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A LAICIDADE ESTATAL NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

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A LAICIDADE ESTATAL NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO 
 
 
 
 Aloisio Cristovam dos Santos Junior1 
 
 
 
 O Brasil é um Estado laico. Tal afirmação, insistentemente repetida por 
religiosos quando vislumbram numa ação governamental uma interferência indevida em 
questões religiosas e de igual modo pelas autoridades estatais quando querem impor 
uma política pública que contrarie interesses religiosos, é produzida, na maioria das 
vezes, como mero argumento retórico divorciado de uma compreensão do modelo de 
laicidade encampado pelo Estado brasileiro. 
Quando alguém afirma que o Brasil é um Estado laico, o sentido desta 
declaração nem sempre fica claro para o ouvinte. Com certeza há uma enorme distância 
entre afirmar que o Brasil é um Estado laico e compreender os contornos dessa 
laicidade. 
À primeira vista, a par da dificuldade que decorre da forte carga emocional que 
permeia todas as discussões relacionadas com a liberdade religiosa, não é perceptível 
para o senso comum que inexiste um modelo universal de laicidade válido para todo e 
qualquer país. 
É bem verdade que, numa acepção mais rasa, quando a idéia de laicidade 
intercambia-se com a de aconfessionalidade – ou seja, a de que um determinado Estado 
não sustenta oficialmente um credo religioso –, a noção de Estado laico serve para 
identificar a experiência constitucional da grande maioria dos paises ocidentais. Neste 
sentido, podemos dizer que Brasil, Espanha, França, Portugal e Estados Unidos 
constituem Estados laicos, porque não possuem religião oficial e propugnam por um 
regime de separação entre a comunidade política e as igrejas. 
No entanto, um estudo mais cuidadoso de cada ordenamento jurídico nacional 
permite visualizar que a laicidade adotada pelos diferentes Estados comporta gradações. 
 
1 Juiz do Trabalho (5ª Região). Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana 
Mackenzie. Professor da graduação em Direito da Faculdade 2 de Julho. Ex-Promotor de Justiça. Ex-
Procurador do Estado da Bahia. 
Tal constatação deriva, é claro, da premissa de que o modelo de laicidade adotado por 
cada país deve ser inferido como resultado do exame do seu ordenamento jurídico 
constitucional. Por outras palavras, são os preceitos constitucionais que vigoram em 
cada Estado que determinam os contornos da laicidade por ele adotada. 
Uma primeira distinção que deve ser estabelecida é a de que Estado laico não se 
confunde com Estado anti-religioso. A experiência histórica tem demonstrado que tanto 
o Estado confessional quanto o ateísta atentam contra os ideais democráticos, porque 
não permitem ao ser humano o pleno desenvolvimento de suas potencialidades. O 
Estado confessional, quando entroniza determinada ideologia religiosa e reprime a 
exteriorização de outras crenças (ou descrenças...), asfixia a realização das mais 
elementares aspirações do espírito humano. Do mesmo modo, o Estado ateísta, que 
substitui o conteúdo ideológico religioso por um conteúdo supostamente anti-religioso 
não raramente marcado por características fortemente religiosas (por exemplo, culto ao 
Estado ou ao líder político). Ambos representam modelos que se servem do ser humano 
como mero instrumento para a realização de uma ideologia política ou religiosa e não 
como um fim em si mesmo. Neste sentido, um e outro são exemplos de desrespeito à 
dignidade humana.2 
Um outro aspecto que deve ser posto em relevo é o de o Estado laico não é 
aquele absolutamente imune a influências religiosas. Os exemplos de Estados laicos que 
adotaram políticas públicas que direta ou indiretamente resultaram de movimentos 
capitaneados por líderes religiosos são inúmeros. Por vezes, a motivação religiosa 
constitui fator determinante para a luta encetada por certos segmentos sociais visando à 
adoção de políticas governamentais que melhoram a vida de toda a sociedade. No 
particular, o caso de Martin Luther King Junior é emblemático3. Ninguém em sã 
 
2 Algo muito preocupante atualmente é a tendência que se observa em alguns setores da imprensa para 
se opor ao direito de lideres religiosos expressarem suas opiniões a respeito de questões éticas 
relacionadas com alguma política pública. A Política governamental, com certeza, não deve ser 
orientada para atender os valores éticos defendidos por este ou aquele grupo religioso, mas não se pode 
negar o direito que os religiosos – como os lideres de outros segmentos da sociedade – têm de se 
manifestar sobre qualquer política pública, exercendo de modo pleno a cidadania. Por exemplo, é 
plenamente legítima a atitude dos bispos católicos de se insurgirem contra a distribuição de 
preservativos. Ao fazê-lo, estão tão somente expressando o ponto de vista religioso sobre o assunto. 
Posso não concordar com tal posicionamento, mas de modo algum me é lícito negar-lhes o direito a que 
o manifestem. Qualquer pessoa – jornalista ou não – pode considerá-lo retrógrado e expor os motivos 
para que as políticas de saúde pública não o acolham. Porém, o argumento que muitas vezes tem sido 
utilizado – o de que eles deveriam ficar calados porque o Brasil é um país laico – nada mais é do que 
uma falácia autoritária. Democracia é convivência dos contrários. A tentativa de influenciar a política 
governamental é prerrogativa de qualquer grupo social, consectário inevitável da cidadania, não 
consistindo em si mesma afronta à laicidade estatal. 
3 A propósito, vale conferir o excelente livro do sociólogo Paul Freston, Religião e política, sim; Igreja e 
Estado, não (Viçosa, MG: Ultimato, 2006), no qual o autor ao mesmo tempo em que sustenta (p. 10) 
consciência pode negar que muitas das políticas governamentais americanas foram 
fortemente influenciadas pelo Movimento dos Direitos Civis liderado pelo pastor batista 
com motivações fortemente religiosas. 
Se as políticas estatais não são absolutamente jejunas da influência religiosa e se 
o Estado laico não é sinônimo de anti-religioso ou ateísta, como devemos entendê-lo? 
Na verdade, laico nada mais é do que o caráter de neutralidade religiosa do Estado. O 
Estado laico é aquele que não privilegia nenhuma religião em particular e cuja política 
não é determinada por critérios religiosos. Significa dizer, ainda, que os Estados e as 
comunidades religiosas não sofrem interferências recíprocas no que diz respeito ao 
atendimento de suas finalidades institucionais. 
Vale lembrar, todavia, que interferência não se confunde com influência. Uma 
ilustração pode aclarar a distinção. Nada mais natural que dois jovens recém-casados 
tragam para o seu casamento a carga cultural recebida de seus pais. O modo pelo qual 
foram criados certamente contribui para sua visão de mundo e, de alguma maneira, 
influencia a vida do casal. Eventualmente, marido e mulher podem ouvir alguma 
sugestão dos seus pais sobre algum assunto em particular (a aquisição de um imóvel, 
por exemplo) e o jovem casal pode seguir ou não o conselho recebido. Isso pode ser 
rotulado como influência. Todavia, se a sogra da jovem esposa liga para a residência do 
casal e determina à cozinheira qual o cardápio diário a ser seguido, mesmo que 
motivada por preocupações com a saúde do seu filho, estamos diante de uma 
interferência e não mais de uma mera influência. Do mesmo modo, as políticas públicas 
não podem ser ditadas pelo pensamento religioso ou idealizadas para satisfazer este ou 
aquele grupo religioso, porque o que se busca numa comunidade política é a satisfação 
dos interesses de todo o grupo social, composto por cidadãos de todas as matizes 
ideológicas (religiosas ou não). Nada impede, entretanto, que grupos de pressão 
(religiosos ou não) postulem pela adoção de políticas públicas neste ou naquele sentido, 
conquanto o critério para a decisão estatal jamais deva ser determinado pelo 
pensamento religioso. 
Para nós, ressalvados os direitos nacionais que adotem oficialmente umaideologia ateísta ou anti-religiosa (que não constituem propriamente modelos de Estado 
 
que o papel do Estado não é defender ou promover determinada igreja ou religião, afirma que é lógica e 
historicamente falso dizer que a religião nada tem a ver com a ação política. No seu entendimento, 
religião e política podem, sim, ser misturadas, já que uma pessoa pode ser inspirada por sua fé religiosa 
a ingressar na política e a defender certas propostas. O que não é admissível, segundo ele, é a mistura 
entre Estado e religião. Nas suas palavras: política confessional, sim; Estado confessional, não. 
laico, mas exemplos de totalitarismo político), há dois modelos básicos de laicidade 
estatal. 
O primeiro modelo de Estado laico é o que promove uma separação tendente a 
confinar a religião ao foro íntimo das pessoas, procurando afastá-la do espaço público. 
Este é, aparentemente, o modelo que vem gradativamente sendo adotado nos países 
mais secularizados. O caso paradigmático é o da França, onde a religião tem sido 
gradualmente expulsa do espaço público, a ponto de o Parlamento francês ter 
recentemente aprovado uma lei (Lei n° 2004-228, de 15 de março de 2004) que proíbe 
aos alunos das instituições públicas de ensino a utilização de símbolos e vestimentas 
que representem uma manifestação ostensiva de sua identidade religiosa4. 
O segundo modelo de Estado laico é o que, vendo no fenômeno religioso um 
importante elemento de integração social, não pretende afastá-lo por completo do 
espaço político. Ao contrário, até incentiva as expressões de religiosidade no espaço 
público, chancelando-as de diversos modos, como, por exemplo, favorecendo o 
estabelecimento de capelanias em corporações militares. 
Entre um modelo e outro, é claro, há diversas gradações, considerando-se as 
peculiaridades de cada ordenamento jurídico nacional e a tradição de cada povo. As 
dimensões do muro que separa a comunidade política das organizações religiosas 
variam, assim, de Estado a Estado. Certamente há circunstâncias históricas específicas 
que explicam o porquê da prevalência num dado sistema jurídico de uma concepção 
mais próxima deste ou daquele modelo, circunstâncias estas que estão ligadas ao 
desenrolar do processo de secularização vivenciado por cada sociedade5. 
Ora, a secularização – entendida como o processo pelo qual a sociedade se 
afastou do controle da Igreja, de forma que a ciência, a educação, a arte e a política 
ficaram livres da conformidade com o dogma teológico e as hierarquias eclesiásticas6 – 
conquanto constitua um fenômeno que alcança todo o mundo ocidental, apresenta-se de 
forma diferente nos diversos Estados, por razões diversas, dentre as quais se inclui até 
 
4 Article 1: Il est inséré, dans le code de l'éducation, après l'article L. 141-5, un article L. 141-5-1 ainsi 
rédigé: « Art. L. 141-5-1. - Dans les écoles, les collèges et les lycées publics, le port de signes ou tenues 
par lesquels les élèves manifestent ostensiblement une appartenance religieuse est interdit. Le règlement 
intérieur rappelle que la mise en oeuvre d'une procédure disciplinaire est précédée d'un dialogue avec 
l'élève. 
5 Sobre secularização, Cf. MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização. As categorias do tempo, São 
Paulo: Ed. UNESP, 1995, e, do mesmo autor: Céu e Terra: genealogia da secularização / tradução 
Guilherme Alberto Gómez de Andrade. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1997 (Ariadne). 
6 A definição é de SWOMLY, John M. apud MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes, Liberdade religiosa 
numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Boletim 
da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,1996.. p. 93. 
mesmo a concepção teológica sustentada pela religião majoritária. O processo de 
secularização em países de tradição católica não se dá na mesma velocidade que em 
países de tradição calvinista, por exemplo7. Do mesmo modo, quando a comparação é 
entre países tradicionalmente cristãos e países tradicionalmente budistas ou 
muçulmanos. 
Um outro aspecto importante nesta consideração diz respeito à motivação 
principal da separação entre o Estado e as organizações religiosas, questão levantada 
por Huston Smith quando diz: 
 
[...] as opiniões variam quanto ao que a doutrina constitucional da separação 
entre Igreja e Estado tem como intenção primeira. A intenção é proteger as 
Igrejas da interferência governamental ou proteger a política de grupos de 
pressão religiosos?8 
 
Não nos parece desarrazoado que, embora o princípio da separação seja capaz de 
atender a ambos os interesses, dependendo das particularidades históricas de cada país 
que o adotou, tenha havido historicamente a precedência de uma intenção sobre a outra. 
Nos Estados Unidos, por exemplo, vê-se claramente que a intenção primeira dos 
constitucionalistas foi a de proteger as igrejas da interferência governamental, sobretudo 
para garantir proteção ao pluralismo religioso que marcou a história norte-americana 
desde os seus primórdios9. 
Já na França, a intenção primeira – claramente perceptível na Declaração de 
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 – foi a de proteger o Estado da interferência 
religiosa10. Sem pretender superestimar tal dado, é plausível que os modelos de Estado 
laico que se desenvolvem em ambos os países tenham guardado alguma relação com a 
 
7 Antonio Martínez Blanco afirma que o processo de aconfessionalização do Estado é lento nos países 
católicos. Se assim o é, a França constitui-se numa notável exceção dentre os países de tradição católica. 
8 SMITH, Huston. Por que a religião é Importante: o destino do espírito humano num tempo de 
Descrença. Tradução Euclides L. Calloni. Cleusa M. Wosgrau. São Paulo: Editora Cultrix, 2001, p. 101. 
9 Vale lembrar que os colonos que abarrotaram o Mayflower e atravessaram o Atlântico eram, em sua 
maioria, puritanos ingleses que fugiam da perseguição religiosa patrocinada pela Igreja da Inglaterra e 
pelo Estado Inglês. 
10 Diz-nos JELLINEK (La Declaración de los Derechos del Hombre y del Ciudadano. Traducción y 
estudio preliminar Adolfo Posada. 2. ed. México: Universidad Nacional Autónoma de México, Instituto 
de Investigaciones Jurídicas, 2003, p. 105) que, ao contrário da Declaração da Virgínia, de 1776, e de 
outras Declarações americanas, que consagram a liberdade religiosa, a Declaração Francesa de 1789 
proclama apenas a tolerância: “[...] en un punto esencial, la Declaración francesa se queda detrás de las 
americanas. Sólo de un modo tímido y disimulado se atreve el artículo 10 a tocar lo de la manifestación 
de las opiniones en materia religiosa: como la Constituyente quería contemporizar con los sentimientos 
de sus miembros eclesiásticos y de la gran masa del pueblo, no se aventura a proclamar la libertad 
religiosa, sino únicamente la tolerancia”. Tal circunstância é também lembrada por André Ramos 
Tavares (Curso de direito constitucional. 3. ed. rev. e atual.São Paulo: Saraiva, 2006.. p. 399). 
intenção inicial que determinou a adoção por cada ordenamento constitucional do 
princípio da separação entre Estado e confissões religiosas. 
A par disso, há também outro aspecto a ser considerado. Em muitos paises, os 
movimentos sociais e políticos que levaram ao estabelecimento do princípio de 
separação entre a Igreja e o Estado, também agasalhavam representantes das confissões 
religiosas minoritárias, ora perseguidas, ora apenas toleradas pelo poder público. As 
confissões religiosas, a cujos integrantes não era conferida a plenitude dos direitos – não 
podiam, por exemplo, ser funcionários públicos – também se mobilizaram na luta pelo 
estabelecimento de um Estado laico, vendo aí a solução para que lhes fosse assegurada a 
cidadania plena. Se isso é verdade, não se pode dizer que necessariamente o processo de 
secularização levou à adoção do princípio da separação entre o Estado e as organizações 
religiosas. Muitas vezes,a adoção do princípio da separação resultou muito mais do 
interesse dos próprios grupos religiosos, receosos de que a organização política 
privilegiasse um determinado grupo em detrimento dos outros ou, pelo menos, de que 
esta adotasse uma postura invasiva em relação ao domínio religioso. Por isso, na 
evolução histórica de alguns países o princípio da separação pode não ter representado 
um efeito imediato do processo de secularização e, ao invés disso, ter até contribuído 
para a aceleração deste processo. 
O que impende frisar, no entanto, é que o princípio da separação é uma via de 
mão dupla: tanto serve para afastar a interferência estatal na esfera religiosa quanto para 
afastar a interferência religiosa na esfera estatal. 
Como o presente artigo visa precipuamente à investigação do modelo de 
laicidade estatal adotado pelo ordenamento jurídico pátrio, não é excessivo aqui, posto 
que com brevidade, mostrar como se deu historicamente a passagem do Estado 
brasileiro de um Estado confessional para um Estado laico. Tal informação histórica 
lança algumas luzes à compreensão do modelo de laicidade adotado por nosso 
ordenamento jurídico. 
A Constituição Imperial de 1824, instituía no artigo 5, a Religião Católica 
Apostólica Romana como a Religião do Estado11. As outras Religiões eram permitidas 
com seu culto doméstico, ou particular, em casas para isso destinadas, que não tivessem 
forma exterior de templo. 
 
11 Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as 
outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, 
sem fórma alguma exterior do Templo. 
No período monárquico, como nos informa Aldir Guedes Soriano, um dos 
primeiros a reconhecer a utilidade da separação entre a Igreja e o Estado foi 
Melasporos, pseudônimo utilizado pelo advogado, jornalista e político alagoano Tavares 
Bastos, que já em 1866 escrevia o panfleto “Exposição dos verdadeiros motivos sobre 
que se baseia a liberdade religiosa e a separação entre a Igreja e o Estado”, onde se lê 
que “a separação completa da Igreja do Estado, a independência absoluta do poder 
religioso, na economia, governo e direcção dos cultos, é o único meio de tornar 
satisfatórias as relações dos poderes civis e eclesiásticos”12. 
Outros intelectuais e políticos se somaram à luta pelo estabelecimento de um 
Estado laico, dos quais se sobressai o jurista baiano Rui Barbosa, que desde 1876 
passou a escrever e pregar contra o consórcio da Igreja com o Estado. Todavia, durante 
todo o período monárquico o Estado e a Igreja Católica mantiveram-se unidos, 
recebendo esta subvenções e privilégios do poder público. 
Como, em geral, os republicanos sempre foram favoráveis à separação, mesmo 
porque a luta contra a monarquia naquele momento histórico fazia-se em certo sentido 
também contra a religião do Estado que, em última análise, legitimava o poder imperial, 
uma das primeiras medidas do governo provisório republicano foi extinguir o padroado. 
Com efeito, em 07 de janeiro de 1890, menos de dois meses após a Proclamação da 
República, o governo provisório chefiado pelo Marechal Deodoro da Fonseca baixou o 
Decreto n. 119-A, redigido por Rui Barbosa, que extinguiu o padroado, proibiu a 
intervenção da autoridade federal e dos estados federados em matéria religiosa e 
consagrou a plena liberdade de culto. O decreto foi acolhido pela Constituição da 
República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891, que estabelecia no 
art. 11, ser vedado aos Estados, como à União, estabelecer, subvencionar ou embaraçar 
o exercício de cultos religiosos. 
De lá para cá o princípio da separação tem-se mantido em todas as constituições 
federais, sempre resguardando a colaboração em prol do interesse público, à exceção da 
Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, outorgada por 
Getúlio Vargas, que, embora tenha adotado o princípio da separação, não se refere 
expressamente à colaboração em prol do interesse coletivo13, como fizeram as demais 
constituições republicanas que se seguiram à promulgada em 1891, inclusive a atual. 
 
12 MELASPOROS, apud Soriano, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e 
internacional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. P. 78 
13 Constituição de 1891: Art 11 - É vedado aos Estados, como à União: 2 º) estabelecer, subvencionar ou 
embaraçar o exercício de cultos religiosos; Constituição de 1934: Art 17 - É vedado à União, aos 
Vê-se, na nossa história constitucional, uma tradição de aconfessionalidade 
estatal que remonta aos primórdios da República e que, na sua intenção primária, visava 
muito mais a proteger o Estado da interferência da Igreja Católica que propriamente 
assegurar proteção às organizações religiosas da interferência governamental. Não há 
dúvidas, porém, que as minorias religiosas foram grandemente beneficiadas com a 
extinção do padroado. Tanto isso é verdade que, após mais de cem anos de República, 
as religiões não-católicas somam na população brasileira quase 19% de adeptos, 
destacando-se os evangélicos que, no censo de 2000, contavam com mais de 15%14. 
Mesmo que num primeiro instante a preocupação maior dos republicanos não fosse a de 
expandir os direitos das minorias religiosas, este resultado também foi obtido com a 
extinção do padroado. 
A pergunta que nos resta responder, então, é qual o modelo de laicidade estatal 
adotado por nosso sistema constitucional, se um modelo mais aberto para a 
manifestação religiosa inclusive no espaço público, se um modelo mais fechado. Não 
nos parece que seja uma tarefa árdua descobri-lo. Uma boa pista é fornecida pela leitura 
do preâmbulo da Constituição de 1988: 
 
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em 
Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado 
Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos 
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, 
o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores 
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem 
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, 
na ordem interna e internacional, com a solução pacífica 
das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, 
 
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: II - estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de 
cultos religiosos; III - ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto, ou igreja sem prejuízo 
da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo; Art 32 - É vedado à União, aos Estados e aos 
Municípios: b) estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos; Constituição de 
1946: Art 31 - A União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado: cultos religiosos, ou 
embaraçar-lhes o exercício; III - ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou igreja, 
sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo; Constituição de 1967: Art 9º - A 
União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado: II - estabelecer cultos religiosos ou 
igrejas; subvencioná-los; embaraçar-lhes o exercício; ou manter com eles ou seus representantes 
relações de dependência ou aliança, ressalvada a colaboração de Interesse público, notadamente nos 
setores educacional, assistencial e hospitalar 
14 No censo de 2000, 73,6% declararam-se católicos; 15,4% evangélicos; 1,3% espíritas; 0,3% umbanda 
e candomblé; 1.8% outras religiosidades; 7,4% sem religião. Fonte: IBGE, Censo demográfico 2000. 
a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA 
FEDERATIVA DO BRASIL.15 
 
 
Quando os constituintes invocam a proteção de Deus, deixam claro que nossa 
ordem jurídica constitucional não adota uma separação extremada entre Estado e 
Religião, da espécie a que os doutrinadores europeus denominariam de “laicismo”. 
Ainda que não pretendamos atribuir um conteúdo principiológico ao preâmbuloda 
Carta Magna, a invocação da proteção divina não é destituída de significado. Tanto isso 
é verdade que a sua inclusão no texto constitucional provocou acaloradas discussões e 
polêmicas durante os trabalhos da Assembléia Constituinte. Com efeito, a referência a 
Deus está a revelar que o Estado brasileiro tem em relação ao transcendente, ou seja, à 
fé religiosa, uma atitude de respeito e valorização16. Isso vai ficar muito claro a partir da 
leitura de diversos preceitos constitucionais17, alguns dos quais serão examinados em 
outro tópico deste trabalho, que evidenciam à saciedade que o nosso ordenamento 
adotou uma neutralidade benevolente, tendente a obsequiar o fenômeno religioso e não 
a expurgá-lo por completo do espaço público. Tal constatação não escapa à acuidade 
intelectual de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que assim se pronuncia: 
Esta Constituição segue em princípio o modelo de separação, mas a 
neutralidade que configura é uma “neutralidade” benevolente, simpática à 
religião e às igrejas. É o que decorre das normas adiante assinaladas: 
1) A Constituição não é atéia. Invoca no Preâmbulo o nome de Deus (o que 
já fazia a Constituição de 1934), pedindo-lhe a proteção. 
2) Aceita como absoluta a liberdade de crença (art. 5º, VI). 
3) Consagra a separação entre Igreja e Estado (art. 19, I). 
4) Admite, porém, a “colaboração de interesse público” (art. 19, I, in fine). 
 
15 Grifamos. 
16 Vale registrar que ao julgar Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pelo Partido Social Liberal, 
que sustentava que o preâmbulo da Constituição do Estado do Acre deveria reproduzir a invocação da 
proteção de Deus, o Supremo Tribunal Federal negou força normativa ao Preâmbulo da Constituição 
Federal, nos seguintes termos: “I - Normas Centrais da Constituição Federal: essas normas são de 
reprodução obrigatória na Constituição do Estado-membro, mesmo porque, reproduzidas ou não, 
incidirão sobre a ordem local. II - Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação 
da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não 
tendo força normativa” (ADI 2.076, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 08/08/03). Parece óbvio, contudo, 
que o Preâmbulo da CF, ainda que se lhe negue o caráter de norma central, evidencia uma indisfarçável 
simpatia do Estado brasileiro pelo fato religioso, que vai ser confirmada em diversos dispositivos 
constitucionais com força normativa. 
17 Por exemplo, Art. 150: Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à 
União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...] VI - instituir impostos sobre: [...] b) 
templos de qualquer culto; 
http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/IT/frame.asp?classe=ADI&processo=2076&origem=IT&cod_classe=504
5) Permite a “escusa de consciência”, aceitando que brasileiro se recuse, por 
motivos de crença, a cumprir obrigação a todos imposta (art. 5º, VIII), desde 
que aceite obrigação alternativa. (Caso não o faça, ocorrerá a perda dos 
direitos políticos – arts. 5º, VIII, e 15, IV.) 
6) Assegura a liberdade de culto (art. 5º, VI) (subentendida a limitação em 
razão da ordem pública). 
7) Garante a “proteção dos locais de culto e das liturgias”, mas na forma da 
lei”. 
8) Favorece as igrejas, assegurando-lhes imunidade quanto a impostos 
incidentes sobre seus “templos” (art. 150, VI, b). Entretanto, como explica o 
art. 150, § 4º., esta imunidade abrange “o patrimônio, a renda e os serviços 
relacionados com as (suas) finalidades essenciais”18. 
 
É bom assinalar que, embora a aconfessionalidade estatal seja uma característica 
comum a todas as constituições republicanas, houve desde a primeira Constituição 
promulgada em 24 de fevereiro de 1891 até a Constituição atual, promulgada em 05 de 
outubro de 1988, algumas alterações significativas no que se refere ao modelo de 
separação. Aqui no Brasil o tratamento da questão da laicidade estatal em nível 
constitucional está aparentemente na contramão da tendência que tem sido registrada na 
Europa de um distanciamento cada vez maior entre a organização política e as 
organizações religiosas. 
Não se vislumbra na primeira Constituição da República um modelo de 
separação tão benevolente em relação às organizações religiosas quanto o adotado pela 
atual Constituição Federal. Comparando-se ambos os modelos, é fácil perceber que o 
assumido pela Constituição de 1891 não demonstra igual simpatia pelo fenômeno 
religioso, como se vê no quadro comparativo a seguir: 
 
 
 
A Constituição de 1988 
 
 
A Constituição de 1891 
Invoca a proteção de Deus no seu 
Preâmbulo. 
Não fazia referência em momento 
algum ao nome de Deus. 
Assegura, nos termos da lei, a 
prestação de assistência religiosa nas 
entidades civis e militares de 
internação coletiva (art. 5º, VII). 
Não previa a prestação de 
assistência religiosa nas entidades de 
internação coletiva. 
 
18 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Religião, Estado e Direito. Revista Direito Mackenzie, Ano 3, 
Número 2 – P. 89 
No próprio preceito que estabelece o 
princípio da separação entre Igreja e 
Estado (art. 19, I), admite, como 
exceção ao princípio, a “colaboração 
de interesse público”. 
Rejeitava peremptoriamente 
quaisquer relações de dependência 
ou aliança entre o estado e as 
organizações religiosas (art. 72, § 
7º), não prevendo a “colaboração de 
interesse público”. 
Dispõe que o ensino religioso, de 
matrícula facultativa, constituirá 
disciplina dos horários normais das 
escolas públicas de ensino 
fundamental (art. 210, § 1º). 
Previa que seria leigo o ensino 
ministrado nos estabelecimentos 
públicos (art. 72 - § 6º), não abrindo 
exceção para o ensino religioso. 
 
Estabelece imunidade tributária 
quanto aos impostos incidentes 
sobre os templos religiosos 
Não previa qualquer espécie de 
imunidade tributária em favor das 
organizações religiosas 
Atribui ao casamento religioso o 
efeito civil (art. 226, § 2º) 
Somente reconhecia o casamento 
civil (art. 72, § 4º) 
 
Cumpre realçar, neste instante, que a compreensão de que o modelo de laicidade 
adotado atualmente pelo Estado brasileiro é do tipo tendente ao favorecimento da 
expressão religiosa é muito importante quando da interpretação dos preceitos legais do 
nosso ordenamento jurídico que se inserem na temática da liberdade de organização 
religiosa. Isso porque evita que o intérprete do direito incorra no equívoco de, na 
aplicação das normas que compõem o nosso ordenamento, recorrer a propostas 
hermenêuticas importadas de países que adotam um modelo que pretende confinar a 
religião ao foro íntimo dos indivíduos, ante sua flagrante incompatibilidade com o 
ordenamento constitucional brasileiro. 
Em suma: a laicidade do Estado brasileiro, proclamada desde a instauração da 
República, na forma como é adotada pela atual Constituição Federal, longe de significar 
uma diminuição do espaço conferido ao fenômeno religioso, presta-se até a ampliá-lo e, 
sendo assim, a interpretação dos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais que 
tratam da questão da liberdade religiosa não pode ignorar esse viés hermenêutico. 
É verdade que, no plano filosófico, abre-se a possibilidade de discutir a justeza 
do modelo adotado e se ele representa o que há de mais avançado ou retrógrado na 
vivência democrática. É mera questão de opinião. O que não se pode conceber é que o 
intérprete do direito, em nome de posições filosóficas pessoais ou pelo mero desejo de 
imitar soluções doutrinárias e jurisprudenciais adotadas em países cujo modelo de 
laicidade seja diferente, despreze o modelo que representa uma opção clara do 
constituinte brasileiro. 
 As conclusões a que chegamos, portanto, são as seguintes: 
 • Não há um modelo universal de laicidade que se aplique indistintamente a 
todos os países que adotam o regime de separação entre o Estado e as igrejas; 
 • Há dois modelosbásicos de laicidade estatal: um mais aberto e outro mais 
fechado à incursão do fenômeno religioso no espaço público; 
• A atual Constituição Federal do Brasil sufraga um modelo de laicidade que 
favorece o fenômeno religioso e, no particular, ainda é mais aberto para a incursão da 
religião no espaço público que o adotado pela primeira Constituição Republicana; 
 • A aplicação/interpretação do direito e dos fatos relacionados com o exercício 
da liberdade religiosa não pode abandonar o viés hermenêutico tracejado pelo 
constituinte brasileiro, o qual se orienta, em face do fenômeno religioso, por uma 
neutralidade benevolente. 
 
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