Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS DANIEL FURTADO SIMÕES DA SILVA O ATOR E O PERSONAGEM: VARIAÇÕES E LIMITES NO TEATRO CONTEMPORÂNEO BELO HORIZONTE Daniel Furtado Simões da Silva O ATOR E O PERSONAGEM: VARIAÇÕES E LIMITES NO TEATRO CONTEMPORÂNEO Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, com vista á obtenção do título de Doutor em Artes. Linha de Pesquisa: Artes Cênicas: Teoria e Prática Orientador: Prof. Dr. Antônio Barreto Hildebrando Belo Horizonte Escola de Belas Artes da UFMG 2013 Silva, Daniel Furtado Simões da, 1962- O ator e o personagem: variações e limites no teatro contemporâneo [manuscrito] / Daniel Furtado Simões da Silva. - 2013 235 f: il. Orientador: Antonio Barreto Hildebrando. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Belas Artes. 1. Representação teatral – Séc. XX-XXI – Teses 2. Performance (Arte) – Séc. XX-XXI – Teses 3. Teatro – Séc. XX-XXI – Teses I. Hildebrando, Antônio, 1961- II. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Belas Artes III. Título. CDD: 792.028 AGRADECIMENTOS A Julia Guimarães Mendes, pelas várias e constantes trocas. À Patrícia Fagundes, Dani Barros, Heinz Limaverde, Marcelo Souza e Silva e Odilon Esteves, pela disponibilidade em conceder as entrevistas. À Cia Rústica, Cia Luna Lunera e a produção do Estamira- Beira do mundo (Gabriela Rosa), pela cessão dos vídeos dos trabalhos. Ao Jardel, Felipe, Fabrício, Malu, Bruno, Marcelle e Phil, companheiros do Zona de Interferência, que acompanharam o início dessas inquietações. À Taís Ferreira e Marina de Oliveira, pelos vários empréstimos bibiliográficos. À Michelle, Letícia, Leandro, Raquel e João, colegas da pós-UFMG, que proporcionaram boas conversas acadêmicas e tornaram leves e divertidos vários momentos ao longo desses anos. Aos meus colegas dos cursos de Licenciatura em Teatro e Licenciatura em Dança da Universidade Federal de Pelotas. Aos professores e funcionários da Pós-graduação em Artes da UFMG. Ao Thiago Rodeguiero, pela edição das imagens do CD. À Junelise, por estar ao meu lado todo esse tempo. RESUMO Pretendemos aqui investigar os desdobramentos que a cena contemporânea coloca para o ator no seu trabalho, dentro do quadro do teatro pós-dramático ou performativo. Partimos de uma breve rememoração do desenvolvimento do conceito de personagem, da forma como ele foi pensado ao longo da história do teatro, até chegarmos à prática de criadores que desestabilizaram e ultrapassaram esse conceito. Discutindo o enquadramento teatral e a oscilação entre os planos da representação e da presença, observaremos como o ator se comporta num contexto em que proliferam: a utilização de material pessoal do ator, que culmina no depoimento autobiográfico; a execução de ações com um caráter não mais dramático, mas eminentemente performativo; a utilização de personas do ator; a criação de jogos e de diversas maneiras de propor interações com a plateia. São processos que aproximam o ator, seu método de trabalho, do performer e de seus procedimentos. Oscilando da representação à não-representação, o ator transita entre diversos registros de atuação, tendo de recriar sua metodologia de trabalho. ABSTRACT We intend to investigate the ramifications that the contemporary scene puts for the actor in his work, within the framework of post-dramatic or performative theater. We start with a brief recollection of the development of the concept of character as it was thought throughout the history of theater, until we get to the practice of creators who destabilized and surpassed this concept. Discussing the theatrical framework and the oscillation between the planes of representation and presence, we look at how the actor behaves in a context in which proliferate: the use of the actor's personal stuff, culminating in the autobiographical testimony; performing actions with a character no more dramatic, but eminently performative; using personas of the actor, the creation of games and several ways to propose interactions with the audience. There are processes that approaching the actor, his method of work, to the performer and its procedures. Teetering from acting not- acting, the actor moves between various performance records, having to recreate their work methodology. LISTA DE ILUSTRAÇÕES 1 – Foto do espetáculo Não desperdice sua única vida ..................................................... 09 2 – Foto do espetáculo O Fantástico Circo Teatro de um Homem só ............................... 27 3 – Foto do espetáculo Clube do Fracasso ........................................................................ 58 4 – Foto do espetáculo Não desperdice sua única vida ..................................................... 78 5 – Foto do espetáculo De quem é meu espaço? ............................................................... 87 6 – Foto do espetáculo De quem é meu espaço? ............................................................... 94 7 – Foto do espetáculo Estamira – Beira do mundo ........................................................ 102 8 – Foto do espetáculo Não desperdice sua única vida ................................................... 112 9 – Foto do espetáculo Corpos Subjetivos em Espaços Móveis ....................................... 123 10 – Foto do espetáculo Corpos Subjetivos em Espaços Móveis ..................................... 131 11 – Foto do espetáculo De quem é meu espaço? ............................................................ 140 12 – Foto do espetáculo Clube do Fracasso .................................................................... 145 13 – Foto do espetáculo Entulhos – Vazio abarrotado .................................................... 153 14 – Foto do espetáculo De quem é meu espaço? ........................................................... 155 15 – Foto do espetáculo O Fantástico Circo Teatro de um Homem só ........................... 157 16 – Foto da intervenção aCerca do espaço .................................................................... 159 SUMÁRIO INTRODUÇÃO – Dilemas do ator no teatro contemporâneo ........................................... 09 1. A crise (ou a morte?) do personagem ................................................................. 12 2. Cena pós-moderna, pós-dramática ou performativa? ......................................... 16 3. O personagem e o percurso dessa tese ................................................................ 21 CAPÍTULO 1 – O ATOR E O PERSONAGEM .............................................................. 27 1.1 - O personagem na dramaturgia clássica .......................................................... 29 1.2 - O personagem no teatro burguês .................................................................... 39 1.3 - Os limites do personagem .............................................................................. 49 CAPÍTULO 2 – O ATOR ALÉM DO PERSONAGEM? ............................................... 58 2.1 - A Performance e o ator como performer ....................................................... 59 2.2 - O movimento e a ação como personagens ..................................................... 67 2.3 - O ator em cena, sem personagem, e o biodrama – a incorporação do real .... 76 2.4 - O jogo e a presença cênica ............................................................................. 84 CAPÍTULO 3 – O Ator e suas ações: Registros de Atuação............................................. 94 3.1 - Plano da Representação X Plano da Presentação .......................................... 95 3.2 - O Ator e suas Personas: Estar em cena e não ser um personagem?, ou Como pensar o depoimento pessoal? .......................................................................................... 105 3.3 - O Ator como Performer: A construção de ações não vinculadas à construção de um “outro” ................................................................................................................... 114 3.4 - Estado de Atuação e Presença: Dança e enquadramento teatral .................. 120 3.5 - Ator, personagem, actante ............................................................................ 126 CAPÍTULO 4 - O ator em trabalho – Personagem, Persona, Jogo ................................. 131 4.1 - Performatividade: Ator X performer ........................................................... 133 4.2 - O Personagem: aproximar-se e distanciar-se de si mesmo .......................... 142 4.3 - A relação com o público: um novo tipo de ator (o ator se reinventa) .......... 150 CONSIDERAÇÕES FINAIS - A Tarefa do ator, trânsitos, aproximações e mudanças .......................................................................................................................... 159 REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 165 ANEXO - Entrevistas ...................................................................................................... 172 1. Odilon Esteves e Marcelo Souza e Silva .......................................................... 173 2. Patrícia Fagundes ............................................................................................. 194 3. Heinz Limaverde .............................................................................................. 212 4. Dani Barros ....................................................................................................... 221 9 INTRODUÇÃO - DILEMAS DO ATOR NO TEATRO CONTEMPORÂNEO Figura 1: Não desperdice sua única vida Foto – Guto Muniz 10 DILEMAS DO ATOR NO TEATRO CONTEMPORÂNEO No início do ano de 2006, eu e alguns amigos formamos um grupo de estudos para pesquisar os vários elementos que interferiam no processo de improvisação em dança. Havíamos nos encontrado nas jams de contato-improvisação realizadas no estúdio da bailarina e coreógrafa Dudude Hermman, em Belo Horizonte, e queríamos estudar como a música, o espaço, a intervenção de um texto ou de outro som, objetos e a própria presença de outros corpos interferiam na criação e realização dos movimentos. Queríamos investigar como isso podia ser transformado em dança. Durante meses nos encontramos uma vez por semana para investigar a relação do espaço, da luz e do texto com a maneira como nos movíamos e interagíamos. Após uma ocupação realizada no Teatro Marília no final desse ano, intitulada Entulhos, Vazio abarrotado 1 , decidimos criar um grupo, que recebeu o nome de Zona de Interferência, e que realizou mais dois espetáculos: De quem é meu espaço?, em 2007, e Corpos subjetivos em espaços móveis, 2 em 2009. Esses trabalhos com o Zona de Interferência trouxeram vários questionamentos sobre a maneira como eu concebia o que denomino meu estar-em-cena. Anteriormente, percebia distinções claras entre os trabalhos que fazia como ator, como dançarino e, de uma forma esporádica, como performer; mesmo sem serem categorias estanques, uma vez que enquanto ator eu dançava, e enquanto bailarino utilizava textos ou estruturas de movimento (partituras corporais) que se aproximavam de personagens, elas eram distintas e não se misturavam, mesmo quando se aproximavam. Se De quem é meu espaço? foi criado como um espetáculo de dança-teatro, tanto a intervenção aCerca do espaço como Corpos subjetivos em espaço móveis embaralharam essas distinções. aCerca foi uma 1 A ocupação, apresentada em outubro de 2006 e ensejada por um edital da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte – o projeto "Improvisões - Improvisações intermídias" –, discutia o excesso de consumo e o modus vivendi das pessoas nos grandes centros urbanos. O grupo, à época formado por mim, Jardel Silva e Antônio Henriques – convidou os artistas Maurício Leonard para criar os cenários/ambiências, Sérgio Geléia para a parte musical, Janaína Starling para os figurinos, e os performers Felipe Carvalho, Ana Gusmão e Patrícia Siqueira para participarem da cena. A iluminação ficou a meu encargo e na dramaturgia utilizamos fragmentos de textos de Ítalo Calvino, Caio Fernando Abreu e Fernando Bonassi. 2 Tanto De quem é meu espaço? como Corpos subjetivos em espaço móveis foram pensados e criados coletivamente, com a participação de todos os integrantes do grupo. No primeiro espetáculo atuavam Daniel Furtado, Felipe Carvalho, Jardel Sander, Marcelle Louzada e Phillipe Lobo, e no segundo Daniel Furtado, Felipe Carvalho, Jardel Sander e Bruno Vilela, sendo os vídeos de Fabrício Amador. 11 intervenção urbana criada em 2008, durante o processo de ensaio do Corpos Subjetivos. Criamos cercas individuais – de madeira ou arame (tela) – com as quais saíamos em deriva pelas ruas, interagindo com as pessoas e questionando a existência das cercas – subjetivas e objetivas. Já em Corpos subjetivos, continuávamos a discussão da relação entre espaço público e privado, da subjetividade e dos processos de subjetivação a que estamos afeitos no nosso cotidiano, nos nossos enfrentamentos e contatos com a metrópole e seus habitantes que havíamos iniciado em De quem é meu espaço?. O trabalho era mais performático, pouco nele havia do que ordinariamente percebemos como dança ou teatro, baseando-se muito na possibilidade de interação entre os atores-performers e o público (era este que decidia se se movimentava ou não pelo espaço, se assistia a ação de um dos atores ou de outro, se intervinha ou não etc.), e foi denominado por nós como uma “instalação performática”. Esse “eu” que interagia com as pessoas no aCerca ou no Corpos (especialmente na cena inicial, onde eu recebia as pessoas sem me apresentar como um outro, embora imbuído de uma tarefa precisa – ver adiante, cap. 3), e que tinha um comportamento distinto daquele que eu tinha no meu cotidiano, configurava-se em um personagem ou consistia em quê? O que diferenciava meu trabalho enquanto performer do meu trabalho de ator (à mesma época eu trabalhava com a Cia Forte, como ator e iluminador) ou como bailarino? O que é que distinguia essas várias formas de estar em cena? Ao me fazer essas perguntas me vi diante da necessidade de refletir sobre a cena teatral na qual estava inserido. É bem sabido que uma das características mais marcantes do teatro que se faz nesse início do século XXI é justamente o embaralhamento e o borrar de fronteiras e distinções. Uma cena que diluiu e fundiu gêneros, incorporou o híbrido e a desterritorialidade, e que, como observou Renato Cohen, passou a trabalhar com a não-sequencialidade, a escritura disjuntiva, a emissão icônica e o múltiplo. Para ele, A nova cena está ancorada em alternâncias de fluxos sêmicos e de suportes, o hipersigno teatral, da mutação, da desterritoriedade, da pulsação do híbrido. O contemporâneo contempla o múltiplo, a fusão, a diluição de gêneros: trágico, lírico, épico, dramático; epifania, crueldade e paródia convivem na mesma cena. (Cohen, 2004:XXV) Este tipo de teatro, chamado sucessivamente de pós-moderno, pós-dramático ou performativo, trouxe também uma série de tensionamentos e de indecibilidades, tanto no que tange a cena e sua estrutura (a sua dramaturgia e os elementos que ela utiliza), quanto à maneira como o ator pensa,cria e atualiza o seu modo de estar-em-cena, além de 12 transformar a relação estabelecida entre ator e espectador, entre palco e plateia. Neste trabalho nos deteremos justamente na análise de como o ator atualiza e concretiza, a partir desta nova conjuntura estabelecida pelas mudanças ocorridas na cena teatral, a sua maneira de “habitar” o palco, os vários estados de atuação que ele assume e os diversos registros que ele aciona nesse trânsito, pensando esse palco de onde, à primeira vista, muitas vezes os personagens parecem ter sido banidos. Observaremos que tipo de ator surge a partir das necessidades que este tipo de teatro traz. 1. A crise (ou a morte?) do personagem Em 1983 Elinor Fuchs escreveu um artigo de grande repercussão, intitulado The Death of Character (A Morte do Personagem), onde discutia o estatuto e as possibilidades dessa entidade chamada personagem dentro da cena teatral pós-moderna (ver Fuchs, 1996, p. 169-76). Partindo das características do pós-modernismo – o colapso das fronteiras tradicionais entre culturas, sexos, artes, disciplinas, gêneros, critica e arte, performance e texto, signo e significado, a absorção do teatro com seus próprios mecanismos, técnicas e estilos – ela traça um paralelo entre a transição ocorrida na passagem do Classicismo ao Romantismo, quando o drama “passou da primazia do Enredo, que Aristóteles chamava a „alma da tragédia‟, para a primazia do personagem” 3 (p. 169 I ), com a transformação ocorrida na dramaturgia pós Beckett, incluindo aí o trabalho de vários grupos experimentais do Estados Unidos, em especial os de Richard Foreman, Lee Breuer e o Mabou Mines, Elizabeth LeCompte e The Wooster Group. Nessa nova dramaturgia, que incorporou as características pós-modernas, a plateia não está mais seguindo as relações entre os personagens, mas sim relações entre os vários canais ou sistemas cênicos (verbais, visuais, sonoros), acompanhando informações esparsas e fragmentos de personagens que estão dispersos pela cena, onde “o personagem perdeu sua preeminência com sua completude e foi dissolvido no fluxo dos elementos da performance” (p. 173 II ). Fuchs associa esse “eclipse” ou morte do personagem à própria condição do sujeito pós-moderno: o colapso de fronteiras que caracteriza este teatro irá borrar "as antigas distinções entre o self e o mundo, os seres e as coisas” (p. 170 III ). Diversos 3 Assim como esta, todas as traduções de textos e livros em língua estrangeira são de minha autoria. Os textos originais encontram-se no fim de cada capítulo. 13 pensadores e teóricos do pós-modernismo observaram como a ideia de um sujeito uno e estável foi superada pela realidade de uma sociedade em constante transformação. À imagem de um sujeito unificado, que possui um "sentido de si", contrapôs-se a fragmentação e o descentramento do sujeito face à impossibilidade de encontrar nas manifestações culturais algo que assegure sua integridade, levando à percepção ou ao surgimento de identidades múltiplas. Como observa Stuart Hall, "o sujeito assume identidades diferentes, em diferentes momentos, identidades que não estão unificadas ao redor de um eu coerente" (Hall, 2002:13). Se o indivíduo se vê diante de uma multifacetação da própria imagem, isto não significa, como aponta Jean-François Lyotard, que haja uma dissolução do “vínculo social”, que indique uma “passagem das coletividades sociais ao estado de uma massa composta de átomos individuais lançados num absurdo movimento browniano” (Lyotard, 2002:27), mas sim uma complexificação e uma mobilidade maior das relações sociais: O si mesmo é pouco, mas não está isolado; é tomado numa textura de relações mais complexa e mais móvel do que nunca. Está sempre, seja jovem ou velho, homem ou mulher, rico ou pobre, colocado sobre os “nós” dos circuitos de comunicação, por ínfimos que sejam. É preferível dizer: colocado nas posições pelas quais passam mensagens de natureza diversa. E ele não está nunca, mesmo o mais desfavorecido, privado de poder sobre estas mensagens que o atravessam posicionando-o, seja na posição de remetente, destinatário ou referente. (Lyotard, 2002:28). Na sua análise da transformação ocorrida no pós-modernismo, Fuchs observa que essa morte do personagem é um fato que já vinha ocorrendo há pelo menos cem anos, ou seja, desde fins do século XIX (e aqui podemos iniciar um paralelo com a crise do drama, tal como a formula Peter Szondi, para quem “Enquanto poética do fato (1) presente (2) e intersubjetivo (3) [sic], o drama entrou em crise por volta do final do século XIX, em razão da transformação temática que substitui os membros dessa tríade conceitual por conceitos antitéticos correspondentes”. Szondi, 2001:91) 4 , e que toma forma concreta em teatros como os de Richard Foreman e o Ontological-Hysteric Theater, onde “a visão que 4 Em Teoria do Drama Moderno, Szondi discute essa contradição entre forma e conteúdo que o drama clássico (ou o drama em sua forma clássica) atravessou na virada do século XIX para o XX e as tentativas que diretores e autores empreenderam para tentar superá-la. Para ele, dramaturgos como Tchecov, Strindberg, Hauptmann, Ibsen e Maeterlinck destruíam o caráter absoluto da forma clássica do drama, calcada no fato que ocorre no presente e entre as pessoas do drama, cuja relação intersubjetiva se dá através do diálogo. Nos dramas de Tchecov, por exemplo, “a vida ativa no presente cede à vida onírica na lembrança e na utopia. O fato torna-se acessório, e o diálogo, a forma de expressão intersubjetiva, converte-se em receptáculo de reflexões metodológicas” (Szondi, 2001:91). Para a discussão dessa mudança estilística ver especialmente as páginas 91-99. 14 nós tínhamos da identidade humana desintegrou-se em inquirição nas sentenças isoladas e nos gestos que podem ser percebidos como objetos” (Fuchs, 1996:172 IV ). Uma morte que faz parte da “crise da representação” que vai tomar corpo após a segunda guerra mundial e que se torna evidente na década de 60, formulada em trabalhos como os de Michel Foucault (As palavras e as coisas) ou de Roland Barthes (A morte do Autor) 5 , e está ligada à superação do moderno, do drama enquanto estrutura, e do ator enquanto portador de significados, ou daquele que apenas re-presenta diante da plateia. A forma clássica do drama, que será colocada em questão pela modernidade, surge, para Szondi, no Renascimento, e exclui de sua forma diversos elementos epicizantes que eram corriqueiros no teatro, como a presença do coro, o prólogo e o epílogo, assim como as vozes do autor e do espectador, ausentes desse drama clássico. Assim, tanto as peça históricas de Shakespeare, quanto as tragédias gregas e boa parte do teatro medieval (o teatro barroco, os autos) se veem excluídos desse conjunto. Segundo Szondi, no drama vemos o “domínio absoluto” do diálogo, da comunicação intersubjetiva, que espelha o fato de que ele [o drama] não conhece senão o que brilha nessa esfera. Tudo isso mostra que o drama é uma dialética fechada em si mesma, mas livre e redefinida a todo momento. (...) O drama é absoluto. Para ser relação pura, isto é, dramática, ele deve ser desligado de tudo o que lhe é externo. Ele não conhece nada além de si. (...) O dramaturgo está ausente no drama. Ele não fala; ele institui a conversação. O drama não é escrito, mas posto. (...) O mesmo caráter absoluto demonstra o drama em relação ao espectador. Assim como a fala dramática não é expressão do autor. Também não é uma alocução dirigida ao público. A relação espectador-drama conhece somente a separação e a identidade perfeitas, mas não a invasão do drama pelo espectador ou a interpelação do espectador pelo drama. (Szondi, 2001:30-31) Da mesma forma que o Dramase absolutiza nesse momento a que se refere Szondi, há, como veremos no capítulo 1, uma união entre o ator e o personagem, que parecem fundir-se em um só: “A arte do ator também está orientada ao drama como um absoluto. A relação ator-papel de modo algum deve ser visível; ao contrário, o ator e a personagem têm de unir-se, constituindo o homem dramático.” (Szondi, 2001:31). É 5 Fuchs descreve seu contato com a teoria crítica francesa (1996, p. 1-2), e sua familiarização com as ideias de, além de Barthes (que trazia, para que fosse revelado o “ser total da escrita” e pudesse surgir o leitor, a necessidade da morte do autor) e Foucault (que, nas palavras da pesquisadora americana, anunciava o “fim do homem”), Lacan (a construção simbólica da subjetividade) Derrida (o ataque a “metafísica da Presença”), Deleuze e Guatarri (a esquizoanálise), Lyotard (o colapso das “grandes narrativas”), Cixous, Irigaray e Kristeva (a exposição das construções filosóficas e psicoanalíticas com viés masculino). Para ela, a teoria pós-estruturalista francesa, articulando os discursos em torno da “crise da representação”, pela qual “um campo após outro, não apenas literatura, mas o direito, sociologia, antropologia, história, iam cambaleando nos últimos 20 anos” (p. 2) – portanto desde meados da década de sessenta –, vai fornecer o quadro intelectual para se pensar o fenômeno cultural e artístico surgido sob a égide do pós-modernismo. 15 justamente essa forma e essa relação que vai ser posta em xeque, originando uma “crise” que termina com a “morte do personagem”. Não apenas Fuchs questiona-se sobre essa possível morte: Robert Abirached, no livro La crise du personnage dans le théâtre moderne, publicado originalmente em 1978, também se perguntará sobre a crise da representação e o possível desaparecimento do personagem dos palcos. Para ele, o teatro entra numa espécie de “crise endêmica” em fins do século XIX, com o aguçamento das contradições da nova sociedade industrial 6 , colocando em causa a noção de representação, “que parece mais e mais difícil de se ajustar aos contornos de um mundo em plena ebulição e de um Eu incerto de suas próprias fronteiras e de sua própria natureza.” (Abirached, 1994:12 V ) Porém, se para o teórico francês essa crise é também sinal de sua vitalidade (visto sua capacidade de sobreviver a ela 7 ), ele vislumbra a possibilidade de seu desaparecimento dos palcos, a partir do momento que o teatro se dedica a exercícios metalinguísticos, ao confrontar-se com outras formas de representação (narrativa, poema, lenda, história), e a fragmentos de vida “mais ou menos brutos”, que podem ser extraídos da vida dos próprios atores, tornando o personagem “um papel, manejado e remanejado, construído e desconstruído, à livre disposição do comediante que se procura através dele e mistura aos seus simulacros as efígies de seu sonho.” (p. 448 VI ) O que Abirached percebe como uma possível morte é um paulatino afastamento de um teatro da tradição aristotélica: Pode-se aceitar a morte do personagem, sem fraude nem mal-entendidos, e a chegada de um teatro tão distante da tradição aristotélica que se poderia encontrar-lhe um outro nome. Que esta arte seja possível e que ela suscite uma constelação de figuras eficazes, que tratam os atores como signos maleáveis e fechando sobre eles mesmos o circulo da representação, não se pode pôr em dúvida quando se vê, para não citar mais que dois exemplos, os espetáculos de Peter Schumann ou Robert Wilson (...), onde não há nada de comum que certa ideia de um teatro escrito em um espaço, livre das tutelas e liberado das referências literárias. (Abirached, 1994:448-9 VII ) 6 A virada do século XIX para o XX corresponde ao que Frederic Jameson, baseando-se em Ernest Mandel, chama de segunda fase do capitalismo, a do monopólio: “Essa periodização embasa a tese central do livro de Mandel, O capitalismo tardio; a saber, que houve três momentos fundamentais no capitalismo, cada um marcando uma expansão dialética com relação ao estágio anterior, o capitalismo de mercado, o estágio do monopólio ou do imperialismo, e o nosso, erroneamente chamado de pós-industrial, mas que poderia ser mais bem designado como o do capital multinacional.” (Jameson, 1997:61). 7 Observando sua capacidade de “renascer a nossos olhos”, Abirached compara o personagem a “este pássaro fabuloso que retira da morte a fonte de uma nova vida, emergindo sem descanso do fogo onde ele parecia se consumir”. (...cet oiseau fabuleux qui puise dans sa mort la source d'une vie nouvelle, émergeant sans relâche du feu où il semblait se consumer.) (Abirached, 1994:439) 16 Esse novo teatro, cujas características e denominação discutiremos a seguir, a meu ver não conduz exatamente a uma morte, mas, como ocorre em toda crise, leva a colocação do personagem teatral em outro patamar. Patamar que o distancia do personagem estruturado nos moldes clássicos do drama, tal como definido por Szondi, e que vai tensionar ao extremo o que caracterizaria, do ponto de vista do ator, a constituição de um personagem: a construção de uma identidade narrativa distinta de sua própria individualidade, de um estar-em-cena que lhe é distinto e pode ser descrito como um “outro”. 2. Cena pós-moderna, pós-dramática ou performativa? A transformação da cena teatral, cujas características Renato Cohen precisamente apontou e reproduzimos acima, vai ser objeto de diversas reflexões desde meados da década de setenta do século passado, quando começam as discussões sobre o pós-moderno no âmbito teatral. Vamos observar aqui que as diferentes formas de nomear essa cena refletem abordagens que dão ênfases a aspectos distintos do fazer teatral. Falando sobre o conceito de teatro pós-moderno, Patrice Pavis destaca que o termo não é muito utilizado pela crítica teatral francesa, em parte devido a uma falta de rigor teórico que percebe em sua definição, não correspondendo “a momentos históricos, a gêneros e estéticas determinadas” (Pavis, 1999:299), em parte por ser uma espécie de termo “guarda-chuva” 8 utilizado especialmente nas Américas, não se constituindo em uma ferramenta precisa para a análise da dramaturgia e da encenação. Para ele seria possível, portanto, apenas elencar uma série de características gerais normalmente vinculadas à noção da encenação pós-moderna, a despeito de seu pouco valor teórico. Assim, a encenação pós-moderna Obedece frequentemente a vários princípios contraditórios, não receia combinar estilos díspares, nem apresentar colagens de estilos de atuação heterogêneos. (...) Contém em si momentos e procedimentos nos quais tudo parece desconstruir-se e desfazer-se entre os dedos de quem quer que pense deter os cordéis e as chaves do espetáculo. (Pavis, 1999:299) 8 Em suas palavras, o pós-moderno é “um cômodo rótulo para descrever um estilo de atuação, uma atitude de produção e de recepção, uma maneira „atual‟ de fazer teatro (grosso modo, desde os anos sessenta, após o teatro do absurdo e o teatro existencialista, com a emergência da performance, do happening, da chamada dança pós-moderna e da dança-teatro.” (Pavis, 1999:299). 17 No que tange ao trabalho do ator, este não “representa uma história e uma personagem”, ele se apresenta enquanto indivíduo e artista, colocando no palco pulsões e afetos antes que signos, aproximando-se de uma ação performática. Enquanto encenação, o teatro pós-moderno caracteriza-se por dois aspectos fundamentais: a valorização do polo da recepção e da percepção (o espectador é o encarregado de organizar impressões e conferir alguma coerência à obra) e a autorreferencialidade, já que, “ocorrendo tudo em um espaço-tempo, sem hierarquia entreos componentes, sem lógica discursiva assumida por um texto de referência, a obra pós-moderna não tem outra referencia que não ela mesma.” (Pavis, 1999:299). Buscando traçar um marco teórico e estético consistente, Hans-Thies Lehmann escreve em 1999 o livro Teatro pós-dramático (Postdramatiches Theater), identificando haver um número considerável de realizadores teatrais que se caracterizam por um uso dos signos teatrais “profundamente diferente”, e pela criação de um texto teatral “não mais dramático” (Lehmann, 2007:19). Lehmann opõe o conceito de “pós-dramático” ao de “pós-moderno” (que ele considera um termo que remete apenas a uma categoria temporal), considerando que a penetração das mídias em todos os setores da sociedade, incluindo aí o teatro, vai provocar um “modo de discurso teatral novo e multiforme”. Para o teórico alemão o que está em jogo é a superação da forma dramática 9 , e a possibilidade de um teatro que se situe para “além” do drama: Se o curso de uma história, com sua lógica interna não mais constitui o elemento central, se a composição não é mais sentida como uma qualidade organizadora, mas como uma “manufatura” enxertada artificialmente, como lógica de ação meramente aparente, que serve apenas ao clichê, como Adorno abominava nos produtos da cultura industrial, então o teatro se encontra diante da questão das possibilidades para além do drama, não necessariamente além da modernidade. (Lehmann, 2007:32-33) 9 Lembrando que Lehmann usa um conceito de Drama mais expandido que o de Szondi, incorporando a dramaturgia épica de Brecht. Como diz Sérgio de Carvalho, na apresentação da edição brasileira do livro de Lehmann, “a superação épica empreendida por um autor modelar como Brecht não implicaria uma plena mudança qualitativa em relação à tradição hegemônica do teatro, baseada no texto composto por diálogo entre figuras. Para dar sustentação à sua tese polêmica, o autor faz uso de um conceito expandido de „drama‟. Não se trata mais do drama burguês, baseado no diálogo subjetivo e na forma de um presente absoluto e contínuo, apresentado sem mediações externas por meio de figuras que agem de acordo com uma vontade autodeterminada. Dramático, para Lehmann, é todo teatro baseado num texto com fábula, em que a cena teatral serve de suporte a um mundo ficcional: “Totalidade, ilusão e representação do mundo estão na base do modelo „drama‟” [p.26]. Com esse conceito de drama, que reúne Eurípedes, Moliére, Ibsen e Brecht, o teatro épico não mais poderia ser considerado um salto, porque nele os deslocamentos da dinâmica interpessoal – por meio de coros, apartes, narrativas, etc. – não chegariam a subverter a vivência ficcional.” (in Lehmann, 2007:9-10) 18 Mesmo o estranhamento causado pelas práticas teatrais do início do século passado, como o artificialismo, as convenções e abstrações propostas por Meyerhold, não rompiam com o universo ficcional proposto pelo texto e, em alguma maneira, continuavam subordinados à representação e à mimese. Assim, não é suficiente a presença de elementos estilísticos que caracterizam tanto várias experiências dessas vanguardas como outras experimentações surgidas após a segunda guerra mundial. Será o uso desses recursos que caracterizará essa nova forma teatral, já que, no teatro pós-dramático “as linguagens formais desenvolvidas desde as vanguardas históricas se tornam um arsenal de gestos expressivos que lhe servem para dar uma resposta à comunicação social modificada sob as condições da ampla difusão da tecnologia de informação.” (Lehmann, 2007:27). Como explica Lehmann, um mesmo fato estilístico pode ser utilizado tanto no contexto estético de uma obra dramática como de uma pós-dramática, e esta obra será considerada uma ou outra dependendo da “constelação de elementos” que se lhe aglutinem (cf. p. 26-31). Assim, não é a fragmentação da narrativa, a heterogeneidade de estilos ou a diluição da fronteira entre gêneros, per si, que caracterizará a obra como pós-dramática, mas o arranjo de seus elementos estéticos e dramatúrgicos. A sua simples presença atestaria não uma quebra com a forma dramática, ou mesmo um “afastamento significativo da modernidade” – que validaria falarmos em teatro pós-moderno – mas apenas um distanciamento de “tradições da forma dramática” (p. 32) 10 . Operando além do drama, e, temporalmente falando, após a configuração do drama enquanto forma teatral, o pós-dramático, especialmente na sua aproximação com a Arte da Performance (ver adiante, cap. 2), frequentemente vai exigir do ator uma nova postura cênica, e consequentemente, no seu método de trabalho. Para Lehmann, “muitas vezes o ator do teatro pós-dramático não é mais alguém que representa um papel, mas um performer que oferece sua presença em cena para a contemplação” (p. 224). O status diferenciado que assume o corpo do ator, sua irradiação, e a aproximação do gesto do ator 10 Como Pavis, Lehmann critica o uso da denominação teatro pós-moderno, não apenas pela restrição já apontada, de ser um conceito apenas “epocal” – mas por tentar apreender um campo extremamente vasto, terminando por se tornar uma listagem de características que por vezes oferecem apenas “meras palavras- chaves, que necessariamente permanecem muito genéricas”. Assim, podemos observar “ambiguidade, celebração da arte como ficção, celebração do teatro como processo, descontinuidade, heterogeneidade, não- textualidade, pluralismo, diversidade de códigos, subversão, multilocalização, perversão, o ator como tema e figura principal, deformação, o texto como um valor autoritário e arcaico, a performance como terceiro elemento entre o drama e o teatro, o caráter antimimético, a rejeição da interpretação” (Lehmann, 2007:30- 31), como típicos do teatro pós-moderno, sem chegarmos a uma definição do que seria o discurso pós- moderno. 19 do gesto de “auto-representação” do performer, caracterizam o ator nesse teatro e abrem as portas para a discussão da performatividade da ação do ator. Quando coloca a noção de Teatro Performativo, Josette Féral entende que os conceitos de performance e performatividade estão no centro deste teatro que Lehmann chama de pós-dramático e outros teóricos chamam de pós-moderno. Partindo do conceito ampliado de performance que Richard Schechner introduz nos estudos teatrais (que discutiremos com mais vagar no cap. 2), e que postula que todas as ações humanas podem ser entendidas, vistas ou examinadas “como se fossem performance” 11 , uma vez que são frutos de um comportamento humano “restaurado”, e considerando ainda a penetração da Arte da Performance, de sua estética e de seus métodos de trabalho no seio deste teatro, Féral irá contrapor a noção de teatro performativo à de pós-dramático. Para a pesquisadora canadense trata-se de colocar em evidência tanto a ideia de pensar as ações humanas em termos de uma performance – ritualística ou cotidiana – quanto de perceber o quanto a Performance Art influenciou a prática teatral como um todo especialmente a partir dos anos 60, quando a Arte conceitual e os happenings tornaram-se frequentes na Europa e Estados Unidos. Enquanto Lehmann destaca o aspecto dramatúrgico desse novo teatro, Féral enfatiza uma nova concepção para a ação realizada em cena pelo ator. Os elementos que fundam o teatro performativo – transformação do ator em performer, descrição dos acontecimentos da ação cênica em detrimento da representação ou de um jogo de ilusão, espetáculo centrado na imagem e na ação e não mais sobre o texto, apelo à uma receptividade do espectador de natureza essencialmente especular ou aos modos das percepções próprias da tecnologia... (Féral, 2008:198) – e que não diferem essencialmente daqueles arrolados por Lehmann e mesmo por Pavis, sãoabordados e relacionados tendo em vista esta ênfase. A noção de performatividade – lembrando que a ação cênica, o “fazer”, é, de fato, a base de todo e qualquer trabalho do ator, seja qual for a filiação estética a que ele esteja vinculado – é posta aqui no sentido de que a ação do ator torna-se “primordial”, valorizando-a “em si”, e não pelo seu valor de representação ou pelo sentido mimético que possa vir a adquirir. Nos exemplos que cita, Féral (cf. 2008, p. 201-204) destaca que 11 Como explica Schechner “Tratar o objeto, obra ou produto como performance significa investigar o que essa coisa faz, como interage com outros objetos e seres, e como se relaciona com outros objetos e seres.” (Schechner, 2003b:25) 20 1. As obras performáticas não são verdadeiras nem falsas. Elas “simplesmente sobrevêm”, isto, é, elas acontecem, tornam-se evento, e, mesmo com a possibilidade – ou necessidade – que o teatro traz, de sua reapresentação, são tratadas em sua unicidade, como um acontecimento único (reapresentável, porém não repetível). Destaca-se assim o processo, o aspecto lúdico e o encontro (atores e espectadores) que o evento propõe e instaura; 2. A performatividade do ator joga as ações que ele realiza para “além” ou fora de um personagem; o ator é confrontado com estas ações pelo seu sentido não- representativo, pela sua execução em si, e não apenas por sua remissão ao universo ficcional instaurado pela cena. Assim, o que Féral chama de “obra performativa” tem como pontos centrais tanto o caráter de descrição dos eventos e fatos que a sua dramaturgia propõe, quanto as ações realizadas em cena pelo performer. Sintomaticamente, Féral fala do “objetivo do performer”, em como o “performer instala a ambiguidade”, na “„vivacidade‟ (liveness) dos performers” etc.; ou seja, para ela, o ator do teatro performativo é um performer, evocando sua “presença fortemente afirmada que pode ir até uma situação de risco real e implica um gosto pelo risco” (Féral, 2008:207). Vamos abordar essa aproximação entre o conceito do ator e do performer com mais vagar no capítulo 4 12 . O teatro que iremos analisar e discutir ao longo desse trabalho se insere dentro do espectro que Pavis chama de teatro pós-moderno, Lehmann de pós-dramático e Féral de performativo. Aqui, iremos nos referir a ele como Teatro Performativo, por enfatizar a ação que o ator realiza em cena, sua atuação (seu desempenho, em inglês, a sua performance). Apesar de esporadicamente nos referirmos ao ator que desempenha seus papeis nesse teatro como performer, usaremos preferencialmente o termo “ator”, pois ele nos remete diretamente ao que é fundamental na cena teatral: a ação executada, tenha ou não um caráter representativo. E, sintetizando o trabalho do ator no teatro performativo, Féral destaca o foco colocado na sua presença em cena: ... o ator é chamado a “fazer” (doing), a „estar presente‟, a assumir os riscos e a mostrar o fazer (showing the doing), em outras palavras, a afirmar a performatividade do processo. A atenção do espectador se coloca na execução do gesto, na criação da forma, na dissolução dos signos e em sua reconstrução permanente. Uma estética da presença se instaura. (Féral, 2008:209) 12 Ver também o capítulo 3, item 3.3. 21 3. O personagem e o percurso dessa tese O que podemos entender como Personagem dentro da realidade teatral? Como iremos observar ao longo dessa pesquisa, há uma trajetória no uso do termo personagem, que ora se aproxima, ora se distancia da pessoa do ator, ora se vincula diretamente ao texto literário, ora dele se afasta. Enquanto vinculado a um texto literário, o personagem tanto pode ser identificado a um indivíduo quanto a uma ideia abstrata, animais, entidades ou mesmo objetos; de qualquer forma, mesmo quando não recebe o nome de uma pessoa, há um texto que deve ser dito pelo ator, ao qual são atribuídas palavras que ele deve dizer, além de ações a serem executadas em cena, como muitas vezes indicam as rubricas do autor; é possível, embora raramente ocorra, que este personagem não se expresse por palavras, e o autor dramático lhe confira apenas os movimentos, gestos e atos que deve realizar (como ocorre com o personagem Katrin, a filha muda de Mãe Coragem na peça homônima de Brecht, ou nos Atos sem palavras, de Beckett). Essas palavras e ações dadas pelo texto dramatúrgico propiciam ao personagem de teatro uma autonomia, inclusive em relação à própria peça escrita, e podemos imaginá-lo vivendo outras situações e realizando outras ações que não aquelas configuradas e definidas pelo autor do drama; visualizamos ainda a possibilidade dele ser concretizado por atores diferentes, sincrônica ou diacronicamente. O personagem se apresenta aí claramente como um “outro” do ator, mesmo quando não é percebido como um indivíduo. Sabemos que nos primórdios do teatro ocidental o personagem teatral não era identificado a uma pessoa, mas sim à Máscara que o ator portava, e o Papel abarcava as ações realizadas por este em cena; o ator recebia não só o texto a ser dito, era também instruído sobre sua atuação: “para os gregos e romanos, o papel do ator era um rolo de madeira em torno do qual se enrolava um pergaminho contendo o texto a ser dito e as instruções de sua interpretação.” (Pavis, 2009:274-5). Confinado ao texto teatral, o personagem se apresenta distinto daquele que atua e de quem escreve, não se confunde nem com o autor do drama nem com o ator; é um “ser de papel”, que pode ser retomado indefinidamente por leitores e atores. Ele faz parte do texto literário, que apresenta planos ou camadas que se sobrepõem umas às outras, a começar da realidade dos tipos impressos no papel, e que necessitam da atividade do leitor para atualizá-las e concretizá-la 13 . Como explica Anatol Rosenfeld, “todo texto, artístico ou 13 Falando sobre a estrutura da obra literária, Anatol Rosenfeld enumera as seguintes camadas, irreais (“irreais por não terem autonomia ôntica”, necessitando do leitor para atualizá-las): “a dos fonemas e das 22 não, ficcional ou não, projeta tais contextos objectuais „puramente intencionais‟, que podem referir-se ou não a objetos onticamente autônomos” (Rosenfeld, 1987:15). Constituindo-se assim como uma projeção, uma “objectualidade imaginária”, o personagem literário carrega essa marca de ficcionalidade: suas ações e sua presença são tomadas como um discurso “não-sério”, um “quase-juízo”, na expressão de Roman Ingarden. A matriz textual domina praticamente toda a discussão que se faz em torno do personagem, e está centrada ordinariamente tanto no maior ou menor grau de abstração que ele apresenta (na proximidade ou afastamento de sua caracterização enquanto indivíduo), quanto na função que ele exerce em cena, dentro da fábula ou da narrativa. Vemos em Robert Abirached (1994), Patrice Pavis (1999) e Anne Ubersfeld (2005) as marcas dessa abordagem: Pavis, por exemplo, afirma que “o estatuto da personagem de teatro é ser encarnada pelo ator, não mais se limitar a esse ser de papel sobre o qual se conhece o nome, a extensão das falas e algumas informações diretas (por ela e por outras figuras) ou indiretas (pelo autor)” (Pavis, 1999:288). O personagem está pré-figurado no texto dramatúrgico, e o trabalho do ator é “encarnar” esse ser de papel, concretizá-lo em cena através de suas ações. Quando Abirached diz que o personagem teatral está “esquartejado” e Ubersfeld constata que ele foi “explodido” 14 , o que está em jogo é essencialmente a questão de que o texto teatral não mais apresenta esse personagem como um indivíduo autônomo, unificado e/ou dotado de uma consciência de si mesmo, onde se possam constatar preceitos dramatúrgicos extremamentecaros à tradição ocidental, como a coerência nas suas ações ou numa possível psicologia que a identificaria como um humano (ver adiante, capítulo 3, a discussão sobre o uso do termo actante no lugar de personagem). Parece-nos claro, no entanto, que o personagem teatral existe tanto fora da matriz textual (a começar pelo clássico exemplo dos tipos da Commedia del’Arte), quanto configurações sonoras (orações), „percebidas‟ apenas pelo ouvido interior, quando se lê o texto, mas diretamente dadas quando o texto é recitado; a das unidades significativas de vários graus, constituídas pelas orações; graças a estas unidades, são „projetadas‟, através de determinadas operações lógicas, „contextos objectuais‟ (Sachverhalte), isto é, certas relações atribuídas aos objetos e suas qualidades. Esses contextos objectuais determinam as „objectualidades‟, por exemplo, as teses de uma obra científica ou o mundo imaginário de um poema ou romance”. (Rosenfeld,, 1987:13). 14 Podemos notar na fala desses autores um tensionamento entre o texto enquanto potência e a sua concretização no corpo do ator: Abirached observa que “Entre a palavra e o corpo, entre a potência e o ato, entre o sonho e o real, não é suficiente dizer que o personagem de teatro está esquartejado.” (Entre le mot et le corps, entre la puissance et l'acte, entre le songe et le réel, il ne suffit pas de dire que le personnage de théâtre est écartelé.) (Abirached, 1994:07), e Ubersfeld comenta que “Dividida, explodida, distribuída em vários intérpretes, questionada em seu discurso, reduplicada, dispersa, não há violência que a escritura teatral ou a encenação contemporânea não lhe imponham” (Ubersfeld, 2005:69). 23 distanciados da figuração de uma pessoa (há diversas dramaturgias, dos autos medievais a Beckett, Gertrude Stein e Heiner Müller, que nos apresentam seres ficcionais que não recebem um nome, não são apresentados como nem possuem os traços psicológicos ou de individuação, a “consciência de si” (Pavis)) que permita essa identificação a um ser humano. Se nos ativermos ao teatro enquanto evento, que requer o compartilhamento com a plateia para se realizar, o personagem só adquire existência na relação entre ator e público. Em termos estritos, essa existência se configura a partir do corpo e voz do ator, e, mesmo no caso de um texto escrito que necessite ser atualizado por uma montagem cênica, o personagem “realiza-se”, na cena, no “convívio teatral”, utilizando a expressão de Jorge Dubatti (2012). Levando em conta o foco do nosso trabalho, muito do que o ator realiza em cena não está contido em um texto dramatúrgico que possui uma existência prévia ao trabalho de construção da encenação. O que iremos discutir aqui será o comportamento do ator em cena, a maneira como as suas ações concretizam uma “alteridade”, o “outro” do ator, algo ou alguém que possui uma dimensão e uma identidade diversa da sua. Nesse percurso, observaremos no capítulo 1 como o personagem foi conceituado na dramaturgia clássica e no teatro burguês, nesse processo de individuação que leva da máscara até a percepção do personagem como um ser humano de carne e osso, onde o trabalho do ator se volta para a realidade vivida pelo personagem dentro do contexto dado pela peça, partindo de Aristóteles, passando por Diderot até chegarmos a Stanislavski. Ainda nesse capítulo veremos como realizadores como Meyerhold, Brecht e Grotowski desestabilizaram a noção clássica de personagem, levando o trabalho do ator até um limite onde essa noção de alteridade é questionada ou ameaça desaparecer. Ao longo do segundo capítulo vamos nos deter na análise de processos e manifestações artísticas que tiveram um grande desenvolvimento na segunda metade do século passado, em especial a Arte da Performance e a Dança-Teatro. Nosso foco estará em observar como esses métodos foram incorporados ao cotidiano do ator e modificaram a forma como ele trabalha, percebendo como as tarefas e ações que o ator executa em cena adquirem caráter performativo, realçando o jogo e a ludicidade dessas ações. Ressaltaremos esse percurso, que se inicia com o desdobramento do método das ações físicas de Stanislavski até chegarmos ao Teatro Físico e a fusão do ator com o performer. Além disso, há a própria transformação do ator em protagonista dessa cena, assumindo sua identidade no palco e fazendo de sua própria história material para a cena e para a troca 24 com o espectador, numa trajetória que parte dos trabalhos do Living Theatre, até os biodramas, como conceitua Óscar Cornago (2005). Em seguida abordaremos algumas questões teóricas surgidas a partir da transformação da cena e, baseando-nos em Erika Fischer-Lichte e Josette Féral, discutiremos especialmente o tensionamento entre os planos da representação e da presentação e como o enquadramento cênico afeta o estar-em-cena do ator. A construção do depoimento pessoal será retomada a partir dessas abordagens, e observaremos como, ao apresentar-se como si mesmo diante do espectador, o ator tem de escolher que aspecto da sua vida e da sua personalidade quer exibir, e como esta exibição aproxima-se da criação de uma persona, que, se não é ficcional, artificializa a própria presença. Escolhemos alguns trabalhos que, a nosso ver, são representativos dessas transformações ocorridas na cena contemporânea, para fazer uma observação mais minuciosa dos procedimentos empregados pelos atores e na forma como eles se comportam em cena: além dos espetáculos do Zona de Interferência, nos deteremos em Não desperdice sua única vida (figura 1) espetáculo montado em 2005 pela Cia. Luna Lunera 15 , Estamira – Beira do mundo, criado em 2011 com direção de Beatriz Sayad e interpretação de Dani Barros 16 , e O Fantástico circo-teatro de um homem só (figura 2) e Clube do Fracasso (figura 3), ambos da Cia Rústica 17 . Estes trabalhos trazem novas perspectivas e desafios para o ator: ao fazerem uso de material pessoal do ator, fazendo com que ele conte fatos e opiniões pessoais em cena (como nas peças da Cia Rústica e em Estamira), e ao trazerem para o palco o depoimento pessoal em um viés autobiográfico (especialmente em Não desperdice..., mas também no Fantástico circo-teatro.... e em Estamira), esses espetáculos apresentam um tipo de encenação e dramaturgia que nos permite discutir como o ator se relaciona com esse tipo de material, e qual a relação que ele estabelecem com o 15 O grupo foi criado em 2001, em Belo Horizonte, e o espetáculo, dirigido por Cida Falabella, tinha vários sub-títulos, entre eles “Auto-biográfico”, além de “As patinadoras do Planeta Dragão, ou Seis atores à procura do seu personagem, ou O mundo das precariedades humanas ou Nenhuma das opções anteriores”. Como diz o site do grupo, o espetáculo mesclava “relatos autobiográficos dos atores, crônicas, obras literárias, matérias jornalísticas, classificados de oportunidades, revistas e programas televisivos”, que “instigaram os motes das improvisações sobre as contradições, precariedades e ironias cotidianas” (In http://cia-lunalunera.blogspot.com/). 16 A montagem carioca, com dramaturgia de Beatriz Sayad e Dani Barros, inspirada no documentário Estamira, de Marcos Prado (2004), sobre a catadora de lixo Estamira Gomes de Souza (1941-1911), rendeu a Dani Barros diversos prêmios de melhor atriz, entre eles o Shell, em 2012. 17 A Cia Rústica foi criada em 2004, em Porto Alegre, com o objetivo de “criar uma zona autônoma de trabalho entre artistas plurais” (in www.ciarustica.com). O Clube do fracasso, “um olhar festivo sobre o erro e a fragilidade humana”, estreou em 2010, e O fantástico circo-teatro de um homem só, solo com o ator Heinz Limaverde,que explorava o universo dos pequenos circos que circulam pelo interior do Brasil, em 2011, todos com direção de Patrícia Fagundes, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 25 personagem construído a partir da história pessoal do ator; além disso, assim como os trabalhos do Zona de interferência, eles propõem novas formas de relação com o espectador, possibilitando ainda a discussão da utilização, pelo ator, de uma persona em cena. Finalmente, veremos no capítulo 4 como se posicionam os atores face a essas transformações no seu método de trabalho e na forma como eles se apresentam em cena. Para tal entrevistamos Odilon Esteves e Marcelo Souza e Silva, da Cia Luna Lunera, Heinz Limaverde e Patrícia Fagundes, respectivamente ator e diretora da Cia Rústica, e Dani Barros. Discutiremos, a partir da escala proposta por Michael Kirby (1987), a aproximação ou o distanciamento do trabalho do ator de uma representação (acting), e o trânsito desses atores entre os vários registros de atuação aos quais eles têm de recorrer no seu trabalho. As observações e questões teóricas que levantamos ao longo da pesquisa serão confrontadas com a visão e a percepção que esses criadores têm do seu trabalho, da sua presença em cena e das ações que eles executam no palco, A partir desse confronto traçaremos nossas considerações finais, levando em conta não apenas a discussão teórica empreendida, mas a forma como os atores concebem e realizam o seu estar-em-cena nesse início de milênio, enfatizando o que é para nós o cerne desse trabalho: retomar, do ponto de vista do ator, discussões recorrentes sobre a cena que se instaurou nos palcos a partir do último quartel do século XX, trazendo para o centro das discussões a percepção daqueles que constituem um dos eixos do fazer teatral, mas que, excetuando-se as discussões sobre metodologias de trabalho ou os relatos de processos (frequentemente de cunho autobiográfico), poucas vezes têm suas vozes como foco de estudos acadêmicos. Anexo aos elementos textuais dessa tese encontra-se a transcrição das entrevistas realizadas com os atores. I “…drama passed from the primacy of Plot, which Aristotle called the “soul of tragedy”, to the primacy of Character…” II “character has lost its pre-eminence whit its wholeness; it has dissolved into the flux of performance elements.” III “…blurring the old distinctions between self and world, being and thing;”. 26 IV “…the vision that what we have taken to be human identity disintegrates on scrutiny into discrete sentences and gestures that can be perceived as objects.” V qu'il apparaît de plus en plus difficile d'ajuster aux contours d'un monde en plein bouleversement et d'un moi incertain de ses propres frontières et de sa propre nature. VI Le texte est ici un terrain archéologique ouvert, où public, metteur en scène et acteurs font incursions et excursions; le personnage est un rôle, manié at remanié, construit et déconstruit, à la libre disposition du comédien qui se cherche à travers lui et mêle à ses simulacres les effigies de son rêve. VII il peut seul faire accepter la mort du personnage, sans fraude ni malentendu, et l'avènement d'un théâtre si éloigné de la tradition aristotélicienne qu'il faudrait lui trouver un autre nom. Que cet art soit possible et qu'il suscite des constellations de figures efficaces, em traitant les acteurs comme des signes ductiles et en fermant sur lui-même le cercle de la représentation, on ne peut plus en douter quand on a vu, pour ne citer que deux exemples, les spectacles de Peter Schumann et de Robert Wilson (...), il n'y a de commun que cette idée d'un théâtre écrit dans l'espace, affranchi des tutelles et libéré des références littéraires. 27 CAPÍTULO 1 O ATOR E O PERSONAGEM Figura 2: O Fantástico Circo-Teatro de um Homem Só Foto: Kiran 28 O ATOR E O PERSONAGEM Iniciemos com uma questão: O Personagem é uma máscara que o ator veste? A palavra latina Persona indicava inicialmente a máscara usada pelo ator, através da qual a sua voz devia ressoar (persona deriva de per sonare, soar através de). Por extensão, a palavra passou a designar não apenas o personagem representado pelo ator, mas também as “máscaras” usadas pelas pessoas em sua vida social: assumir uma persona significa, coloquialmente, assumir um papel social, uma identidade, correspondente ao status social, ao trabalho, profissão, a maneira encontrada por cada um para se apresentar ao mundo e se relacionar com os outros. É, de certa forma, uma adaptação consciente do indivíduo para fazer face ao que o mundo lhe exige, tornando-se uma espécie de “arquétipo social” usado pela pessoa em sua vida pública e nos vários papéis sociais que ela deve desempenhar. A identificação de uma pessoa com a sua persona, com o papel social (advogado, operário, político, médico, professor), ou de gênero (homem, mulher, e aqueles decorrentes deste, como mãe, pai etc.) que ela desempenha, pode tornar-se patológica: A identificação com a persona leva a uma forma de rigidez ou fragilidade psicológicas; o Inconsciente tenderá, antes, a romper com ímpeto na consciência, do que emergir de forma controlável. O Ego, quando identificado com a persona, é capaz somente de uma orientação externa. É cego para eventos internos, e daí, incapaz de responder a eles. Resulta ser possível permanecer inconsciente da própria persona. (Dicionário Crítico de Análise Junguiana) Para o ator desempenhar seus papéis no palco, não há como permanecer inconsciente da persona assumida em cena – se o fizer, assumirá o risco de desenvolver um estado patológico. Se as pantomimas de caça, os rituais e os atos xamãnicos desenrolam-se justamente baseados nessa imbricação do executante com o cerimonial instituído, a prática do ator se baseia na dissociação entre o que é representado e sua persona individual (ou uma das personas que ele assume na sua vida). Vestir a máscara, encarnar um papel, representar um tipo, viver o personagem, todas são formas de expressão que indicam sempre uma relação do ator com um outro, distinto da pessoa que lhe dá forma no palco, um outro a que são atribuídas características 29 específicas, físicas e/ou de temperamento, e que, até bem pouco tempo, remetia a um tempo e espaço distintos do aqui/agora da representação. O palco, a cena, configurava um espaço que não se confundia com espaço real onde se encontrava a plateia, e o seu tempo não era o do cotidiano, era o do ritual (mítico) ou da ficção: “O xamã que é o porta-voz do deus, o dançarino mascarado que afasta os demônios, o ator que traz à vida a obra do poeta – todos obedecem ao mesmo comando, que é a conjuração de uma outra realidade, mais verdadeira”. (Berthold, 2008:01). O ator, aí, é “um ser que não é o próprio”, que é o Hipócrita, “que corresponde ao substantivo grego hipocrités, enquanto o verbo hipocrinestai significa „representar um personagem‟” (Duvignaud, 1972:13). Era o encarregado de dar “vida” a essa outra realidade, criando com seu corpo esse espaço-tempo onde a ficção se tornava visível, trajando as máscaras que identificavam os personagens. Esse outro, o personagem, como o ator o vestia? 1.1 - O personagem na dramaturgia clássica Os ritos e cerimônias que existiram em praticamente todas as sociedades hoje chamadas de “primitivas” normalmente se utilizavam de máscaras e danças, recursos que foram absorvidas pelas manifestações teatrais (ver Berthold, 2008, p. 7-103). Algumas dessas manifestações desenvolveram formas que se assemelham ao modelo de teatro surgido na Grécia– como, por exemplo, na Mesopotâmia 1 , ou na Índia 2 –, e que deram origem ao teatro europeu, mas que propõem relações (especialmente entre o ator e o que ele deve representar em cena) extremamente diferentes. No teatro ocidental, a partir da criação dramatúrgica e cênica empreendida pelos gregos, o ator e o personagem por ele interpretado assumiram características específicas. Discutindo a relação existente entre o personagem teatral criado pelos dramaturgos na Europa e o ator que o representa em cena, Robert Abirached, percebe que 1 “As disputas divinas dos sumérios possuem um caráter definitivamente teatral (...) Em forma e conteúdo, os diálogos sumérios consistem na apresentação de cada personagem, a seu turno, exaltando seus próprios méritos e subestimando os do outro” (Berthold, 2008:17). 2 “Enquanto os dançarinos rituais honravam os deuses, houve em todas as épocas cantores, dançarinos e mímicos ambulantes que entretinham o povo com suas apresentações por uma gratificação modesta.” (Berthold, 2008:32). Para os hindus, “dança e atuação teatral são conceitualmente uma coisa só.” (idem, p.36). 30 aquele existe numa espécie de “zona intermediária”, como uma projeção, resultado de uma alquimia mental e física cujo resultado o ator oferece ao público. Assim o personagem é algo que se estabelece entre o texto do dramaturgo e o corpo e a pessoa do ator, entre o que é imaginado e o real, sendo, portanto, pensada como “uma figura saída da realidade e como uma entidade autônoma que se move num espaço ao mesmo tempo concreto e fictício” (Abirached, 1994:10 I ). A retórica latina, ao falar do personagem, distingue três termos distintos, que traduzem conceitos diferentes: Persona, Character e Typus. O primeiro pode ser pensado como algo que se interpõe entre o homem e o mundo, o segundo como marcas deixadas pelo real e que produzem um efeito de realidade, e o último como a presença de um padrão e de um modelo fundador (Cf. Abirached, 1994:17). Esses conceitos são aproximações metafóricas que revelam abordagens diferentes e transformações na concepção e na forma de apreensão do que chamamos de personagem teatral. Tomemos inicialmente a máscara (Persona). Por um lado, não podemos deixar de considerar que a máscara possuía originalmente um estatuto diferente daquele que adquirirá depois no teatro, um poder mágico. Ela concedia àquele que a usava a identificação com uma divindade, “um poder mágico capaz de mudar aquele que a leva” (RUM, 1964:355). A máscara mágica transferia ao seu portador os poderes dos demônios, servindo ao mesmo tempo para atraí-los, pacificando-os, como também para atemorizá-los. Por outro lado, para os gregos, a máscara 3 que o ator usava definia o personagem, o seu caráter, permitindo que a plateia identificasse o tipo representado pelo ator. Quando Téspis, na Grande Dionisíaca de Atenas em 534 a.C., destaca-se do coro e, como um solista, usa “uma máscara de linho com os traços de um rosto humano, visível à distância por destacar-se do coro de sátiros, com suas tangas felpudas e cauda de cavalo” (Berthold, 2008:105), ele cria a figura do hypokrités (respondedor), marcando o surgimento do ator. E, quando seu discípulo Frínico de Atenas amplia a função desse respondedor, “investindo-o de um duplo papel e fazendo-o aparecer com uma máscara masculina e feminina, alternadamente” (p. 107), isto não apenas significava que o ator 3 Na Grécia, a máscara teatral era formada por uma carcaça de tela ou de madeira, sobre a qual se estendia uma camada de gesso, que se modelava ou pintava. Cobria o rosto e parte do crânio, e dela pendia uma cabeleira longa ou curta, ou ainda uma barba. A cabeleira era, por vezes, coberta por um chapéu, quando se tratava de um viajante, ou por uma ponta do himácio, para as mulheres, quando andavam fora de casa. Os cabelos eram presos por uma rede ou por uma faixa frontal chamada mitra. À máscara estava ligado o onkos espécie de apêndice para elevar a fronte. (FREIRE, 1985:89) 31 deveria fazer várias entradas e saídas de cena, para trocar o figurino e a máscara, mas evidenciava uma distância entre o que era realizado em cena (agora não apenas uma “declamação”) e a pessoa do ator. Dessa forma, ao mesmo tempo em que a máscara, por um lado, vinculava-se ao culto do deus, por outro ela se incumbia da transformação do ator em personagem. Passando ao largo da discussão sobre a relação do culto de Dioniso com o surgimento do teatro como uma arte, é clara a ligação da máscara teatral com as máscaras cultuais usadas pelos devotos nas festas e nos santuários em honra ao deus. Albin Lesky lembra que era justamente no culto de Dioniso que a máscara desempenhava papel mais relevante. Nele, a máscara do deus “pendente de um mastro, era objeto de culto, de tal modo que é possível mesmo falar de um deus-máscara; seus adoradores usavam máscaras, entre as quais a função maior cabia aos sátiros, e máscaras desse tipo eram levadas a seus santuários como oferendas” (Lesky, 1976:49). Na máscara se encontra “o elemento de transformação em que se baseia a essência da representação dramática” (p. 49) 4 . Através do seu uso, o ator continuava sendo servo da divindade, e a máscara, uma oferenda a ela. Mas há um longo processo que leva das primeiras máscaras animalescas até as máscaras altamente diferenciadas e expressivas que encontramos à época da Comédia Baixa. J. P. Vernant e Fr. Frontisi-Ducroux destacam que a presença de máscaras cultuais na Grécia antiga representa, em suas manifestações, uma das várias formas de figuração do divino (Cf. Vernant e Vidal-Naquet, 2005:163-178). Na época clássica, na qual as representações teatrais vão tomar a forma que conhecemos e se estruturar em torno da apresentação de comédias, tragédias e dramas satíricos, a forma canônica de representação do divino era precisamente a estatuária antropomórfica, que busca um ideal de beleza e perfeição. Porém, em meio à imagem predominante, outras formas de representação subsistem, e a máscara mantém seu valor e possui um papel especial. Colocar o devoto em contato imediato com a alteridade do divino, seria esse o objetivo maior do dionisismo; a esse objetivo de fusão do fiel com o deus, Vernant e Ducroux traçam um paralelo com o fenômeno teatral, com a ficcionalidade que este propõe 4 Lesky lembra que a transformação era o elemento básico da religião dionisíaca “O homem arrebatado pelo deus, transportado para o seu reino por meio do êxtase, é diferente do que era no mundo cotidiano. Mas a transformação é também aquilo de onde, e somente daí, pode surgir a arte dramática, que é algo distinto de uma imitação desenvolvida a partir de um instinto lúdico, e distinto de um representação mágico-ritual de demônios, arte dramática, que é uma replasmação do vivo”. (Lesky, 1976:61). 32 e a inscrição dessa ficção no real que ele provoca, abrindo um novo espaço, o do imaginário: É um fenômeno paralelo que ocorre no teatro, quando, no século V, os gregos instauram um espaço cênico onde apresenta personagens e ações cuja presença, ao invés de inscrevê-los no real, lança-os nesse mundo diferente que é o da ficção. Quando eles veem Agamêmnon, Heracles ou Édipo representados pela sua máscara, os espectadores que os olham sabem que esses heróis estão ausentes para sempre, que não podem estar ali onde são vistos, que doravante pertencem ao tempo findo das lendas e dos mitos. O que Dioniso realiza, e aquilo que a máscara provoca também, quando o ator a coloca, é, através do que foi tornado presente, a incursão, no centro da vida pública, de uma dimensão de existência totalmente estranha ao universo do cotidiano. (Vernant e Vidal- Naquet, 2005:176) Essa dimensãode existência diversa do cotidiano é a dimensão da ficção, e o ator inicia sua história presentificando o mito, apresentando uma realidade imaginada sob as vestes do real. Vernant e Frontisi-Ducroux argumentam que só no quadro do culto dionisíaco, “deus das ilusões, do tumulto e da confusão incessante entre a realidade e as aparências, a verdade e a ficção” (Vernant e Vidal-Naquet, 2005:163-176) poderia surgir o teatro 5 local onde o real é transformado em ficção e a ficção encenada como se fosse real. O ator se assemelhará ao fiel que, “arrebatado pelo deus, transportado para o seu reino por meio do êxtase, é diferente do que era no mundo cotidiano” (Lesky, 2003:74). Também ele será transportado para um outro lugar e tempo, e precisará, em cena, ser mais (ou diferente) do que no seu dia-a-dia. Nesse momento da história, o personagem teatral não nos remete a uma pessoa, a um indivíduo. A máscara reenvia o espectador não apenas a uma realidade não-cotidiana, mas ao próprio mito. Traz para o palco esse universo e, dessa forma, impede que o personagem seja identificado a uma pessoa: seu status é de outra ordem, pertence a uma outra realidade, o que ele apresenta no palco não é a figuração do humano, mas uma visão desse universo mítico. Para o ator, a máscara traz não apenas um distanciamento de si mesmo, desrealizando o personagem. Vestir a máscara é despir-se de si e vestir um outro, que está situado num tempo/espaço que não é mais o seu. Porém, quando refletimos sobre a Comédia, uma série de questões diferentes se nos afiguram: ela não obedece aos mesmos padrões de representação ou de retomada de 5 A palavra grega théatron – do verbo theaomai, ver – designa o “lugar de onde se vê”, ou o “lugar onde se vai para ver”, “lugar para contemplar”, implicando em um olhar mais atento, cuidadoso, profundo, não simplesmente ver no sentido comum. Denis Guénoun lembra-nos que a área de representação, o palco, era designada pelo termo skênê (cf. Guénoun, 2003, p. 14) 33 um mito; ao contrário, sua temática é justamente as questões do dia-a-dia, de ordem política e social. As sátiras aos costumes, a caricatura de personagens reais, inclusive vivas, que são satirizadas em cena, confere ao gênero cômico um outro tipo de relação entre público e cena, e, da mesma forma, entre ator e personagem. O papel representado não mais se encontra no plano mitológico, lendário, ou num tempo histórico distinto do ator, mas ao redor deste. Diferentemente do personagem trágico, o cômico está diretamente engajado na vida social, e sua ação “está impregnada de familiaridade doméstica” (Abirached, 1994:32 II ). Apesar dessa inserção na vida cotidiana, ambos não serão definidos como indivíduos antes do século XVIII. O que é posto em cena pelo dramaturgo, pelo corega e pelo diretor do coro (corus didascalus) obedece a determinadas convenções e regras. O texto, encenado, não pode fugir da materialidade do espaço e do corpo do ator, das vestes e adereços que ele porta. As ações que este realiza se prendem a um imaginário que se vincula à época e aos costumes onde se realiza a encenação (ver adiante, cap.2). A imitação e a verossimilhança aparecem aí como conceitos chaves que norteiam não só a composição do texto, mas a ação do ator. Ao falar em Mimeses, e colocar a tragédia e a comédia como artes imitativas, Aristóteles delineia uma questão que vai nortear toda a discussão sobre o personagem e o trabalho do ator. Escrita na segunda metade do séc. IV a.C., a Poética trata da produção poética (poiesis), e revela uma grande preocupação com a práxis, com a maneira como a obra deve ser construída e com os efeitos da obra poética sobre seu público. Embora se refira à epopeia, à comédia e à poesia ditirâmbica, o texto trata principalmente da tragédia, explicando “como se deve construir a fábula, no intuito de obter o belo poético; qual o número e a natureza de suas diversas partes, e falar igualmente dos demais assuntos relativos a esta produção” (Aristóteles, s/d:239) No capítulo primeiro, que trata “Da poesia e da imitação segundo os meios, objeto e modo de imitação”, ele enquadra a tragédia e a comédia como uma “arte de imitação” (p. 239), pontuando, a seguir (cap. VI, “Da tragédia e de suas diferentes partes”), que a tragédia é a “imitação de uma ação importante e completa... (...) apresentada, não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores...”, acrescentando ainda que se trata da imitação “não de homens, mas de ações, da vida, da felicidade e da infelicidade (pois a infelicidade resulta também da atividade), sendo o fim que se pretende atingir o resultado de uma certa maneira de agir, e não de uma maneira de ser.” (p. 248). 34 O filósofo grego estabelece, portanto, como foco da imitação, as ações que são realizadas pelos personagens, ou seja, a fábula. Sendo, para o poeta, a organização dos fatos a parte mais importante de sua composição (do ato de poiesis), compreende-se que estes fatos devam obedecer aos critérios de necessidade e verossimilhança. Quanto aos personagens, devem ser representados “ou melhores, ou piores ou iguais a todos nós” (p. 242), ou seja, o modelo para a construção das ações e para o comportamento dos personagens é o ser humano. Aristóteles não se detém aqui no processo de encenação e no trabalho do ator. Para ele a encenação é uma arte menor, inferior ao trabalho do poeta, este sim o principal responsável pela composição da tragédia: Sem dúvida a encenação tem efeito sobre os ânimos, mas não faz parte da arte nem tem nada a ver com a poesia. A tragédia existe por si independente da representação e dos atores. Quanto ao trabalho da encenação, a arte do cenógrafo tem mais importância que a do poeta. (Aristóteles, s/d: 249) A imitação – mimeses –, não deve ser confundida aqui, como ressalta Luiz Costa Lima, com imitatio, pois se trata não de uma cópia, mas se baseia numa relação de semelhança com o objeto representado (cf. Lima, 1980:47). Este processo traz em si uma modificação da realidade representada, mantém uma distância em relação ao real, que o capta sem, contudo, reduplicá-lo. A dualidade entre o real e o representado, e o processo de estilização que a realidade sofre ao ser transformada em objeto artístico, fazem parte da mimeses, que não perde de vista esse “real”, como pontua Emmanuel Martineau: “a imitação transpõe, representa, exprime, estiliza, idealiza, mima, transfigura, etc. Mas, custe o que custe, deve ser entendido, que ela imita – ou seja, que se refere a um „real‟ a que virá se superpor como um plano a um plano” (cit. por Lima, 1980:48). Há, portanto, uma concepção internalizada de uma realidade, que norteia tanto a ação do produtor da obra poética, quanto a do seu receptor: Vista em si mesma, a mimeses não tem um referente como guia, é ao contrário uma produção, análoga à da natureza (o limite aristotélico da metáfora orgânica). Não sendo o homólogo de algum referente, tanto ao ser criada, quanto ao ser recebida, ela o é em função de um estoque prévio de conhecimentos que orientam sua feitura e recepção (Lima, 1980:50). O segundo termo considerado pela retórica latina, o Caractere (do grego Kharactêr, que significa signo gravado, a figura impressa sobre um selo ou uma moeda), 35 enquanto produzido por um trabalho de mimeses 6 , traz essa relação com a realidade que o autor imprime sobre o personagem, ao mesmo tempo que é mais traço distintivo que uma individualidade, que uma “constituição global” (Abirached, 1994:30). Sendo aquilo que permite “qualificar o homem” (Aristóteles, s/d:248), constitui-se no conjunto de suas características, tanto psicológicas como morais, os traços do seu temperamento. Para Aristóteles os caracteres devem possuir quatro qualidades: devem ser bons, conformes, semelhantes e coerentes. Bom,
Compartilhar