque, em princípio, ajuda as pessoas como, no meu caso, que estou em situação de rua. É uma oportunidade para aquelas pessoas que querem mudar de vida. E hoje, o que estou crescendo, passo a passo, eu agradeço em primeiro lugar ao Boca de Rua e a minha família aqui, o pessoal do Boca de Rua. Eu digo: vou lutar até a morte com o Boca de Rua. Carlos: Eu tenho mais uma coisa pra falar. O que pra muitos é um tra- balho, pra nós é a nossa vida. Boca de Rua é a nossa vida, nossa história, conta tudo de nós. O que pra muitos pode ser um trabalho, pra nós não é só trabalho, é a nossa vida esse jornal. 204 Paulo: Jornal Boca de Rua é um exemplo para expor quem somos, de onde viemos e para onde queremos chegar. Este é o objetivo do jornal. Michel: Eu vou dar a real aqui. O jornal Boca de Rua é uma vida, mas a folha é só uma folha, tá ligado? O jornal Boca de Rua é feito por ima- gens, textos e fitas, daquilo que acontece no nosso dia a dia. Naquela folha ali que vai, naquelas letras, no nanquim [...] naquele nanquim, cada polígrafo que ele manda ali, é uma história nossa, tá ligado? E cada história é uma fita. Carol: A Michele queria dar o depoimento dela, sobre o Boca na vida dela. Michele: Então, eu estou com 33 anos. Meu nome é Michele Apareci- da Marques dos Santos, estou no Boca desde os 19 anos. Isso quando ainda ele era recém-nascido, na época em que ele começou lá na volta do Araújo Vianna. O Boca de Rua, na verdade, me deu muito estudo e muita aprendizagem, porque eu conheci muitas pessoas. Com elas eu aprendi falando e ouvindo. E o Boca de Rua pra mim é importante por isto: pelo meu conhecimento. Não só das pessoas, mas de outros luga- res que a gente foi, como pra conhecer escolas e estados. Eu, no caso, fui pra São Paulo, apresentei o Boca de Rua lá. Tive no Rio e falei, tam- bém, do Boca. Essas viagens foram pelo GAPA, pelo Grupo de Apoio a Prevenção da AIDS, onde eu também fazia meus grupos de Rap. Então, nestes lugares, eu também levei jornal daqui pra lá, muitas pessoas leram e gostaram, já se interessaram pela reportagem do Boca, entra- ram no nosso site e fizeram várias perguntas. Foi muito legal mesmo, a aprendizagem e o conhecimento que eu tive pelo Boca de Rua. Demétrio: Pra mim o Boca de Rua não é só mais um jornal. É o jornal dos moradores em situação de rua e nós produzimos todo o jornal, montamos, editamos e fazemos a história. Já faz um ano que pertenço a tribo do Boca de Rua e eu me sinto muito honrado em participar, faço com muito carinho e com muito amor as matérias. Curto e vendo assim, explico pras pessoas, uma explicação de como funciona, como é que é, quem é que faz o Boca [...]. Tudo pras pessoas entenderem que 205 o morador de rua não é o “invisível”. Morador de rua é um ser huma- no, tem que ser respeitado em todos os sentidos. Quanto mais coisas nós conseguirmos por intermédio do Boca, melhor. Nós temos muitos artistas na rua, que hoje estão divulgando no Boca, na parte cultural – hoje temos aqui o Michel, eu, Rosângela e outros que vão se agregando – pra mostrar nosso trabalho como artista popular. O Boca pra mim é um jornal sério. Michel: Uma vez estava eu e o Demétrio, lá em Navegantes, no Felipe Diehl. Estava eu e o Demétrio na fila, nem conhecia o Demétrio ainda. Aí, encontrei ele. Ele estava com uma mochila e ele me disse: “Michel, pegaram meus documentos da minha mochila, estava no bolso de trás ali”. Ele falou pra mim assim: “me roubaram tudo”. E ele também me disse assim: “Oh Michel, o bagulho é com nóis”. E eu respondi: “o ba- gulho é Boca de Rua mano”. E ele perguntou: “o que é Boca de Rua?”. Eu falei: “Boca de Rua é um jornal que tá rolando aí, meu irmão”. Ele não conhecia, até então. Falei pro Demétrio e ele frustrado ali, logo conheceu o Boca. Ainda falei pra ele que ele podia ir numa parada no CRAS pra fazer os documentos de novo. Alexandre (Português): A coisa do documento é um problema. Mo- rador de rua não consegue acessar o SINE, por exemplo, pra arrumar serviço. Bruno: Vocês falaram a palavra “invisível”. Qual o papel do jornal em relação a isso? Paulinho: Eu acho que, realmente, o morador de rua é invisível quan- do as pessoas querem. Porque elas olham pra pessoa, quando estão passando pelo cara, elas conseguem enxergar e atravessam a rua. Mas assim, o que significa o Boca de Rua, também, pra mim? É uma opor- tunidade, pra mim, estar mostrando que morador de rua não é só vaga- bundo, ladrão, mas que tem também muitas pessoas trabalhadoras na rua. Elas querem mudar de vida e tal. O Boca de Rua é uma oportuni- dade pra isso, porque, na realidade, o Boca de Rua é um jornal indepen- 206 dente, feito por moradores de rua, que batem fotos, fazem entrevistas e o jornal. É uma oportunidade pra divulgar meus desenhos também. Por exemplo, eu conheci uma apoiadora aqui no Boca, a Sofia, que me deu uma oportunidade, de dar oficina no Instituto de Psicologia e de conhecer os colegas e a mãe dela – que é professora de Artes. Isso foi uma oportunidade, mas que também depende de mim. Mas na rua é muito difícil, porque a pessoa não tem ajuda de custo e tal. Então fica difícil de ir, fazer as oficinas, sendo que é uma coisa muito importante pra mim. E o jornal é importante pra que eu conheça as pessoas e elas me conhecerem, conhecerem o morador de rua também. Enfim, o di- nheiro que eu ganho com o jornal vai encher meu bolso, mas as oportu- nidades são bem melhores, tá ligado? Às vezes, uma atenção vale mais. Michel: Mas na real assim, a oficina não parte só dele, que é cartunista, tá ligado? Como eu, que sou roteirista [...]. Na real mesmo, a gente depende também dos estudantes e colaboradores. Sem os colaborado- res, o Boca de Rua não seria ninguém. Se ninguém estivesse como co- laborador, não sei. Tem gente da UFRGS, tem a galera de ocupações. Porque, quando estão ocupando, eles dão oportunidades pra nós, não só nós Boca de Rua, mas nós de outras favelas aí, porque está chegando vários caras da favela, que estão descendo. No Centro de Porto Alegre mesmo, quando a gente dá uma “banda”, nós não damos sozinhos, só com moradores de rua. A gente dá uma “banda” com os caras que estão ali, estudando, mano. Eles estão estudando. E dizem bem assim: “salve cartunista!”, que é pro Paulinho. “Salve roteirista!”, que é o Michel. Bruno: Obrigado Michel. Acho que agora vocês podem contribuir falando também sobre a pesquisa censitária. Alguns, por exemplo, participaram como facilitadores. O que acharam desta experiência de envolvimento na pesquisa? O que isso propiciou? José Luiz: O envolvimento na pesquisa pra mim foi interessante, por- que a gente teve oportunidade de falar com os “irmãos” que a gente nem conhecia. Pra começar é por aí. Outra questão importante, que eu tenho pra colocar é: por mais que se organize, por mais tempo que 207 tenha pra fazer uma pesquisa sobre contagem de pessoas que vivem em situação de rua, jamais, de qualquer forma que se fizer, vai se chegar à conclusão de que todos foram contados. Nós tivemos algumas dificul- dades e algumas benfeitoriascom a organização da pesquisa. A gente encontrou algumas dificuldades. Uma delas, que mexeu muito com a gente, foi ficar muito nas mãos dos centros de acolhimento, CRAS, CREAS etc. Eles mesmos citavam pontos de referência para o mapea- mento. Então, na realidade, o conhecimento do povo da rua foi meio que desmerecido. Não digo totalmente. Mas não foi aquela expectativa de ser considerado todo o conhecimento que a gente tem. Bruno: Em que sentido este conhecimento não foi considerado? Onde e em que tipo de trabalho? Seria legal falar como era o trabalho. E como era a partici- pação dos facilitadores no planejamento deste trabalho? José Luiz: Este trabalho de facilitador era um trabalho, na realidade, de coragem, porque a gente se enfiava em lugares que não conhecia. Começando por aí. E em situações adversas. A gente trabalhava de manhã, de tarde, até certa hora da noite, em lugares que a gente não conhecia, às vezes. Carlos: Eu quero falar também. Bom, do trabalho da pesquisa, eu acho que não posso dizer inútil, isso não foi. Porque eu acho que automa- ticamente, a gente tirou aí de 30 a 40% do pessoal que mora na rua. Por que de 30 a 40% que mora na rua? Pelas dificuldades que a gente encontrava no trabalho, tanto com o pessoal que organizava as nossas saídas e, também, pelo mapeamento que foi dado pelas instituições. Fo- ram dados mapeamentos e, às vezes, as pessoas nem se encontravam mais ali. E aí as pessoas nem se encontravam ali no mesmo lugar. E porque, automaticamente, nós fizemos a pesquisa na mesma época que a Força Nacional estava agindo aqui em Porto Alegre. Muitas pessoas foram pra outras cidades, muitas pessoas foram pra Região Metropo- litana, aqui na volta. Quer dizer, então, que nem todos estavam aqui. Algumas pessoas são meio fugidas, outras meio acuadas. Algumas pes- soas saíram do Centro da cidade, voltaram pras vilas, onde a gente ia 208 entrevistar e eles diziam pra nós que não moravam na rua, e sim na vila. Até, por sinal, com medo de falar, porque sabe como é que está o nosso mundo hoje e este governo do jeito que está, pensando, de repen- te, que poderia ser até uma internação compulsória, essas coisas assim. E a gente foi muito prejudicado, bastante prejudicado, na construção desta pesquisa censitária. Bruno: Por que vocês acham que é importante contar o pessoal da rua? Carlos: Eu acho que é importante contar o pessoal da rua pra mostrar pro governo, pra mostrar para essas políticas públicas que eles têm morador de rua, que não tá fluindo nada, que nada acontece, que nada progride, que as casas não tão dando conta, que os albergues ainda são poucos, que os abrigos nem pensar, que os aluguéis sociais não estão sendo pagos, que não tem política de moradia pra morador de rua ne- nhum. A gente vem de uma ocupação do DEMHAB (Departamento Municipal de Habitação) e de outros lugares, onde a gente estava lu- tando por moradia e saímos de lá praticamente sem resposta, até hoje. Então, eu acho que o bom da contagem seria pra mostrar pra essas instituições, pro nosso governo, pra FASC, que lida com esse pessoal que mora na rua, que dá assistência pra esse pessoal, pra dizer que está precário e a coisa ainda, acho, vai piorar. Bruno: Como é que foi, dentro desse contexto político, que vocês se envolveram na pesquisa? Por que o Movimento da População de Rua e o Boca de Rua têm interesse em participar da pesquisa? Carlos: Na moral, o Movimento se envolveu na pesquisa mesmo era pra fazer o trabalho esse pra contagem dos moradores de rua, nessa parte acho que o Movimento se envolveu mais por causa disso. Porque até en- tão era com o morador de rua, o Movimento tinha que está participando junto do trabalho, pra depois poder ter um respaldo pra ti ir atrás dos teus direitos. Eu acho que o Movimento mais se envolveu por causa dis- so. Eles queriam nos pagar uma bolsa mínima, a gente não aceitou, por- que pô, se a gente vai trabalhar igual aos alunos da UFRGS ou até mais, 209 entrando em locais que nem nosso amigo falou, que a gente muitas vezes nem conhecia e o pessoal nem deixava nós chegar. Então, por que nós iriamos receber menos? É sempre quando acontece isso é assim, quando é pra dar uma oportunidade para o cara que mora na rua, as coisas não fluem. Mas eu acho que foi mais por isso aí. E o Boca então, acho que foi pra fazer mais uma denúncia no jornal, dizer que essa população que tá na rua não tá sendo acolhida, não tá sendo “assistenciada”. Eu acho que o único benefício que existe é isso aí, que foi pra comprovar que essa assis- tência aí não tá dando conta da população de rua, não tá mesmo. Por fim, algumas histórias... Para finalizar nossa mensagem, deixamos duas histórias que marcam a trajetória do jornal. Em “O grito”, comunicamos como o logotipo do jornal foi produzido, a partir da criatividade de um inte- grante. Em “Pequena Revolução”, mostramos como o jornal provoca mudanças em meio a situações inesperadas. As histórias foram regis- tradas pela jornalista Rosina Duarte e serão, também, detalhadas no livro Incomuns Mortais – O direito à palavra e muito mais, que está sendo editado e concluído pela ONG ALICE, responsável pelo jornal. O grito Chovia. Pouco, mas chovia. Quando a chuva era grossa, todo mundo precisava que se abrigar embaixo das marquises, nas paradas de ônibus ou, na pior das hipóteses, sob os guarda-chuvas descartáveis vendidos pelos camelôs do centro a R$ 5,00. A gurizada recolhia nos lixos aquelas coisas pretas, desengonçadas parecidas com urubus de asas quebradas, mas eficientes para proteger da neblina ou do chuvisqueiro manso. Naquele dia, porém, os pingos eram tão preguiçosos que não impediram Riquinho de finalmente decidir-se a fazer o logotipo do jornal. Um mês antes o nome “Boca de Rua” tinha sido concorrido com outras quatro sugestões e vencido em uma votação apertada. Riquinho, pulso firme, apesar da loló, can- didatou-se para desenhar as letras. Mas ele enrolava. Toda a semana tinha uma desculpa. Naquele dia, apesar da chuva, acabou cedendo à pressão do 210 grupo. Como as reuniões do jornal eram feitas na praça, acomodou-se no chão e transformou um banco de cimento em prancheta. Dez ou quinze minutos depois o logotipo estava pronto. Apesar de um pouco respingado pela chuva, era irretocável. Na frente e no final das palavras, destacavam-se sinais de igualdade – o maior desejo de quem clama por justiça. O “De” que unia as duas palavras principais, lembrava tridentes de diabo e, também, a autodefinição, usada por muitos dos meninos criados sem uma família, nem um teto - “nós somos uns diabos”. E no centro de tudo, grande e vermelha, uma boca aberta. O dono ou dona daquela boca não estava bocejando, nem cantando: estava gritando. Era uma boca quase idêntica a da figura pintada por Münch no quadro célebre “O grito”. Mas Riquinho nunca tinha visto uma reprodução da obra. Era o grito de Riquinho. O grito daqueles 10 guris e gurias habitantes das praças, das ruas, dos esgotos. Era a boca de todos eles gritando por socorro, gritando em protesto, gritando por dignidade na rua, o único lar. Pequena revolução Antes mesmo dos integrantes do Jornal Boca de Rua pisarem o pri- meiro degrau do gigantesco prédio, em forma de caixa forte, do Santander Cultural, os seguranças bloquearam a porta, guardada por colunas coríntias de 12 metros, como goleiros diante do pênalti. Pareciam os homens de preto do filme MIB – com quem, aliás, tinham inegável semelhança – ao farejarem extraterrestres. - Sim??? (querendo dizer: Fora! Isto não é lugar para vocês!). À frente do grupo, o Bocão respondeu rápido e seguro. - A gente veio para a palestra. Somos os autores e os artistas do filme que vai passar agora. Os seguranças calaram. O Bocão entrou majestoso, cabeça erguida, an- dar gingado de B-boy segurando pela mão a namorada Michelle – linda, com seu metro e meio, rosto marcada por uma navalhada, cachos escuros de legítima ovelha negra urbana. Logo depois vinhao Ceco – que há poucos anos era analfabeto e, depois de brilhar na escola, virou um tribuno, capaz de palestrar diante de políticos e autoridades. A Chineza fechava o cortejo. Kaingang, travesti e sem-teto, era um compêndio para os preconceituosos de 211 plantão, ignorantes a respeito do seu talento de poeta, sua melancólica lucidez e sua serenidade, herdada dos ancestrais. Dentro do edifício encontraram os companheiros, todos integrantes do Jornal Boca de Rua. Boa parte deles tinha participado do documentário apresentado no cinema do Santander naquele final de tarde. Aplausos calorosos explodiram ao final da projeção. Os atores-diretores dirigiram-se ao palco e falaram sobre o trabalho com calma, clareza e hones- tidade, enfrentando perguntas polêmicas sem gaguejar. Tudo era simbólico. Estavam dentro de templo da cultura que, no passado havia sido um templo do poderio econômico, um banco. E mais, o cinema fora instalado no interior do monumental cofre bancário. O cenário era, portanto, a simbiose perfeita entre a cultura e o dinheiro. E os moradores de rua palestravam para profes- sores e estudantes universitários, que tinham comprado ingressos para assistir ao filme realizado por deles. Mundo virado de cabeça para baixo. Ou, como definiria mais tarde o jornalista Sílvio Ferreira - que fala pouco, mas sempre tem a palavra certa na hora certa: foi uma pequena revolução. 213 VIOLÊNCIA CONTRA A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA EM PORTO ALEGRE: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS FORMAS INSTITUCIONAIS E SIMBÓLICAS DE OPRESSÃO COTIDIANA MeliSSA de MAttoS PiMentA joSé vicente tAvAreS doS SAntoS O espaço urbano, em sua complexidade estrutural, pode ser apropriado de inúmeras formas que vão além dos limites da ocupação física de edificações e estruturas de trânsito de pessoas e veículos. É nos diferentes usos e formas de estar na cidade que se podem obser- var como se estruturam as relações entre grupos sociais e instituições na produção da vida cotidiana. Identificar os processos de produção dos lugares, seus significados e representações sociais, é uma forma de apreender como as interações e os conflitos são reproduzidos a partir da sua relação com o espaço e suas múltiplas categorizações. A cidade e os diferentes espaços que integram o tecido urbano configuram, assim, um lócus do exercício de poder entre indivíduos e grupos hierarquica- mente distintos que, embora possam ser abrigados dentro da moderna concepção de cidadania, não necessariamente têm acesso e usufruem das mesmas garantias dos seus direitos. Dentre os grupos sociais que integram a cidade e constituem sujeitos de investigação sociológica, figuram as “pessoas em situação de rua”1, categoria social complexa e em construção, cujo lugar na coti- dianidade transita entre o visível e o invisível. Muitas vezes vistos com 1 O uso do termo “população em situação de rua” busca superar as limitações de outros termos como “morador de rua”, que tendem a perpetuar a percepção desta população como um grupo fixado numa condição específica, caracterizada por um conjunto de carências e enfatizar “a situacionalidade da experiência nas ruas”, “defi- nindo-os a partir de uma concepção do habitar a rua como uma forma de vida possí- vel” (Schuch e Gehlen, 2012, p. 17). Assim, procura-se visibilizar as múltiplas formas e estilos de vida que podem ser identificadas no espaço da “rua” sem, contudo, es- sencializar essa condição e apontar para as possibilidades de entrar, ficar, estar, usar, reivindicar e também sair da rua. 214 indiferença, mas, sobretudo, com suspeita e desconfiança, aqueles que fazem da rua seu local de moradia ou permanência durante parte do dia, ainda que temporariamente, são frequentemente vítimas de formas perversas de violência física, institucional e simbólica. Segundo Tava- res dos Santos (2004), podemos compreender a violência [...] como um ato de excesso, qualitativamente distinto, que se ve- rifica no exercício de cada relação de poder presente nas relações sociais de produção social. A ideia de força, ou de coerção, supõe um dano que se produz em outro indivíduo ou grupo social, seja pertencente a uma classe ou categoria social, a um gênero ou a uma etnia, a um grupo etário ou cultural. Força, coerção e dano, em relação ao outro, enquanto um ato de excesso presente nas relações de poder (TAVARES DOS SANTOS, 2004, p. 8). A violência contra pessoas em situação de rua não pode ser expli- cada apenas pela deficiência dos aparatos de controle social do Estado em garantir sua segurança e proteção, mas é ela própria resultado de políticas públicas e ações praticadas por agentes públicos, como por exemplo, as ações de “limpeza urbana”: [...] trata-se de uma função da limpeza pública municipal que consiste na retirada das habitações e arranjos informais desse segmento, assim como dos materiais recicláveis que guardam para vender, forçando-os a deslocamentos espaciais. Trata-se de uma atividade sistemática, exercida pelo poder público, ampara- da pela força policial e que endossa as representações funcionais sobre o uso das ruas da cidade (FRANGELLA, 2005, p. 220). O imaginário social comumente concebe as pessoas que fazem da rua o seu local de permanência, de moradia e sobrevivência como um grupo homogêneo, composto por indivíduos dotados de certas ca- racterísticas imediatamente identificáveis, especialmente a pobreza, a utilização de espaços públicos para dormir, comer, consumir bebidas alcóolicas e drogas e fazer as necessidades fisiológicas, reduz a percep- ção do que se faz e de como se utiliza o espaço da rua à falta de recursos, à falta de domicílio próprio ou regular e à falta de higiene. É como se 215 estivessem “imersos em outro mundo, um lugar privado construído a partir das fronteiras corporais da sujeira, do corpo abjeto que assusta e afasta” (FRANGELLA, 2005, p. 209), criando assim, uma enorme distância social que separa o “morador de rua” e o “domiciliado”, de tal forma que “tudo se passa como se elas não dispusessem de nenhuma forma de reconhecimento social positivo pautada em seus gestos ou suas formas de se vestir e falar” (GRAEFF, 2012, p. 762). Para Moura Jr. et. al., (2013, p. 20), as representações sociais de senso comum sobre esse segmento oscilam entre dois polos em oposi- ção: a pobreza e o perigo. No entanto, apesar das pessoas em situação de rua estarem imer- sas em uma situação de extrema pobreza, elas são preponderan- temente reconhecidas a partir da identidade social de morador de rua com os papeis sociais de drogado, de criminoso, de violen- to, de sujo e de doente. Por um lado, essas concepções situam esses indivíduos em uma condição comum de “carência” de recursos financeiros, de moradia, de laços sociais e familiares, o que reforça a sua percepção como “vítimas”, seja das condições desiguais de existência, da precariedade da rede de proteção social do Estado ou dos infortúnios da vida. Por outro lado, situam-nos em uma condição de “anormalidade”, o que os torna uma “ameaça” à ordem social, na medida em que suas diferentes formas de ser e estar no espaço urbano não são reconhecidas como legítimas. Nessa perspectiva, a reiteração da metáfora dos lados opostos coloca as pessoas em situação de rua e os domiciliados em dois grupos antagônicos: “o pri- meiro representado por atores sociais para os quais se reconhece a legíti- ma demanda pelo espaço público; o segundo composto por atores sociais para os quais se nega o direito à cidade” (RESENDE, 2015, p. 121). À condição precária dos corpos, à decadência material e à fra- gilidade psicossocial soma-se um imaginário de ameaças sociais aos estabelecidos (VALENCIO et. al., 2010) que se estendem, inclusive, aos espaços onde ela se localiza (MOURA Jr. et al., 2013), gerando práticas de discriminação e estratégias de expulsão de determinados espaços: 216 São tubos de água que mantêm as calçadas molhadas, ferragens pontiagudas, gradis que cercam espaços