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144 Unidade II Unidade II 5 DOENÇAS INFECTOCONTAGIOSAS – HEPATITE A 5.1 Breve histórico Caro aluno, muitas condições afetam o fígado a ponto de causar icterícia (o amarelamento da pele e dos tecidos) e isso é um sinal de complicação da função hepática. A história das hepatites virais remonta vários milênios. Informações contidas na literatura chinesa já faziam referência à ocorrência de icterícia entre sua população há mais de 5 mil anos. Surtos de icterícia foram relatados na Babilônia há mais de 2.500 anos. Hipócrates foi o primeiro a notar “epidemias de icterícia”, que certamente antecederam sua grande perspicácia. Hepatites costumavam ser um fator em grandes campanhas militares; durante a Guerra Civil dos Estados Unidos, pelo menos 70 mil soldados foram acometidos por hepatite. Na Primeira Guerra Mundial, o número de casos de hepatite, sem dúvida, ocasionado provavelmente pelo vírus da hepatite A (HAV), ganhou proporções de pandemias, acometendo milhares de soldados no front da guerra. Com o advento da insulina parenteral, em 1922, foi notório o surgimento de inúmeros casos de icterícia em clínicas de diabetes na Suécia. Tal fato deu-se em razão do uso de lancetas de mola (pressão) para a dosagem da glicemia. Essas lancetas eram limpas, mas não esterilizadas, antes de serem novamente utilizadas. No início da Segunda Guerra Mundial, os investigadores diferenciavam dois tipos de hepatites, com base em como a doença se disseminava: uma forma infecciosa, por meio de alimentos ou água contaminados, e outra forma que era contraída pelo sangue. Supõe-se que na região Amazônica brasileira, o emprego em massa da vacina contra a febre amarela nas décadas de 1940 e 1950, utilizando ainda vacinas derivadas de plasma humano e seringas e agulhas não descartáveis, tenha sido um dos veículos responsáveis pela disseminação e propagação da infecção pelo vírus da hepatite B (HBV) e da hepatite D (HDV) entre sua população. Outro provável veículo de transmissão do HBV na região Amazônica, área sabidamente endêmica de infecção pelo HBV e HDV, seria o uso de lancetas não descartáveis para fins de punção digital no diagnóstico da malária. Somente nas décadas de 1960 e 1970 é que os vírus causadores de hepatite foram identificados, em parte com a ajuda de um estudo escandaloso envolvendo crianças com deficiência mental (Escola Estadual de Willowbrook, Long Island, NY), em que as condições precárias de vida a que eram submetidas promoveu taxa de infecção próxima a 100%. 145 BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR Sabe-se que o vírus da hepatite A infecta apenas seres humanos e alguns outros primatas, principalmente por meio de água e alimento contaminados com matéria fecal. A hepatite A é, portanto, uma doença que tende a aparecer onde o saneamento e a higiene são precários. Tal como acontece com a poliomielite, as pessoas em países pobres tendem a contrair hepatite A no início da vida, quando os sintomas são geralmente leves. No entanto, viajantes frequentes a esses lugares podem pegá-lo quando adultos e sofrer muito. Nos Estados Unidos, onde não ocorrem mais epidemias, os surtos são mais comuns em creches, entre homossexuais sexualmente ativos e em associação com água poluída ou alimentos não cozidos, como mariscos provenientes de água contaminada. Crianças pequenas infectadas quase nunca ficam ictéricas, mas são as principais fontes de contágio para adultos, que geralmente apresentam todos os sintomas clássicos de náuseas, vômitos, urina escura e olhos e pele amarelados. Desde 1971, quando a hepatite A atingiu cerca de 50 mil americanos, principalmente na faixa etária de 15 a 24 anos, a doença apresentou tendência de queda em número e aumento de idade. Hoje mostra fortes laços “socioeconômicos”, uma forma educada de dizer que atinge com mais força as minorias carentes. Em 2007, havia apenas 2.979 casos relatados nos Estados Unidos de hepatite A aguda, mas o número anual de novas infecções pode chegar a 25 mil. Em maio de 2001, a Food and Drug Administration aprovou uma vacina chamada Twinrix contra hepatite A e B para pessoas com mais de 18 anos. Duas outras vacinas, Havrix e Vaqta, que protegem apenas contra a hepatite A, são licenciadas para crianças a partir de 1 ano de idade. 5.2 Agente etiológico O vírus da hepatite A, um vírus de RNA de fita simples positiva, pertencente à família Picornaviridae, gênero Hepatovirus, é um patógeno hepatotrópico antigo, que infecta seres humanos há milênios. A análise de genomas atuais de HAV humanos sugere um ancestral comum recente de aproximadamente 1.500 anos, sendo que possivelmente todas as variantes símias e humanas derivam de um ancestral comum que pode ter existido há 2 mil a 3 mil anos. HAV é principalmente (mas não exclusivamente) transmitido através da via fecal-oral e causa epidemias, com quadros anictéricos ou ictéricos. Quase um século se passou desde que foi reconhecido que o vírus da raiva se torna não infeccioso pela exposição ao éter, enquanto o poliovírus é resistente a tratamentos semelhantes. Na década de 1940, essas primeiras observações levaram a estudos sistemáticos que buscavam classificar os vírus humanos patogênicos com base em sua sensibilidade à inativação do éter. Vírus que eram sensíveis ao éter também eram tipicamente inativados pelos sais biliares, assim propôs-se que a sensibilidade ao éter refletia a presença de lipídeos na superfície do vírus. 146 Unidade II Figura 77 – Primeira identificação por microscopia eletrônica de partículas de HAV em amostras de fezes Fonte: Feinstone et al. (1973, p. 1027). Antes da disponibilidade de técnicas de sequenciamento, a presença ou ausência de um envelope lipídico serviu como um atributo básico para a classificação de vírus animais. Embora muitos virologistas tenham uma noção arraigada de que os vírus ou são envelopados ou não o são, os estudos atuais em dois vírus de RNA não relacionados, o vírus da hepatite A (HAV) e o vírus da hepatite E (HEV), desafiam esse antigo princípio. As proteínas expressas na superfície do envelope facilitam a fusão das membranas celulares e virais após as interações iniciais com o receptor, resultando na liberação do conteúdo do vírion para o interior da célula. Um envelope também pode impedir que antígenos internos sejam reconhecidos por anticorpos neutralizantes. Por outro lado, ter um envelope lipídico claramente limita a capacidade de um vírus sobreviver em condições ambientais adversas, incluindo desidratação ou exposição a solventes orgânicos e detergentes. Assim, a transmissão de vírus envelopados normalmente é resultado de contato próximo entre hospedeiros infectados e não infectados, e frequentemente requer inalação de aerossóis ou troca de secreções. Os vírus não envelopados têm uma clara vantagem em termos de sua capacidade de se 147 BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR espalhar pelo ambiente. Surtos de hepatite A e hepatite E transmitidos por alimentos e água fornecem bons exemplos disso e mostram como os capsídeos nus (sem envelope) podem proteger um genoma de RNA eficientemente. Estudos recentes sugerem que o HAV e o HEV se beneficiam do melhor desses dois mundos. Ambos os vírus são hepatotrópicos e causam hepatite aguda transmitida entericamente em seres humanos. Ambos são vírus de RNA, mas têm arquiteturas de genoma muito diferentes e são classificados em diferentes famílias de vírus. Tanto o HAV quanto o HEV são eliminados nas fezes de indivíduos infectados como vírions estáveis, sem envelope. No entanto, o HAV circula no sangue durante a infecção aguda em uma forma envolta por membrana, protegida da ação direta de anticorpos neutralizantes e ainda com infectividade equivalente à das partículas virais nuas. De forma equivalente, o mesmo ocorre para o HEV. Essas formas envoltas por membrana do HAV e do HEV diferem dos vírus envelopados clássicos pois a bicamada lipídica circundante parece ser desprovida de proteínas codificadas pelos vírus. Isso permite que o vírus circulede forma disfarçada, como uma vesícula exocítica do próprio hospedeiro, facilitando sua disseminação pelo organismo. No entanto, isso levanta questões sobre como ocorre a entrada do vírus em células na ausência de proteínas virais dispostas na bicamada lipídica. Em função dessa ausência, esses vírions envoltos por membrana são considerados quase envelopados. Lembrete A forma do HAV encontrada nas fezes de pacientes infectados, bem como em água e alimentos contaminados, é a forma não envelopada. A forma revestida por membrana (chamada de quase envelopada) é encontrada apenas na corrente sanguínea do paciente infectado. A estrutura geral dos capsídeos de picornavírus é bem caracterizada. O capsídeo consiste em um arranjo icosaédrico densamente empacotado de 60 protômeros, cada um consistindo de 4 polipeptídeos (VP1, VP2, VP3 e VP4). VP4 está localizado na face interna do capsídeo. Cinco cópias de VP1 se associam ao redor de um mesmo eixo e três cópias de VP2 e VP3 se alternam em torno de VP1. É a superfície externa do capsídeo viral que medeia as interações com receptores na superfície de células do hospedeiro. Assim, diante da ingestão de partículas virais não envelopadas de HAV – as formas resistentes presentes em água ou alimentos contaminados -, os vírions atravessam mucosas do trato gastrointestinal (como orofaringe ou enterócitos), caem na circulação e alcançam o fígado. Em contato com hepatócitos, as interações entre o capsídeo viral e receptores celulares são críticas para promover a endocitose, a dissociação do capsídeo e a entrega segura do RNA viral através das membranas endossomais em direção ao citoplasma. O receptor de fosfotidilserina TIM1 (imunoglobulina de células T e mucina de domínio 1, também conhecido como HAVCR1, receptor celular 1 para o vírus da hepatite A) foi identificado como um receptor para HAV há mais de 20 anos, antes da descoberta de vírions HAV quase envelopados. 148 Unidade II Desde então, foi demonstrado que o TIM1 facilita a ligação da forma quase envelopada de HAV, mas não de vírions HAV nus à superfície da célula, presumivelmente por meio da ligação de resíduos de fosfatidilserina exibidos na superfície da membrana de HAV quase envelopados. No entanto, o TIM1 não é essencial para a fixação ou entrada de HAV nus ou HAV quase envelopados. Até agora, um receptor essencial ainda não foi identificado para quaisquer das formas de HAV. Figura 78 – Estrutura geral de picornavírus Disponível em: https://bit.ly/37efycv. Acesso em: 5 fev. 2021. Tanto a entrada de HAV nus quanto de HAV quase envelopados ocorre principalmente por meio de endocitose dependente de clatrina e dinamina. As rotas de tráfego endocítico para esses diferentes tipos de vírions são bastante semelhantes, mas eles são segregados diferencialmente dentro do endossomo tardio e liberam seus genomas de RNA em diferentes compartimentos endocíticos. Apenas o HAV quase envelopado continua seu tráfego para atingir o lisossomo, onde ocorre a degradação do quase envelope e o desnudamento do genoma. Em contraste, o HAV nu se desnuda em endossomos tardios logo após a internalização, resultando na tradução relativamente rápida de seu RNA genômico. 149 BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR Integrina β1 Integrina β1 Endossomo inicial Endossomo tardio Rab7a Rab5A ALIX LAL NPC1 Lisossomo TIM1 Meio extracelular Receptor para HAV? Figura 79 – Modelo de invasão celular por HAV nus ou HAV quase envelopados. O capsídeo do HAV é excepcionalmente estável e o modo como ele desnuda ainda permanece um mistério. A natureza desse receptor putativo permanece desconhecida, mas os dados recentes sugerem que é provável que esteja presente no endossomo tardio. Receptor para HAV?: receptor ainda desconhecido para HAV PS: fosfatidilserina; TIM1: imunoglobulina de células T e mucina de domínio 1; Rab5A: proteína presente no endossomo inicial; Rab7a: proteína presente no endossomo tardio. NPC1: proteína transportadora de colesterol da doença de Niemann-Pick tipo C1 (marcador lisossomal); LAL: lipase ácida lisossomal (marcador lisossomal). ALIX: ALG-2-interacting protein X, proteína importante do tráfego endossomal Fonte: Rivera-Serrano et al. (2019, p. 12). Uma vez no citoplasma da célula, o genoma de RNA do HAV, contendo aproximadamente 7,5 kb, é traduzido. O RNA viral é poliadenilado, composto por uma única janela aberta de leitura que codifica uma poliproteína. O RNA genômico viral tem uma proteína viral (VPg) em sua extremidade 5’ em vez 150 Unidade II de um cap metilado. Uma longa região 5’ não traduzida contém um local de entrada para o ribossomo. O RNA do vírion serve tanto como o genoma quanto como o RNA mensageiro viral. A poliproteína sintetizada é processada por proteases em várias proteínas precursoras e maduras, dando origem às proteínas estruturais (do capsídeo) e não estruturais do vírus (replicase, VPg e uma série de proteínas que modificam a célula hospedeira, levando, em última análise, à lise celular). VP2 VP3 VP1 2B 2C 3A 3Cpro 3Dpol AAAA... VPg VP4 5’ 3’ Figura 80 – Organização do genoma do HAV. O genoma de RNA fita simples polaridade positiva de 7,5 kb do HAV codifica uma grande poliproteína, que é clivada em 10 proteínas maduras. Em rosa, destaque para os genes que codificam para as proteínas estruturais (do capsídeo); em branco, genes que codificam para as proteínas não estruturais Fonte: Feng et al. (2014, p. 543). O HAV quase envelopado é o único tipo de partícula de HAV encontrado no soro e plasma de seres humanos e chimpanzés infectados, mas não é encontrado em extratos fecais, que contêm apenas vírions nus sem envelope. Por que será que isso acontece? Os hepatócitos são células altamente polarizadas, dispostas em placas, com sua membrana basolateral voltada para o espaço de Disse, que é separado do espaço intravascular por células endoteliais sinusoidais fenestradas. Uma membrana apical muito menor, representando menos de 15% da superfície do hepatócito, está voltada para pequenos canais biliares que se conectam com os canais de Hering e, daí, para dutos biliares maiores que direcionam o fluxo de bile para o intestino delgado. A bile é secretada pelos hepatócitos através da membrana apical (canalicular). Essa membrana é altamente especializada e metabolicamente muito ativa. A membrana canalicular contém vários transportadores de sais biliares, bem como atividades de flippase e floppase que ajudam a manter sua integridade em face de altas concentrações de sais biliares em seu lado luminal. Como apenas os vírions HAV quase envelopados são encontrados no soro ou plasma, pode-se presumir que a maioria senão todos os vírus liberados através da membrana basolateral dos hepatócitos no espaço perisinusoidal possuem um envelope. Em contraste, apenas o vírus sem envelope é liberado através da membrana canalicular apical para a bile ou, alternativamente, o envelope é removido das partículas de HAV quase envelopadas logo após sua liberação no canalículo biliar. Por essa razão, apenas as formas não envelopadas são encontradas nas fezes, pois alcançam o intestino pela via biliar. O que está claro é que a liberação através de ambas as membranas do hepatócito ocorre antes de qualquer evidência química ou histológica de lesão hepatocelular. 151 BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR ESCRT Citoplasma eHAV eHAV B) A) Membrana plasmática Corpos multiversiculares Figura 81 – Produção de partículas HAV quase envelopadas. Após a formação de partículas virais maduras no citoplasma, estas são cooptadas em vesículas (A) ou diretamente externalizadas pela membrana plasmática (B). eHAV: HAV quase envelopado; ESCRT: complexo de endereçamento endossomal necessário para transporte Fonte: Feng et al. (2014, p. 543). Se as formas circulantes de HAV são quase envelopadas – o que blindaria as proteínas do capsídeo do contato direto com imunoglobulinas neutralizantes – como ocorre a neutralização de partículas virais em indivíduospreviamente imunizados? Se os anticorpos também forem captados por endocitose e estiverem presentes no lisossomo, eles se ligarão ao capsídeo e neutralizarão o vírus após a degradação da membrana do HAV quase envelopado. Se receptores de imunoglobulina desempenham um papel nesse processo, isso ainda permanece incerto. 152 Unidade II Endocitose Citoplasma plasmática Membrana Anticorpos anti-HAV TIM1 eHAV Espaço extracelular Infecção Neutralização Membrana do eHAV é degradada no lisossomo Figura 82 – Modelo proposto para a neutralização da forma quase envelopada do HAV. Se os anticorpos também forem captados por endocitose e estiverem presentes no lisossomo, eles se ligarão ao capsídeo e neutralizarão o vírus após a degradação da membrana do HAV quase envelopado (eHAV) Fonte: Feng et al. (2014, p. 543). 5.3 Aspectos epidemiológicos O vírus da hepatite A (HAV) é a causa de aproximadamente metade de todos os casos notificados de hepatite viral nos Estados Unidos, embora a prevalência de infecções por HAV nesse país tenha diminuído 92% desde a introdução de uma vacina em 1995. Em 2009, estimou-se que mais de 21 mil casos de hepatite A ocorreram nos Estados Unidos, e 1,4 milhão de casos ocorreram em todo o mundo. 153 BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR Alta: prevalência maior que 8% Intermediária: entre 2-7% Baixa: menor que 2% Figura 83 – Distribuição geográfica da prevalência da hepatite A (anticorpo anti-HAV) em 2005 Disponível em: https://bit.ly/2XUkzpn. Acesso em: 27 set. 2021. Embora o número médio de infecções anuais pelo vírus da hepatite A relatado ao CDC, nos EUA, nos últimos anos tenha diminuído substancialmente em comparação com 2000, flutuações ocorreram nos últimos 20 anos devido a grandes surtos. Após uma longa tendência de queda, o primeiro aumento entre 2012 e 2013 foi devido a um grande surto multiestadual associado a romãs importadas da Turquia. Entre 2015 e 2016, os casos notificados aumentaram novamente, devido a dois surtos de hepatite A, cada um deles relacionado a alimentos importados. Aumentos substanciais nos casos incidentes de hepatite A ocorreram em 2017 e 2018 (3.366 e 12.474 casos notificados, respectivamente) devido a surtos em andamento relatados ao CDC entre usuários de drogas e pessoas em situação de rua, bem como surtos entre homens homossexuais. Estimativas atualizadas da incidência global são complicadas, em função da baixa taxa de notificação em muitos países. Os perfis de prevalência sorológica variam geograficamente. Na maioria das regiões de baixa renda, incluindo a África Subsaariana e partes do Sul da Ásia, a prevalência de anticorpos anti-HAV na população pode exceder 90% aos 10 anos de idade. Nessas áreas, a exposição ao HAV geralmente ocorre antes dos 5 anos de idade, quando a maioria das infecções pelo HAV são assintomáticas. Como resultado, existem poucos adolescentes e adultos suscetíveis e poucas doenças sintomáticas. Ao mesmo tempo, em quase todos os países de baixa renda existe agora uma classe média urbana de pessoas que não foram infectadas pelo HAV quando crianças e que correm alto risco de infecção sintomática de hepatite A mais tarde na vida. Em regiões de alta renda (Europa Ocidental, Austrália, Nova Zelândia, Canadá, Estados Unidos, Japão, República da Coréia e Cingapura), a prevalência de anticorpos anti-HAV é muito baixa (<50% são imunes aos 30 anos). Nessas regiões, a alta proporção de indivíduos suscetíveis entre adultos poderia teoricamente permitir a transmissão, mas quase não há circulação do vírus e o risco de contrair a infecção pelo HAV é baixo. 154 Unidade II No entanto, além de surtos decorrentes de alimentos contaminados, infecções por hepatite A podem ocorrer em indivíduos ou em grupos com alto risco particular de infecção, como viajantes não imunizados para áreas de endêmicas, praticantes de relação sexual desprotegida (contato boca-ânus), usuários de drogas injetáveis e, ocasionalmente, em subpopulações específicas (por exemplo, certas comunidades religiosas ou batalhões). Em raras ocasiões, principalmente antes da introdução da triagem de doadores e de procedimentos de inativação viral apropriados, a hepatite A foi associada à transfusão de sangue e hemoderivados. No Brasil, no período de 2003 a 2008, o coeficiente de incidência de hepatite A era superior ao das hepatites C e B; entretanto, após esse período, nota-se uma importante tendência de queda, atingindo 1,0/100 mil habitantes em 2018. Além disso, a tendência da taxa da hepatite A no período de 2003 a 2005 pode ser atribuída ao incremento da vigilância epidemiológica, que passou a ser individualizada para esse agravo a partir de 2003. 2003 0 4 8 12 2 6 10 14 16 2005 2007 2009 2011 Ano de notificação Ta xa d e in ci dê nc ia /d et ec çã o (x 10 0 m il ha b. ) 2013 2015 20172004 2006 2008 2010 2012 2014 2016 2018 Hepatite B Hepatite A Hepatite D Hepatite C Figura 84 – Coeficiente de incidência/detecção de hepatites virais segundo agente etiológico e ano de notificação, Brasil, de 2003 a 2018 Fonte: Brasil (2019, p. 91). 5.4 Aspectos fisiopatológicos e manifestações clínicas Após entrar em contato com o vírus, o indivíduo pode desenvolver hepatite aguda oligo/assintomática ou sintomática. Esse quadro agudo pode ocorrer na infecção por qualquer um dos vírus causadores de hepatite e possui seus aspectos clínicos e virológicos limitados aos primeiros seis meses. Apesar de não haver forma crônica da doença, há a possibilidade de formas prolongadas e recorrentes, com manutenção das aminotransferases em níveis elevados, por vários meses. A forma fulminante é rara, porém o prognóstico é ruim e pode demandar transplante hepático. 155 BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR Diante de um quadro de hepatite aguda é possível três fases. (1) Período prodrômico ou pré‑ictérico – ocorre após o período de incubação do agente etiológico e anteriormente ao aparecimento da icterícia. Os sintomas são inespecíficos: anorexia, náuseas, vômitos, diarreia ou, raramente, constipação, febre baixa, cefaleia, mal-estar, astenia e fadiga, aversão ao paladar e/ou olfato, mialgia, fotofobia, desconforto no hipocôndrio direito, urticária, artralgia ou artrite e exantema papular ou maculopapular. (2) Fase ictérica – com o aparecimento da icterícia, em geral, há diminuição dos sintomas prodrômicos. Observa-se hepatomegalia dolorosa, com ocasional esplenomegalia. (3) Fase de convalescença – segue-se ao desaparecimento da icterícia. A recuperação completa ocorre após algumas semanas, mas a fraqueza e o cansaço podem persistir por vários meses. A eliminação fecal do vírus atinge seu pico pouco antes do início da lesão hepatocelular, momento em que o indivíduo é mais infeccioso. Isso é acompanhado por uma viremia estendida que é aproximadamente paralela à eliminação do vírus nas fezes, mas em uma magnitude inferior. Segue-se lesão hepática, frequentemente com elevação acentuada de ALT (alanina aminotransferase, antiga TGP, transaminase glutâmica pirúvica). O antígeno viral pode ser detectado no citoplasma dos hepatócitos, bem como nos centros germinativos do baço, linfonodos e ao longo da membrana basal glomerular. O antígeno viral normalmente continua a ser eliminado por duas a três semanas após a primeira elevação das enzimas hepáticas. 2 2 ALT Viremia Semanas Lo g 1 0 H AV HAV fecal IgM anti-HAV IgG anti-HAV 4 6 8 10 4 6 8 10 12 14 Figura 85 – História natural de infecção por HAV. A infecção por HAV é tipicamente aguda, com sinais e sintomas que ocorrem de três a cinco semanas após a exposição. A sequência dos eventos inclui viremia (amarelo), liberação de HAV nas fezes (azul), aumento de alanina aminotransferase (ALT) sérica (linha vermelha), aparecimento de anticorpos IgM e IgG (linhas azuis). Os títulos de anticorpos IgM tipicamente declinam com o passar do tempo, mas podem ser detectados em pacientes até seis a 12 meses após a infecção Fonte: Martine Lemon (2006, p. 168). 156 Unidade II Figura 86 – Fotomicrografia de seção hepática de um paciente com hepatite A aguda. É possível verificar inflamação periportal com infiltrado linfocítico (campo superior direito), desarranjo lobular (campo inferior esquerdo). Também é evidente a balonização de hepatócitos (com vacuolização citoplasmática) Fonte: Martin e Lemon (2006, p. 165). A lesão hepática ocorre como resultado da resposta imune do hospedeiro ao HAV. A replicação viral ocorre no citoplasma dos hepatócitos; o dano hepatocelular e a destruição de hepatócitos infectados são mediados por linfócitos T CD8+ específicos para HAV e células natural killer. O interferon-gama parece ter um papel central na promoção da depuração de hepatócitos infectados, estimulando o recrutamento de fagócitos para o local da infecção. Uma resposta excessiva do hospedeiro está associada à hepatite grave. Na hepatite A, um padrão de lesão periportal é característico. Em virtude disso, frequentemente verifica-se colestase, que pode ser o resultado da destruição de dutos biliares nas margens do trato portal. Na falta de informações clínicas e sorológicas, a abundância de plasmócitos na hepatite A pode gerar confusão com hepatite autoimune. A insuficiência hepática fulminante refere-se ao desenvolvimento de lesão hepática aguda grave com encefalopatia e função sintética prejudicada. Ocorre em menos de 1% do total de casos, mais comumente em indivíduos com mais de 50 anos de idade e em indivíduos com outras doenças hepáticas, como hepatite B ou C. Esses pacientes podem precisar de transplante de fígado. 5.5 Diagnóstico laboratorial O diagnóstico de infecção aguda por HAV deve ser suspeitado em pacientes com início abrupto de sintomas prodrômicos (náusea, anorexia, febre, mal-estar ou dor abdominal) e icterícia ou níveis elevados de aminotransferase sérica, particularmente no contexto de fatores de risco conhecidos para transmissão da hepatite A. 157 BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR Lembrete O vírus da hepatite A é geralmente transmitido por via fecal-oral, seja por contato pessoa a pessoa ou consumo de água ou alimentos contaminados. No contato pessoa a pessoa destacam-se: transmissão dentro das famílias; transmissão sexual (contato anal-oral); transmissão em creches; transmissão entre militares. No contato com água ou alimentos contaminados destacam-se: consumo de frutos do mar, vegetais ou outros alimentos crus ou mal cozidos; consumo de alimentos contaminados por manipuladores infectados. O compartilhamento de agulhas expostas a sangue contaminado também é uma via de transmissão. Indivíduos sintomáticos mostram elevação acentuada nos níveis de transaminases séricas, bilirrubina total e direta e fosfatase alcalina. Com qualquer tipo de hepatite viral, o nível de alanina aminotransferase (ALT) é normalmente mais alto do que o nível de aspartato aminotransferase (AST), de 25 a 100 vezes os valores normais. As elevações nos níveis de transaminases ocorrem antes da elevação da bilirrubina, mas podem coincidir com o início da doença clínica. Durante a fase prodrômica e virêmica, a detecção direta do agente pode se dar por RT-PCR. Entretanto, em função do ainda alto custo de exames moleculares, o diagnóstico geralmente é estabelecido pela detecção de anticorpos IgM anti-HAV séricos. Os anticorpos IgM são detectáveis no momento do início dos sintomas, atingem o pico durante a fase aguda ou de convalescença inicial e permanecem detectáveis por aproximadamente três a seis meses, declinando progressivamente (rever Figura 85). A detecção de anticorpos IgM séricos na ausência de sintomas clínicos pode refletir infecção anterior por HAV com persistência prolongada de IgM, um resultado falso-positivo ou infecção assintomática (que é mais comum em crianças com menos de 6 anos de idade do que em crianças mais velhas ou adultos). Os anticorpos séricos IgG aparecem no início da fase de convalescença da doença, permanecem detectáveis por décadas e estão associados à imunidade protetora vitalícia. A detecção de anti-HAV IgG na ausência de anti-HAV IgM reflete infecção anterior ou vacinação em vez de infecção aguda. Os estudos de imagem geralmente não são indicados para o diagnóstico de infecção pelo HAV. A ultrassonografia às vezes pode ser apropriada para descartar diagnósticos alternativos (como obstrução biliar); colangiografia ou biópsia hepática geralmente não são indicadas. 5.6 Tratamento Não existe tratamento específico para as formas agudas de hepatite, exceto para hepatite C e hepatite B aguda grave. Para as demais hepatites, se necessário, apenas tratamento sintomático para náuseas, vômitos e prurido. Como norma geral, recomenda-se repouso relativo até a normalização das aminotransferases. A única restrição dietética está relacionada à ingestão de álcool. 158 Unidade II 5.7 Imunização A exposição ao patógeno ou à vacina promove imunidade duradoura e protetiva ao HAV. Conquistas na melhoria dos meios de profilaxia ativa contra o HAV foram lideradas principalmente por duas equipes de fabricantes farmacêuticos, a saber, o pioneiro mundial no desenvolvimento de vacinas Maurice Hilleman (e seus colaboradores da MSD) e Francis Andre (e seus colaboradores da GlaxoSmithKline – GSK; originalmente SmithKline Beecham). A vacina da GSK (HAVRIX, vacina de vírus inativado) e a vacina da MSD (VAQTA, vacina de vírus inativado) foram licenciadas em meados da década de 1990 nos Estados Unidos e em todo o mundo. Atualmente, outras vacinas adicionais estão disponíveis. A memória imunológica contra o HAV, após a injeção da vacina, persiste por anos e, conforme demonstrado para as vacinas inativadas com formaldeído, dura pelo menos 22 anos sem a necessidade de uma dose de reforço. Inicialmente, a imunização era oferecida apenas a grupos considerados de alto risco de contração do HAV ou para crianças que residiam em regiões endêmicas do HAV. Mais tarde, as campanhas de imunização em massa em bebês tiveram um impacto impressionante na queda da incidência de infecção pelo HAV, não apenas em crianças, mas também em adultos na Europa, Ásia e Estados Unidos. Em fevereiro de 2020, a vacinação contra o HAV foi introduzida por 40 países em todo o mundo, seja em programas de vacinação infantil de rotina ou em grupos de risco específicos. Em resumo, enquanto a infecção pelo HAV aflige humanos há milhares de anos, os avanços recentes nas ferramentas diagnósticas, o desenvolvimento de vacinas eficazes e a melhoria das condições socioeconômicas estão contribuindo para o controle da hepatite A em todo o mundo. Esperamos um dia replicar esses sucessos com influenza e outras doenças virais potencialmente mortais, como síndrome respiratória aguda grave, Ebola e especialmente com COVID-19, que atualmente é uma pandemia e cuja ameaça aparenta não ter sido totalmente compreendida. 6 DOENÇAS INFECTOCONTAGIOSAS – GONORREIA 6.1 Breve histórico A gonorreia é uma doença humana antiga. Você sabia que há referências aos seus sintomas no Antigo Testamento da Bíblia? (Vide Levítico 15: 1-3). Os hebreus foram poéticos em seus registros, sugerindo cautela no contato com a “mulher imoral e leviana” (Provérbios 7:5). Por quase 700 anos, a doença foi conhecida como the clap, uma provável referência ao antigo bairro Le Clapiers de Paris, onde as prostitutas ficavam alojadas. Os franceses, sempre explícitos, chamavam-na de chaude pisse – que significa “mijo quente” – já no século XII. Para os antigos chineses, a gonorreia era a doença “diferente de todas as outras”. Para os gregos, era strangouria, ou bloqueio urinário. A gonorréia, (do grego gonos, semente, e rheein, fluir/fluxo) é uma das doenças mais antigas e conhecidas da humanidade. No espectro sombrio das doenças venéreas (de Vênus, a deusa do amor), a gonorreia tem a reputação de não ser tão ruim. Além disso, o quadro é obscurecido por três suposições comuns: muitos homens infectados sentem um leve desconforto que melhora espontaneamente;antibióticos estão disponíveis 159 BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR quando necessário; e a maioria das mulheres infectadas não apresenta sintomas. Todas são verdadeiras, mas existem reflexões importantes a serem feitas. A bactéria que causa essa doença, Neisseria gonorrhoeae (batizada em homenagem a Albert Neisser, o bacteriologista alemão que a descobriu em 1879), está perfeitamente adaptada a certos tecidos humanos e maneiras de encontrar novos suprimentos, daí sua relação parasitária primordial. Os bebês podem contraí-la nos olhos durante o parto de mães infectadas, e isso costumava ser uma causa importante de cegueira em recém-nascidos. A aplicação rotineira de solução de nitrato de prata nos olhos de todas as crianças ao nascer superou amplamente essa tragédia. Crianças pré-púberes com gonorreia quase certamente foram abusadas sexualmente. Figura 87 – Propaganda para uso de penicilina para tratamento da gonorreia, EUA, 1940. Em livre tradução, o anúncio estampado em uma lata de lixo diz: “penicilina cura gonorreia em 4 horas, procure seu médico hoje” Disponível em: Biddle (2002). Até 1937, quando as sulfas foram consideradas eficazes no combate a N. gonorrhoeae, não havia cura. A penicilina logo entrou no rol de medicamentos disponíveis. Infelizmente, a praga adaptou-se muito rapidamente e adquiriu mecanismos de resistência a antibióticos. As sulfas foram usadas tão livremente durante a Segunda Guerra Mundial que bactérias resistentes surgiram em todos os lugares. Em 1976, após a proliferação de doenças venéreas que acompanhou o advento da pílula anticoncepcional e a revolução sexual, cepas resistentes à penicilina (conhecidas como PPNG, para Neisseria gonorrhoeae produtora de penicilinase) começaram a aparecer nos Estados Unidos, importadas em grande parte das Filipinas por militares. Logo surgiram bactérias que também eram resistentes à tetraciclina, espectinomicina e fluoroquinolonas. Outros fármacos ainda podem combater N. gonorrhoeae, mas a tendência é óbvia. Não existe imunidade natural, nem vacina. 160 Unidade II Em 2007, cerca de 356 mil casos foram relatados nos Estados Unidos – principalmente entre homens e mulheres jovens afro-americanos – a uma taxa que tem se mantido estável por cerca de uma década, mas esse número é provavelmente apenas uma fração da incidência anual. 6.2 Agente etiológico A gonorreia, uma infecção sexualmente transmissível (IST), continua sendo um grande problema de saúde pública em todo o mundo. O agente etiológico da doença, a bactéria Neisseria gonorrhoeae (o gonococo), geralmente causa infecções da mucosa do trato urogenital, infectando predominantemente epitélios colunares e de transição, embora também possa se ligar ao epitélio escamoso estratificado da ectocérvice. Essas infecções por N. gonorrhoeae resultam mais frequentemente em uretrite em homens e cervicite em mulheres, embora também seja observada uretrite em mulheres. A Neisseria típica é um diplococo Gram-negativo, imóvel, com aproximadamente 0,8 μm de diâmetro (veja nas figuras a seguir). Os cocos isolados são reniformes (formato de rim). Quando os microrganismos ocorrem aos pares, os lados adjacentes são planos ou côncavos. Figura 88 – Coloração de Gram em secreção uretral. Os núcleos de várias células polimorfonucleares são vistos (setas maiores), bem como diplococos Gram-negativos (Neisseria gonorrhoeae) no interior de um desses leucócitos (seta menor) Fonte: Brooks et al. (2013, p. 268). 161 BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR Membrana plasmática Membrana plasmática Membrana externa Membrana externa Peptidoglicano Peptidoglicano Envelope celular Pilus Pilus Figura 89 – Esquematização de Neisseria gonorrhoeae (destaque para a presença de pili e envelope celular com três camadas: a membrana citoplasmática interna, a camada de peptidoglicanos e a membrana externa) Fonte: Brooks et al. (2013, p. 268). Os gonococos geralmente produzem colônias menores do que outras Neisseria, além de oxidar apenas a glicose e diferir antigenicamente de outras espécies do mesmo gênero. Essas bactérias requerem arginina, hipoxantina e uracila (auxotipo Arg-, Hyx- e Ura-) e tendem a crescer mais lentamente na cultura primária. Os gonococos isolados de amostras clínicas ou mantidos por repicagem seletiva formam pequenas colônias típicas de bactérias dotadas de pili. No repique não seletivo, aparecem também colônias maiores contendo gonococos sem pili. Variantes opacas e transparentes de ambos os tipos de colônias, pequenas e grandes, também ocorrem; as colônias opacas estão associadas à presença de uma proteína exposta na superfície (Opa). Observação A auxotipagem subdivide os gonococos de acordo com sua capacidade de crescer em meio ágar quimicamente definido, que contém ou não certos compostos. Aparentemente, apenas as bactérias dotadas de pili parecem virulentas. A expressão da proteína Opa varia de acordo com o tipo de infecção. Os gonococos que formam colônias opacas são isolados de homens com uretrite sintomática e de culturas de amostra do colo uterino de mulheres na metade do ciclo menstrual. Os gonococos que formam colônias transparentes são frequentemente isolados de homens com infecção uretral assintomática, mulheres durante a menstruação e de formas invasivas de gonorreia, como salpingite e infecção disseminada. A variação antigênica de proteínas de superfície durante a infecção permite ao microrganismo burlar a resposta imunológica do paciente. 162 Unidade II Colônias P+ Colônias P- Figura 90 – Colônias de N. gonorrhoeae dotadas ou não de pili. A expressão de pilina pode sofrer variação de fase e reflete na variação morfológica da colônia. As células dotadas de pili (P+) formam colônias que tendem a ser menores, mais altas e mais escuras (semelhantes a uma gota de goma), enquanto as células desprovidas de pili (P–) formam colônias que têm uma aparência mais plana, mais semelhante a uma bolacha Fonte: Spence et al. (2008). N. gonorrhoeae é antigenicamente heterogênea e tem a capacidade de modificar suas estruturas de superfície in vitro – e presumivelmente in vivo, para evitar as defesas do hospedeiro. As estruturas de superfície são especificadas a seguir. Os pili são apêndices piliformes que se estendem por vários micrômetros a partir da superfície bacteriana e são constituídos de proteínas em forma de estaca denominadas pilinas. Os pili aumentam a fixação do microrganismo às células do hospedeiro e a resistência à fagocitose. A extremidade aminoterminal da molécula de pilina contém uma elevada porcentagem de aminoácidos hidrofóbicos e é relativamente conservada. A porção intermediária da molécula também é conservada e serve como ponto de fixação das bactérias às células do hospedeiro. A sequência de aminoácidos próxima à extremidade carboxiterminal é altamente variável; esta porção da molécula é potencialmente imunogênica. As pilinas de quase todas as cepas de N. gonorrhoeae são antigenicamente diferentes, e uma única cepa pode produzir muitas formas antigenicamente distintas de pilinas. 163 BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR Lembrete Tradicionalmente, empregam-se termos latinos para designação de algumas estruturas, sendo pilus, para uso no singular e pili, para plural. Observação A proteína pilina possui uma região conservada na extremidade aminoterminal e uma região altamente variável na extremidade carboxiterminal, o que contribui para evasão das defesas do hospedeiro e infecções múltiplas em indivíduos sexualmente promíscuos. A proteína Por (porina) estende-se através da membrana celular dos gonococos. Ocorre em trímeros, formando poros na superfície, através dos quais alguns nutrientes entram na célula. As proteínas Por podem evitar a fusão do fagossomo-lisossomo, impactando na sobrevida de gonococos intracelulares. Além disso, a resistência variável dos gonococos ao poder bactericida do soro humano normal depende de como a proteína Por liga-se seletivamente aos componentes do complementoC3b e C4b. Cada cepa de gonococo expressa apenas um dos dois tipos de Por (PorA ou PorB), mas a proteína Por de cepas distintas é antigenicamente diferente. A tipagem sorológica de Por mediante reações de aglutinação com anticorpos monoclonais distinguiu 18 sorovariantes de PorA e 28 sorovariantes de PorB. As proteínas Opa (de opacidade) funcionam na adesão de gonococos dentro das colônias e na fixação dos microrganismos às células do hospedeiro, particularmente células que expressam receptores celulares, tais como compostos relacionados com a heparina e CD66 ou antígenos carcinoembrionários relacionados com moléculas de adesão celular. Uma porção da proteína Opa localiza-se na membrana externa do gonococo, enquanto o restante fica exposto sobre a superfície. Uma cepa de gonococo pode expressar nenhum, um, dois ou, em certas ocasiões, três tipos de Opa, embora cada cepa tenha 11 ou 12 genes para diferentes Opas. A proteína Rmp é antigenicamente conservada em todos os gonococos. Trata-se de uma proteína passível de modificação por redução (reduction-modificable protein, Rmp), que modifica sua massa molecular aparente quando se encontra em estado reduzido. Rmp associa-se à Por na formação de poros na superfície celular. Diferentemente dos bastonetes Gram-negativos entéricos, o lipopolissacarídeo (LPS) gonocócico não apresenta cadeias laterais de antígeno O longas, sendo denominado lipo-oligossacarídeo (LOS). Os gonococos podem expressar mais de uma cadeia de LOS antigenicamente diferente ao mesmo tempo. A toxicidade observada em infecções gonocócicas deve-se, em grande parte, aos efeitos endotóxicos de LOS. Em uma forma de mimetismo molecular, os gonococos produzem moléculas de LOS que se assemelham, do ponto de vista estrutural, aos glicoesfingolipídeos das membranas celulares humanas. 164 Unidade II O LOS dos gonococos e o glicoesfingolipídeo humano da mesma classe estrutural reagem ao mesmo anticorpo monoclonal, indicando mimetismo molecular. A presença, sobre a superfície dos gonococos, das mesmas estruturas superficiais observadas nas células humanas ajuda esses microrganismos a escaparem do reconhecimento imunológico. Além disso, o gonococo utiliza-se da interação entre este ligante e um receptor da célula humana normal para invadir as células epiteliais uretrais nos homens e/ou aderir à superfície do esperma. Logo, esse mimetismo molecular lhe é de grande utilidade. A galactose terminal de glicoesfingolipídeos humanos é frequentemente conjugada com ácido siálico, também chamado de ácido N-acetilneuramínico (NANA). Os gonococos não produzem ácido siálico, mas sintetizam uma sialiltransferase que funciona para adquirir o NANA do nucleotídeo-açúcar humano, citidina 5’-monofosfo-N-acetilneuramínico (CMP-NANA) e colocá-lo na galactose terminal de um LOS aceptor gonocócico. Esta sialilação afeta a patogênese da infecção gonocócica, tornando os gonococos resistentes à destruição pelo sistema de anticorpos-complemento humano, e interfere na ligação do gonococo aos receptores sobre as células fagocíticas. Figura 91 – Estrutura do lipo-oligossacarídeo do gonococo (LOS). A presença de uma lacto-N-neotetraose.e uma galactosamina terminal assemelha-se à série de gangliosídeos glicoesfingolipídeos humanos Fonte: Brooks et al. (2013, p. 288). Os gonococos desenvolveram mecanismos que frequentemente permitem a mudança de uma forma antigênica (pilina, Opa ou LOS) para outra forma antigênica da mesma molécula. Essa mudança ocorre em um de cada 102,5 a 103 gonococos, o que representa uma taxa extremamente rápida de mudança para bactérias. Por serem antígenos de superfície expostos nos gonococos, a pilina, a Opa e o LOS são importantes na resposta imunológica à infecção. A rápida mudança das moléculas de uma forma antigênica para outra ajuda os gonococos a escaparem do sistema imunológico do hospedeiro. 165 BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR Os gonococos contêm vários plasmídeos. Dois destes (com massa molecular de 3,4 MDa e 4,7 MDA) contêm genes que codificam a produção de betalactamase tipo TEM-1 (penicilinase), a qual resulta em resistência do microrganismo à penicilina. Esses plasmídeos são transmissíveis por conjugação entre os gonococos. O desenvolvimento de resistência de alto nível à tetraciclina nos gonococos deve-se à inserção, no plasmídeo conjugativo, de um gene de estreptococo tetM, cujo produto confere resistência à tetraciclina. 6.3 Aspectos epidemiológicos Embora a compreensão da epidemiologia localizada da gonorreia seja crítica para adequada aplicação de esforços locais, a compreensão da epidemiologia global pode apoiar o desenvolvimento de políticas e estratégias nacionais e internacionais de prevenção e controle. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a cada dia há mais de 1 milhão de novos casos de infecções sexualmente transmissíveis curáveis entre pessoas de 15 a 49 anos. Isso equivale a mais de 376 milhões de novos casos anuais de quatro infecções – clamídia, gonorreia, tricomoníase e sífilis. Como nem sempre essas doenças são notificadas em todos os países, é complicado obter um número atualizado e exato de casos. Estima-se que aproximadamente 87 milhões de novas infecções gonocócicas ocorreram entre pessoas com idades entre 15-49 anos em 2016. Esse número é maior do que as estimativas realizadas em 2012 (75 milhões de novos casos/ano). As taxas de gonorreia estão aumentando em muitos países. A incidência de gonorreia é desproporcionalmente maior entre homossexuais e bissexuais jovens, sobretudo entre homens que fazem sexo (desprotegido) com outros homens. Minorias raciais/étnicas, populações indígenas e profissionais do sexo parecem também computar entre aqueles cuja incidência de infecções gonocócicas é maior. As viagens internacionais podem facilitar a propagação da gonorreia através das fronteiras, incluindo a disseminação de cepas resistentes. N. gonorrhoeae infecta a mucosa do trato urogenital, reto, faringe e conjuntiva e é facilmente transmitida entre indivíduos no ato sexual desprotegido. A probabilidade estimada de transmissão em ato heterossexual desprotegido é de aproximadamente 50% do pênis para vagina (transmissão de um parceiro contaminado para uma parceira não contaminada), já a transmissão da vagina para o pênis (parceira contaminada para parceiro não contaminado) é próxima a 20% por coito. As probabilidades de transmissão no sexo oral (63% da uretra para a faringe e 9% da faringe para a uretra) e no sexo anal (84% da uretra para o reto e 2% do reto para a uretra), ambos sem preservativos, foram estimadas a partir de modelos matemáticos. A taxa de infecção pode ser reduzida pelas seguintes medidas: evitar relações sexuais com vários parceiros; rápida erradicação dos gonococos dos indivíduos infectados mediante diagnóstico e tratamento precoces, e detecção dos casos e contatos por meio de educação e rastreamento precoces das populações de alto risco. A profilaxia mecânica (uso de preservativos) proporciona proteção parcial. A quimioprofilaxia tem valor limitado em virtude do aumento da resistência dos gonococos aos antibióticos. 166 Unidade II Observação Qualquer prática sexual desprotegida pode transmitir a gonorreia – seja o contato oral, vaginal ou anal. Nos Estados Unidos, a incidência aumentou uniformemente desde 1955 até o final da década de 1970, quando ficou entre 400 e 500 casos por 100 mil indivíduos da população. Entre 1975 e 1997, houve um declínio de 74% na taxa de infecções gonocócicas relacionadas. Depois disso, as taxas ficaram nesses níveis por até 10 anos, caindo entre 2006 a 2009 e subindo 2,8% novamente entre 2009 e 2010. No Brasil, o cenário epidemiológico da infecção acompanha os altos índices mundiais. Estima-se que a prevalência da gonorreia na população de 15 a 49 anos seja de aproximadamente 1,4% – e que a incidência na população em geral esteja em torno de 498.848 novos casos por ano. O Brasil não possui um programa nacional de vigilância gonocócica.Nos últimos 25 anos, três tentativas de implantação de redes de laboratórios com foco na resistência a N. gonorrhoeae foram realizadas pelo Ministério da Saúde. A primeira ocorreu em 1996, a convite da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas)/OMS. A segunda, iniciada em 2007, foi denominada Projeto Sengono, e envolveu sete laboratórios e grupos de pesquisa já estabelecidos. Ambas as tentativas falharam, uma vez que nenhum relatório dos resultados obtidos foi publicado. Em 2013, foi iniciada uma nova edição do Projeto Sengono. O projeto forneceu resultados preliminares publicados como uma nota de comunicação em 2016. 6.4 Aspectos fisiopatológicos e manifestações clínicas Os gonococos atacam as mucosas do trato geniturinário, dos olhos, do reto e da garganta, causando supuração aguda que pode levar a invasão tecidual. Este processo é seguido de inflamação crônica e fibrose. Em homens, geralmente ocorre uretrite, com pus espesso e esbranquiçado, amarelado ou esverdeado (em 1-2 dias após a infecção, na maioria dos casos clínicos), além de micção dolorosa. O processo pode estender-se ao epidídimo. Com o desaparecimento da supuração na infecção sem tratamento, ocorre fibrose, resultando, às vezes, em estenoses uretrais. Em casos de resolução espontânea, se nenhum tratamento for administrado enquanto os pacientes apresentarem sintomas é possível que o paciente se torne um portador assintomático. A infecção uretral em homens também pode ser assintomática. Estudos de infecções sexualmente transmissíveis baseados em achados clínicos sugerem que a maioria dos homens infectados é sintomática (> 90%) e, em função do desconforto, eles procuram auxílio médico. Em contraste, estudos de base populacional sugerem que até 60% dos homens podem ser assintomáticos ou ter sintomas muito leves (o que, portanto, não lhes motiva a procurar auxílio médico). Em mulheres, a infecção primária é observada no endocérvice e estende-se à uretra e à vagina, resultando em corrimento mucopurulento. Em seguida, pode progredir para as tubas uterinas, causando salpingite, fibrose e obliteração das tubas. Ocorre infertilidade em 20% das mulheres com salpingite 167 BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR gonocócica. A cervicite ou proctite gonocócica crônica é frequentemente assintomática. A maioria das mulheres com gonorreia é assintomática. Mesmo quando a paciente possuir sintomas, muitas vezes são leves e inespecíficos, de tal forma que podem ser confundidos com outras infecções que acometem a bexiga ou a vagina. Indivíduos assintomáticos infectados constituem um reservatório definitivo de N. gonorrhoeae, e um fator importante na atual pandemia de gonorreia é a falha dos médicos em identificar e tratar pacientes assintomáticos. Figura 92 – Secreção uretral decorrente da gonorreia (notar o aspecto espesso da secreção purulenta) Fonte: Levinson (2014, p. 1347). A bacteriemia gonocócica resulta em lesões cutâneas (particularmente pápulas hemorrágicas e pústulas) nas mãos, antebraços, pés e pernas, bem como em tenossinovite e artrite supurativa, geralmente nos joelhos, tornozelos e punhos. A endocardite gonocócica é uma infecção incomum, porém grave. Às vezes, os gonococos causam meningite e infecções oculares em adultos. Esses casos apresentam manifestações semelhantes às causadas por meningococos. A oftalmia neonatal gonocócica, uma infecção dos olhos do lactente, é contraída durante a passagem pelo canal do parto infectado. A conjuntivite inicial progride rapidamente e, se não for tratada, resulta em cegueira. Para evitar a oftalmia neonatal gonocócica, a instilação de tetraciclina, eritromicina ou nitrato de prata no saco conjuntival do lactente é obrigatória nos EUA. Os gonococos que causam infecção localizada são frequentemente sorossensíveis (mortos por anticorpos e complemento). 168 Unidade II 6.5 Diagnóstico laboratorial Que material biológico deverá ser obtido para o diagnóstico laboratorial de gonorreia? Devem ser obtidas amostras de pus e secreções da uretra, do colo, do reto, da conjuntiva, da garganta ou do líquido sinovial para cultura e esfregaço. Os esfregaços de exsudato uretral ou endocervical, corados pelo método de Gram, revelam inúmeros diplococos no interior dos leucócitos. Esse achado possibilita o estabelecimento do diagnóstico presuntivo. Os esfregaços corados do exsudato uretral de homens apresentam sensibilidade de cerca de 90% e especificidade de 99%. Os esfregaços corados de exsudatos endocervicais exibem sensibilidade de cerca de 50% e especificidade de aproximadamente 95% quando examinados por um microscopista experiente. Outros testes diagnósticos de exsudato uretral de homens não são necessários quando a coloração é positiva, mas testes de amplificação de ácidos nucleicos ou culturas devem ser feitos com amostras obtidas de mulheres. Os esfregaços corados de exsudatos conjuntivais também podem ser diagnósticos, porém os de amostras de garganta ou do reto geralmente não são úteis. Lembrete Na mulher, mesmo as sintomáticas, o valor diagnóstico da bacterioscopia de esfregaço de exsudatos endocervicais não é tão útil, pois há espécies comensais nas mucosas. Imediatamente após a coleta, o pus ou muco deve ser semeado em meio seletivo enriquecido (comumente emprega-se o meio Thayer‑Martin – Figura 93), com incubação em atmosfera que contenha 5% de CO2 a 37ºC. Para evitar o crescimento excessivo de contaminantes, o meio seletivo deve conter antimicrobianos (por exemplo, vancomicina, 3 µg/ml; colistina, 7,5 µg/ml; anfotericina B, 1 µg/ml; trimetoprima, 3 µg/ml). Se não for possível a incubação imediata, a amostra deve ser colocada em um sistema de transporte de cultura contendo CO2. Os microrganismos podem ser identificados pelo seu aspecto no esfregaço corado pelo método de Gram, pela positividade da oxidase e por coaglutinação, imunofluorescência ou outros testes laboratoriais, 48 horas após a cultura. As espécies de bactérias no repique podem ser determinadas por meio de reações de oxidação de carboidratos específicos (principalmente glicose (+), maltose (-) e sacarose (-), ver Tabela 1). A espectrometria de massa pela técnica de ionização por dessorção a laser assistida por matriz seguida de análise por tempo de voo (MALDI-TOF) apresenta um potencial de identificação (no mesmo dia) dos isolados de culturas. Os gonococos isolados de locais anatômicos diferentes do trato genital ou de crianças devem ser identificados quanto à espécie pela realização de dois testes confirmatórios diferentes, devido às implicações legais e sociais das culturas positivas. 169 BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR Meio ágar chocolate Meio Thayer-Martin Amostra de origem retal Figura 93 – Cultura de N. gonorrhoeae em meio sólido. A placa da esquerda continha meio ágar chocolate (não seletivo), enquanto a da direita continha meio Thayer-Martin (seletivo). Ambas as placas foram semeadas com secreção retal obtida a partir de paciente com suspeita de N. gonorrhoeae. Observe como o meio não seletivo permitiu a proliferação de vários tipos de bactérias, enquanto o meio seletivo, em função dos antibióticos adicionados, permitiu que apenas a bactéria N. gonorrhoeae prosperasse Disponível em: https://bit.ly/3EY9dS4. Acesso em: 27 set. 2021. Diversos testes de amplificação de ácidos nucleicos estão disponíveis para detecção direta de N. gonorrhoeae em amostras do trato genitourinário e esses são os testes preferidos para estas fontes. Em geral, há excelente sensibilidade e especificidade em populações sintomáticas de alta prevalência. Entre as vantagens estão melhor detecção, resultados mais rápidos e a possibilidade de usar a urina como fonte de amostra. As desvantagens incluem a fraca especificidade de alguns ensaios devido à reatividade cruzada com espécies de Neisseria não gonocócicas. O soro e o fluido genital contêm anticorpos IgG e IgA contra os pili gonocócicos, as proteínas da membrana externa e o LOS. Em indivíduos infectados pode-se detectara presença de anticorpos por meio de immunoblotting, radioimunoensaio e ELISA. Contudo, esses testes não são úteis como auxiliares diagnósticos, sobretudo diante da heterogeneidade antigênica dos gonococos e do tempo necessário para a produção de anticorpos na presença da infecção aguda. 170 Unidade II Tabela 1 – Reações bioquímicas de Neisseria e Moraxella catarrhalis Ácido formado a partir de Espécie Crescimento em meio seletivo* Glicose Maltose Lactose Sacarose ou frutose DNAse Neisseria gonorrhoeae + + - - - - Neisseria meningitidis + + + - - - Neisseria lactâmica + + + + - - Neisseria sicca - + + - + - Neisseria subflava - + + - ± - Neisseria mucosa - + + - ± - Neisseria flavescens - - - - - - Neisseria cinerea ± - - - - - Neisseria polysaccharea ± + + - - - Neisseria elongata - -/pouco - - - - Moraxella catarrhalis - - - - - + * Meios seletivos: Thayer-Martin, Martin-Lewis ou meio de New York City (NYC). Fonte: Brooks et al. (2013, p. 286). A hemocultura é necessária na doença sistêmica; entretanto, o uso de um sistema de cultura especial é útil, visto que os gonococos podem ser suscetíveis ao sulfonato de polianetol presente nos meios de hemocultura-padrões. Os gonococos podem ser cultivados a partir de amostras de sangue ou líquido articular de apenas 30% dos pacientes com artrite gonocócica. A deficiência de complemento frequentemente é observada em pacientes com bacteriemia gonocócica. Pacientes com bacteriemia, especialmente se for recorrente, devem ser testados quanto à atividade hemolítica total do complemento. 6.6 Tratamento Desde o desenvolvimento e uso disseminado da penicilina, a resistência dos gonococos a esse antibiótico vem aumentando de modo gradual, devido à seleção de mutantes resistentes. A resistência à tetraciclina também é comum. Foi observada, ainda, resistência à espectinomicina, bem como às fluoroquinolonas. A administração de dose única de fluoroquinolonas foi recomendada para o tratamento das infecções gonocócicas de 1993 a 2006. Desde 2006, as taxas de resistência a quinolonas entre os gonococos isolados ultrapassaram 5% em homens que têm relações sexuais com outros homens, e também em homens heterossexuais. Devido aos problemas relacionados com a resistência da N. gonorrhoea aos antimicrobiandos, recomenda-se que pacientes com infecções genitais ou retais sem complicações sejam tratados com dose única de ceftriaxona (250 mg) intramuscular, ou 400 mg de cefixima oral em dose única. Recomenda-se uma terapia adicional com 1 g de azitromicina por via oral em dose única, ou 100 mg de doxiciclina duas vezes ao dia por sete dias para a possível presença de infecção concomitante por Chlamydia. 171 BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR 20012000 0 25 50 Po rc en ta ge m d e iso la do s r es ist en te s 75 10 0 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 Ano 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 Tetraciclina Ciprofloxacina Penicilina Azitromicina Cefixima Spectinomicina Ceftriaxona Terapia de linha de frente: ciprofloxacina Terapia de linha de frente: cefixima Terapia de linha de frente: ceftriaxona + azitromicina Figura 94 – Percentual de gonococos isolados resistentes a antimicrobianos no Reino Unido. As linhas verticais tracejadas mostram as datas de alteração das diretrizes de tratamento. Em 2015, o meio de cultura usado para determinar os valores de concentração inibitória mínima mudou no Reino Unido, logo os resultados após essa data não são comparáveis aos anos anteriores, particularmente para azitromicina e tetraciclina Disponível em: https://bit.ly/3mgjhil. Acesso em: 3 ago. 2021. A oftalmia neonatal gonocócica pode ser evitada pela aplicação local de pomada oftálmica de eritromicina a 0,5% ou de tetraciclina a 1% na conjuntiva dos lactentes. Embora a instilação de solução de nitrato de prata também seja eficaz e constitua o método clássico de prevenção de oftalmia neonatal, é difícil conservar o nitrato de prata, que também provoca irritação conjuntival; seu uso foi substituído em grande parte por pomada de eritromicina ou de tetraciclina. 6.7 Imunização Indivíduos que já foram tratados para gonorreia podem ser infectados repetidamente sem o desenvolvimento de memória imunológica. Um estudo experimental de infecção gonocócica em homens mostrou que um contato inicial com o patógeno não fornece proteção contra infecções repetidas decorrentes da exposição à mesma cepa, dentro de 21 dias após a infecção inicial. N. gonorrhoeae é capaz de evadir a resposta adaptativa do sistema imunológico humano por vários mecanismos, tais como alteração de fase e variação antigênica dos pili expostos à superfície, proteínas Opa e LOS. As estruturas de carboidratos do LOS também desempenham um papel na evasão imunológica, imitando as moléculas do hospedeiro. Muitos LOS de N. gonorrhoeae mostram reatividade cruzada com anticorpos que reconhecem glicoesfingolipídios humanos, particularmente em eritrócitos, mimetizando antígenos de superfície humanos e contribuindo para a dificuldade de desenvolvimento de vacinas. Enquanto N. gonorrhoeae estimula uma resposta imune inata intensa e suprime a resposta imune adaptativa, infecções repetidas ocorrem com frequência nos indivíduos da população de alto risco. 172 Unidade II O desenvolvimento de uma vacina eficaz é limitado pela identificação de um antígeno protetor adequado. Um estudo publicado recentemente na Nova Zelândia, em que adultos jovens foram inoculados com uma vacina meningocócica do grupo B, mostrou taxas reduzidas de gonorreia nessa população. Essa é a primeira vez que uma vacina mostra taxas reduzidas de gonorreia, e estudos de acompanhamento são necessários para determinar se a vacina confere proteção verdadeira. 7 DOENÇAS INFECTOCONTAGIOSAS – TUBERCULOSE 7.1 Breve histórico A tuberculose (TB) é uma das doenças mais antigas entre as conhecidas por afetar os seres humanos. Apesar dos avanços em seu controle, ela permanece como um problema de saúde pública mundial, sendo uma das 10 principais causas de morte por doença infecciosa causada por agente único, superando o HIV/AIDS. Nos últimos dois séculos, ela matou cerca de 1 bilhão de pessoas, mas nunca com a força óbvia da convulsão social que caracteriza outras grandes epidemias, como a varíola ou o cólera. Evidências de “tísica”, como Hipócrates a chamou, ou “consumo” foram encontradas em esqueletos neolíticos (de 4500 a.C.), na Alemanha, e foram descritas em diversos textos antigos (exceto aqueles das Américas), incluindo o Código de Hamurabi (de cerca de 2000 a.C.). Os historiadores acreditam que a doença evoluiu no Oriente Médio há cerca de 8 mil anos e passou para os seres humanos a partir do gado. Pode ter alcançado as Américas por meio da migração da Ásia pelo Mar de Bering. Restos mortais de uma mulher que morreu há mil anos no Peru mostram cicatrizes pulmonares típicas. Por centenas de anos na Inglaterra, a escrófula – agora conhecida como uma linfandenite cervical dos linfonodos associada à tuberculose – foi chamada de “o mal do rei” e foi tratada pelo “toque real” divino do próprio monarca até o século XVIII. Mas a tuberculose (a palavra “tubérculo” significa uma pequena protuberância, nódulo ou crescimento) não se tornou um grande problema até que a Revolução Industrial criou as condições urbanas miseráveis de que precisa para se espalhar. Já no final do século XVII, a tuberculose estava matando um em cada cinco londrinos, de acordo com o filósofo John Locke. A doença devastou os nativos americanos com intensidade após a chegada dos europeus e a mudança forçada do estilo nômade para vida em reservas. Em 1900, a tuberculose matava 200 em cada 100 mil norte-americanos (principalmente nas cidades), mas, ao passo que as medidas de saúde pública melhoraram, a taxa caiu para 60 por 100 mil em 1940, nas vésperas da antibioticoterapia. O bacilo da tuberculose é de crescimento lento e foi identificado em 1882 pelo grande bacteriologista alemão Robert Koch, quetambém descobriu os organismos responsáveis pelo antraz e cólera. Em função de suas descobertas, Koch foi venerado na América, Europa e Japão (onde um santuário foi construído em sua homenagem), porém até mesmo ilustres cientistas apresentam insucessos, e Koch sofreu uma queda profissional quando mais tarde anunciou uma vacina contra tuberculose (perigosa e ineficaz). No entanto, sua “tuberculina” formou a base para o teste cutâneo simples de hoje – em si um grande desenvolvimento. Esse teste, associado às radiografias do tórax, tornaram-se as principais ferramentas para rastrear a doença. 173 BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR Figura 95 – Pôster sobre campanha contra tuberculose na Primeira Guerra Mundial, Paris, 1918. Em livre tradução, a sentença diz “Devemos derrotar a tuberculose como o mais prejudicial dos répteis” Disponível em: https://bit.ly/2Wh4PMx. Acesso em: 27 set. 2021. Até o descobrimento da estreptomicina (década de 1940), a maioria dos pacientes era simplesmente orientada a descansar onde o ar fosse limpo, geralmente na área rural. Galeno, o lendário médico grego de Roma (130-200 d.C.), enviou seus ricos pacientes tuberculosos para as praias de Castellamare di Stabia, em frente à Ilha de Capri. Thomas Mann escreveu sobre um dos ilustres sanatórios alemães em A Montanha Mágica. As vítimas de TB poderiam constituir um panteão das artes eruditas (Keats, Shelley, Chekhov, Chopin, Emily Brontë, Lawrence, Orwell, Stevenson, Whitman), contribuindo assim para o romance do gênio criativo e do sofrimento. “A decadência e a doença costumam ser belas, como a lágrima perolada da concha e o brilho agitado do consumo”, escreveu Thoreau em 1852. Essa noção foi resumida pela personagem Violetta Valéry na ópera de Verdi de 1853, La Traviata, baseada no romance A Dama das Camélias de Alexandre Dumas. Mas, mais do que nunca, a tuberculose é sobretudo uma doença dos pobres habitantes de centros urbanos que não têm acesso a regimes de medicamentos eficazes. M. tuberculosis é um oportunista supremo, à espera de qualquer falha no sistema imunológico para dar uma chance de ataque. A desnutrição costuma ser um fator que lhe abre portas, junto com as infecções crônicas por outros organismos. 174 Unidade II Na década de 1980, o número de novos casos nos Estados Unidos aumentou constantemente para cerca de 26.000 por ano, devido à falência dos serviços de tratamento, aumento do número de imigrantes infectados, cepas multirresistentes e surgimento da AIDS. 7.2 Agente etiológico As micobactérias são bactérias aeróbicas em forma de bastonete que não formam esporos. Você saberia dizer por que são chamadas de bacilos “álcool-ácido resistentes” (BAAR)? Apesar de não serem facilmente coradas, resistem à descoloração por ácido ou álcool e, por esse motivo, assim são denominadas. A tuberculose pode ser causada por qualquer uma das sete espécies que integram o complexo Mycobacterium tuberculosis: M. tuberculosis, M. bovis, M. africanum, M. canetti, M. microti, M. pinnipedi e M. caprae. Entretanto, do ponto de vista sanitário, a espécie mais importante é a M. tuberculosis. Nos tecidos, os bacilos da tuberculose consistem em bastonetes retos e finos, medindo cerca de 0,4 x 3 µm. Em meios artificiais, são observadas formas cocoides e filamentosas, com morfologia variável de uma espécie para outra. As micobactérias não podem ser classificadas como microrganismos Gram-positivos ou Gram-negativos. Coradas com corantes básicos, não podem ser descoradas por álcool independentemente do tratamento com iodo. A velocidade de crescimento é muito mais lenta do que a da maioria das bactérias. O tempo de duplicação dos bacilos da tuberculose é de cerca de 18 horas. Além disso, micobactérias tendem a ser mais resistentes a agentes químicos do que as outras bactérias, devido à natureza hidrofóbica da superfície celular e a seu crescimento em agregados. Corantes (como verde de malaquita) ou antimicrobianos (como penicilina) podem ser incorporados aos meios de cultura sem inibir o crescimento dos bacilos da tuberculose. Esses bacilos são resistentes ao ressecamento e sobrevivem por longos períodos em escarro seco. As paredes celulares das micobactérias são capazes de induzir hipersensibilidade tardia, bem como alguma resistência à infecção. Essas bactérias são ricas em lipídeos, que incluem ácidos micólicos (ácidos graxos de cadeia longa de C78 a C90), ceras e fosfatídeos. Na célula, os lipídeos são ligados, em grande parte, a proteínas e polissacarídeos. O dipeptídeo muramil (do peptidoglicano) complexado com ácidos micólicos pode causar a formação de granuloma, enquanto os fosfolipídeos induzem necrose caseosa. Os lipídeos são, até certo ponto, responsáveis pela álcool-ácido resistência, que depende da integridade da parede celular. As cepas virulentas dos bacilos da tuberculose formam “cordões serpentiformes” microscópicos, nos quais os bacilos álcool-ácido resistentes dispõem-se em cadeias paralelas. Cada tipo de micobactéria contém várias proteínas que induzem a reação tuberculínica. Além disso, podem induzir a formação de uma variedade de anticorpos. 175 BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR 7.3 Aspectos epidemiológicos Estima-se que cerca de um quarto da população mundial esteja infectada com M. tuberculosis. Segundo os levantamentos mais recentes da Organização da Saúde, cerca de 10,0 milhões (variação, 8,9-11,0 milhões) de pessoas adoeceram com TB em 2019, um número que tem diminuído muito lentamente nos últimos anos. Houve uma estimativa de 1,2 milhão (variação de 1,1–1,3 milhões) de mortes por TB entre pessoas HIV-negativas em 2019 (comparativamente, a estimativa em 2000 era de 1,7 milhão) e um adicional de 208 mil mortes (variação de 177.000–242.000) entre pessoas infectadas por HIV (em comparação, 678 mil em 2000). A TB pode afetar qualquer pessoa em qualquer lugar, mas a doença se desenvolve principalmente em adultos. Há mais casos entre homens do que entre mulheres: homens (com idade ≥ 15 anos) representaram 56% das pessoas que desenvolveram TB em 2019; as mulheres representavam 32% e as crianças (<15 anos), 12%. A tuberculose é uma doença fortemente associada à pobreza e às dificuldades econômicas. Vulnerabilidade, marginalização, estigmatização e discriminação são frequentemente enfrentadas pelas pessoas afetadas pela doença. Trinta países com alta carga de tuberculose respondem por quase 90% dos adoecimentos a cada ano; desses países, Índia, Indonésia, China, Filipinas, Paquistão, Nigéria, Bangladesh e África do Sul correspondem àqueles com as maiores taxas de novas infecções em 2019. TB é curável e evitável. Cerca de 85% das pessoas que desenvolvem tuberculose podem ser tratadas com sucesso, empregando-se um regime de medicamentos por seis meses, que ainda traz o benefício adicional de reduzir a transmissão progressiva da infecção. Desde 2000, o tratamento da TB evitou mais de 60 milhões de mortes, embora o acesso ainda esteja aquém da cobertura universal de saúde. O número de pessoas que desenvolvem infecções e doenças (e, portanto, o número de mortes) também pode ser reduzido por meio de ações multissetoriais para abordar os determinantes da TB, como pobreza, subnutrição, infecção por HIV, tabagismo e diabetes. Em 2003, com a criação da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), a TB se tornou uma prioridade, compondo a agenda das políticas públicas de saúde do Brasil. A partir de então, diversos marcos na linha do tempo reforçaram sua importância nessa agenda, como a publicação do Plano Estratégico para o controle da tuberculose no Brasil de 2007 a 2015; a inclusão de indicadores da TB no Pacto pela Vida; e, mais recentemente, a publicação do Plano Nacional pelo Fim da Tuberculose como Problema de Saúde Pública. Além disso, a partir de 2003, o Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT) passou a ter orçamento próprio e específico, evidenciando a priorização para o controle da doença. Embora, de 2009 a 2018, tenha sido observadauma queda média anual de 1,0%, coeficiente de incidência de tuberculose no Brasil aumentou nos anos de 2017 e 2018, em relação aos anos de 2015 e 2016. Na estratificação por UF, evidencia-se uma importante heterogeneidade no país, com maiores coeficientes de incidência acima de 51 casos/100 mil habitantes nos estados do Rio de Janeiro, Amazonas, Pará, Roraima e Acre. 176 Unidade II 50 40 44,4 43,4 41,941,9 38,838,8 38,138,1 39,039,0 38,338,3 37,537,5 38,238,2 37,037,0 35,435,4 34,534,5 34,134,1 33,933,9 35,335,3 36,236,2 30 In ci dê nc ia /1 00 m il ha bi ta nt es Ano de diagnóstico 20 10 0 20 03 20 05 20 07 20 09 20 11 20 13 20 15 20 17 20 04 20 06 20 08 20 10 20 12 20 14 20 16 20 18 45 35 25 15 5 Figura 96 – Coeficiente de incidência de tuberculose (por 100 mil habitantes), Brasil, de 2003 a 2018 Fonte: Brasil (2019, p. 88). 10-30 31-50 51-75 Casos por 100 mil hab. Figura 97 – Coeficiente de incidência de tuberculose (por 100 mil habitantes), UF, 2019 Fonte: Brasil (2020, p. 12). 177 BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR 7.4 Aspectos fisiopatológicos e manifestações clínicas Mycobacterium tuberculosis dissemina-se quando as pessoas com tuberculose expelem bactérias para o ar, por exemplo, tossindo. Mas essa bactéria afeta apenas os tecidos pulmonares? A doença afeta tipicamente os pulmões (TB pulmonar), mas também pode afetar outros locais (TB extrapulmonar). A suscetibilidade à infecção é praticamente universal. No entanto, a maioria dos infectados resiste ao adoecimento após a infecção e desenvolve imunidade parcial à doença. Os bacilos ficam encapsulados, em estado latente, em pequenos focos quiescentes, que não progridem, nem provocam o adoecimento. Esta é a infecção latente da tuberculose (ILTB), que se expressa, na maioria das vezes, pela positividade da prova tuberculínica ou teste IGRA (interferon gama release array). Cerca de 5% dos infectados não conseguem impedir a multiplicação inicial do bacilo e adoecem na sequência da primeira infecção. Outros 5%, apesar de bloquearem a infecção nessa fase, adoecem posteriormente (tuberculose pós-primária ou secundária), por reativação dos bacilos (reativação endógena) ou por exposição à nova fonte de infecção (reinfecção exógena). A probabilidade de o portador da ILTB desenvolver a tuberculose ativa depende de múltiplos fatores, relacionados ao bacilo (virulência e patogenia) e ao ambiente (proximidade e tempo de permanência no mesmo ambiente da fonte infectante). A competência imunológica do próprio hospedeiro tem sua importância nesse processo. Há maior risco de adoecimento em portadores de doenças imunossupressoras, especialmente infectados pelo HIV, ou pessoas recebendo tratamentos imunodepressores ou imunossupressores, menores de 2 anos de idade ou maiores de 60 anos e/ou desnutridos. Existem dois tipos de lesões principais decorrentes da infecção por TB: (1) do tipo exsudativo e (2) do tipo produtivo. As lesões do tipo exsudativo consistem em uma reação inflamatória aguda com líquido de edema, leucócitos polimorfonucleares e, posteriormente, monócitos ao redor dos bacilos da tuberculose. Esse tipo de lesão é observado particularmente no tecido pulmonar, em que se assemelha ao da pneumonia bacteriana. Pode cicatrizar por resolução, de modo que todo o exsudato venha a ser absorvido, o que pode ocasionar necrose maciça do tecido; ou evoluir para um segundo tipo (produtivo) de lesão. Durante a fase exsudativa, o teste tuberculínico torna-se positivo. As lesões do tipo produtivo são granulomas crônicos e, quando totalmente desenvolvidas, apresentam três zonas: (1) uma área central de células gigantes multinucleares contendo bacilos da tuberculose; (2) uma zona média de células epitelioides pálidas, com frequência dispostas de modo radial; e (3) uma zona periférica de fibroblastos, linfócitos e monócitos. Posteriormente, verifica-se a formação de tecido fibroso periférico, e a área central sofre uma necrose caseosa. Tal lesão é denominada tubérculo. Um tubérculo caseoso pode sofrer ruptura em um brônquio, esvaziar seu conteúdo e formar uma cavidade que, subsequentemente, pode cicatrizar por fibrose ou calcificação. 178 Unidade II Os bacilos da TB propagam-se no hospedeiro por extensão direta, via canais linfáticos e corrente sanguínea, e via brônquios e trato gastrointestinal. Na primeira infecção, os bacilos propagam-se sempre do local inicial pelos vasos linfáticos para os linfonodos regionais. Podem propagar-se ainda mais e alcançar a corrente sanguínea, que os distribui para todos os órgãos (distribuição miliar). A corrente sanguínea também pode ser invadida pela erosão de uma veia por um tubérculo caseoso ou linfonodo. Se a lesão caseosa liberar seu conteúdo em um brônquio, o material será aspirado e distribuído para outras partes dos pulmões ou deglutido e levado para o estômago e intestino. Uma vez instaladas no tecido, as micobactérias residem principalmente no interior dos monócitos, das células reticuloendoteliais e das células gigantes. A localização intracelular constitui uma das características que dificultam a terapia farmacológica e favorecem a persistência dos microrganismos. Como o bacilo da tuberculose pode afetar qualquer órgão, suas manifestações clínicas são inúmeras. Fadiga, fraqueza, perda de peso, febre e tremores noturnos podem ser sinais de tuberculose. O comprometimento pulmonar, que causa tosse crônica e hemoptise, em geral está associado a lesões muito avançadas. Meningite ou comprometimento do trato urinário podem ocorrer na ausência de outros sinais de tuberculose. A disseminação pela corrente sanguínea resulta em tuberculose miliar, com lesões em muitos órgãos e taxa elevada de mortalidade. A forma pulmonar, além de ser a mais frequente (87% dos casos novos de tuberculose em 2015), é também a mais relevante para a saúde pública, especialmente a positiva à baciloscopia, pois é a principal responsável pela manutenção da cadeia de transmissão da doença. 7.5 Diagnóstico laboratorial Os verdadeiros bacilos da tuberculose caracterizam-se pela sua álcool-ácido resistência – isto é, o álcool etílico a 95%, contendo 3% de ácido clorídrico, descora rapidamente todas as bactérias, exceto as micobactérias. A álcool-ácido resistência depende da integridade do envelope lipídico. A técnica de Ziehl‑Neelsen de coloração é empregada para identificação das bactérias álcool-ácido resistentes. Nos esfregaços de escarro ou em cortes de tecido, as micobactérias podem ainda ser demonstradas pela sua fluorescência amarelo-alaranjada após coloração com fluorocromos, como auramina e rodamina. A facilidade com que os BAAR podem ser visualizados com fluorocromos faz dessas colorações as preferidas para amostras clínicas. 179 BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR Figura 98 – Mycobacterium tuberculosis (setas) em uma amostra de escarro processada e corada pela técnica de Ziehl-Neelson. M. tuberculosis está em vermelho contra um fundo azul-claro Fonte: Brooks (2013, p. 315). Figura 99 – Mycobacterium tuberculosis coradas com Auramina O. Dois bacilos da tuberculose são visíveis após a coloração da amostra de escarro Fonte: Brooks (2013, p. 315). Como podemos cultivar os bacilos da tuberculose in vitro? Os meios para a cultura primária das micobactérias devem incluir um não seletivo e um seletivo. Os meios seletivos contêm antibióticos para evitar o crescimento excessivo de bactérias e fungos contaminantes. Existem três formulações gerais que podem ser utilizadas para os meios seletivos quanto para os não seletivos: (1) meios de ágar semissintéticos, (2) meios espessados com ovo e (3) meios de cultura em caldo. 180 Unidade II Os meios de ágar semissintéticos (como Middlebrook 7H10 e 7H11) contêm sais específicos, vitaminas, cofatores, ácido oleico, albumina, catalase e glicerol; o meio 7H11 também contém hidrolisado de caseína. A albumina neutraliza os efeitos tóxicos e inibitórios dos ácidos graxos na amostra ou no meio.
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