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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS 
 
DANIEL FURTADO SIMÕES DA SILVA 
 
 
 
 
 
 
 
O ATOR E O PERSONAGEM: 
 
VARIAÇÕES E LIMITES 
NO TEATRO CONTEMPORÂNEO 
 
 
 
 
 
 
 
BELO HORIZONTE 
 
Daniel Furtado Simões da Silva 
 
 
 
 
 
O ATOR E O PERSONAGEM: 
 
VARIAÇÕES E LIMITES 
NO TEATRO CONTEMPORÂNEO 
 
 
 
 
 
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em 
Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal 
de Minas Gerais, com vista á obtenção do título de 
Doutor em Artes. 
 
 
Linha de Pesquisa: 
Artes Cênicas: Teoria e Prática 
Orientador: Prof. Dr. Antônio Barreto 
Hildebrando 
 
 
Belo Horizonte 
Escola de Belas Artes da UFMG 
2013 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Silva, Daniel Furtado Simões da, 1962- 
 O ator e o personagem: variações e limites no teatro contemporâneo 
[manuscrito] / Daniel Furtado Simões da Silva. - 2013 
 235 f: il. 
 
 Orientador: Antonio Barreto Hildebrando. 
 
 Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de 
Belas Artes. 
 
 1. Representação teatral – Séc. XX-XXI – Teses 2. Performance (Arte) 
– Séc. XX-XXI – Teses 3. Teatro – Séc. XX-XXI – Teses I. Hildebrando, 
Antônio, 1961- II. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de 
Belas Artes III. Título. 
 
 CDD: 792.028 
AGRADECIMENTOS 
 
A Julia Guimarães Mendes, pelas várias e constantes trocas. 
À Patrícia Fagundes, Dani Barros, Heinz Limaverde, Marcelo Souza e Silva e Odilon 
Esteves, pela disponibilidade em conceder as entrevistas. 
À Cia Rústica, Cia Luna Lunera e a produção do Estamira- Beira do mundo (Gabriela 
Rosa), pela cessão dos vídeos dos trabalhos. 
Ao Jardel, Felipe, Fabrício, Malu, Bruno, Marcelle e Phil, companheiros do Zona de 
Interferência, que acompanharam o início dessas inquietações. 
À Taís Ferreira e Marina de Oliveira, pelos vários empréstimos bibiliográficos. 
À Michelle, Letícia, Leandro, Raquel e João, colegas da pós-UFMG, que proporcionaram 
boas conversas acadêmicas e tornaram leves e divertidos vários momentos ao longo desses 
anos. 
Aos meus colegas dos cursos de Licenciatura em Teatro e Licenciatura em Dança da 
Universidade Federal de Pelotas. 
Aos professores e funcionários da Pós-graduação em Artes da UFMG. 
Ao Thiago Rodeguiero, pela edição das imagens do CD. 
À Junelise, por estar ao meu lado todo esse tempo. 
 
 
 
 
 
RESUMO 
 
 
Pretendemos aqui investigar os desdobramentos que a cena contemporânea coloca para o 
ator no seu trabalho, dentro do quadro do teatro pós-dramático ou performativo. Partimos 
de uma breve rememoração do desenvolvimento do conceito de personagem, da forma 
como ele foi pensado ao longo da história do teatro, até chegarmos à prática de criadores 
que desestabilizaram e ultrapassaram esse conceito. Discutindo o enquadramento teatral e a 
oscilação entre os planos da representação e da presença, observaremos como o ator se 
comporta num contexto em que proliferam: a utilização de material pessoal do ator, que 
culmina no depoimento autobiográfico; a execução de ações com um caráter não mais 
dramático, mas eminentemente performativo; a utilização de personas do ator; a criação de 
jogos e de diversas maneiras de propor interações com a plateia. São processos que 
aproximam o ator, seu método de trabalho, do performer e de seus procedimentos. 
Oscilando da representação à não-representação, o ator transita entre diversos registros de 
atuação, tendo de recriar sua metodologia de trabalho. 
 
 
 
 
 
ABSTRACT 
 
 
We intend to investigate the ramifications that the contemporary scene puts for the actor in 
his work, within the framework of post-dramatic or performative theater. We start with a 
brief recollection of the development of the concept of character as it was thought 
throughout the history of theater, until we get to the practice of creators who destabilized 
and surpassed this concept. Discussing the theatrical framework and the oscillation 
between the planes of representation and presence, we look at how the actor behaves in a 
context in which proliferate: the use of the actor's personal stuff, culminating in the 
autobiographical testimony; performing actions with a character no more dramatic, but 
eminently performative; using personas of the actor, the creation of games and several 
ways to propose interactions with the audience. There are processes that approaching the 
actor, his method of work, to the performer and its procedures. Teetering from acting not-
acting, the actor moves between various performance records, having to recreate their work 
methodology. 
 
 
LISTA DE ILUSTRAÇÕES 
 
1 – Foto do espetáculo Não desperdice sua única vida ..................................................... 09 
2 – Foto do espetáculo O Fantástico Circo Teatro de um Homem só ............................... 27 
3 – Foto do espetáculo Clube do Fracasso ........................................................................ 58 
4 – Foto do espetáculo Não desperdice sua única vida ..................................................... 78 
5 – Foto do espetáculo De quem é meu espaço? ............................................................... 87 
6 – Foto do espetáculo De quem é meu espaço? ............................................................... 94 
7 – Foto do espetáculo Estamira – Beira do mundo ........................................................ 102 
8 – Foto do espetáculo Não desperdice sua única vida ................................................... 112 
9 – Foto do espetáculo Corpos Subjetivos em Espaços Móveis ....................................... 123 
10 – Foto do espetáculo Corpos Subjetivos em Espaços Móveis ..................................... 131 
11 – Foto do espetáculo De quem é meu espaço? ............................................................ 140 
12 – Foto do espetáculo Clube do Fracasso .................................................................... 145 
13 – Foto do espetáculo Entulhos – Vazio abarrotado .................................................... 153 
14 – Foto do espetáculo De quem é meu espaço? ........................................................... 155 
15 – Foto do espetáculo O Fantástico Circo Teatro de um Homem só ........................... 157 
16 – Foto da intervenção aCerca do espaço .................................................................... 159 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
INTRODUÇÃO – Dilemas do ator no teatro contemporâneo ........................................... 09 
 1. A crise (ou a morte?) do personagem ................................................................. 12 
2. Cena pós-moderna, pós-dramática ou performativa? ......................................... 16 
3. O personagem e o percurso dessa tese ................................................................ 21 
CAPÍTULO 1 – O ATOR E O PERSONAGEM .............................................................. 27 
1.1 - O personagem na dramaturgia clássica .......................................................... 29 
1.2 - O personagem no teatro burguês .................................................................... 39 
1.3 - Os limites do personagem .............................................................................. 49 
CAPÍTULO 2 – O ATOR ALÉM DO PERSONAGEM? ............................................... 58 
 2.1 - A Performance e o ator como performer ....................................................... 59 
 2.2 - O movimento e a ação como personagens ..................................................... 67 
 2.3 - O ator em cena, sem personagem, e o biodrama – a incorporação do real .... 76 
 2.4 - O jogo e a presença cênica ............................................................................. 84 
CAPÍTULO 3 – O Ator e suas ações: Registros de Atuação............................................. 94 
 3.1 - Plano da Representação X Plano da Presentação .......................................... 95 
 3.2 - O Ator e suas Personas: Estar em cena e não ser um personagem?, ou Como 
pensar o depoimento pessoal? .......................................................................................... 105 
3.3 - O Ator como Performer: A construção de ações não vinculadas à construção 
de um “outro” ................................................................................................................... 114 
3.4 - Estado de Atuação e Presença: Dança e enquadramento teatral .................. 120 
3.5 - Ator, personagem, actante ............................................................................ 126 
CAPÍTULO 4 - O ator em trabalho – Personagem, Persona, Jogo ................................. 131 
4.1 - Performatividade: Ator X performer ........................................................... 133 
4.2 - O Personagem: aproximar-se e distanciar-se de si mesmo .......................... 142 
4.3 - A relação com o público: um novo tipo de ator (o ator se reinventa) .......... 150 
CONSIDERAÇÕES FINAIS - A Tarefa do ator, trânsitos, aproximações e 
mudanças .......................................................................................................................... 159 
REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 165 
ANEXO - Entrevistas ...................................................................................................... 172 
1. Odilon Esteves e Marcelo Souza e Silva .......................................................... 173 
2. Patrícia Fagundes ............................................................................................. 194 
3. Heinz Limaverde .............................................................................................. 212 
4. Dani Barros ....................................................................................................... 221 
 
 
 
 
9 
 
INTRODUÇÃO - DILEMAS DO ATOR NO TEATRO CONTEMPORÂNEO 
 
 
Figura 1: Não desperdice sua única vida 
Foto – Guto Muniz 
 
10 
 
 
 
DILEMAS DO ATOR NO TEATRO CONTEMPORÂNEO 
 
 
No início do ano de 2006, eu e alguns amigos formamos um grupo de estudos 
para pesquisar os vários elementos que interferiam no processo de improvisação em dança. 
Havíamos nos encontrado nas jams de contato-improvisação realizadas no estúdio da 
bailarina e coreógrafa Dudude Hermman, em Belo Horizonte, e queríamos estudar como a 
música, o espaço, a intervenção de um texto ou de outro som, objetos e a própria presença 
de outros corpos interferiam na criação e realização dos movimentos. Queríamos investigar 
como isso podia ser transformado em dança. Durante meses nos encontramos uma vez por 
semana para investigar a relação do espaço, da luz e do texto com a maneira como nos 
movíamos e interagíamos. Após uma ocupação realizada no Teatro Marília no final desse 
ano, intitulada Entulhos, Vazio abarrotado
1
, decidimos criar um grupo, que recebeu o 
nome de Zona de Interferência, e que realizou mais dois espetáculos: De quem é meu 
espaço?, em 2007, e Corpos subjetivos em espaços móveis,
2
 em 2009. 
Esses trabalhos com o Zona de Interferência trouxeram vários questionamentos 
sobre a maneira como eu concebia o que denomino meu estar-em-cena. Anteriormente, 
percebia distinções claras entre os trabalhos que fazia como ator, como dançarino e, de 
uma forma esporádica, como performer; mesmo sem serem categorias estanques, uma vez 
que enquanto ator eu dançava, e enquanto bailarino utilizava textos ou estruturas de 
movimento (partituras corporais) que se aproximavam de personagens, elas eram distintas 
e não se misturavam, mesmo quando se aproximavam. Se De quem é meu espaço? foi 
criado como um espetáculo de dança-teatro, tanto a intervenção aCerca do espaço como 
Corpos subjetivos em espaço móveis embaralharam essas distinções. aCerca foi uma 
 
1
 A ocupação, apresentada em outubro de 2006 e ensejada por um edital da Prefeitura Municipal de Belo 
Horizonte – o projeto "Improvisões - Improvisações intermídias" –, discutia o excesso de consumo e o modus 
vivendi das pessoas nos grandes centros urbanos. O grupo, à época formado por mim, Jardel Silva e Antônio 
Henriques – convidou os artistas Maurício Leonard para criar os cenários/ambiências, Sérgio Geléia para a 
parte musical, Janaína Starling para os figurinos, e os performers Felipe Carvalho, Ana Gusmão e Patrícia 
Siqueira para participarem da cena. A iluminação ficou a meu encargo e na dramaturgia utilizamos 
fragmentos de textos de Ítalo Calvino, Caio Fernando Abreu e Fernando Bonassi. 
2
 Tanto De quem é meu espaço? como Corpos subjetivos em espaço móveis foram pensados e criados 
coletivamente, com a participação de todos os integrantes do grupo. No primeiro espetáculo atuavam Daniel 
Furtado, Felipe Carvalho, Jardel Sander, Marcelle Louzada e Phillipe Lobo, e no segundo Daniel Furtado, 
Felipe Carvalho, Jardel Sander e Bruno Vilela, sendo os vídeos de Fabrício Amador. 
11 
 
intervenção urbana criada em 2008, durante o processo de ensaio do Corpos Subjetivos. 
Criamos cercas individuais – de madeira ou arame (tela) – com as quais saíamos em deriva 
pelas ruas, interagindo com as pessoas e questionando a existência das cercas – subjetivas 
e objetivas. Já em Corpos subjetivos, continuávamos a discussão da relação entre espaço 
público e privado, da subjetividade e dos processos de subjetivação a que estamos afeitos 
no nosso cotidiano, nos nossos enfrentamentos e contatos com a metrópole e seus 
habitantes que havíamos iniciado em De quem é meu espaço?. O trabalho era mais 
performático, pouco nele havia do que ordinariamente percebemos como dança ou teatro, 
baseando-se muito na possibilidade de interação entre os atores-performers e o público (era 
este que decidia se se movimentava ou não pelo espaço, se assistia a ação de um dos atores 
ou de outro, se intervinha ou não etc.), e foi denominado por nós como uma “instalação 
performática”. Esse “eu” que interagia com as pessoas no aCerca ou no Corpos 
(especialmente na cena inicial, onde eu recebia as pessoas sem me apresentar como um 
outro, embora imbuído de uma tarefa precisa – ver adiante, cap. 3), e que tinha um 
comportamento distinto daquele que eu tinha no meu cotidiano, configurava-se em um 
personagem ou consistia em quê? O que diferenciava meu trabalho enquanto performer do 
meu trabalho de ator (à mesma época eu trabalhava com a Cia Forte, como ator e 
iluminador) ou como bailarino? O que é que distinguia essas várias formas de estar em 
cena? 
Ao me fazer essas perguntas me vi diante da necessidade de refletir sobre a 
cena teatral na qual estava inserido. É bem sabido que uma das características mais 
marcantes do teatro que se faz nesse início do século XXI é justamente o embaralhamento 
e o borrar de fronteiras e distinções. Uma cena que diluiu e fundiu gêneros, incorporou o 
híbrido e a desterritorialidade, e que, como observou Renato Cohen, passou a trabalhar 
com a não-sequencialidade, a escritura disjuntiva, a emissão icônica e o múltiplo. Para ele, 
 
A nova cena está ancorada em alternâncias de fluxos sêmicos e de suportes, o 
hipersigno teatral, da mutação, da desterritoriedade, da pulsação do híbrido. O 
contemporâneo contempla o múltiplo, a fusão, a diluição de gêneros: trágico, 
lírico, épico, dramático; epifania, crueldade e paródia convivem na mesma cena. 
(Cohen, 2004:XXV) 
 
Este tipo de teatro, chamado sucessivamente de pós-moderno, pós-dramático 
ou performativo, trouxe também uma série de tensionamentos e de indecibilidades, tanto 
no que tange a cena e sua estrutura (a sua dramaturgia e os elementos que ela utiliza), 
quanto à maneira como o ator pensa,cria e atualiza o seu modo de estar-em-cena, além de 
12 
 
transformar a relação estabelecida entre ator e espectador, entre palco e plateia. Neste 
trabalho nos deteremos justamente na análise de como o ator atualiza e concretiza, a partir 
desta nova conjuntura estabelecida pelas mudanças ocorridas na cena teatral, a sua maneira 
de “habitar” o palco, os vários estados de atuação que ele assume e os diversos registros 
que ele aciona nesse trânsito, pensando esse palco de onde, à primeira vista, muitas vezes 
os personagens parecem ter sido banidos. Observaremos que tipo de ator surge a partir das 
necessidades que este tipo de teatro traz. 
 
 
1. A crise (ou a morte?) do personagem 
 
Em 1983 Elinor Fuchs escreveu um artigo de grande repercussão, intitulado 
The Death of Character (A Morte do Personagem), onde discutia o estatuto e as 
possibilidades dessa entidade chamada personagem dentro da cena teatral pós-moderna 
(ver Fuchs, 1996, p. 169-76). Partindo das características do pós-modernismo – o colapso 
das fronteiras tradicionais entre culturas, sexos, artes, disciplinas, gêneros, critica e arte, 
performance e texto, signo e significado, a absorção do teatro com seus próprios 
mecanismos, técnicas e estilos – ela traça um paralelo entre a transição ocorrida na 
passagem do Classicismo ao Romantismo, quando o drama “passou da primazia do 
Enredo, que Aristóteles chamava a „alma da tragédia‟, para a primazia do personagem”
3
 (p. 
169
I
), com a transformação ocorrida na dramaturgia pós Beckett, incluindo aí o trabalho de 
vários grupos experimentais do Estados Unidos, em especial os de Richard Foreman, Lee 
Breuer e o Mabou Mines, Elizabeth LeCompte e The Wooster Group. Nessa nova 
dramaturgia, que incorporou as características pós-modernas, a plateia não está mais 
seguindo as relações entre os personagens, mas sim relações entre os vários canais ou 
sistemas cênicos (verbais, visuais, sonoros), acompanhando informações esparsas e 
fragmentos de personagens que estão dispersos pela cena, onde “o personagem perdeu sua 
preeminência com sua completude e foi dissolvido no fluxo dos elementos da 
performance” (p. 173
II
). 
Fuchs associa esse “eclipse” ou morte do personagem à própria condição do 
sujeito pós-moderno: o colapso de fronteiras que caracteriza este teatro irá borrar "as 
antigas distinções entre o self e o mundo, os seres e as coisas” (p. 170
III
). Diversos 
 
3
 Assim como esta, todas as traduções de textos e livros em língua estrangeira são de minha autoria. Os textos 
originais encontram-se no fim de cada capítulo. 
13 
 
pensadores e teóricos do pós-modernismo observaram como a ideia de um sujeito uno e 
estável foi superada pela realidade de uma sociedade em constante transformação. À 
imagem de um sujeito unificado, que possui um "sentido de si", contrapôs-se a 
fragmentação e o descentramento do sujeito face à impossibilidade de encontrar nas 
manifestações culturais algo que assegure sua integridade, levando à percepção ou ao 
surgimento de identidades múltiplas. Como observa Stuart Hall, "o sujeito assume 
identidades diferentes, em diferentes momentos, identidades que não estão unificadas ao 
redor de um eu coerente" (Hall, 2002:13). Se o indivíduo se vê diante de uma 
multifacetação da própria imagem, isto não significa, como aponta Jean-François Lyotard, 
que haja uma dissolução do “vínculo social”, que indique uma “passagem das 
coletividades sociais ao estado de uma massa composta de átomos individuais lançados 
num absurdo movimento browniano” (Lyotard, 2002:27), mas sim uma complexificação e 
uma mobilidade maior das relações sociais: 
 
O si mesmo é pouco, mas não está isolado; é tomado numa textura de relações 
mais complexa e mais móvel do que nunca. Está sempre, seja jovem ou velho, 
homem ou mulher, rico ou pobre, colocado sobre os “nós” dos circuitos de 
comunicação, por ínfimos que sejam. É preferível dizer: colocado nas posições 
pelas quais passam mensagens de natureza diversa. E ele não está nunca, mesmo 
o mais desfavorecido, privado de poder sobre estas mensagens que o atravessam 
posicionando-o, seja na posição de remetente, destinatário ou referente. (Lyotard, 
2002:28). 
 
Na sua análise da transformação ocorrida no pós-modernismo, Fuchs observa 
que essa morte do personagem é um fato que já vinha ocorrendo há pelo menos cem anos, 
ou seja, desde fins do século XIX (e aqui podemos iniciar um paralelo com a crise do 
drama, tal como a formula Peter Szondi, para quem “Enquanto poética do fato (1) presente 
(2) e intersubjetivo (3) [sic], o drama entrou em crise por volta do final do século XIX, em 
razão da transformação temática que substitui os membros dessa tríade conceitual por 
conceitos antitéticos correspondentes”. Szondi, 2001:91)
4
, e que toma forma concreta em 
teatros como os de Richard Foreman e o Ontological-Hysteric Theater, onde “a visão que 
 
4
 Em Teoria do Drama Moderno, Szondi discute essa contradição entre forma e conteúdo que o drama 
clássico (ou o drama em sua forma clássica) atravessou na virada do século XIX para o XX e as tentativas 
que diretores e autores empreenderam para tentar superá-la. Para ele, dramaturgos como Tchecov, 
Strindberg, Hauptmann, Ibsen e Maeterlinck destruíam o caráter absoluto da forma clássica do drama, 
calcada no fato que ocorre no presente e entre as pessoas do drama, cuja relação intersubjetiva se dá através 
do diálogo. Nos dramas de Tchecov, por exemplo, “a vida ativa no presente cede à vida onírica na lembrança 
e na utopia. O fato torna-se acessório, e o diálogo, a forma de expressão intersubjetiva, converte-se em 
receptáculo de reflexões metodológicas” (Szondi, 2001:91). Para a discussão dessa mudança estilística ver 
especialmente as páginas 91-99. 
14 
 
nós tínhamos da identidade humana desintegrou-se em inquirição nas sentenças isoladas e 
nos gestos que podem ser percebidos como objetos” (Fuchs, 1996:172
IV
). Uma morte que 
faz parte da “crise da representação” que vai tomar corpo após a segunda guerra mundial e 
que se torna evidente na década de 60, formulada em trabalhos como os de Michel 
Foucault (As palavras e as coisas) ou de Roland Barthes (A morte do Autor)
5
, e está ligada 
à superação do moderno, do drama enquanto estrutura, e do ator enquanto portador de 
significados, ou daquele que apenas re-presenta diante da plateia. 
A forma clássica do drama, que será colocada em questão pela modernidade, 
surge, para Szondi, no Renascimento, e exclui de sua forma diversos elementos epicizantes 
que eram corriqueiros no teatro, como a presença do coro, o prólogo e o epílogo, assim 
como as vozes do autor e do espectador, ausentes desse drama clássico. Assim, tanto as 
peça históricas de Shakespeare, quanto as tragédias gregas e boa parte do teatro medieval 
(o teatro barroco, os autos) se veem excluídos desse conjunto. Segundo Szondi, no drama 
vemos o “domínio absoluto” do diálogo, da comunicação intersubjetiva, que 
 
espelha o fato de que ele [o drama] não conhece senão o que brilha nessa esfera. 
Tudo isso mostra que o drama é uma dialética fechada em si mesma, mas livre e 
redefinida a todo momento. (...) O drama é absoluto. Para ser relação pura, isto é, 
dramática, ele deve ser desligado de tudo o que lhe é externo. Ele não conhece 
nada além de si. (...) O dramaturgo está ausente no drama. Ele não fala; ele 
institui a conversação. O drama não é escrito, mas posto. (...) O mesmo caráter 
absoluto demonstra o drama em relação ao espectador. Assim como a fala 
dramática não é expressão do autor. Também não é uma alocução dirigida ao 
público. A relação espectador-drama conhece somente a separação e a identidade 
perfeitas, mas não a invasão do drama pelo espectador ou a interpelação do 
espectador pelo drama. (Szondi, 2001:30-31) 
 
Da mesma forma que o Dramase absolutiza nesse momento a que se refere 
Szondi, há, como veremos no capítulo 1, uma união entre o ator e o personagem, que 
parecem fundir-se em um só: “A arte do ator também está orientada ao drama como um 
absoluto. A relação ator-papel de modo algum deve ser visível; ao contrário, o ator e a 
personagem têm de unir-se, constituindo o homem dramático.” (Szondi, 2001:31). É 
 
5
 Fuchs descreve seu contato com a teoria crítica francesa (1996, p. 1-2), e sua familiarização com as ideias 
de, além de Barthes (que trazia, para que fosse revelado o “ser total da escrita” e pudesse surgir o leitor, a 
necessidade da morte do autor) e Foucault (que, nas palavras da pesquisadora americana, anunciava o “fim 
do homem”), Lacan (a construção simbólica da subjetividade) Derrida (o ataque a “metafísica da Presença”), 
Deleuze e Guatarri (a esquizoanálise), Lyotard (o colapso das “grandes narrativas”), Cixous, Irigaray e 
Kristeva (a exposição das construções filosóficas e psicoanalíticas com viés masculino). Para ela, a teoria 
pós-estruturalista francesa, articulando os discursos em torno da “crise da representação”, pela qual “um 
campo após outro, não apenas literatura, mas o direito, sociologia, antropologia, história, iam cambaleando 
nos últimos 20 anos” (p. 2) – portanto desde meados da década de sessenta –, vai fornecer o quadro 
intelectual para se pensar o fenômeno cultural e artístico surgido sob a égide do pós-modernismo. 
15 
 
justamente essa forma e essa relação que vai ser posta em xeque, originando uma “crise” 
que termina com a “morte do personagem”. 
Não apenas Fuchs questiona-se sobre essa possível morte: Robert Abirached, 
no livro La crise du personnage dans le théâtre moderne, publicado originalmente em 
1978, também se perguntará sobre a crise da representação e o possível desaparecimento 
do personagem dos palcos. Para ele, o teatro entra numa espécie de “crise endêmica” em 
fins do século XIX, com o aguçamento das contradições da nova sociedade industrial
6
, 
colocando em causa a noção de representação, “que parece mais e mais difícil de se ajustar 
aos contornos de um mundo em plena ebulição e de um Eu incerto de suas próprias 
fronteiras e de sua própria natureza.” (Abirached, 1994:12
V
) Porém, se para o teórico 
francês essa crise é também sinal de sua vitalidade (visto sua capacidade de sobreviver a 
ela
7
), ele vislumbra a possibilidade de seu desaparecimento dos palcos, a partir do 
momento que o teatro se dedica a exercícios metalinguísticos, ao confrontar-se com outras 
formas de representação (narrativa, poema, lenda, história), e a fragmentos de vida “mais 
ou menos brutos”, que podem ser extraídos da vida dos próprios atores, tornando o 
personagem “um papel, manejado e remanejado, construído e desconstruído, à livre 
disposição do comediante que se procura através dele e mistura aos seus simulacros as 
efígies de seu sonho.” (p. 448
VI
) 
O que Abirached percebe como uma possível morte é um paulatino 
afastamento de um teatro da tradição aristotélica: 
 
Pode-se aceitar a morte do personagem, sem fraude nem mal-entendidos, e a 
chegada de um teatro tão distante da tradição aristotélica que se poderia 
encontrar-lhe um outro nome. Que esta arte seja possível e que ela suscite uma 
constelação de figuras eficazes, que tratam os atores como signos maleáveis e 
fechando sobre eles mesmos o circulo da representação, não se pode pôr em 
dúvida quando se vê, para não citar mais que dois exemplos, os espetáculos de 
Peter Schumann ou Robert Wilson (...), onde não há nada de comum que certa 
ideia de um teatro escrito em um espaço, livre das tutelas e liberado das 
referências literárias. (Abirached, 1994:448-9
VII
) 
 
 
6
 A virada do século XIX para o XX corresponde ao que Frederic Jameson, baseando-se em Ernest Mandel, 
chama de segunda fase do capitalismo, a do monopólio: “Essa periodização embasa a tese central do livro de 
Mandel, O capitalismo tardio; a saber, que houve três momentos fundamentais no capitalismo, cada um 
marcando uma expansão dialética com relação ao estágio anterior, o capitalismo de mercado, o estágio do 
monopólio ou do imperialismo, e o nosso, erroneamente chamado de pós-industrial, mas que poderia ser mais 
bem designado como o do capital multinacional.” (Jameson, 1997:61). 
7
 Observando sua capacidade de “renascer a nossos olhos”, Abirached compara o personagem a “este pássaro 
fabuloso que retira da morte a fonte de uma nova vida, emergindo sem descanso do fogo onde ele parecia se 
consumir”. (...cet oiseau fabuleux qui puise dans sa mort la source d'une vie nouvelle, émergeant sans relâche 
du feu où il semblait se consumer.) (Abirached, 1994:439) 
16 
 
Esse novo teatro, cujas características e denominação discutiremos a seguir, a 
meu ver não conduz exatamente a uma morte, mas, como ocorre em toda crise, leva a 
colocação do personagem teatral em outro patamar. Patamar que o distancia do 
personagem estruturado nos moldes clássicos do drama, tal como definido por Szondi, e 
que vai tensionar ao extremo o que caracterizaria, do ponto de vista do ator, a constituição 
de um personagem: a construção de uma identidade narrativa distinta de sua própria 
individualidade, de um estar-em-cena que lhe é distinto e pode ser descrito como um 
“outro”. 
 
 
2. Cena pós-moderna, pós-dramática ou performativa? 
 
A transformação da cena teatral, cujas características Renato Cohen 
precisamente apontou e reproduzimos acima, vai ser objeto de diversas reflexões desde 
meados da década de setenta do século passado, quando começam as discussões sobre o 
pós-moderno no âmbito teatral. Vamos observar aqui que as diferentes formas de nomear 
essa cena refletem abordagens que dão ênfases a aspectos distintos do fazer teatral. 
Falando sobre o conceito de teatro pós-moderno, Patrice Pavis destaca que o 
termo não é muito utilizado pela crítica teatral francesa, em parte devido a uma falta de 
rigor teórico que percebe em sua definição, não correspondendo “a momentos históricos, a 
gêneros e estéticas determinadas” (Pavis, 1999:299), em parte por ser uma espécie de 
termo “guarda-chuva”
8
 utilizado especialmente nas Américas, não se constituindo em uma 
ferramenta precisa para a análise da dramaturgia e da encenação. Para ele seria possível, 
portanto, apenas elencar uma série de características gerais normalmente vinculadas à 
noção da encenação pós-moderna, a despeito de seu pouco valor teórico. Assim, a 
encenação pós-moderna 
 
Obedece frequentemente a vários princípios contraditórios, não receia combinar 
estilos díspares, nem apresentar colagens de estilos de atuação heterogêneos. (...) 
Contém em si momentos e procedimentos nos quais tudo parece desconstruir-se 
e desfazer-se entre os dedos de quem quer que pense deter os cordéis e as chaves 
do espetáculo. (Pavis, 1999:299) 
 
 
8
 Em suas palavras, o pós-moderno é “um cômodo rótulo para descrever um estilo de atuação, uma atitude de 
produção e de recepção, uma maneira „atual‟ de fazer teatro (grosso modo, desde os anos sessenta, após o 
teatro do absurdo e o teatro existencialista, com a emergência da performance, do happening, da chamada 
dança pós-moderna e da dança-teatro.” (Pavis, 1999:299). 
17 
 
No que tange ao trabalho do ator, este não “representa uma história e uma 
personagem”, ele se apresenta enquanto indivíduo e artista, colocando no palco pulsões e 
afetos antes que signos, aproximando-se de uma ação performática. Enquanto encenação, o 
teatro pós-moderno caracteriza-se por dois aspectos fundamentais: a valorização do polo 
da recepção e da percepção (o espectador é o encarregado de organizar impressões e 
conferir alguma coerência à obra) e a autorreferencialidade, já que, “ocorrendo tudo em um 
espaço-tempo, sem hierarquia entreos componentes, sem lógica discursiva assumida por 
um texto de referência, a obra pós-moderna não tem outra referencia que não ela mesma.” 
(Pavis, 1999:299). 
Buscando traçar um marco teórico e estético consistente, Hans-Thies Lehmann 
escreve em 1999 o livro Teatro pós-dramático (Postdramatiches Theater), identificando 
haver um número considerável de realizadores teatrais que se caracterizam por um uso dos 
signos teatrais “profundamente diferente”, e pela criação de um texto teatral “não mais 
dramático” (Lehmann, 2007:19). Lehmann opõe o conceito de “pós-dramático” ao de 
“pós-moderno” (que ele considera um termo que remete apenas a uma categoria temporal), 
considerando que a penetração das mídias em todos os setores da sociedade, incluindo aí o 
teatro, vai provocar um “modo de discurso teatral novo e multiforme”. Para o teórico 
alemão o que está em jogo é a superação da forma dramática
9
, e a possibilidade de um 
teatro que se situe para “além” do drama: 
 
Se o curso de uma história, com sua lógica interna não mais constitui o elemento 
central, se a composição não é mais sentida como uma qualidade organizadora, 
mas como uma “manufatura” enxertada artificialmente, como lógica de ação 
meramente aparente, que serve apenas ao clichê, como Adorno abominava nos 
produtos da cultura industrial, então o teatro se encontra diante da questão das 
possibilidades para além do drama, não necessariamente além da modernidade. 
(Lehmann, 2007:32-33) 
 
 
9
 Lembrando que Lehmann usa um conceito de Drama mais expandido que o de Szondi, incorporando a 
dramaturgia épica de Brecht. Como diz Sérgio de Carvalho, na apresentação da edição brasileira do livro de 
Lehmann, “a superação épica empreendida por um autor modelar como Brecht não implicaria uma plena 
mudança qualitativa em relação à tradição hegemônica do teatro, baseada no texto composto por diálogo 
entre figuras. Para dar sustentação à sua tese polêmica, o autor faz uso de um conceito expandido de „drama‟. 
Não se trata mais do drama burguês, baseado no diálogo subjetivo e na forma de um presente absoluto e 
contínuo, apresentado sem mediações externas por meio de figuras que agem de acordo com uma vontade 
autodeterminada. Dramático, para Lehmann, é todo teatro baseado num texto com fábula, em que a cena 
teatral serve de suporte a um mundo ficcional: “Totalidade, ilusão e representação do mundo estão na base do 
modelo „drama‟” [p.26]. Com esse conceito de drama, que reúne Eurípedes, Moliére, Ibsen e Brecht, o teatro 
épico não mais poderia ser considerado um salto, porque nele os deslocamentos da dinâmica interpessoal – 
por meio de coros, apartes, narrativas, etc. – não chegariam a subverter a vivência ficcional.” (in Lehmann, 
2007:9-10) 
18 
 
Mesmo o estranhamento causado pelas práticas teatrais do início do século 
passado, como o artificialismo, as convenções e abstrações propostas por Meyerhold, não 
rompiam com o universo ficcional proposto pelo texto e, em alguma maneira, continuavam 
subordinados à representação e à mimese. Assim, não é suficiente a presença de elementos 
estilísticos que caracterizam tanto várias experiências dessas vanguardas como outras 
experimentações surgidas após a segunda guerra mundial. Será o uso desses recursos que 
caracterizará essa nova forma teatral, já que, no teatro pós-dramático “as linguagens 
formais desenvolvidas desde as vanguardas históricas se tornam um arsenal de gestos 
expressivos que lhe servem para dar uma resposta à comunicação social modificada sob as 
condições da ampla difusão da tecnologia de informação.” (Lehmann, 2007:27). Como 
explica Lehmann, um mesmo fato estilístico pode ser utilizado tanto no contexto estético 
de uma obra dramática como de uma pós-dramática, e esta obra será considerada uma ou 
outra dependendo da “constelação de elementos” que se lhe aglutinem (cf. p. 26-31). 
Assim, não é a fragmentação da narrativa, a heterogeneidade de estilos ou a diluição da 
fronteira entre gêneros, per si, que caracterizará a obra como pós-dramática, mas o arranjo 
de seus elementos estéticos e dramatúrgicos. A sua simples presença atestaria não uma 
quebra com a forma dramática, ou mesmo um “afastamento significativo da modernidade” 
– que validaria falarmos em teatro pós-moderno – mas apenas um distanciamento de 
“tradições da forma dramática” (p. 32)
10
. 
Operando além do drama, e, temporalmente falando, após a configuração do 
drama enquanto forma teatral, o pós-dramático, especialmente na sua aproximação com a 
Arte da Performance (ver adiante, cap. 2), frequentemente vai exigir do ator uma nova 
postura cênica, e consequentemente, no seu método de trabalho. Para Lehmann, “muitas 
vezes o ator do teatro pós-dramático não é mais alguém que representa um papel, mas um 
performer que oferece sua presença em cena para a contemplação” (p. 224). O status 
diferenciado que assume o corpo do ator, sua irradiação, e a aproximação do gesto do ator 
 
10
 Como Pavis, Lehmann critica o uso da denominação teatro pós-moderno, não apenas pela restrição já 
apontada, de ser um conceito apenas “epocal” – mas por tentar apreender um campo extremamente vasto, 
terminando por se tornar uma listagem de características que por vezes oferecem apenas “meras palavras-
chaves, que necessariamente permanecem muito genéricas”. Assim, podemos observar “ambiguidade, 
celebração da arte como ficção, celebração do teatro como processo, descontinuidade, heterogeneidade, não-
textualidade, pluralismo, diversidade de códigos, subversão, multilocalização, perversão, o ator como tema e 
figura principal, deformação, o texto como um valor autoritário e arcaico, a performance como terceiro 
elemento entre o drama e o teatro, o caráter antimimético, a rejeição da interpretação” (Lehmann, 2007:30-
31), como típicos do teatro pós-moderno, sem chegarmos a uma definição do que seria o discurso pós-
moderno. 
19 
 
do gesto de “auto-representação” do performer, caracterizam o ator nesse teatro e abrem as 
portas para a discussão da performatividade da ação do ator. 
Quando coloca a noção de Teatro Performativo, Josette Féral entende que os 
conceitos de performance e performatividade estão no centro deste teatro que Lehmann 
chama de pós-dramático e outros teóricos chamam de pós-moderno. Partindo do conceito 
ampliado de performance que Richard Schechner introduz nos estudos teatrais (que 
discutiremos com mais vagar no cap. 2), e que postula que todas as ações humanas podem 
ser entendidas, vistas ou examinadas “como se fossem performance”
11
, uma vez que são 
frutos de um comportamento humano “restaurado”, e considerando ainda a penetração da 
Arte da Performance, de sua estética e de seus métodos de trabalho no seio deste teatro, 
Féral irá contrapor a noção de teatro performativo à de pós-dramático. 
Para a pesquisadora canadense trata-se de colocar em evidência tanto a ideia de 
pensar as ações humanas em termos de uma performance – ritualística ou cotidiana – 
quanto de perceber o quanto a Performance Art influenciou a prática teatral como um todo 
especialmente a partir dos anos 60, quando a Arte conceitual e os happenings tornaram-se 
frequentes na Europa e Estados Unidos. Enquanto Lehmann destaca o aspecto 
dramatúrgico desse novo teatro, Féral enfatiza uma nova concepção para a ação realizada 
em cena pelo ator. Os elementos que fundam o teatro performativo – 
 
transformação do ator em performer, descrição dos acontecimentos da ação 
cênica em detrimento da representação ou de um jogo de ilusão, espetáculo 
centrado na imagem e na ação e não mais sobre o texto, apelo à uma 
receptividade do espectador de natureza essencialmente especular ou aos modos 
das percepções próprias da tecnologia... (Féral, 2008:198) 
 
– e que não diferem essencialmente daqueles arrolados por Lehmann e mesmo por Pavis, 
sãoabordados e relacionados tendo em vista esta ênfase. A noção de performatividade – 
lembrando que a ação cênica, o “fazer”, é, de fato, a base de todo e qualquer trabalho do 
ator, seja qual for a filiação estética a que ele esteja vinculado – é posta aqui no sentido de 
que a ação do ator torna-se “primordial”, valorizando-a “em si”, e não pelo seu valor de 
representação ou pelo sentido mimético que possa vir a adquirir. Nos exemplos que cita, 
Féral (cf. 2008, p. 201-204) destaca que 
 
11
 Como explica Schechner “Tratar o objeto, obra ou produto como performance significa investigar o que 
essa coisa faz, como interage com outros objetos e seres, e como se relaciona com outros objetos e seres.” 
(Schechner, 2003b:25) 
20 
 
1. As obras performáticas não são verdadeiras nem falsas. Elas “simplesmente 
sobrevêm”, isto, é, elas acontecem, tornam-se evento, e, mesmo com a 
possibilidade – ou necessidade – que o teatro traz, de sua reapresentação, são 
tratadas em sua unicidade, como um acontecimento único (reapresentável, 
porém não repetível). Destaca-se assim o processo, o aspecto lúdico e o 
encontro (atores e espectadores) que o evento propõe e instaura; 
2. A performatividade do ator joga as ações que ele realiza para “além” ou fora 
de um personagem; o ator é confrontado com estas ações pelo seu sentido não-
representativo, pela sua execução em si, e não apenas por sua remissão ao 
universo ficcional instaurado pela cena. 
 
Assim, o que Féral chama de “obra performativa” tem como pontos centrais 
tanto o caráter de descrição dos eventos e fatos que a sua dramaturgia propõe, quanto as 
ações realizadas em cena pelo performer. Sintomaticamente, Féral fala do “objetivo do 
performer”, em como o “performer instala a ambiguidade”, na “„vivacidade‟ (liveness) dos 
performers” etc.; ou seja, para ela, o ator do teatro performativo é um performer, evocando 
sua “presença fortemente afirmada que pode ir até uma situação de risco real e implica um 
gosto pelo risco” (Féral, 2008:207). Vamos abordar essa aproximação entre o conceito do 
ator e do performer com mais vagar no capítulo 4
12
. 
O teatro que iremos analisar e discutir ao longo desse trabalho se insere dentro 
do espectro que Pavis chama de teatro pós-moderno, Lehmann de pós-dramático e Féral de 
performativo. Aqui, iremos nos referir a ele como Teatro Performativo, por enfatizar a 
ação que o ator realiza em cena, sua atuação (seu desempenho, em inglês, a sua 
performance). Apesar de esporadicamente nos referirmos ao ator que desempenha seus 
papeis nesse teatro como performer, usaremos preferencialmente o termo “ator”, pois ele 
nos remete diretamente ao que é fundamental na cena teatral: a ação executada, tenha ou 
não um caráter representativo. E, sintetizando o trabalho do ator no teatro performativo, 
Féral destaca o foco colocado na sua presença em cena: 
 
... o ator é chamado a “fazer” (doing), a „estar presente‟, a assumir os riscos e a 
mostrar o fazer (showing the doing), em outras palavras, a afirmar a 
performatividade do processo. A atenção do espectador se coloca na execução 
do gesto, na criação da forma, na dissolução dos signos e em sua reconstrução 
permanente. Uma estética da presença se instaura. (Féral, 2008:209) 
 
12
 Ver também o capítulo 3, item 3.3. 
21 
 
3. O personagem e o percurso dessa tese 
 
O que podemos entender como Personagem dentro da realidade teatral? Como 
iremos observar ao longo dessa pesquisa, há uma trajetória no uso do termo personagem, 
que ora se aproxima, ora se distancia da pessoa do ator, ora se vincula diretamente ao texto 
literário, ora dele se afasta. Enquanto vinculado a um texto literário, o personagem tanto 
pode ser identificado a um indivíduo quanto a uma ideia abstrata, animais, entidades ou 
mesmo objetos; de qualquer forma, mesmo quando não recebe o nome de uma pessoa, há 
um texto que deve ser dito pelo ator, ao qual são atribuídas palavras que ele deve dizer, 
além de ações a serem executadas em cena, como muitas vezes indicam as rubricas do 
autor; é possível, embora raramente ocorra, que este personagem não se expresse por 
palavras, e o autor dramático lhe confira apenas os movimentos, gestos e atos que deve 
realizar (como ocorre com o personagem Katrin, a filha muda de Mãe Coragem na peça 
homônima de Brecht, ou nos Atos sem palavras, de Beckett). Essas palavras e ações dadas 
pelo texto dramatúrgico propiciam ao personagem de teatro uma autonomia, inclusive em 
relação à própria peça escrita, e podemos imaginá-lo vivendo outras situações e realizando 
outras ações que não aquelas configuradas e definidas pelo autor do drama; visualizamos 
ainda a possibilidade dele ser concretizado por atores diferentes, sincrônica ou 
diacronicamente. O personagem se apresenta aí claramente como um “outro” do ator, 
mesmo quando não é percebido como um indivíduo. Sabemos que nos primórdios do teatro 
ocidental o personagem teatral não era identificado a uma pessoa, mas sim à Máscara que o 
ator portava, e o Papel abarcava as ações realizadas por este em cena; o ator recebia não só 
o texto a ser dito, era também instruído sobre sua atuação: “para os gregos e romanos, o 
papel do ator era um rolo de madeira em torno do qual se enrolava um pergaminho 
contendo o texto a ser dito e as instruções de sua interpretação.” (Pavis, 2009:274-5). 
Confinado ao texto teatral, o personagem se apresenta distinto daquele que atua 
e de quem escreve, não se confunde nem com o autor do drama nem com o ator; é um “ser 
de papel”, que pode ser retomado indefinidamente por leitores e atores. Ele faz parte do 
texto literário, que apresenta planos ou camadas que se sobrepõem umas às outras, a 
começar da realidade dos tipos impressos no papel, e que necessitam da atividade do leitor 
para atualizá-las e concretizá-la
13
. Como explica Anatol Rosenfeld, “todo texto, artístico ou 
 
13
 Falando sobre a estrutura da obra literária, Anatol Rosenfeld enumera as seguintes camadas, irreais 
(“irreais por não terem autonomia ôntica”, necessitando do leitor para atualizá-las): “a dos fonemas e das 
22 
 
não, ficcional ou não, projeta tais contextos objectuais „puramente intencionais‟, que 
podem referir-se ou não a objetos onticamente autônomos” (Rosenfeld, 1987:15). 
Constituindo-se assim como uma projeção, uma “objectualidade imaginária”, o 
personagem literário carrega essa marca de ficcionalidade: suas ações e sua presença são 
tomadas como um discurso “não-sério”, um “quase-juízo”, na expressão de Roman 
Ingarden. 
A matriz textual domina praticamente toda a discussão que se faz em torno do 
personagem, e está centrada ordinariamente tanto no maior ou menor grau de abstração que 
ele apresenta (na proximidade ou afastamento de sua caracterização enquanto indivíduo), 
quanto na função que ele exerce em cena, dentro da fábula ou da narrativa. Vemos em 
Robert Abirached (1994), Patrice Pavis (1999) e Anne Ubersfeld (2005) as marcas dessa 
abordagem: Pavis, por exemplo, afirma que “o estatuto da personagem de teatro é ser 
encarnada pelo ator, não mais se limitar a esse ser de papel sobre o qual se conhece o 
nome, a extensão das falas e algumas informações diretas (por ela e por outras figuras) ou 
indiretas (pelo autor)” (Pavis, 1999:288). O personagem está pré-figurado no texto 
dramatúrgico, e o trabalho do ator é “encarnar” esse ser de papel, concretizá-lo em cena 
através de suas ações. Quando Abirached diz que o personagem teatral está “esquartejado” 
e Ubersfeld constata que ele foi “explodido”
14
, o que está em jogo é essencialmente a 
questão de que o texto teatral não mais apresenta esse personagem como um indivíduo 
autônomo, unificado e/ou dotado de uma consciência de si mesmo, onde se possam 
constatar preceitos dramatúrgicos extremamentecaros à tradição ocidental, como a 
coerência nas suas ações ou numa possível psicologia que a identificaria como um humano 
(ver adiante, capítulo 3, a discussão sobre o uso do termo actante no lugar de personagem). 
Parece-nos claro, no entanto, que o personagem teatral existe tanto fora da 
matriz textual (a começar pelo clássico exemplo dos tipos da Commedia del’Arte), quanto 
 
configurações sonoras (orações), „percebidas‟ apenas pelo ouvido interior, quando se lê o texto, mas 
diretamente dadas quando o texto é recitado; a das unidades significativas de vários graus, constituídas pelas 
orações; graças a estas unidades, são „projetadas‟, através de determinadas operações lógicas, „contextos 
objectuais‟ (Sachverhalte), isto é, certas relações atribuídas aos objetos e suas qualidades. Esses contextos 
objectuais determinam as „objectualidades‟, por exemplo, as teses de uma obra científica ou o mundo 
imaginário de um poema ou romance”. (Rosenfeld,, 1987:13). 
14
 Podemos notar na fala desses autores um tensionamento entre o texto enquanto potência e a sua 
concretização no corpo do ator: Abirached observa que “Entre a palavra e o corpo, entre a potência e o ato, 
entre o sonho e o real, não é suficiente dizer que o personagem de teatro está esquartejado.” (Entre le mot et 
le corps, entre la puissance et l'acte, entre le songe et le réel, il ne suffit pas de dire que le personnage de 
théâtre est écartelé.) (Abirached, 1994:07), e Ubersfeld comenta que “Dividida, explodida, distribuída em 
vários intérpretes, questionada em seu discurso, reduplicada, dispersa, não há violência que a escritura teatral 
ou a encenação contemporânea não lhe imponham” (Ubersfeld, 2005:69). 
23 
 
distanciados da figuração de uma pessoa (há diversas dramaturgias, dos autos medievais a 
Beckett, Gertrude Stein e Heiner Müller, que nos apresentam seres ficcionais que não 
recebem um nome, não são apresentados como nem possuem os traços psicológicos ou de 
individuação, a “consciência de si” (Pavis)) que permita essa identificação a um ser 
humano. Se nos ativermos ao teatro enquanto evento, que requer o compartilhamento com 
a plateia para se realizar, o personagem só adquire existência na relação entre ator e 
público. Em termos estritos, essa existência se configura a partir do corpo e voz do ator, e, 
mesmo no caso de um texto escrito que necessite ser atualizado por uma montagem cênica, 
o personagem “realiza-se”, na cena, no “convívio teatral”, utilizando a expressão de Jorge 
Dubatti (2012). Levando em conta o foco do nosso trabalho, muito do que o ator realiza em 
cena não está contido em um texto dramatúrgico que possui uma existência prévia ao 
trabalho de construção da encenação. O que iremos discutir aqui será o comportamento do 
ator em cena, a maneira como as suas ações concretizam uma “alteridade”, o “outro” do 
ator, algo ou alguém que possui uma dimensão e uma identidade diversa da sua. 
Nesse percurso, observaremos no capítulo 1 como o personagem foi 
conceituado na dramaturgia clássica e no teatro burguês, nesse processo de individuação 
que leva da máscara até a percepção do personagem como um ser humano de carne e osso, 
onde o trabalho do ator se volta para a realidade vivida pelo personagem dentro do 
contexto dado pela peça, partindo de Aristóteles, passando por Diderot até chegarmos a 
Stanislavski. Ainda nesse capítulo veremos como realizadores como Meyerhold, Brecht e 
Grotowski desestabilizaram a noção clássica de personagem, levando o trabalho do ator até 
um limite onde essa noção de alteridade é questionada ou ameaça desaparecer. 
Ao longo do segundo capítulo vamos nos deter na análise de processos e 
manifestações artísticas que tiveram um grande desenvolvimento na segunda metade do 
século passado, em especial a Arte da Performance e a Dança-Teatro. Nosso foco estará 
em observar como esses métodos foram incorporados ao cotidiano do ator e modificaram a 
forma como ele trabalha, percebendo como as tarefas e ações que o ator executa em cena 
adquirem caráter performativo, realçando o jogo e a ludicidade dessas ações. 
Ressaltaremos esse percurso, que se inicia com o desdobramento do método das ações 
físicas de Stanislavski até chegarmos ao Teatro Físico e a fusão do ator com o performer. 
Além disso, há a própria transformação do ator em protagonista dessa cena, assumindo sua 
identidade no palco e fazendo de sua própria história material para a cena e para a troca 
24 
 
com o espectador, numa trajetória que parte dos trabalhos do Living Theatre, até os 
biodramas, como conceitua Óscar Cornago (2005). 
Em seguida abordaremos algumas questões teóricas surgidas a partir da 
transformação da cena e, baseando-nos em Erika Fischer-Lichte e Josette Féral, 
discutiremos especialmente o tensionamento entre os planos da representação e da 
presentação e como o enquadramento cênico afeta o estar-em-cena do ator. A construção 
do depoimento pessoal será retomada a partir dessas abordagens, e observaremos como, ao 
apresentar-se como si mesmo diante do espectador, o ator tem de escolher que aspecto da 
sua vida e da sua personalidade quer exibir, e como esta exibição aproxima-se da criação 
de uma persona, que, se não é ficcional, artificializa a própria presença. Escolhemos 
alguns trabalhos que, a nosso ver, são representativos dessas transformações ocorridas na 
cena contemporânea, para fazer uma observação mais minuciosa dos procedimentos 
empregados pelos atores e na forma como eles se comportam em cena: além dos 
espetáculos do Zona de Interferência, nos deteremos em Não desperdice sua única vida 
(figura 1) espetáculo montado em 2005 pela Cia. Luna Lunera
15
, Estamira – Beira do 
mundo, criado em 2011 com direção de Beatriz Sayad e interpretação de Dani Barros
16
, e 
O Fantástico circo-teatro de um homem só (figura 2) e Clube do Fracasso (figura 3), 
ambos da Cia Rústica
17
. Estes trabalhos trazem novas perspectivas e desafios para o ator: 
ao fazerem uso de material pessoal do ator, fazendo com que ele conte fatos e opiniões 
pessoais em cena (como nas peças da Cia Rústica e em Estamira), e ao trazerem para o 
palco o depoimento pessoal em um viés autobiográfico (especialmente em Não 
desperdice..., mas também no Fantástico circo-teatro.... e em Estamira), esses espetáculos 
apresentam um tipo de encenação e dramaturgia que nos permite discutir como o ator se 
relaciona com esse tipo de material, e qual a relação que ele estabelecem com o 
 
15
 O grupo foi criado em 2001, em Belo Horizonte, e o espetáculo, dirigido por Cida Falabella, tinha vários 
sub-títulos, entre eles “Auto-biográfico”, além de “As patinadoras do Planeta Dragão, ou Seis atores à 
procura do seu personagem, ou O mundo das precariedades humanas ou Nenhuma das opções anteriores”. 
Como diz o site do grupo, o espetáculo mesclava “relatos autobiográficos dos atores, crônicas, obras 
literárias, matérias jornalísticas, classificados de oportunidades, revistas e programas televisivos”, que 
“instigaram os motes das improvisações sobre as contradições, precariedades e ironias cotidianas” (In 
http://cia-lunalunera.blogspot.com/). 
16
 A montagem carioca, com dramaturgia de Beatriz Sayad e Dani Barros, inspirada no documentário 
Estamira, de Marcos Prado (2004), sobre a catadora de lixo Estamira Gomes de Souza (1941-1911), rendeu a 
Dani Barros diversos prêmios de melhor atriz, entre eles o Shell, em 2012. 
17
 A Cia Rústica foi criada em 2004, em Porto Alegre, com o objetivo de “criar uma zona autônoma de 
trabalho entre artistas plurais” (in www.ciarustica.com). O Clube do fracasso, “um olhar festivo sobre o erro 
e a fragilidade humana”, estreou em 2010, e O fantástico circo-teatro de um homem só, solo com o ator 
Heinz Limaverde,que explorava o universo dos pequenos circos que circulam pelo interior do Brasil, em 
2011, todos com direção de Patrícia Fagundes, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 
25 
 
personagem construído a partir da história pessoal do ator; além disso, assim como os 
trabalhos do Zona de interferência, eles propõem novas formas de relação com o 
espectador, possibilitando ainda a discussão da utilização, pelo ator, de uma persona em 
cena. 
Finalmente, veremos no capítulo 4 como se posicionam os atores face a essas 
transformações no seu método de trabalho e na forma como eles se apresentam em cena. 
Para tal entrevistamos Odilon Esteves e Marcelo Souza e Silva, da Cia Luna Lunera, Heinz 
Limaverde e Patrícia Fagundes, respectivamente ator e diretora da Cia Rústica, e Dani 
Barros. Discutiremos, a partir da escala proposta por Michael Kirby (1987), a aproximação 
ou o distanciamento do trabalho do ator de uma representação (acting), e o trânsito desses 
atores entre os vários registros de atuação aos quais eles têm de recorrer no seu trabalho. 
As observações e questões teóricas que levantamos ao longo da pesquisa serão 
confrontadas com a visão e a percepção que esses criadores têm do seu trabalho, da sua 
presença em cena e das ações que eles executam no palco, 
A partir desse confronto traçaremos nossas considerações finais, levando em 
conta não apenas a discussão teórica empreendida, mas a forma como os atores concebem 
e realizam o seu estar-em-cena nesse início de milênio, enfatizando o que é para nós o 
cerne desse trabalho: retomar, do ponto de vista do ator, discussões recorrentes sobre a 
cena que se instaurou nos palcos a partir do último quartel do século XX, trazendo para o 
centro das discussões a percepção daqueles que constituem um dos eixos do fazer teatral, 
mas que, excetuando-se as discussões sobre metodologias de trabalho ou os relatos de 
processos (frequentemente de cunho autobiográfico), poucas vezes têm suas vozes como 
foco de estudos acadêmicos. 
Anexo aos elementos textuais dessa tese encontra-se a transcrição das 
entrevistas realizadas com os atores. 
 
 
 
 
 
I
 “…drama passed from the primacy of Plot, which Aristotle called the “soul of tragedy”, to the primacy of 
Character…” 
II
 “character has lost its pre-eminence whit its wholeness; it has dissolved into the flux of performance 
elements.” 
III
 “…blurring the old distinctions between self and world, being and thing;”. 
26 
 
 
IV
 “…the vision that what we have taken to be human identity disintegrates on scrutiny into discrete 
sentences and gestures that can be perceived as objects.” 
V
 qu'il apparaît de plus en plus difficile d'ajuster aux contours d'un monde en plein bouleversement et d'un 
moi incertain de ses propres frontières et de sa propre nature. 
VI
 Le texte est ici un terrain archéologique ouvert, où public, metteur en scène et acteurs font incursions et 
excursions; le personnage est un rôle, manié at remanié, construit et déconstruit, à la libre disposition du 
comédien qui se cherche à travers lui et mêle à ses simulacres les effigies de son rêve. 
VII
 il peut seul faire accepter la mort du personnage, sans fraude ni malentendu, et l'avènement d'un théâtre si 
éloigné de la tradition aristotélicienne qu'il faudrait lui trouver un autre nom. Que cet art soit possible et qu'il 
suscite des constellations de figures efficaces, em traitant les acteurs comme des signes ductiles et en fermant 
sur lui-même le cercle de la représentation, on ne peut plus en douter quand on a vu, pour ne citer que deux 
exemples, les spectacles de Peter Schumann et de Robert Wilson (...), il n'y a de commun que cette idée d'un 
théâtre écrit dans l'espace, affranchi des tutelles et libéré des références littéraires. 
 
 
 
 
 
27 
 
 
CAPÍTULO 1 
O ATOR E O PERSONAGEM 
 
 
Figura 2: O Fantástico Circo-Teatro de um Homem Só 
Foto: Kiran 
28 
 
 
 
O ATOR E O PERSONAGEM 
 
 
Iniciemos com uma questão: O Personagem é uma máscara que o ator veste? 
A palavra latina Persona indicava inicialmente a máscara usada pelo ator, 
através da qual a sua voz devia ressoar (persona deriva de per sonare, soar através de). Por 
extensão, a palavra passou a designar não apenas o personagem representado pelo ator, 
mas também as “máscaras” usadas pelas pessoas em sua vida social: assumir uma persona 
significa, coloquialmente, assumir um papel social, uma identidade, correspondente ao 
status social, ao trabalho, profissão, a maneira encontrada por cada um para se apresentar 
ao mundo e se relacionar com os outros. É, de certa forma, uma adaptação consciente do 
indivíduo para fazer face ao que o mundo lhe exige, tornando-se uma espécie de “arquétipo 
social” usado pela pessoa em sua vida pública e nos vários papéis sociais que ela deve 
desempenhar. 
A identificação de uma pessoa com a sua persona, com o papel social 
(advogado, operário, político, médico, professor), ou de gênero (homem, mulher, e aqueles 
decorrentes deste, como mãe, pai etc.) que ela desempenha, pode tornar-se patológica: 
 
A identificação com a persona leva a uma forma de rigidez ou fragilidade 
psicológicas; o Inconsciente tenderá, antes, a romper com ímpeto na consciência, 
do que emergir de forma controlável. O Ego, quando identificado com a persona, 
é capaz somente de uma orientação externa. É cego para eventos internos, e daí, 
incapaz de responder a eles. Resulta ser possível permanecer inconsciente da 
própria persona. (Dicionário Crítico de Análise Junguiana) 
 
Para o ator desempenhar seus papéis no palco, não há como permanecer 
inconsciente da persona assumida em cena – se o fizer, assumirá o risco de desenvolver 
um estado patológico. Se as pantomimas de caça, os rituais e os atos xamãnicos 
desenrolam-se justamente baseados nessa imbricação do executante com o cerimonial 
instituído, a prática do ator se baseia na dissociação entre o que é representado e sua 
persona individual (ou uma das personas que ele assume na sua vida). 
Vestir a máscara, encarnar um papel, representar um tipo, viver o personagem, 
todas são formas de expressão que indicam sempre uma relação do ator com um outro, 
distinto da pessoa que lhe dá forma no palco, um outro a que são atribuídas características 
29 
 
específicas, físicas e/ou de temperamento, e que, até bem pouco tempo, remetia a um 
tempo e espaço distintos do aqui/agora da representação. O palco, a cena, configurava um 
espaço que não se confundia com espaço real onde se encontrava a plateia, e o seu tempo 
não era o do cotidiano, era o do ritual (mítico) ou da ficção: “O xamã que é o porta-voz do 
deus, o dançarino mascarado que afasta os demônios, o ator que traz à vida a obra do poeta 
– todos obedecem ao mesmo comando, que é a conjuração de uma outra realidade, mais 
verdadeira”. (Berthold, 2008:01). 
O ator, aí, é “um ser que não é o próprio”, que é o Hipócrita, “que corresponde 
ao substantivo grego hipocrités, enquanto o verbo hipocrinestai significa „representar um 
personagem‟” (Duvignaud, 1972:13). Era o encarregado de dar “vida” a essa outra 
realidade, criando com seu corpo esse espaço-tempo onde a ficção se tornava visível, 
trajando as máscaras que identificavam os personagens. Esse outro, o personagem, como o 
ator o vestia? 
 
 
1.1 - O personagem na dramaturgia clássica 
 
Os ritos e cerimônias que existiram em praticamente todas as sociedades hoje 
chamadas de “primitivas” normalmente se utilizavam de máscaras e danças, recursos que 
foram absorvidas pelas manifestações teatrais (ver Berthold, 2008, p. 7-103). Algumas 
dessas manifestações desenvolveram formas que se assemelham ao modelo de teatro 
surgido na Grécia– como, por exemplo, na Mesopotâmia
1
, ou na Índia
2
 –, e que deram 
origem ao teatro europeu, mas que propõem relações (especialmente entre o ator e o que 
ele deve representar em cena) extremamente diferentes. 
No teatro ocidental, a partir da criação dramatúrgica e cênica empreendida 
pelos gregos, o ator e o personagem por ele interpretado assumiram características 
específicas. Discutindo a relação existente entre o personagem teatral criado pelos 
dramaturgos na Europa e o ator que o representa em cena, Robert Abirached, percebe que 
 
1
 “As disputas divinas dos sumérios possuem um caráter definitivamente teatral (...) Em forma e conteúdo, os 
diálogos sumérios consistem na apresentação de cada personagem, a seu turno, exaltando seus próprios 
méritos e subestimando os do outro” (Berthold, 2008:17). 
2
 “Enquanto os dançarinos rituais honravam os deuses, houve em todas as épocas cantores, dançarinos e 
mímicos ambulantes que entretinham o povo com suas apresentações por uma gratificação modesta.” 
(Berthold, 2008:32). Para os hindus, “dança e atuação teatral são conceitualmente uma coisa só.” (idem, 
p.36). 
30 
 
aquele existe numa espécie de “zona intermediária”, como uma projeção, resultado de uma 
alquimia mental e física cujo resultado o ator oferece ao público. Assim o personagem é 
algo que se estabelece entre o texto do dramaturgo e o corpo e a pessoa do ator, entre o que 
é imaginado e o real, sendo, portanto, pensada como “uma figura saída da realidade e como 
uma entidade autônoma que se move num espaço ao mesmo tempo concreto e fictício” 
(Abirached, 1994:10
I
). 
A retórica latina, ao falar do personagem, distingue três termos distintos, que 
traduzem conceitos diferentes: Persona, Character e Typus. O primeiro pode ser pensado 
como algo que se interpõe entre o homem e o mundo, o segundo como marcas deixadas 
pelo real e que produzem um efeito de realidade, e o último como a presença de um padrão 
e de um modelo fundador (Cf. Abirached, 1994:17). Esses conceitos são aproximações 
metafóricas que revelam abordagens diferentes e transformações na concepção e na forma 
de apreensão do que chamamos de personagem teatral. 
Tomemos inicialmente a máscara (Persona). Por um lado, não podemos deixar 
de considerar que a máscara possuía originalmente um estatuto diferente daquele que 
adquirirá depois no teatro, um poder mágico. Ela concedia àquele que a usava a 
identificação com uma divindade, “um poder mágico capaz de mudar aquele que a leva” 
(RUM, 1964:355). A máscara mágica transferia ao seu portador os poderes dos demônios, 
servindo ao mesmo tempo para atraí-los, pacificando-os, como também para atemorizá-los. 
Por outro lado, para os gregos, a máscara
3
 que o ator usava definia o 
personagem, o seu caráter, permitindo que a plateia identificasse o tipo representado pelo 
ator. Quando Téspis, na Grande Dionisíaca de Atenas em 534 a.C., destaca-se do coro e, 
como um solista, usa “uma máscara de linho com os traços de um rosto humano, visível à 
distância por destacar-se do coro de sátiros, com suas tangas felpudas e cauda de cavalo” 
(Berthold, 2008:105), ele cria a figura do hypokrités (respondedor), marcando o 
surgimento do ator. E, quando seu discípulo Frínico de Atenas amplia a função desse 
respondedor, “investindo-o de um duplo papel e fazendo-o aparecer com uma máscara 
masculina e feminina, alternadamente” (p. 107), isto não apenas significava que o ator 
 
3
 Na Grécia, a máscara teatral era formada por uma carcaça de tela ou de madeira, sobre a qual se estendia 
uma camada de gesso, que se modelava ou pintava. Cobria o rosto e parte do crânio, e dela pendia uma 
cabeleira longa ou curta, ou ainda uma barba. A cabeleira era, por vezes, coberta por um chapéu, quando se 
tratava de um viajante, ou por uma ponta do himácio, para as mulheres, quando andavam fora de casa. Os 
cabelos eram presos por uma rede ou por uma faixa frontal chamada mitra. À máscara estava ligado o onkos 
espécie de apêndice para elevar a fronte. (FREIRE, 1985:89) 
 
31 
 
deveria fazer várias entradas e saídas de cena, para trocar o figurino e a máscara, mas 
evidenciava uma distância entre o que era realizado em cena (agora não apenas uma 
“declamação”) e a pessoa do ator. 
Dessa forma, ao mesmo tempo em que a máscara, por um lado, vinculava-se ao 
culto do deus, por outro ela se incumbia da transformação do ator em personagem. 
Passando ao largo da discussão sobre a relação do culto de Dioniso com o surgimento do 
teatro como uma arte, é clara a ligação da máscara teatral com as máscaras cultuais usadas 
pelos devotos nas festas e nos santuários em honra ao deus. Albin Lesky lembra que era 
justamente no culto de Dioniso que a máscara desempenhava papel mais relevante. Nele, a 
máscara do deus “pendente de um mastro, era objeto de culto, de tal modo que é possível 
mesmo falar de um deus-máscara; seus adoradores usavam máscaras, entre as quais a 
função maior cabia aos sátiros, e máscaras desse tipo eram levadas a seus santuários como 
oferendas” (Lesky, 1976:49). 
Na máscara se encontra “o elemento de transformação em que se baseia a 
essência da representação dramática” (p. 49)
4
. Através do seu uso, o ator continuava sendo 
servo da divindade, e a máscara, uma oferenda a ela. Mas há um longo processo que leva 
das primeiras máscaras animalescas até as máscaras altamente diferenciadas e expressivas 
que encontramos à época da Comédia Baixa. 
J. P. Vernant e Fr. Frontisi-Ducroux destacam que a presença de máscaras 
cultuais na Grécia antiga representa, em suas manifestações, uma das várias formas de 
figuração do divino (Cf. Vernant e Vidal-Naquet, 2005:163-178). Na época clássica, na 
qual as representações teatrais vão tomar a forma que conhecemos e se estruturar em torno 
da apresentação de comédias, tragédias e dramas satíricos, a forma canônica de 
representação do divino era precisamente a estatuária antropomórfica, que busca um ideal 
de beleza e perfeição. Porém, em meio à imagem predominante, outras formas de 
representação subsistem, e a máscara mantém seu valor e possui um papel especial. 
Colocar o devoto em contato imediato com a alteridade do divino, seria esse o 
objetivo maior do dionisismo; a esse objetivo de fusão do fiel com o deus, Vernant e 
Ducroux traçam um paralelo com o fenômeno teatral, com a ficcionalidade que este propõe 
 
4
 Lesky lembra que a transformação era o elemento básico da religião dionisíaca “O homem arrebatado pelo 
deus, transportado para o seu reino por meio do êxtase, é diferente do que era no mundo cotidiano. Mas a 
transformação é também aquilo de onde, e somente daí, pode surgir a arte dramática, que é algo distinto de 
uma imitação desenvolvida a partir de um instinto lúdico, e distinto de um representação mágico-ritual de 
demônios, arte dramática, que é uma replasmação do vivo”. (Lesky, 1976:61). 
32 
 
e a inscrição dessa ficção no real que ele provoca, abrindo um novo espaço, o do 
imaginário: 
 
É um fenômeno paralelo que ocorre no teatro, quando, no século V, os gregos 
instauram um espaço cênico onde apresenta personagens e ações cuja presença, 
ao invés de inscrevê-los no real, lança-os nesse mundo diferente que é o da 
ficção. Quando eles veem Agamêmnon, Heracles ou Édipo representados pela 
sua máscara, os espectadores que os olham sabem que esses heróis estão 
ausentes para sempre, que não podem estar ali onde são vistos, que doravante 
pertencem ao tempo findo das lendas e dos mitos. O que Dioniso realiza, e 
aquilo que a máscara provoca também, quando o ator a coloca, é, através do que 
foi tornado presente, a incursão, no centro da vida pública, de uma dimensão de 
existência totalmente estranha ao universo do cotidiano. (Vernant e Vidal-
Naquet, 2005:176) 
 
Essa dimensãode existência diversa do cotidiano é a dimensão da ficção, e o 
ator inicia sua história presentificando o mito, apresentando uma realidade imaginada sob 
as vestes do real. Vernant e Frontisi-Ducroux argumentam que só no quadro do culto 
dionisíaco, “deus das ilusões, do tumulto e da confusão incessante entre a realidade e as 
aparências, a verdade e a ficção” (Vernant e Vidal-Naquet, 2005:163-176) poderia surgir o 
teatro
5
 local onde o real é transformado em ficção e a ficção encenada como se fosse real. 
O ator se assemelhará ao fiel que, “arrebatado pelo deus, transportado para o 
seu reino por meio do êxtase, é diferente do que era no mundo cotidiano” (Lesky, 
2003:74). Também ele será transportado para um outro lugar e tempo, e precisará, em 
cena, ser mais (ou diferente) do que no seu dia-a-dia. Nesse momento da história, o 
personagem teatral não nos remete a uma pessoa, a um indivíduo. A máscara reenvia o 
espectador não apenas a uma realidade não-cotidiana, mas ao próprio mito. Traz para o 
palco esse universo e, dessa forma, impede que o personagem seja identificado a uma 
pessoa: seu status é de outra ordem, pertence a uma outra realidade, o que ele apresenta no 
palco não é a figuração do humano, mas uma visão desse universo mítico. Para o ator, a 
máscara traz não apenas um distanciamento de si mesmo, desrealizando o personagem. 
Vestir a máscara é despir-se de si e vestir um outro, que está situado num tempo/espaço 
que não é mais o seu. 
Porém, quando refletimos sobre a Comédia, uma série de questões diferentes se 
nos afiguram: ela não obedece aos mesmos padrões de representação ou de retomada de 
 
5
 A palavra grega théatron – do verbo theaomai, ver – designa o “lugar de onde se vê”, ou o “lugar onde se 
vai para ver”, “lugar para contemplar”, implicando em um olhar mais atento, cuidadoso, profundo, não 
simplesmente ver no sentido comum. Denis Guénoun lembra-nos que a área de representação, o palco, era 
designada pelo termo skênê (cf. Guénoun, 2003, p. 14) 
33 
 
um mito; ao contrário, sua temática é justamente as questões do dia-a-dia, de ordem 
política e social. As sátiras aos costumes, a caricatura de personagens reais, inclusive 
vivas, que são satirizadas em cena, confere ao gênero cômico um outro tipo de relação 
entre público e cena, e, da mesma forma, entre ator e personagem. O papel representado 
não mais se encontra no plano mitológico, lendário, ou num tempo histórico distinto do 
ator, mas ao redor deste. Diferentemente do personagem trágico, o cômico está diretamente 
engajado na vida social, e sua ação “está impregnada de familiaridade doméstica” 
(Abirached, 1994:32
II
). Apesar dessa inserção na vida cotidiana, ambos não serão definidos 
como indivíduos antes do século XVIII. 
O que é posto em cena pelo dramaturgo, pelo corega e pelo diretor do coro 
(corus didascalus) obedece a determinadas convenções e regras. O texto, encenado, não 
pode fugir da materialidade do espaço e do corpo do ator, das vestes e adereços que ele 
porta. As ações que este realiza se prendem a um imaginário que se vincula à época e aos 
costumes onde se realiza a encenação (ver adiante, cap.2). A imitação e a verossimilhança 
aparecem aí como conceitos chaves que norteiam não só a composição do texto, mas a 
ação do ator. 
Ao falar em Mimeses, e colocar a tragédia e a comédia como artes imitativas, 
Aristóteles delineia uma questão que vai nortear toda a discussão sobre o personagem e o 
trabalho do ator. Escrita na segunda metade do séc. IV a.C., a Poética trata da produção 
poética (poiesis), e revela uma grande preocupação com a práxis, com a maneira como a 
obra deve ser construída e com os efeitos da obra poética sobre seu público. Embora se 
refira à epopeia, à comédia e à poesia ditirâmbica, o texto trata principalmente da tragédia, 
explicando “como se deve construir a fábula, no intuito de obter o belo poético; qual o 
número e a natureza de suas diversas partes, e falar igualmente dos demais assuntos 
relativos a esta produção” (Aristóteles, s/d:239) 
No capítulo primeiro, que trata “Da poesia e da imitação segundo os meios, 
objeto e modo de imitação”, ele enquadra a tragédia e a comédia como uma “arte de 
imitação” (p. 239), pontuando, a seguir (cap. VI, “Da tragédia e de suas diferentes partes”), 
que a tragédia é a “imitação de uma ação importante e completa... (...) apresentada, não 
com a ajuda de uma narrativa, mas por atores...”, acrescentando ainda que se trata da 
imitação “não de homens, mas de ações, da vida, da felicidade e da infelicidade (pois a 
infelicidade resulta também da atividade), sendo o fim que se pretende atingir o resultado 
de uma certa maneira de agir, e não de uma maneira de ser.” (p. 248). 
34 
 
O filósofo grego estabelece, portanto, como foco da imitação, as ações que são 
realizadas pelos personagens, ou seja, a fábula. Sendo, para o poeta, a organização dos 
fatos a parte mais importante de sua composição (do ato de poiesis), compreende-se que 
estes fatos devam obedecer aos critérios de necessidade e verossimilhança. Quanto aos 
personagens, devem ser representados “ou melhores, ou piores ou iguais a todos nós” (p. 
242), ou seja, o modelo para a construção das ações e para o comportamento dos 
personagens é o ser humano. Aristóteles não se detém aqui no processo de encenação e no 
trabalho do ator. Para ele a encenação é uma arte menor, inferior ao trabalho do poeta, este 
sim o principal responsável pela composição da tragédia: 
 
Sem dúvida a encenação tem efeito sobre os ânimos, mas não faz parte da arte 
nem tem nada a ver com a poesia. A tragédia existe por si independente da 
representação e dos atores. Quanto ao trabalho da encenação, a arte do cenógrafo 
tem mais importância que a do poeta. (Aristóteles, s/d: 249) 
 
A imitação – mimeses –, não deve ser confundida aqui, como ressalta Luiz 
Costa Lima, com imitatio, pois se trata não de uma cópia, mas se baseia numa relação de 
semelhança com o objeto representado (cf. Lima, 1980:47). Este processo traz em si uma 
modificação da realidade representada, mantém uma distância em relação ao real, que o 
capta sem, contudo, reduplicá-lo. A dualidade entre o real e o representado, e o processo de 
estilização que a realidade sofre ao ser transformada em objeto artístico, fazem parte da 
mimeses, que não perde de vista esse “real”, como pontua Emmanuel Martineau: “a 
imitação transpõe, representa, exprime, estiliza, idealiza, mima, transfigura, etc. Mas, custe 
o que custe, deve ser entendido, que ela imita – ou seja, que se refere a um „real‟ a que virá 
se superpor como um plano a um plano” (cit. por Lima, 1980:48). Há, portanto, uma 
concepção internalizada de uma realidade, que norteia tanto a ação do produtor da obra 
poética, quanto a do seu receptor: 
 
Vista em si mesma, a mimeses não tem um referente como guia, é ao contrário 
uma produção, análoga à da natureza (o limite aristotélico da metáfora orgânica). 
Não sendo o homólogo de algum referente, tanto ao ser criada, quanto ao ser 
recebida, ela o é em função de um estoque prévio de conhecimentos que 
orientam sua feitura e recepção (Lima, 1980:50). 
 
O segundo termo considerado pela retórica latina, o Caractere (do grego 
Kharactêr, que significa signo gravado, a figura impressa sobre um selo ou uma moeda), 
35 
 
enquanto produzido por um trabalho de mimeses
6
, traz essa relação com a realidade que o 
autor imprime sobre o personagem, ao mesmo tempo que é mais traço distintivo que uma 
individualidade, que uma “constituição global” (Abirached, 1994:30). Sendo aquilo que 
permite “qualificar o homem” (Aristóteles, s/d:248), constitui-se no conjunto de suas 
características, tanto psicológicas como morais, os traços do seu temperamento. 
Para Aristóteles os caracteres devem possuir quatro qualidades: devem ser 
bons, conformes, semelhantes e coerentes. Bom,

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