Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
OUVI DIZER QUE ERA VOCÊ Copyright © 2023 Bruna Souza Ilustrações: Eduarda Oliveira (@arda.arts) Diagramação: Bruna Souza Betagem: João V., Lavinia, Leticia, M. Victoria, Marcos e Mikaela Leitura sensível: M. Victoria Esta é uma obra de ficção. Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quaisquer forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros, sem autorização por escrito da autora. Para aqueles que já acharam que tinham se quebrado para sempre, mas encontraram forças o bastante para se reconstruírem. “Me fale em quantos pedaços você foi partida antes que eu te encontrasse, quero saber quantas versões suas terei que amar.” — FERNANDO MACHADO SINOPSE Melina sempre foi doce, companheira e carinhosa. Jogava vôlei desde pequena, até que um trauma a impediu de praticar o esporte durante um período e mudou totalmente sua vida. Mesmo se sentindo completamente quebrada, ela tentava continuar sendo alegre e espirituosa, ignorando o peso constante em seu peito. Enquanto Santiago cresceu praticamente sozinho e isso o fez se fechar para o mundo. Ranzinza, calado e frio, com todos que não fossem seus primos, ele não fazia esforço nenhum para tentar ser agradável e pouco se importava com o que pensavam a seu respeito, mas ainda assim era um dos melhores bailarinos de sua idade. Em uma tentativa de o destino mostrar que polos opostos se atraem, a vida dos dois é mais uma vez cruzada de forma inesperada e entre colégios rivais, personalidades totalmente distintas e pessoas próximas que não conseguem conviver de forma civilizada, ambos notam que as diferenças são gritantes demais. Talvez eles se odeiem, mas é um fato que existe uma atração entre os dois. E o resultado não pode ser diferente de um desastre quando a convivência passa a ser contínua. AVISOS Olá, querido leitor, antes de qualquer coisa quero agradecer por dar uma chance a Melina e Santiago e espero que possa se divertir e se emocionar lendo a história de uma jogadora traumatizada e um bailarino ranzinza que acreditam se odiar, mas descobrem que talvez possam precisar um do outro. Esse livro é classificado como +18 e possuí os seguintes gatilhos: crise de ansiedade, relação abusiva familiar, abandono afetivo, agressão, luto e conteúdo sexual. Caso não se sinta confortável com algo, priorise sua saúde mental. Espero que faça uma boa leitura. Você também pode me encontrar aqui: Instagram/Twitter = @bsouzaautora CAPÍTULO 1 Sábado, 28 de agosto de 2021 “Tudo bem não estar bem Quando você está para baixo e se sente cansado Tudo bem não estar bem” — Ok Not To Be Okay, Mashmello (feat. Demi Lovato) O barulho das máquinas ligadas era uma cacofonia, enquanto eu tentava suportar a dor excruciante que começava a despontar com o fim do efeito da medicação. Tudo naquele lugar me sufocava, a cama do hospital, o olhar de compaixão das enfermeiras que passavam para checar se estava tudo bem, até mesmo as flores brancas que minhas colegas do vôlei trouxeram e que, naquele momento, estavam em cima da mesinha ao meu lado, como se fosse mudar algo e não servisse apenas como um lembrete de que eu nunca seria a mesma. Sempre me vi como um tipo de pessoa que não sentia medo de muitas coisas. Estava constantemente disposta a assumir o risco das minhas ações e lidar com as consequências depois, enfrentando tudo de frente. Porém, nesse dia tudo o que eu acreditava desmoronou. O medo passou a ser um sentimento constante dentro de mim, me deixando sem ação, como se estivesse congelada, porque naquele momento quando tentei fazer alguma coisa… bem, foi um desastre. Minha vida terminou naquele instante, não de forma literal, mas meu coração se partiu de formas que eu nem imaginava serem possíveis e eu já não via mais solução alguma para conseguir reconstruir cada parte minha que tinha se quebrado. Era como se aquela garota alegre e esportiva tivesse sido abduzida e substituída por uma versão cabisbaixa, insegura e medrosa, que se esforçava até demais para fingir que tudo continuava bem. — Melina. — A voz totalmente familiar da minha terapeuta ecoou pelo consultório, me tirando de meus pensamentos e me trazendo de volta a sua sala com paredes brancas e de tamanho considerável. Além de dois sofás bem posicionados, para que eu escolhesse em qual desejava me sentar para falar sobre como andava infeliz, existiam luminárias quadradas que desciam do teto, uma poltrona de frente para mim, onde a psicóloga me observava e uma enorme janela que dava uma visão perfeita dos outros prédios grandes do centro de Vila dos Anjos. Encarei a mulher, tentando me lembrar do que exatamente ela tinha perguntado, mas passar tempo demais lembrando do que aconteceu tinha me distraído. — Desculpa, acho que não estava prestando atenção — falei, evitando fitar Jaqueline diretamente, já que ela tinha um olhar estreito, que acabava tornando seus olhos, de tom quase amarelo, um pouco assustadores. — Pode repetir por favor? — Perguntei como está — respondeu, suspirando levemente. Claro, aquela pergunta clássica do início de toda sessão há quase um ano. — Estou ótima — menti, forçando um sorriso que Jaqueline sabia bem que não era sincero. — Faz praticamente um ano que estamos nessa, Melina. Por que não tenta… colocar um pouco para fora? Suspirei, verdadeiramente cansada. Talvez desabafar com a mulher que conseguia ficar uma hora apenas olhando para a minha cara há meses, fosse uma opção boa. Ela era simpática, de toda forma, além de literalmente formada para escutar meus problemas. E eu já não aguentava mais lidar com tudo sozinha. — Ainda não consegui jogar, se é isso que quer perguntar. — Como se sente quando tenta ir para a quadra? — Sufocada — admiti, antes mesmo de notar as palavras escapando de meus lábios. — Bom, chegamos a algum lugar. — Ela deu um sorriso vitorioso. A avaliei durante alguns segundos, antes de soltar mais um suspiro e apenas ignorar o alerta de silêncio em minha cabeça. Retomar aquele assunto, sempre me levava novamente para o fatídico dia e a cada momento eu me sentia pior. — Sinceramente, sei que meu pai só quer o melhor para mim, mas é meio cansativo ele colocar tanta expectativa. Minha perna está melhor, mas… Eu não quero, não consigo ir jogar. — Já pensou que talvez você não precise necessariamente voltar para o vôlei? — Como assim? — questionei, me ajeitando no sofá e cruzando as pernas. — Você quer voltar? — Jaqueline perguntou, dando ênfase. Parei por um minuto, considerando o que ela havia dito. Eu queria voltar? Mesmo que eu amasse jogar, parecia algo errado… Como se isso fizesse parte de outra pessoa, como se a Melina de antes não fosse a mesma de atualmente. — Não sei — respondi suspirando, sentindo um peso sair das minhas costas. Jaqueline me olhou com atenção, talvez tentando decifrar o que aquele novo suspiro significava. Provavelmente se lembrando de algum artigo da faculdade “As Cinco Linguagens do Suspiro Comportamental” ou algo assim. Esse pensamento quase me fez rir, se não fossem os olhos amarelos me observando, como se cada movimento mínimo revelasse um pouco da minha alma. — Você poderia avaliar outras opções, pelo menos até se sentir pronta para voltar a jogar. — Como o quê? — Talvez dança? Música? Lembro que comentou que gosta disso. — Eu fazia Jazz, mas não danço desde os quinze anos. — São apenas opções para considerar, pode pensar em outra coisa também. Aquela frase me deixou um pouco pensativa. Talvez o meu grande erro tenha sido tentar com tanto afinco voltar para uma coisa que eu já não me sentia bem, só por ser algo que eu fazia antes. Encontrar uma nova atividade poderia até ser uma ideia boa, embora eu não soubesse se estava realmente pronta e nem por onde começar, considerando que existiam grandes chances do meu pai não lidar muito bem comuma coisa nova. Suspirei pensando na reação dele, não queria decepcioná-lo e, por mais que eu tentasse ser positiva, sabia que não seria fácil. Mas depois de tudo o que aconteceu… Eu precisava de algo para me distrair, para me sentir eu mesma de novo, não uma sombra da pessoa que eu já fui. Por mais que a ideia me revirasse o estômago, minha melhor opção era fazer em segredo, pelo menos até saber que meu pai estaria pronto para lidar com minhas escolhas. Continuei a sessão durante mais longos minutos, contando sobre coisas da minha semana e recebendo observações cautelosas de Jaqueline. Saí da sala assim que terminou, me deparando com uma das minhas pessoas favoritas, Theodoro, sentado na cadeira bege da sala de espera. Por mais que eu tivesse insistido veementemente que ele não precisava me acompanhar na sessão, não resultou em nada, no final ele ainda estava ali, sentado por uma hora na cadeira dura. Embora eu fingisse que não tinha gostado, no fundo, era legal ter alguém para fazer companhia depois de um longo tempo revivendo o passado. Theodoro — ou apenas Theo, para qualquer pessoa existente, já que ele odiava seu nome inteiro — era meu primo mais velho. Ele não morava na cidade, mas estava me visitando, como fazia regularmente. Às vezes eu me sentia mais como outra irmã mais nova dele do que realmente prima, pelo tanto que me protegia. — E aí, como foi hoje? — ele questionou, enquanto se levantava lentamente. — Ai! Alguém deveria trocar essas cadeiras, não vou conseguir andar o dia inteiro agora — reclamou, colocando a mão nas costas enquanto se alongava. Dei um sorriso debochado e cruzei os braços diante da cena. Os olhos castanhos escuros de Theo se semicerraram em minha direção, como se me desafiassem a rir. Soltei uma gargalhada ruidosa, mesmo não sendo tão engraçado assim, mas parecia com o sentimento de quando alguém fala: “se você rir, você está mentindo”, mesmo dizendo a verdade da vontade de rir. — Eu poderia ficar descadeirado e você ainda ri da minha cara? — ele reclamou, dramaticamente, disfarçando um sorriso. — Fazer o que, você poderia ter ficado lá em casa deitado na minha cama confortável e espaçosa, mas seu impulso de curiosidade foi maior, não é? — respondi sarcasticamente — Você escutou atrás da porta? — perguntei baixinho, como se estivesse confidencializando um segredo. — Até tentei, mas a moça da recepção não tirava os olhos de mim, não consegui fazer muita coisa. — Deu de ombros com um olhar sofrido. — Essa é a maldição que eu carrego por ser irresistível desse jeito. Revirei os olhos, Theo era realmente lindo, seu cabelo castanho levemente bagunçado e seu corpo atlético eram o sonho de qualquer um, o que normalmente incluía a maioria das pessoas que andavam comigo e viviam babando pelo meu primo. Porém, eu não o deixaria saber disso tão facilmente. — Coitada, a mulher deve ser cega. — Com ciúmes, priminha? — meu primo questionou enquanto bagunçava meu cabelo, do mesmo jeito que fazia quando éramos pequenos. Senti minhas bochechas esquentarem enquanto tirava a mão dele da minha cabeça, sabendo que meu cabelo deveria estar uma bela bagunça no momento. — Theo! Quantas vezes eu disse que não gosto que você faça isso? — reclamei, tentando bater em seu braço e falhando miseravelmente. — Olha que brava, cuidado para não se machucar, priminha — ele disse, rindo. A cada minuto meu rosto ficava mais vermelho, principalmente após perceber o olhar questionador da recepcionista em nossa direção. — Alguém já te contou que você é insuportável? — Eu também te amo, Memelzinha — Theo replicou, colocando o braço em meus ombros enquanto íamos para o elevador. — Não me chame assim! — exclamei e ele deu uma risada, provavelmente se divertindo ao me ver irritada. Bufei e revirei os olhos enquanto entrávamos no elevador, o peso do braço do Theo ainda nos meus ombros, mesmo irritada não quis tirá-lo, me sentindo estranhamente reconfortada pelo gesto. Sabia que ele só estava me irritando por uma tentativa de me tirar dos pensamentos que me assombravam, e que esse era o jeito dele de tentar fazer com que eu me sentisse melhor. — Você não me respondeu — Theo falou, retirando o braço dos meus ombros e pressionando o botão do subsolo. — O que exatamente? — Como foi hoje? — perguntou com cuidado, como se estivesse com medo da minha reação. — Sabe que pode falar comigo, sobre qualquer coisa. Suspirei, olhando para a parede cinza brilhante do elevador, lembrando das palavras de Jaqueline. Você poderia avaliar outras opções, pelo menos até se sentir pronta para voltar a jogar. — Meio que sempre é a mesma coisa, mas recebi uma perspectiva interessante — falei simplesmente, deixando de fora o que a terapeuta havia proposto, mesmo sabendo que eu poderia contar se quisesse… não era nada certo ainda, nem tinha certeza se realmente faria isso, então não queria dar esperanças a ele. — Ah, isso é bom. — Theo ajeitou a parte da frente de seu cabelo castanho. — Precisa mesmo voltar para Monte Sul amanhã? — perguntei, mostrando um beicinho e agarrando o braço exageradamente musculoso dele, enquanto encarava seu rosto, coberto por aquele bigode que não combinava tanto com meu primo, embora ele alegasse ter se inspirado no Caio Castro. — Vim só para o fim de semana, você sabe que as longas doze horas para chegar aqui de carro matam qualquer um e eu preciso estar descansado na terça-feira, mas prometo que nas férias eu venho para passar um tempo com você. Eu sabia que era um esforço enorme da parte dele, até porque se aquelas cadeiras podiam deixar as costas travadas, nada se comparava a doze horas sentado em um carro dirigindo. Teve uma época que eu me questionava o motivo para ele não vir de avião, mas depois entendi que Theo gostava de estar com o carro para poder me levar para todos os cantos, por mais longe que fosse, como se pudesse aliviar um pouco da minha tristeza e tinha dias que ele realmente conseguia. — Vou cobrar. — O soltei e sorri para ele, que colocou a mão na porta, assim que ela abriu, para eu sair. Logo entramos no carro e Theo começou a dirigir em silêncio. Eu nunca falava quando era Theodoro no volante, ou as consequências poderiam ser um tanto desastrosas, considerando que meu primo não era exatamente o melhor dos motoristas e até Ariella — irmã mais nova dele e minha prima favorita —, com todo seu desastre e impaciência conseguia dirigir melhor, mesmo odiando. O que mais temíamos era quando ele vinha para Vila dos Anjos sozinho, porque um rapaz desastrado dirigindo por horas em uma estrada não era a melhor das opções, mas no fim, tudo sempre ficava bem, desde que ele estivesse focado. — Pode me deixar no Museu Municipal? — questionei, segurando firme no banco apenas por garantia. — De novo? Não tinha dito que estava lá semana passada? — Você sabe que adoro museus — respondi, dando de ombros. Ninguém entendia essa minha paixão, como se fosse algo realmente estranho, mas para mim era libertador. — Certo, mas quando quiser ir embora me manda mensagem que vou te buscar. — Pode deixar, priminho — eu disse, no mesmo tom que ele usou comigo na sala de espera e sorri quando Theo revirou os olhos. ✽ ✽ ✽ Eu andava pelos corredores, admirando cada uma das exposições lentamente. Eu amava arte, qualquer tipo de arte. Para mim era como uma espécie de história contada de maneiras diferentes e eu constantemente parava para as admirar, observando a técnica, a beleza por trás de cada jogo de sombras ou pincelada, às vezes até inventava cenários e histórias na minha cabeça sobre o que via. Eu poderia passar horas olhando somente uma peça, mas nunca seria o suficiente, como se em cada minuto eu encontrasse visões diferentes para analisar. Talvez um dos únicos problemas em passar tanto tempo do fim de semana em museus, vendo várias obras repetidas, mas ainda assim continuar apaixonada, fosse o fato que eu ficava ainda mais distraída que o normal, embora nem acreditasse que isso fosse possível, já que na maior parte do tempo eu estava navegando dentro da minhamente e esquecendo de viver no mundo real. E por culpa da minha distração, não reparei que tinha uma pessoa parada no meio do caminho, dando de cara com o corpo alto, que parecia mais uma parede naquele momento, considerando os músculos rígidos. Senti as mãos do indivíduo pegarem a minha cintura para evitar que eu caísse de costas no chão, e provavelmente me machucasse toda. Mas infelizmente minha testa não teve a mesma sorte, já que ela colidiu em cheio com o peitoral do homem à minha frente. — Eu sinto muito — sussurrei, abrindo os olhos que eu tinha fechado de modo automático e ficando um tanto paralisada ao me deparar com ele. Alguns consideráveis centímetros mais alto que eu, o cabelo loiro e cacheado inconfundível e seus olhos de um azul profundo, tão profundo como uma pintura pincelada com maestria. A cada vez que eu o via, concluía como o mundo era injusto. — Olhe por onde anda, ou pode acabar matando alguém. — A voz dele soou rouca de uma maneira que eu já estava bastante acostumada, mas, mesmo assim, tive que evitar dar um salto por conta da surpresa de escutá-la, tentando me recuperar rapidamente para que ele não ganhasse motivo para me perturbar depois. Se controle, Melina! — Foi um acidente… — respondi, cruzando os braços defensivamente, contra o tom do rapaz. — Percebi — ele me interrompeu, tirando as mãos da minha cintura. Não pude deixar de arquear as sobrancelhas, sem acreditar que eu ainda me esforçava para tentar ser minimamente civilizada. Todas as vezes em que nos encontramos aquele garoto me olhou de um jeito que fazia parecer que eu tinha cometido um crime, além do tom grosseiro presente em sua voz constantemente. Tensionei a mandíbula, tentando ficar tranquila e não armar uma cena no meio do museu, porque eu ainda tinha que manter a classe, mesmo que estivesse lidando com Santiago. — Com licença — pedi, recebendo um olhar que se assemelhava ao desprezo. Soltei um suspiro, me desviando do rapaz e tentando com vigor ignorar o que quer que tivesse acabado de acontecer. Minha vida andava sendo muito mais fácil sem encontrar com ele. Me assustei ao sentir um cutucão no ombro, que fez eu me virar de imediato e ficar ainda mais acanhada ao ver que ele segurava um celular idêntico ao meu. Instintivamente coloquei a mão no bolso do casaco xadrez, mas não havia nada ali. Fechei os olhos, mortificada ao perceber que Santiago segurava meu celular, que provavelmente tinha caído quando havíamos nos esbarrado. Tem como isso ficar pior? — Acho que além de desastrada, também é meio distraída — falou, dando de ombros. Eu quis tanto xingar ele e arrancar o olhar presunçoso do meio daquele rosto perfeitinho, mas me controlei e apenas peguei o celular, querendo sair dali o mais rápido possível. Santiago, como sempre, não mostrou nenhuma expressão diferente e sem dizer nada, apenas desviou de mim e continuou andando. Maldito robô sem emoção! Revirei os olhos, o que eu queria ter feito assim que o idiota abriu a boca. Balancei a cabeça, e liguei meu celular, me assustando com o horário, já que estava quase na hora do jogo de basquete e eu não queria me atrasar. Então acabei mandando mensagem para o Theo antes de colocar o celular no bolso e seguir para o último corredor de exposições. Comecei a rir assim que entrei na conversa dele, porque Theo tinha mudado o nome de seu contato. Melina: Quem deixou você mudar seu nome? Melina: Prepara a carruagem que já deu meia-noite e a Cinderela tem que ir pro baile. Primo Mais Lindo: Esse nome passa mais verdade. Primo Mais Lindo: E eu virei fada madrinha agora, menina? Primo Mais Lindo: Acho que você tá falando do filme errado… Primo Mais Lindo: Desde quando a Fiona vira Cinderela? Se perdeu toda. Melina: Anda abusado, hein? Melina: Acho que vou ter que comer sozinha o bolo de chocolate que comprei pra você. Primo Mais Lindo: Não precisa exagerar, princesa linda do meu coração! Primo Mais Lindo: Já tô pegando as chaves. Primo Mais Lindo: Não se esqueça que eu te amo e você é a prima mais linda desse mundo. Melina: O que um bolo de chocolate não faz, né? Primo Mais Lindo: Infelizmente eu sou um neném que precisa de alimentos e cuidados. Melina: Ok, neném, vou esperar no portão 1. Primo Mais Lindo: Chego em dez CAPÍTULO 2 Sábado, 28 de agosto de 2021 “Eu me pergunto se estou sendo realista Eu falo o que eu penso ou eu filtro como me sinto? Eu me pergunto, não seria bom? Viver em um mundo que não é preto e branco?” — Wonder, Shawn Mendes Existiam dias em que eu me perguntava o que estava fazendo fora da cama, ou até mesmo acordado. A única coisa que eu desejava era desaparecer e isso era uma bosta. Eu sabia que minha casa nunca estava vazia, todos os dez empregados contratados pelo meu genitor passeando de um lado pelo outro me provavam isso, mas ainda assim, a solidão se alastrava em meu peito e eu me perguntava quando exatamente viver tinha se tornado sinônimo a uma infelicidade eterna. Não era novidade para ninguém que eu via o mundo de forma diferente, tudo parecia cinza e tedioso durante cada segundo de cada dia. E talvez se meu tom de voz irritado não fosse o bastante para demonstrar isso, minha expressão constante de tédio provavelmente era. Sentei em uma das poltronas pretas que ficavam próximas da entrada da casa, esperando sem muita paciência por David, meu primo, também conhecido como a criatura mais folgada já nascida. — Santiago, veio mesmo me buscar? — A voz de David ecoou pelo ambiente, me fazendo observar sua espécie de entrada dramática. Meu primo descia a escada do lado direito, fingindo estar em câmera lenta e jogando o cabelo castanho-claro para o lado. Foi um dos momentos em que mais me questionei porque eu ainda me esforçava para levantar dos meus lençóis quentinhos. — Não, é só um delírio da sua cabeça — retruquei, me levantando de supetão e soltando um suspiro cansado. Ele terminou de descer as escadas, parando na minha frente e me encarando com aqueles olhos exageradamente verdes, que se estreitavam levemente. — Onde está a Ana? — perguntou, enquanto desviava os olhos do meu rosto para olhar o cômodo, em busca de sua irmã. — Se eu me atrasar, o treinador vai me fritar e não posso decepcionar todas as gatas que vão estar lá para me ver. Revirei tantos os olhos, que cogitei seriamente que a qualquer momento eles saltariam para fora do meu rosto e senti a mesma irritação diária invadindo o meu corpo, como se por acaso eu fosse o guarda costas da minha prima para saber onde ela anda a cada hora do dia, pensei Talvez eu precisasse de terapia. — Como vou saber onde a sua irmã está, David? — questionei, cruzando os braços. — Talvez porque ela é sua prima? — Quase dezenove anos e vocês não param de brigar nunca? — Ana Carolina perguntou, me fazendo dar um pulinho pelo susto causado por sua presença repentina. — Vai ser assombração lá na puta que pariu, Carol — David falou, mostrando o dedo do meio para a irmã. — Cala a boca, David, vamos logo para esse jogo — a menina retrucou, revirando os olhos na direção de seu irmão. — Contra quem vão jogar mesmo? — perguntei, encarando meu primo, esperando que aquela tortura acabasse de uma vez e eu pudesse voltar para minha cama e dormir. — São Sebastião, para o desespero de todos os presentes. — Ah minha nossa, por que não me avisaram que seria uma guerra e não um jogo? — Ana dramatizou, se jogando na poltrona que eu estava sentado há poucos minutos. Encarei meus dois primos, tentando com afinco não sentir vontade de esganar eles. Qual era a dificuldade de parar de enrolação e ir direto para o carro? Infelizmente, nós não nos desgrudávamos desde pequenos e isso só ficou ainda mais intenso depois que meus tios e os dois se mudaram para a minha casa quando eu tinha dez anos. Mas não era como se eu não quisesse jogar eles — principalmente David — pela janela do segundo andar em praticamente todos os dias. — Não ia se atrasar? — questionei David, que arregalou os olhos quando viu que se continuasse com aquela conversa iria chegar emcima da hora no jogo. — Vamos logo, tenho que encontrar uma pessoa antes do jogo começar — meu primo falou e eu tive que me controlar, mais uma vez, para não revirar meus olhos. — Quem? — Ana perguntou, ficando em pé e olhando para o irmão severamente. Chegava a ser cômico a expressão brava da garota, considerando que ela tinha cerca de 1,50 de altura e parecia uma criança, mesmo já tendo dezessete anos. Seus cabelos crespos, volumosos e escuros estavam presos em um rabo de cavalo, os olhos castanhos se encontravam totalmente destacados pelos cílios enormes, que me fizeram questionar se ela tinha feito algum tipo de alongamento. E sua pele preta retinta estava tão absurdamente hidratada que chegava a brilhar com a luz do lustre bem acima de nós três. — Não é da sua conta, Ana Carolina — David pronunciou irritadiço. — Você é meu irmão e um puta de um irresponsável, óbvio que é da minha conta. — Minha prima cruzou os braços, cerrando os olhos e o rapaz a imitou. Tinha horas que aqueles dois eram tão absurdamente parecidos que eu me questionava se Ana era realmente adotada. — Preciso me encontrar com uma mina, sua imbecil — ele falou, chocando um total de zero pessoas já que, assim que disse que iria encontrar uma pessoa, eu e Ana já havíamos entendido o que David iria fazer. — Você e essas garotinhas… tenho pena delas. — Ana abaixou os braços, apenas direcionando uma careta de desaprovação para seu irmão. Talvez criticar cada movimento do meu primo fosse uma espécie de hobby para Carol, e eu não poderia negar que era meu também em certos dias. — Garotinha é você, nem saiu da adolescência ainda, toma vergonha — David reclamou, mostrando a língua como uma criança. — Para ver como as coisas estão feias para o seu lado, eu nem saí da adolescência e já sou mais responsável que você. — Calem a boca — pedi, suspirando raivosamente, cada vez mais impaciente. — Vamos nos atrasar e se eu escutar alguém reclamando de atrasos hoje, juro que não me responsabilizo por meus atos. — Ai que medo, você é tão assustador, Santiago — Ana debochou, levantando uma das sobrancelhas para mim e eu semicerrei meus olhos em sua direção. — Vai para a merda, Carol. Estou indo para o carro e vou ligar ele em dois minutos, se não estiverem lá, vocês vão andando para a porra do ginásio — respondi e sem esperar por eles, comecei a ir em direção ao lugar onde eu havia deixado o carro. David se encolheu levemente e pegou a mochila que estava jogada na outra poltrona, me seguindo em direção a porta preta e gigante da entrada, assim como a Ana, que andava de forma apressada, provavelmente para acompanhar os passos do irmão, fazendo o barulho dos saltos ecoarem pelo piso. O sentido de ir de salto para um ginásio? Eu realmente não sabia, mas não seria eu que começaria a cuidar do vestuário de uma adolescente. Rapidamente nós três estávamos no carro, partindo em direção a mais uma porra de jogo em que teria que ficar com a bunda doendo para mostrar apoio ao meu primo. ✽ ✽ ✽ Eu estava puto. Era algo nítido em meu rosto. Minha bunda realmente doía graças aquele banco desconfortável do ginásio, assim como eu já imaginava que aconteceria e ainda Ana Carolina tinha feito a gentileza de decidir ir embora mais cedo, para encontrar só Deus sabe quem. O time do meu colégio estava perdendo por dois pontos e faltava menos de cinco minutos para acabar a partida, o que significava que era o fim e teríamos que aguentar os imbecis do São Sebastião se gabando por longas semanas. Eu não era do tipo que comprava brigas, muito menos quando se tratava de disputas entre jogadores adolescentes e revoltados, mas o capitão do São Sebastião já tinha mexido com Ana e isso era uma coisa que eu nunca perdoaria. Tinham dias em que eu queria matá-la? Sim. Jogá-la em um rio porque não sabia nadar? Provavelmente. Arremessá-la de um carro em movimento? Sempre. Ou dar amendoim para ela comer considerando que era alérgica? Com certeza. Mas Carol ainda era como uma irmã mais nova e ninguém, além de mim e David, poderia fazer nada com ela. Me levantei de supetão para xingar mentalmente um dos jogadores que fez um passe ridículo e foi nesse momento, que acabei visualizando o que eu tentava constantemente ignorar. Aquele maldito cabelo castanho com sutis ondulações que eu conhecia bem até demais, a ponto que seria impossível não reconhecer, estava na arquibancada do outro lado, a uma distância considerável de mim. A observei com atenção enquanto falava alguma coisa com Nina, a melhor amiga, e quase consegui escutar aquela voz inconfundível e insuportável ecoando na minha cabeça. O apito, avisando que o jogo tinha terminado invadiu meus tímpanos, fazendo com que a atenção que eu tinha direcionado para ela fosse interrompida e eu focasse na expressão irritada de David, que parecia prestes a socar o ar, enquanto os treinadores saiam da quadra por qualquer motivo que fosse. Dois dos jogadores do time do meu colégio se aproximaram do meu primo, que era o capitão, fazendo algum comentário que não consegui escutar e rapidamente começando a olhar na direção da arquibancada do outro lado. Isso foi o suficiente para que Nicolas, o capitão brutamontes do São Sebastião se aproximasse, falando alguma coisa que deixou David vermelho, me surpreendendo, já que meu primo, embora debochado, costumava ser quase calmo. Isso claro, se não o provocasse, ou não fosse um de seus dias ruins, porque se fosse o caso, o rapaz era como uma bomba. — REPETE ISSO E EU JURO QUE ARREBENTO ESSA SUA CARA — David gritou, erguendo o dedo na direção do Nicolas e isso foi o suficiente para iniciar uma espécie de guerra no ginásio. Consegui ver Melina pulando a grade da arquibancada, acompanhada da Nina, e correndo na direção dos dois capitães descontrolados, mas minha visão se limitou a isso quando uma enorme aglomeração se formou em volta do meu primo e Nicolas. Comecei a descer tranquilamente os degraus, andando até a porta da arquibancada, porque eu me recusava a sujar meu casaco pulando aquele negócio apenas para livrar meu primo de mais uma das suas confusões. Demorei alguns minutos para chegar no lugar que eles estavam e David tinha desaparecido. O único rastro daquela briga era a Melina, segurando o rosto do Nicolas de maneira próxima demais, o que me obrigou a lembrar que eles namoravam e como isso era o ponto-chave de todo o ranço que eu sentia por ela. Era simplesmente impossível alguém decente ser próximo daquele bosta. Quando Melina o soltou, consegui escutar o rapaz dizer: — Me desculpa, Mattos. Não entendi o que ela respondeu depois de abraçá-lo, mas foi o bastante para Nicolas sair da quadra, em direção ao vestiário. A encarei de costas por alguns segundos, ficando um pouco enojado pela situação que tinha acabado de presenciar. Talvez por isso, eu tenha acabado soando ainda mais grosso quando perguntei: — Onde está o David? Acabei recebendo um olhar franzido e avaliativo em minha direção, conforme me fitava de cima a baixo e eu precisei prender a respiração para manter minha expressão indiferente, que normalmente era extremamente fácil e natural, mas que naquele momento parecia ser impossível por tanta irritação que eu sentia. CAPÍTULO 3 Sábado, 28 de agosto de 2021 Deveria agradecer aos céus por Theo ser tão paciente, já que tinha me deixado no ginásio sem nem ao menos questionar alguma coisa e ainda informando que se precisasse, ele me buscaria novamente. Mesmo temendo pela minha vida quando estávamos no carro, era ótimo ter uma espécie de motorista. Comecei a descer as escadas da arquibancada, procurando por minha melhor amiga que, provavelmente, já tinha chegado, considerando toda sua pontualidade. O que, com certeza, não era uma qualidade que eu possuía, levando em consideração meu superpoder de me atrasar em praticamente todos os compromissos que eu tinha. — Melina! — Nina gritou e eu sorri ao avistar seus longos cabelos castanhos e cacheados na primeira fileira da arquibancada. Andei até ela, lhe dando um abraço rápido assim que a alcancei.Nina usava uma blusa azul que combinava absurdamente com sua pele preta em um tom amendoado. — Você quase perdeu o começo do jogo, amiga — Nina me avisou, cruzando os braços e curvando os lábios cheios e pontiagudos em uma espécie de careta de reprovação. — Eu sei, por sorte o Theo foi me buscar. — Seu primo está na cidade? — A jovem começou a olhar em volta com curiosidade e interesse, provavelmente procurando por Theo. Levantei as sobrancelhas e dei uma risada de escárnio. Theo arrasava corações por onde passava, coitado. Não havia dúvidas que em algum lugar tinham criado um grupo, onde fofocavam sobre ele em mensagens de texto. — Toma vergonha, meu primo é sete anos mais velho que a gente — falei, mas meu tom bem-humorado estragou qualquer repreensão que pretendia dar. — Melina, olhar não exige idade, não é minha culpa se você tem um primo gato. — Nina levantou as mãos em sinal de rendição enquanto se defendia. — Gato e com o coração comprometido, pare de gracinha — a lembrei e ela fez um beicinho como se aquela notícia a deixasse triste, o que eu sabia que era brincadeira. Antes que Nina pudesse me responder, os gritos vindos de algumas garotas do outro lado da arquibancada ecoaram pelo ginásio, nos informando que os jogadores estavam chegando. Aquele era um dos jogos de basquete mais esperados dos últimos meses, nosso colégio contra o Santana. Aqueles riquinhos mimados estavam merecendo serem totalmente acabados pelo nosso time. O ódio entre os dois colégios era tão claro, que o ginásio estava lotado, mesmo sendo um sábado e adolescentes terem coisas muito mais interessantes para fazer no fim de semana do que assistir a um jogo. Mas basquete e vôlei eram tão importantes em Vila dos Anjos que acabavam ganhando até mais destaque que o futebol, o que chamava a atenção até mesmo dos jovens. Vários jogadores daqui já tinham ido para nacionais e coisas do tipo, então isso acabava aumentando ainda mais a rivalidade entre nossas escolas. O primeiro time entrando era o do colégio Santana, o que explicava o motivo de ser a arquibancada do outro lado gritando, considerando que nós tínhamos que ficar separados. Quando deixavam as torcidas rivais se juntarem nunca terminava bem, pelo simples fato de que somos competitivos. Observei com uma expressão de desgosto quando os atletas entravam na quadra, ansiando pela hora em que aquele momento acabaria e seria a vez dos jogadores do meu colégio. Não demorou para isso acontecer e os gritos da nossa torcida que, sem querer me gabar, com toda certeza foram muito mais altos do que os da equipe adversária, ecoaram na quadra. Assisti com gosto quando as pessoas do outro lado nos olhavam com raiva. Acenei de forma animada assim que vi Nicolas entrando e ele sorriu para mim, me mandando um beijo que eu fingi pegar no ar. — Vocês são tão… Ridículos, juro que não entendo o motivo de terem terminado — Nina falou, ganhando minha atenção. — Principalmente se considerarmos que vocês ainda se tratam como namorados, só não se beijam. Pelo menos até onde eu saiba. Não segurei uma risada, balançando a cabeça em negação. Eu e Nicolas namoramos por aproximadamente uns cinco meses, mas percebemos que realmente não daria certo entre nós e, por conta disso, acabamos terminando há duas semanas. Mas mesmo assim, continuamos amigos, já que éramos antes e parecia simplesmente errado nos afastarmos só por termos dado uns beijos e transado. — Eu e ele não damos certo como qualquer coisa além de amigos, foi burrice pensar diferente — respondi, dando de ombros. — Então pare de iludir o coitado, na cabeça dele vocês ainda vão casar e ter filhos. — Claro que sim. — Soltei uma risada sarcástica, que fez Nina saber que eu não acreditava naquilo. — Eu não o iludo. Minha amiga balançou a cabeça e um apito soou pela quadra, sinalizando que o jogo tinha começado, então acabei decidindo focar minha atenção totalmente nos rapazes. ✽ ✽ ✽ Assim que o jogo acabou, foi possível sentir todo o clima pesado invadindo o ginásio. Nosso time só ganhou por dois pontos, mas foi o suficiente para aumentar o ego dos jogadores em um nível extremamente absurdo. Os jogadores estavam organizando suas coisas para deixar o ginásio quando eu pude ver de maneira privilegiada Nicolas decidindo fazer algum tipo de comentário, irritando o capitão do Santana, David, e fazendo o rapaz olhar meu melhor amigo de uma maneira extremamente ameaçadora. David costumava ser até calmo, um verdadeiro exemplo de capitão — o que, mesmo amando muito Nicolas, não poderia dizer que ele era, considerando todos os problemas de raiva — e nunca se deixava levar pelas provocações do nosso time. Mas de alguma forma, que eu não consegui escutar, Nicolas acertou qual era o ponto fraco do capitão e o irritou tanto que o rapaz de pele branca ficou tão vermelho quanto um tomate. — REPETE ISSO E EU JURO QUE ARREBENTO ESSA SUA CARA — David gritou, apontando o dedo na frente do rosto de Nicolas. Grande erro, foi o que passou imediatamente na minha cabeça, já sabendo que ia dar ruim e me preparando para a merda acontecer. Nicolas cerrou o punho e foi questão de um segundo para estar levantando o braço, não me dando tempo de impedir, mesmo já saindo do meu lugar de imediato para tentar pará-lo, seguida por Nina. O punho do meu melhor amigo acertou o rostinho perfeito de playboy de David, deixando uma marca considerável e um pouco de sangue escorrendo do lábio dele. O capitão do Santana inclinou a cabeça de lado, lançando um olhar debochado na direção de Nicolas, antes de o socar de volta. Aquilo foi o suficiente para iniciar uma espécie de disputa de força entre os jogadores. E para o nosso azar, os treinadores tinham saído para resolver alguma coisa, nos deixando completamente sozinhos no meio daquela bagunça. Nina e eu pulamos a grade que dividia a arquibancada da quadra e rapidamente corremos na direção de Nicolas. Se eles parassem, todos parariam, ou pelo menos era o que eu queria acreditar. Embora a briga fosse o menor dos nossos problemas, considerando que o soco que Nicolas deu em David, mesmo que revidado, provavelmente causaria a suspensão do nosso capitão. — NICOLAS! — gritei assim que cheguei perto para que ele me escutasse. Notei quando olhou na minha direção, mas decidiu me ignorar e continuar socando David. — NICOLAS! — Nina fez o mesmo que eu, tomando a iniciativa de se aproximar. A acompanhei, começando a tentar segurar o braço de Nicolas, mas era um pouco difícil considerando a nossa diferença de altura e porte físico. Eles eram não só mais altos, mas também muito mais musculosos do que eu. Nina decidiu ir para o outro lado, tentando parar David enquanto eu tentava minhas chances com meu amigo. Assim que Nicolas hesitou por um instante, eu consegui segurar seu braço, entrando na frente dos dois e fazendo o rapaz, que tinha um semblante descontrolado, parecer relaxar um pouco. Antes que eu notasse, Nina já estava tirando David dali, o levando para algum lugar que eu não fazia nem ideia de qual seria e muito menos o motivo, mas eu não poderia parar para pensar naquilo, precisava focar em Nicolas, antes que ele fosse atrás do garoto e desse a louca novamente. — Ei — chamei, colocando as mãos no rosto dele. Ele tentou se desvencilhar do meu toque, mas segurei seu rosto mais forte com medo de que fizesse alguma besteira. E olhando firmemente em seus olhos, falei: — Calma Nicolas, não vale a pena. O rapaz respirou fundo tentando se acalmar. Ele fechou os olhos com força e em seguida me olhou profundamente. Soltei um suspiro aliviado ao ver que havia se acalmado o suficiente para não socar a cara do adversário. Soltei seu rosto lentamente e desviei a atenção de seu olhar penetrante. — Me desculpa, Mattos. Ele tinha me chamado pelo sobrenome, o que com toda certeza queria dizer que estava absurdamente arrependido e foi suficiente para eu o abraçar, sentindo as batidas descompassadas do coração dele — provavelmente pelo estresse — relaxarem. — Vai para o vestiário, se te pegarem aqui no meio daconfusão vai levar uma suspensão — falei para Nicolas quando o soltei e o rapaz rapidamente concordou, começando a andar para fora da quadra. — Onde está o David? — Uma voz em tom grosseiro estranhamente familiar soou logo atrás de mim. Assim que me virei, fiquei com o cenho franzido por me deparar com Santiago. Os garotos em volta estavam parando de brigar, cansados e roxos demais para continuar com aquele circo. Eles começaram a andar em direção ao vestiário também, mas Santiago me encarava daquela mesma maneira de mais cedo, como se eu fosse um inseto. As íris azuis focadas em minha direção, como duas pedras de gelo, tão frias que eu poderia jurar que um arrepio subiu pela minha espinha enquanto aquele rapaz me fitava. Ele não fazia parte dos jogadores, o que se eu não soubesse acabaria sendo bem notável já que Santiago continuava com a mesma roupa de mais cedo, uma calça escura, um moletom branco e um sobretudo preto por cima, que o fazia parecer saído diretamente de algum filme. — Como eu vou saber? — questionei, cruzando os braços e o fitando desafiadoramente, sem me dar o trabalho de soar agradável. — Talvez porque seu namoradinho tenha começado a briga e metido um soco no rosto dele — respondeu em tom igualmente desafiador que me fez semicerrar os olhos em resposta. — Bom, suponho que David seja grandinho o suficiente para cuidar de si mesmo e não precisa que eu, uma pessoa que ele nem mesmo conhece tão bem, monitore sua vida e saiba onde está — falei ríspida, pronta para desviar dele e sair andando, mas Santiago entrou na minha frente assim que eu dei um passo para o lado. — Com licença — disse, esperando que ele saísse da frente, o que não aconteceu. Sério, esse garoto só pode estar brincando comigo. — Eu vi você e a Nina se aproximando dos dois, para onde ele foi? — Novamente grosseiro, de uma forma que fazia meu sangue ferver, já sentia minhas bochechas aderirem a um tom vermelho, algo que sempre acontecia quando estava com raiva. Era palhaçada um cara tão idiota ser bonito, o mundo definitivamente era injusto. — Olha aqui, não tenho obrigação nenhuma com você, nem com o David, só fui separar para diminuir os problemas, não sou obrigada a aguentar você dando uma de doido e me cobrando, ou sei lá. — Para alguém distraída, foi bem rápida se livrando do David para seu namorado não levar a culpa. Aquele idiota realmente estava me acusando de me “livrar” do capitão fresquinho do Santana? Foi o suficiente para eu perder a pouca paciência que me restava e — como Theo costumava dizer — dar uma de Ariella. — Vai se foder, eu não fiz bosta nenhuma. Se os dois arrumaram uma briga, ambos mereciam uma merda de suspensão, agora se o seu capitão saiu correndo como a porra de um covarde para nada acontecer com ele, eu não tenho nada a ver com isso. Só tentei diminuir o problema, cacete. Eu sabia que estava sendo hipócrita, principalmente considerando que as chances de Nina ter arrastado David para o convencer de não se queixar de Nicolas eram gigantes, e também o fato que mandei meu melhor amigo sair dali. — Uau — o rapaz resmungou, cerrando levemente os olhos e me encarando. — Parece que alguém tem uma boca suja. — Eu vou te mostrar a boca suja… — Apontei o dedo na direção dele, mas fui rapidamente interrompida, já que Santiago segurou meu braço com certa delicadeza que me surpreendeu, considerando que ele era um idiota. — Não gosto que apontem o dedo na minha cara — falou, me encarando de maneira intensa. Ah sinceramente, o que ele estava querendo? — E eu não gosto de quem age como um babaca — rebati, a irritação correndo livremente em minhas veias enquanto o garoto ainda encarava meus olhos, como se estivéssemos em algum concurso para ver quem cederia primeiro. Vendo que sua mão ainda segurava delicadamente meu braço, o balancei de forma brusca, fazendo ele me soltar na mesma hora. — Precisa aprender a controlar sua raiva, raio de sol — ele disse, colocando suas mãos nos bolsos da frente de sua calça. Simplesmente odiava quando Santiago me chamava daquele jeito, porque eu sabia bem que fazia aquilo apenas para me provocar. Já teve uma época que eu não conseguia entender como praticamente todas as vezes que nos víamos acabava da mesma forma: nós dois discutindo, mas considerando tudo… meio que fazia total sentido. — E você sua grosseria e esse arzinho superior. — Levantei a cabeça de maneira desafiadora. Ele deu uma risada, não do tipo sincera, ou que mostrasse os dentes, mais como um risinho debochado. — Só perguntei onde o David está. — Deu de ombros, fazendo uma mecha de seu cabelo loiro cair em seu rosto. — De maneira grossa, e logo começou a me acusar de coisas sem sentido. — Se ficou tão ofendida, talvez tenham sentido. — Aquele olhar, a merda do olhar superior tinha voltado, me deixando ainda mais irritada. Se existia alguém naquele mundo que eu conseguia sentir um completo desgosto, esse alguém era Santiago. — Vai se foder — falei de forma ríspida. — Olha a boca suja voltando — rebateu, encarando meus lábios, como se ainda conseguisse ver as palavras saindo de minha boca. — Como você consegue ser tão insuportável? — É um dom natural — ele respondeu, dando de ombros e cruzando os braços. Revirei os olhos com raiva. Realmente era. — Notei, por que não vai procurar o David e me deixa em paz? — perguntei, apontando para o resto do ginásio. — Não é como se essa conversa fosse resultar em algo. — É a primeira coisa sensata que escuto saindo da sua boca em meses — Santiago falou, olhando em volta e me encarando mais uma vez. — Então vai — eu disse, acenando com a mão e dando um sorriso cínico, que o fez dilatar as narinas. — Foi um prazer te encontrar, Santiago. — Gostaria de dizer o mesmo. — É só fazer que nem eu… — respondi docemente. — Mentir. Sem esperar que ele respondesse revirei os olhos e lhe dei as costas, antes de ir em direção ao vestiário para procurar Nicolas. Esperei na porta com os braços cruzados, irritada com todos os acontecimentos. Brava por Nicolas ter causado aquela briga, com raiva daquele idiota que saia falando o que lhe dava na telha e raiva de mim mesma por ainda continuar sempre indo limpar a bagunça do meu melhor amigo e, no final, acabar sobrando para mim. — Oi, Lina — Nicolas falou, assim que saiu do vestiário e olhou para mim. Minha respiração saiu entrecortada com o choque. Seu rosto, de pele preta em um tom amendoado extremamente parecido com o de Nina, agora estava colorido com diversos roxos, que eu sabia que demorariam dias para sair. Não queria nem imaginar quão machucado David tinha saído daquela briga. Ele passou a mão pelo cabelo raspado, como se aquilo pudesse demonstrar que sentia certa culpa. Às vezes me dava raiva por Nicolas ser tão absurdamente gato e irresponsável na mesma medida. — No que estava pensando? — perguntei, cruzando os braços. — Já tínhamos ganhado deles, não precisava começar uma briga. — Melina, eu tive meus motivos, não iria começar uma briga do nada — respondeu, me fazendo parar um minuto para analisá-lo. — Meio que é a sua cara começar do nada, mas vamos lá então, por favor, me diga os motivos, Nicolas. — Escutei o David e os outros dois caras falando de você. Aquilo me fez franzir o cenho, o que diabos os jogadores do Santana poderiam estar falando de mim? — Falando o que exatamente? — questionei, sem tirar a postura séria, talvez por Nicolas ser muito maior que eu e manter aquela pose me deixasse com um ar mais confiante. — Ah, Lina… — Nicolas. — O encarei seriamente, mostrando que não iria deixar aquilo passar. Ficamos nos olhando por alguns minutos, até que meu amigo soltou um suspiro cansado e coçou a cabeça desviando o olhar para o chão, como se não conseguisse me encarar. — Porra, estavam falando que você é “gostosa demais e era uma pena ser do São Sebastião” — ele falou, fazendo aspas com os dedos. Aquilo só me deixou mais irritada. Não pelo comentário dos imbecis, mas por ser sempre a mesma história. O ciúme ridículo do Nicolas foi um dos motivos para eu concluirque nunca daríamos certo. — Quem liga para o que eles falam? É motivo para sair socando os outros? O que você falou para o capitão engomadinho? — Lina. — Nicolas — retruquei, olhando teimosamente para seus olhos castanhos. Mais uma vez me recusei a desviar o olhar, porque eu não iria sair de lá sem uma explicação. Eu costumava ser uma pessoa muito tranquila, mas aquele não era um dos meus bons-dias, então tudo estava me deixando absurdamente irritada. Afinal, também tinha direito de ficar mal. — Ele tem uma irmã, provoquei usando isso — ele disse, dando um suspiro cansado. — Cacete, Nicolas. Era um golpe baixo. Envolver família, em qualquer circunstância era ridículo e pela reação de David, eu até conseguia imaginar o que ele tinha dito. Suspirei e fiz um sinal para que Nicolas me seguisse, ainda tinha que dar carona para ele e encontrar a Nina. Para o meu alívio, pelo menos não precisei procurar, já que minha amiga estava andando em nossa direção, com um sorriso tranquilo no rosto. Nina parou em nossa frente, com seu nariz arrebitadinho demais, as sobrancelhas finas sendo complementadas por seus olhos fundos e castanhos, que faziam fofas dobrinhas na parte inferior, além de seu queixo pontudinho, que a deixava com um charme único. — David fez um grande estrago nesse rosto, hein — Nina falou, olhando para Nicolas. — Alguém chamou os treinadores, eles estão esperando por você — minha amiga terminou de explicar, dando espaço para Nick, que apenas suspirou e começou a andar na direção da quadra. Eu e Nina o seguimos, ficando apenas um pouco para trás quando ele chegou perto dos treinadores. David estava parado de frente para ele, com o olho esquerdo inchado, bem como o lado direito de sua boca. Pouco atrás dele, estava o idiota do Santiago, me encarando de braços cruzados, o que me fez o imitar, cerrando levemente os olhos em sua direção. — Quem começou a briga? — o treinador do Santana perguntou, olhando de Nicolas para David seguidas vezes, esperando uma resposta. — Foi uma briga coletiva, senhor — David respondeu, me deixando surpresa e ganhando minha atenção por um momento. Olhei na direção de Nina, que deu de ombros, mas eu sabia que ela tinha feito algo, principalmente considerando o sorrisinho que a garota provavelmente imaginava ser discreto estampado em seus lábios. — Como existe uma briga coletiva? — foi a vez de nosso treinador questionar, confuso. — Os dois times começaram a brigar ao mesmo tempo, ambos têm culpa igualmente — o capitão engomadinho explicou. Não sabia ao certo o motivo para darem aquele apelido para ele. Embora David fosse rico, como a maioria do colégio dele, ele não era exatamente engomadinho como os outros rapazes do Santana. Enquanto os outros — mesmo os jogadores — andavam de camisas e gravatas, ou então moletons de marca que custavam mais do que meu celular, ele estava sempre de jaqueta de couro ou regatas se estivesse quente, andando despretensiosamente, sem aquele ar superior e pilotando sua moto desde que tinha feito dezoito anos. Eu sabia demais daquele garoto, mas isso era culpa total de Nicolas que só reclamava de David há mais de dois anos. Porém, lá no fundo, bem no fundo mesmo — principalmente considerando que se alguém de fora do meu time de vôlei descobrisse eu estaria ferrada —, eu o achava charmoso. David tinha um ar de bad boy saído diretamente dos livros, de forma que podia mexer com o coração de uma garota só dando um sorriso e olhando em sua direção. — Isso está de acordo, Mendonça? — o homem perguntou para Nicolas, que balançou a cabeça positivamente. Ambos os treinadores se olharam, em seguida soltando um suspiro sincronizado. — Não vamos suspender vocês, mas se acontecer de novo, esqueçam sobre jogar profissionalmente no próximo ano — o treinador do Santana falou. Provavelmente eles já tinham combinado como resolver a situação para não ficarem sem o capitão de seu respectivo time. Ambos eram amigos, então não pareciam ter dificuldade para entrar em consenso. — Sim, senhor — Nick e David responderam ao mesmo tempo. — Liberados — nosso treinador avisou, fazendo um sinal para eles saírem. Nicolas veio em nossa direção e nós começamos a sair do ginásio, mas não antes de eu dar uma última olhada para trás, que me possibilitou visualizar Santiago me encarando. Minha vontade era despertar meu lado infantil e mostrar a língua, mas apenas virei para a frente e continuei andando com meus amigos, sentindo os olhos azuis atentos em minhas costas. CAPÍTULO 4 Sábado, 28 de agosto de 2021 Eu estava encostado na porta do carro, esperando sem muita paciência, David terminar de se despedir dos jogadores, que se encontravam em grande parte suados, roxos e sangrando por conta da briga ridícula de mais cedo. — Qual é priminho, por que essa cara de bunda? — meu primo perguntou, assim que se afastou do restante do time e chegou perto de mim, segurando uma bolsa de gelo em cima do hematoma do olho esquerdo, que com toda certeza ficaria horrível. Senti vontade de responder que deveria ser graças a dor que eu sentia lá, mas ignorei meu instinto debochado e questionei o que realmente importava. — Onde você se meteu quando a briga parou? — Tentei ignorar o quanto tinha ficado irritado com a Melina. Apenas queria saber onde tinham levado David e ela encarou aquilo como um tipo de ato de guerra, até mesmo tinha tido a coragem de apontar o dedo na minha cara. Era muita tortura ver aquela garota duas vezes no mesmo dia, e nos dois momentos seus olhos castanhos encararem os meus com um brilho de ingenuidade e irritação, que me deixaram completamente… irritado, como um olho poderia ser tão expressivo? Não podia ser possível. — Uma garota de cabelo cacheado me puxou, foi uma vibe meio aqueles filmes onde dizem tipo “venha comigo se quiser viver”. — A Nina? — questionei. David me olhou, franzindo levemente o cenho e mostrando uma espécie de careta de desaprovação para mim, que me deixou desorientado por um momento. — Não me diga que está pegando ela. — Porra, não David, não estou pegando ela. — Revirei os olhos diante da afirmação do meu primo. — Que alívio, se fosse o caso, teríamos que dividir ou algo do tipo. — Um sorriso quase malandro surgiu nos lábios dele, me deixando confuso. — Acho que estamos falando de garotas diferentes. Era a única resposta, considerando que eu estava pensando na melhor amiga da namorada do principal rival do meu primo, que pensei ter feito alguma coisa com David, justificando seu sumiço no meio daquele circo. — Não está falando da Nina, aquela bonitona do São Sebastião que saiu junto ao pavio curto e a gata da Melina? Gata? Aquilo era um pouco demais. Melina era sem noção e eu desgostava tanto dela de uma forma que nem sabia que era possível. Ela era um conjunto de coisas péssimas, voz doce demais, cabelo comprido demais, aqueles olhos exageradamente profundos e julgadores de uma forma que parecia que ela seria capaz de ler minha alma, além da boca, cacete, a boca dela ser tão… tão… ah, era como uma ofensa para alguém visivelmente insuportável. Quando estava quieta, ou não apontando dedos na minha cara, eu conseguia enxergar que ela era absurdamente gata, de uma forma até um pouco ridícula, mas não era mais o caso há alguns meses. — Santiago?! — David me chamou, me tirando daquela chuva de pensamentos. — Desculpa — resmunguei, balançando a cabeça, tentando dissipar a memória das íris castanhas brilhantes me encarando com uma raiva adorável, que só era ainda mais irritante. — Sim, eu estava falando dela. — Alguma coisa errada com ela? — ele perguntou e eu dei de ombros. — Ela é amiga do Nicolas e deve ter feito alguma lavagem cerebral em você, porque perdeu a oportunidade de denunciar ele para os treinadores. — Relaxa, ela só me levou na enfermaria e limpou meu machucado, nada de lavagem cerebral. — Já se conheciam? — Fiquei confuso por um momento, não me lembrava do meu primo ter mencionado a garota antes. — Não, só tinha visto de longe algumas vezes, prestava atenção porque você e a Melinasempre brigam. — David logo cerrou os olhos. — Por que tantas perguntas, Santiago? Costuma se interessar menos pelas minhas brigas. — No geral elas não me envolvem — rebati, dando de ombros indiferentemente. Meu primo me olhou sem entender, fazendo um sinal para que entrássemos no carro, que eu assenti. Abri a porta e sentando no banco do motorista, esperando que ele ocupasse seu lugar no carona. Assim que o fez, David passou a mão no assento de couro cor de café, e me olhou com uma expressão apreciativa em seu rosto. — Já disse o quanto acho esse carro um tesão? O tio mandou demais te dando ele. Me segurei para não revirar os olhos, qualquer menção ao meu genitor já era um tanto torturante, mas mencioná-lo fazendo um elogio conseguia ser ainda pior. — Bom, alguma coisa tem que fazer, não é? E sinceramente, eu não precisava de um carro tão chamativo, acabei de tirar a carteira, morro de medo de bater essa banheira. — Não é qualquer um que ganha um BMW assim que tira carteira, você foi privilegiado. — David deu de ombros, enquanto colocava uma garrafa no porta-copos. — Mas mudei totalmente de assunto. Por que exatamente essa briga te envolve? — Basicamente tive uma discussão com a Melina mais uma vez. — Seu rosto me veio à mente, assim que a mencionei, como se a imagem tivesse surgido das profundezas do inferno somente para me perturbar. — Você brigou com ela mais uma vez? Acho que você não consegue chegar perto de garotas bonitas sem arrumar treta. Poxa priminho, assim não dá para te defender. Fitei David com irritação, logo arrancando uma risada dele. Apenas suspirei, uma coisa que aprendi durante anos de convivência com meu primo era que quanto mais eu me importava com suas provocações, pior ficava, então liguei o carro e saí da vaga, com um medo exagerado de bater. Mesmo que quisesse dizer o contrário, o carro era muito bonito, de um branco brilhante, além de espaçoso, e batê-lo significaria precisar sair para consertá-lo, ou pior ainda, ter que comprar um novo e lidar com vendedores. Eu sabia que o carro tinha sensor, além da câmera, mas era caro demais para eu não pensar em ter o máximo de cuidado possível. — Por que brigou com a pobre garota? Ela saiu chorando? Terminei de sair da vaga, suspirando aliviado por aquele feito vitorioso e só pensei na pergunta do David quando já estava na rua, pronto para dirigir até em casa. — Fui perguntar onde você estava, pensei que tivesse se livrado de você para que não reclamasse do pavio curto. — Como exatamente ela teria se livrado de mim, Santiago? — David deu uma gargalhada, só então me fazendo refletir, de forma que me arrependi em um segundo, porque só de imaginar a garota com meu primo foi o suficiente para me causar uma onda de desgosto. David nunca perdia uma oportunidade de flertar com qualquer jovem, e pensar nele com a Melina… Nem mesmo aquele sem juízo merecia um destino tão cruel. — Você inventa cada coisa para brigar com ela, coitada. — Olha, não tenho nem ideia, mas no momento fiquei bem irritado. — Aposto que foi grosseiro, não é à toa que ela te odeia. O olhei de soslaio, logo focando a atenção no trânsito novamente. Não tinha realmente pensado sobre ter sido ou não grosseiro, apenas reagi da forma que o momento estava solicitando. — Não propositalmente, mas ela apontou o dedo na minha cara logo depois. Também me chamou de babaca e disse que eu tinha um arzinho superior. — Puta merda! — David gargalhou, em seguida mostrando uma careta, provavelmente por seu rosto ter doido, o fazendo lembrar de colocar o gelo. — Queria ter visto essa cena. As brigas de vocês são sempre cômicas. — De que lado está afinal? — questionei, levemente ofendido com a falta de apoio. — Em uma briga eu sempre fico do lado da mina gata, é inevitável. — Meu primo sorriu, me fazendo revirar os olhos, mesmo que nem um pouco surpreso com suas palavras. — Você é ridículo — falei, soltando um suspiro cansado por conta de toda aquela interação social, só querendo me trancar no meu quarto e dormir, ou ler um livro e esquecer da realidade por algumas horas, onde não haveria brigas desnecessárias, primos chatos e principalmente, jovens com olhos perturbadoramente profundos me deixando puto até a medula. — Faz parte do meu charme. — Nesse momento eu me perguntei como o ego do meu primo poderia caber dentro do meu carro. Dirigi o resto do caminho em silêncio, apenas aproveitando um momento tranquilo. ✽ ✽ ✽ Assim que chegamos em minha casa, eu entreguei a chave do carro para que Macedo, meu motorista, pudesse guardá-lo na garagem. David foi correndo para a cozinha para pedir de forma dramática para Agatha o ajudar com os seus ferimentos. Às vezes eu sentia pena da mulher, mesmo trabalhando com esforço na casa para deixar tudo em ordem, tinha dias em que o que realmente dava trabalho era o meu primo. — Senhor Santiago, desculpe incomodá-lo — Agatha falou assim que entrou na sala de estar, onde eu estava esparramado no sofá aproveitando o conforto do móvel contra minha bunda dolorida. Eu não sei o porquê eu ainda vou para esses jogos, considerando que só servem para me deixar descadeirado. Com o tempo, aquela casa tinha realmente se tornado o meu lar, já que eu morava lá desde pequeno e praticamente sozinho, considerando que minhas únicas companhias eram meus tios e meus primos, que se mudaram dali logo que fiz dezoito anos alguns meses atrás, tirando David, que decidiu ficar morando comigo. Meu genitor resolveu passar a casa para o meu nome, talvez só por não se importar com ela — e nem comigo — o suficiente. Eu não tinha ficado surpreso, considerando que Archibald tinha decidido voltar para a minha cidade natal, Manchester, na Inglaterra, quando eu ainda tinha dez anos. Se não fosse pelos meus tios, ficando bastante felizes por morar de graça naquela casa enorme, acredito que eu teria crescido de forma muito diferente. Mas o que importava era que atualmente a casa era totalmente minha, o que fez eu e meu primo redecorá-la quase que completamente. Por isso, a antiga sala de estar em estilo vitoriano, tinha se tornado praticamente uma sala de cinema, com uma televisão enorme cobrindo um terço da parede, um sofá que preenchia o outro lado completamente, um frigobar instalado no canto, além das luzes de led que brilhavam no chão e no gesso do teto. — Aconteceu alguma coisa, Agatha? — perguntei preocupado, soltando meu Kindle no braço do sofá e endireitando a postura enquanto olhava para a mulher, tentando descobrir o motivo para ela me procurar. — Acredito que o senhor Ross deveria ir ao médico, o olho dele está bastante inchado. Escutar aquele sobrenome fez uma parte minha estremecer. Eu não odiava meu suposto pai, nem nada do tipo, não mais, apenas deixei de me importar, tentando esquecer a sua existência medíocre, mas, ainda assim, falar dele era uma coisa que me deixava incomodado, mesmo que fosse apenas uma breve menção ao sobrenome que infelizmente eu e meus primos carregamos. — Não entendo como ele continua se metendo em briga, mas se acha que ir ao hospital é o ideal, vou levá-lo. — Não quer que eu solicite que o Macedo o leve, senhor Santiago? Parece cansado — Ela tinha um tom preocupado, que acabou me arrancando um sorriso leve e disfarçado. A mulher trabalhava na mansão desde que eu era pequeno e praticamente tinha me criado depois que meu pai foi embora, considerando que a minha tia ainda tinha mais dois filhos para cuidar e não possuía exatamente tempo para dar atenção a um quase órfão. — Peça para que ele prepare o carro, não quero dirigir, mas prefiro levar meu primo. — Como quiser, senhor Santiago — a mulher, que possuía os cabelos pretos presos em um coque alto e uma estatura baixa, que se comparada a minha altura, seria considerada menor ainda que de costume, falou, rapidamente saindo da sala e me deixando sozinho. A ideia de alguém que tinha idade para ser minha mãe me chamar de senhor era esquisita, mas mesmo eu pedindo inúmeras vezes para parar, Agatha nunca parou, então passei a apenas relevar. Suspirei pesadamente,pegando o Kindle para colocar no bolso, me levantando do sofá e descendo os dois degraus que separavam o lugar que eu mais apreciava ficar deitado — depois da minha cama — e o chão, logo calçando meu tênis branco e saindo da sala. Comecei a andar pelos corredores compridos e bem iluminados, demorando alguns minutos para chegar na cozinha, onde David estava com a cabeça deitada no balcão de forma dramática. — Vamos ao médico — eu disse sem cerimônia. David levantou o rosto, me olhando sério e em seguida soltando algum xingamento inaudível, que me fez respirar fundo, buscando a minha paciência interior, que sinceramente já não existia. — Não quero — David resmungou, como uma criança birrenta. — Não tem que querer, ninguém mandou se meter em briga, a Agatha está preocupada porque seu rosto inchou muito. — Inchou nada, ela se preocupa demais. — Cala a boca e vamos para o carro — eu disse, sem deixar espaço para reclamações. David xingou mais uma vez, se levantando todo estressado do banco e parando ao meu lado. Graças aos deuses ele já tinha tomado um banho e aquele fedor de suor tinha saído. Meu primo passou a mão por seus cabelos, mais escuros e mais curtos que o meu, além de lisos, que estavam molhados e bagunçados, algumas mechas caiam em seu olho que possuía uma coloração roxa em volta que ia ficando mais escura e inchada a cada segundo. Nós saímos pela porta dos fundos, porque seria bem mais rápido do que atravessar a casa inteira apenas para usar a porta da frente, e nos deparamos com Macedo nos aguardando, ao lado do Mercedes preto. Entramos no carro sem trocar nenhuma palavra, sabia que ele estava bravo por ser obrigado a ir ao médico, mas eu não me importava. ✽ ✽ ✽ Quando voltamos para o carro e nos sentamos no banco, David cruzou os braços, completamente irritado, mais até do que quando estávamos no caminho. — Eu disse que não precisava da porra de um médico, só serviu para eu virar quase uma múmia — ele reclamou, apontando para o próprio rosto, que estava coberto por curativos. Respirei fundo e controlei minha vontade de revirar os olhos. Eu não era exatamente um tipo de pessoa paciente e ter o meu primo me perturbando por basicamente cuidarem dele me deixava mais puto que o normal. — Pelo menos não quebrou nada para ter que passar por uma reconstrução facial ou algo do tipo, aposto que aí sim teria motivos para reclamar. — Eu já sou lindo demais, meu rosto é intocável, Santiago. Revirei os olhos e desviei o olhar para o lado de fora, observar a cidade parecia bem mais interessante do que suportar a merda do ego de David. ✽ ✽ ✽ Domingo, 29 de agosto de 2021 Domingo era o único dia da semana que eu não odiava. De segunda a sexta era obrigado a ir para o colégio, com um bando de adolescentes insuportáveis, o que me fazia ter raiva desses dias, mesmo que de tarde fosse até aceitável, já que eu ia para a academia de ballet. No sábado, constantemente precisava ir para algum jogo do David e embora suportasse meu primo o suficiente para nunca recusar, era irritante ter que aguentar os amigos dele e fingir apreciar qualquer tipo de contato humano. Por isso, os domingos eram excelentes, eu vivenciava alguns dos únicos momentos em que um sentimento de felicidade ficava presente, quando escutava a música e dançava, me entregando completamente a melodia e aos movimentos da coreografia. Eu amava o ballet contemporâneo e com toda certeza era a única coisa que me fazia sentir vivo. Se não fosse por isso, eu já teria entrado em estado de loucura há muito tempo. Por isso, o primeiro dia da semana era o que eu me trancava no estúdio de dança da minha casa e aproveitava para ensaiar sem ter ninguém para me incomodar. — Santiago — David cantarolou, parando no batente da porta e me fazendo o fitar. Isso, claro, quando meu primo não decidia me interromper. Olhei para ele, impaciente, esperando que desistisse ao notar minha irritação, mas como não aconteceu, eu suspirei. — Alexa, desligue a música — falei para a assistente virtual, que rapidamente interrompeu a melodia que tocava pela sala. Caminhei até o canto onde tinha deixado minha garrafa de água e a peguei para beber, aproveitando para usar a toalha e secar um pouco o rosto. — O que foi, David? — questionei, olhando na direção do meu primo. — Você só fica enfurnado nesse estúdio, vamos sair fazer alguma coisa — David pediu, entrando na sala. — Não, obrigado. — Qual é, Santiago, vai morrer se sair com seu primo um dia? A sensação era de que eu iria. Sair de casa parecia como um dos maiores castigos. Estava ótimo bem quieto em meu canto, com ar condicionado e sem pessoas me perturbando. — Vou, li em algum lugar que a convivência contínua com parentes irritantes mata. — Vai à merda. Toma um banho logo para sairmos. — Porra — xinguei, me dando por vencido já que conclui que não valeria a pena continuar tentando fazer David mudar de ideia. — Então eu escolho aonde vamos. — Fechado, te espero na sala. Fiz um sinal para que ele saísse e meu primo deixou meu estúdio, me fazendo suspirar de forma irritada, antes de me direcionar até a porta da lateral, que dava diretamente para o banheiro da minha suíte. Uma das vantagens de ter uma casa totalmente minha e um estúdio mais meu ainda, era poder deixar uma ligação direta com meu quarto, já que ninguém mais ficaria por ali. Claro que apenas na teoria. Entrei no banheiro e fui diretamente tomar um banho, ser obrigado a sair não estava na porra dos meus planos, mas quando se tratava dos meus primos, às vezes eu cedia um pouco demais. ✽ ✽ ✽ David estava quase colado ao meu lado, com uma expressão emburrada e os braços cruzados conforme andávamos. — Quando eu disse para sairmos, imaginei tomar um chopp, até um sorvete, sabe e não… vir aqui — meu primo falou, olhando em volta com certo desgosto. O fitei e em seguida a livraria onde estávamos, revirando os olhos com seu comentário. — Você me deixou escolher o lugar — eu afirmei, voltando a observar os livros nas estantes. — Agora lide com isso. — Não era como se eu estivesse com opções, mas não achei que fosse me arrastar para um antro de leitores e nerds. Não pude evitar mostrar uma careta, encarando David de forma reprovadora que o fez limpar a garganta. Desviei o olhar mais uma vez, prestando atenção no que eu realmente queria e finalmente encontrando o livro que eu procurava. Peguei ele de maneira ligeira, tentando escondê-lo do olhar curioso do meu primo e acelerando um pouco o passo para encontrar os outros que desejava. Porém, por culpa da pressa, esbarrei em alguém, derrubando o pobre livro. Me senti como a pior pessoa do mundo, derrubar um livro era doloroso, porque o risco de danificá-lo se tornava enorme. Comecei a me abaixar, pronto para pegá-lo, mas a pessoa que eu tinha esbarrado fez o mesmo, colidindo nossas cabeças e só então me fazendo olhá-la, o que verdadeiramente me surpreendeu, considerando que era a mesma doida que eu tive que ver no dia anterior. Ainda desastrada, ainda perturbadoramente bonita. Nos levantamos ao mesmo tempo, Melina com o livro em uma mão e esfregando a testa com a outra e eu apenas com o semblante fechado. A garota me fitou e foi como se o brilho sumisse de seu rosto, o sorriso discreto que estava ali se fechou e ela me olhou de forma irritada, antes de desviar a atenção para o livro em sua mão. Foi como, se por um segundo, a jovem quisesse sorrir, mas controlasse com afinco sua vontade. — Nunca imaginaria que você fosse do tipo romântico — ela falou, fazendo um bico enquanto erguia um pouco o livro, mostrando a capa para mim. — Não nos conhecemos o suficiente para você imaginar nada — respondi, soando bastante ríspido. A garota revirou os olhos. — Devo agradecer aos céus por isso. Talvez existisse algum tipo de reciprocidade da parte dela envolvendo a forma como eu me sentia completamente incomodado com a sua presença. Conseguia acreditar com convicção que nós dois éramos como polos opostos, atraindo um ao outro para um completo desastre. E continuar sendo indiferentecom ela bem ali, era difícil demais. — Acho que você se sairia bem como uma stalker, em todo lugar que vou, começou a aparecer — eu disse. — Se eu fosse stalkear alguém, com toda certeza não seria você, por mim nem veria essa sua cara bonitinha. — Então você admite que sou bonito? — provoquei, tendo que me esforçar para não permitir que ficasse nítido em meu rosto como tinha gostado daquilo. — Vai se foder! — ela exclamou. Emiti um som de reprovação, balançando levemente a cabeça em negação e inevitavelmente dando dois passos para frente, encarando os lábios dela, antes de dizer: — Que boca suja, senhorita Mattos. — Não me chame pelo meu sobrenome. — Melina cerrou os olhos para mim, passando a língua pela boca antes de morder o lábio inferior, me obrigando a engolir em seco. Antes de eu soltar alguma resposta ácida e divertida, Nina apareceu, me fazendo dar um passo para trás. — Encontrei a edição que eu queria, quase precisei bater em um garotinho, mas deu tudo certo — a garota falou, parando ao lado dela e interrompendo seja lá o que estivesse sendo discutido entre nós dois. — Oi, Nina — David disse com aquele tom de voz que eu só escutava quando ele estava flertando e normalmente me dava náusea. — David? — Ela fitou meu primo e então eu, só nesse momento nos percebendo ali no ambiente. — Ah, não tinha visto vocês. — Está lendo quadrinhos? — meu primo perguntou, olhando para a HQ na mão dela, que só dava para enxergar a parte de trás, onde o Asa Noturna estava desenhando. — Sim, eu adoro o Dick Grayson — a jovem respondeu, parecendo animada com o interesse de David. Já me preparei para o que estava por vir, desejando ser teletransportado para fora daquele lugar e evitar passar vergonha com meu primo. — O Arqueiro Verde é ótimo mesmo. — David sorriu e Nina franziu o cenho, soltando uma risada baixa. O encarei com um olhar totalmente reprovador, ele nem precisava ler HQs para saber que o Arqueiro Verde não era o Dick Grayson. — Acho que os curativos fizeram mal para o seu cérebro — a garota falou, dando um sorriso solidário. — Errei tudo? — Vem aqui. — Nina segurou o braço dele, o arrastando para algum canto e me largando sozinho com a presença da Melina Estava ocupado demais sentindo vergonha de ser parente de alguém que confundia o Dick com o Oliver para notar um cara apressado passando do nosso lado, de forma que quase derrubou a garota desastrada. Dei um passo para frente de maneira instintiva, não sabendo ao certo o que eu pretendia fazer caso Melina caísse. Deixá-la no chão era uma opção agradável demais para meu corpo cogitar automaticamente levanta-la. — Sinto muito — o homem falou, segurando o ombro dela. — Não tem problema — ela sorriu para ele que, assim que constatou que não havia a machucado, continuou seu caminho. Como aquela garota aguentava ser tão insuportavelmente adorável com todos? Não era possível alguém ter tanta simpatia sem ter algum tom de falsidade. Talvez isso fosse uma das coisas que me fizesse sentir irritação com sua presença, a forma como ela exalava a energia de alguém que apreciava a vida. Melina ajeitou o corpo, olhando para o livro que permanecia em sua mão e apontando o dedo para a capa. — Uma Dama Fora dos Padrões, esse da Julia Quinn eu ainda não li. Fiquei em silêncio, apenas observando como seus olhos deslizavam pela capa, sem desviar por um segundo. Se lia Julia Quinn, pelo menos tinha bom gosto, o que deveria ser o único ponto totalmente positivo sobre ela. — Pode devolver? — Quer tanto assim? — Melina esboçou um sorriso, que eu conseguia perceber que não era sincero. — É, eu quero. — Peguei seu frappuccino — um rapaz, que eu definitivamente nunca tinha visto falou, entregando um copo de café gelado para a senhorita desastre. Ele era um pouco mais alto que eu, parecia ser mais velho também e assim que olhou para mim, abriu um sorriso. — Não conheço seu amigo, priminha — o rapaz, aparentemente primo dela falou, apontando na minha direção. — Ou seria o Shrek da Fiona? A garota o fuzilou, de uma forma que realmente parecia que estava prestes a matar o homem, se assemelhava a maneira como ela me olhou alguns minutos antes e aquilo me fez dar um passo para trás. — Ah, ele realmente é um ogro — ela disse, revirando os olhos. Não tive tempo de associar o que eles estavam falando antes de ver meu primo voltando com Nina. — Entendeu agora? — a jovem perguntou. — Sinceramente, não. Por que existem mais de um? — David parecia prestes a chorar, ficando engraçado com aquela quantidade exagerada de curativo no rosto. — Bruce Wayne tem obsessão por adolescentes problemáticos. — Nina deu de ombros, sorrindo assim que olhou na direção do rapaz e pegou o outro café na mão dele. — Ah meu Deus, Theo, você realmente é um anjo, obrigada. Senhorita desastre a olhou com reprovação e Nina apenas riu para ela, fazendo um sinal de negação. Era por coisas assim que eu odiava sair de casa, se tivesse ficado no conforto do meu estúdio, nunca esbarraria com essas pessoas e não seria obrigado a tentar interpretar as reações de ninguém. — É sempre um prazer ter a companhia de moças tão bonitas — David começou a falar, fazendo uma pausa ao ver o tal Theo. — E rapazes também, mas precisamos ir embora. — Claro, um prazer — eu resmunguei, estendendo a mão para a garota, esperando que me desse o livro. — Parece que alguém aprendeu a mentir — Melina falou, o entregando para mim. Senti minha boca querendo se curvar em um sorriso, assim que me lembrei do dia anterior, mas não permiti que acontecesse, segurando mais uma vez a respiração para manter indiferença, saindo rapidamente de lá e caminhando com meu primo em direção ao caixa. Compraria o resto dos livros que eu queria online, era muito melhor do que ter que passar mais algum momento naquele lugar. — Achei que tinham brigado mais uma vez, não criado uma espécie de tensão nova — David falou, se aproximando de mim, com as mãos nos bolsos. — Que diabos foi aquilo ali? — Tensão? — perguntei confuso, levantando uma sobrancelha, nem entendendo ao certo sobre o que ele estava falando. — Que porra de tensão, David? — Começamos uma peça por aqui? — David deu um sorriso de canto, cerrando levemente os olhos. — Peça? — É, já peguei o papel da múmia e agora você faz a egípcia? — Ele riu, me fazendo ficar ainda mais sério e querendo socar sua cara. — Isso nem faz sentido, vai se foder — resmunguei, não lhe dando mais chance nenhuma de abrir a boca. CAPÍTULO 5 Segunda-feira, 30 de agosto de 2021 Eu já conseguia ver a quadra de onde estava, mas continuava me enrolando para ir até lá. Não sabia dizer o que parecia sempre estar me segurando, mas era quase como se um grande sinal de alerta me implorasse para apenas sair correndo. Mesmo me esforçando diariamente desde que eu fui liberada pelo médico, meus olhos se enchiam de lágrimas a cada passo que eu dava em direção àquele lugar quando o objetivo era participar de um treino. Antes que eu notasse, minhas pernas fizeram o trabalho sozinhas, me obrigando a ir até o banheiro, eu sentia o ar faltando em meu corpo e uma pressão horrível no peito. Abri a porta da cabine e me sentei no chão, pouco me importando se poderia ter alguma sujeira ali. Lágrimas embaçaram minha visão e a única coisa que desejei, em meio ao piso gelado e as paredes de azulejo, foi que toda a dor que eu sentia desaparecesse e talvez, que eu estivesse incluída no pacote de sumiço. Minhas mãos tremiam e eu sentia o suor começando a aparecer ali, como se a cada tentativa de recuperar o fôlego aumentasse a quantidade de umidade em minha palma. — Mel? — A voz de Nina ecoou pelo banheiro e a jovem rapidamente abriu a porta da cabine que eu estava, me olhando de forma tão preocupada que fez minha vontade de sumir aumentar. Não consegui responder, nem pedir para ela sair dali, apenas continuei chorando e com falta de ar. — Ah, meu Deus, as crises voltaram? — Nina se abaixou junto comigo, me tomando em um abraço. — Desculpa, não precisa responder, estou aqui por você. Ela se
Compartilhar