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Sexualidades, saúde, arranjos múltiplos e direitos sociais Ricardo Dias de Castro Descrição Construção de práticas de cuidado para profissionais da saúde no âmbito da diversidade das configurações dos sexos, dos gêneros e das orientações sexuais dos usuários das políticas públicas. Propósito É primordial que profissionais da área da assistência, da saúde, da educação e de qualquer outra política pública estejam munidos de conceitos e reflexões que promovam o respeito e a valorização da diversidade humana, realizando uma prática interventiva sem qualquer preconceito ou discriminação, visando à garantia de direitos da população em toda a sua pluralidade. Objetivos Módulo 1 Políticas de saúde e a população LGBTQIA+ Identificar as políticas de saúde direcionadas para a população LGBTQIA+. Módulo 2 A sexualidade humana Reconhecer a sexualidade humana como processo de construção biopsicossocial. Módulo 3 Políticas públicas de saúde Localizar as políticas públicas de saúde da mulher e do homem. Módulo 4 Saúde e a diversidade sexual Empregar a ética no cuidado em saúde frente à diversidade sexual. Introdução Como profissionais do cuidado e da assistência em saúde, todos nós teremos que lidar com a diversidade humana, o que implica estar em contato com corpos, desejos, afetos e sexualidades muito diferentes. E essa diferença nunca poderá ser critério para que balizemos a qualidade do nosso trabalho! Um profissional de saúde precisa se formar de maneira crítica e respeitosa, embasando-se, única e exclusivamente, nas dimensões científicas, éticas e humanísticas de suas construções acadêmicas e profissionais. Neste conteúdo, portanto, veremos algumas políticas de saúde que têm como foco a garantia dos direitos à comunidade LGBTQIA+, bem como seremos capazes de compreender a sexualidade humana como um processo simbólico e cultural. Em seguida, localizaremos algumas estratégias para homens e mulheres no âmbito da política pública de saúde e, por fim, apresentaremos um debate ético acerca do cuidado em diversidade sexual. 1 - Políticas de saúde e a população LGBTQIA+ Ao �nal deste módulo, você será capaz de identi�car as políticas de saúde direcionadas para a população LGBTQIA+. Sistema Único de Saúde e a garantia de direitos Desde a institucionalização do SUS, em 1990, o Brasil vem aos poucos construindo frentes de políticas inclusivas que vejam os usuários do sistema público de saúde para além da doença e, sobretudo, como sujeitos de direitos. Isto é, mais do que pensar que um sistema de saúde tem caráter unicamente curativo e medicamentoso, a reforma sanitarista brasileira e o campo da Saúde Coletiva alteraram a lógica do cuidado no Brasil. A partir da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, e com a finalidade de garantir o acesso universal e igualitário, baseado em uma perspectiva integral de saúde, houve uma reorganização assistencial que foi garantida pela Lei Orgânica da Saúde ― Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990 ― elaborada para regulamentar o SUS, criado pela Constituição Federal de 1988, também conhecida como Constituição Cidadã. Com o tripé assistência social, saúde e previdência, a Seguridade Social brasileira abriu caminho para o combate à pobreza extrema, à desigualdade social e à degradação humana, trazendo para o cerne do debate o campo da cidadania para a estrutura central de organização de um novo projeto de Brasil. Desde então, a implantação de um modelo que contemple os princípios e as diretrizes do SUS e a execução das normas de seu arcabouço legal são consideradas um dos maiores desafios do setor saúde. Exemplo A Promoção em Saúde Pública não está dirigida para dada doença ou agravo, mas serve para incrementar a saúde e o bem-estar da população. É nesse sentido que o cuidado emerge como uma política de saúde. Cuidado: conceito e prática de humanização O cuidado em saúde requer responsabilidades entre serviços e população. Faz-se importante o vínculo entre os profissionais de saúde e a população atendida, uma vez que se deve reconhecer a saúde como um direito de cidadania. Ou seja, o cuidado em saúde é o tratamento respeitoso, o acolhimento ao ser humano em sofrimento. É a dignificação do processo de saúde e da doença. Trata-se, principalmente, de compreender o sujeito biopsicossocialmente, de modo que suas fragilidades e suas potências sejam consideradas ao se prestar um cuidado assistencial em saúde. Exemplo Uma série de atitudes, nesse sentido, pode apontar para o cuidado em saúde, como a oferta de um tratamento digno e respeitoso, com qualidade, vínculo e acolhimento singular. O cuidado com o usuário de um sistema de saúde tem como pressuposto a autonomia, a liberdade e a capacidade de negociação do sujeito diante das propostas de saúde que lhe são feitas. O objetivo desse cuidado é reduzir os efeitos do adoecimento e reconhecer o sujeito para além do modelo biomédico e medicamentoso. A ideia aqui não é abandonar o modelo biomédico, mas pensar o sujeito para além de uma matriz biológica. Somos seres sociais! E, portanto, na contramão de uma postura de abandono e desamparo, o cuidado em saúde assume o sujeito humano como um ser histórico e o interpreta e o acolhe para além de sua funcionalidade biológica. O cuidado em saúde, portanto, faz cumprir os princípios básicos do tripé do SUS: Refere-se ao acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de atenção: primário, secundário e terciário. Refere-se à assistência integral ao sujeito, o que é compreendido como um conjunto de ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, que deve funcionar de forma articulada em todos os níveis de atenção. Refere-se à assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer natureza. O objetivo do SUS não é tratar todos igualmente. Sabe por quê? Porque isso seria impossível, já que todos somos seres sociais muito Universalidade Integralidade Equidade diferentes! O problema não é a diferença, e sim a desigualdade de tratamento e cuidado em saúde em função de critérios normativos que desvalorizam a diferença ao tomar algumas existências como modelo padrão de humanidade. Tendo em vista isso, o melhor termo para o tratamento digno a toda a diversidade de existência, pelo sistema de saúde pública, não é igualdade, mas, sim, equidade. Ninguém precisa ser tratado pela mesma norma, afinal há pessoas que diferem da norma padrão de humanidade que se hegemonizou na construção da heterocisnormatividade como modelo de vida. Heterocisnormatividade É o padrão de conduta afetivo-sexual que naturaliza como “normal” o desejo heterossexual e os corpos não transexuais: os chamados corpos cis. Enquanto a igualdade busca tratar todos da mesma maneira, independentemente da sua necessidade, a equidade trata as pessoas de formas diferentes, mas em condições equitativamente dignas e humanas, considerando o que elas precisam, suas singularidades e particularidades. Exemplo A vida de um sujeito heterossexual com um emprego em uma multinacional é bem diferente da vida de uma prostituta transexual na periferia de algum centro urbano. Nós não somos iguais, mas devemos ser respeitados da mesma forma em nossas diferenças! É justamente para evitar que esses grupos sejam violados pelas instituições de saúde que os planejamentos em saúde começaram a considerar estratégias transversais a diversas áreas para garantir a temática da inclusão e da diversidade como pontos de partida e horizonte de uma prática cuidadosa. É preciso pensar a formação dos profissionais do SUS para que temáticas sobre sexo, gênero e orientação sexual sejam centrais na construção de uma postura profissional do cuidado. Isso só será feito com a sensibilização científico-política ao tema da diversidade sexual. E é por isso que você está acessando este conteúdo. Alguns conceitos básicos de diversidade sexual Para que possamos avançar em nossa discussão, é importante garantirque estejamos partindo de definições conceituais comuns. Definições que, no senso comum, provocam bastante confusão e dificuldade de entendimento, mas que, no campo da ciência da saúde, requerem fundamentação e compreensão. Identidade sexual (sexo): Refere-se à matriz genital biológica que nasce com os corpos humanos. Exemplos: Corpo macho É aquele que possui cromossomicamente as marcas que desenvolverão caracteres, gônadas e genital dos machos, como pênis, próstata, testículos etc. Corpo fêmeo É aquele que possui cromossomicamente as marcas que desenvolverão caracteres, gônadas e genital da fêmea, como seios, útero, vagina etc. Corpos intersex Os corpos intersex fogem do binarismo sexual e não se conformam ao macho ou à fêmea. Em vez disso, eles são marcados pela presença de caracteres de ambos os sexos. Desse modo, pode haver um corpo que possua uma cavidade vaginal da qual emerge um pênis, por exemplo. Identidade de gênero: Refere-se às construções simbólicas e materiais do corpo referentes à masculinidade, à feminilidade, entre outros elementos. Exemplos: Homem Pessoa identificada com o gênero masculino. Mulher Pessoa identificada com o gênero feminino. Andrógino Pessoa que possui identificação com o gênero masculino e o feminino. Não binário Pessoa que duvida do masculino e do feminino como coisas distintas, opostas e obrigatórias. Homem Trans Corpo nascido com genitália designada feminina e que se identifica com o gênero masculino. Mulher Trans Corpo nascido com genitália designada masculina e que se identifica com o gênero feminino. Orientação sexual: Corresponde ao desejo afetivo-sexual que as pessoas constroem em suas vidas, o qual pode variar ao longo do espaço-tempo. Exemplos: Heterossexual Pessoa que sente desejo por outra do gênero oposto. Homossexual Pessoa que sente desejo por outra do mesmo gênero (gays e lésbicas). Bissexual Pessoa que sente atração afetivo-sexual por pessoas dos dois gêneros. Pansexual Pessoa cujo desejo se estende a mais de um gênero independentemente da identidade de gênero e da orientação afetivo-sexual. O prefixo pan significa todos. Assexual Pessoa que não tem atração sexual, e sim desejo de afeto. Diferencia-se de abstinência sexual e celibato – inclusive do celibato compulsório. A sigla LGBTQIA+ se refere às identidades de gênero e às diversas orientações sexuais, apontando para existências diversas de arranjos entre genitálias, gêneros e desejos. Tais existências não se resumem ao campo da heterossexualidade cisnormativa, historicamente tomada como padrão de normalidade. Por fim, a sigla, ao fazer uso do sinal +, mostra-se aberta a uma infinidade de possibilidades de construções de corpos e desejos que os seres humanos empreendem para se relacionarem e terem prazer entre si. Políticas de cuidado aos LGBTQIA+: conquistas e desa�os Todos nós, em alguma medida, reproduzimos preconceitos e discriminações aos LGBTQIA+ justamente porque a heterocisnormatividade constrói um modelo de mundo em que tudo o que rompe com o binarismo de gênero e com as sexualidades heterossexuais é tomado como desvios, patologias e até mesmo crimes em algumas sociedades. Em função dessa lógica violenta, todos aqueles que não correspondem às expectativas desse modelo sexo-gênero-orientação sexual padrão podem, porventura, ter os seus direitos negados e usurpados. Vários profissionais de saúde se deixam envolver por suas concepções morais e religiosas e penalizam pessoas LGBTQIA+ fazendo piadas e comentários violentos ou negligenciando atendimentos a elas. Imagem de jovem mulher trans. Vários movimentos foram feitos no sentido de se demandar do Estado a garantia à qualidade de vida e à assistência em saúde aos LGBTQIA+ por meio de políticas públicas. Políticas públicas são os dispositivos do Estado por meio do qual programas, ações e propósitos coletivos e comunitários são levados a cabo pelas sociedades para produzir mudanças no mundo real e garantir um projeto de sociedade que faça garantir o Estado de bem- estar social. Em âmbito mais específico, a política pública de saúde congrega diretrizes relacionadas à produção de programas no âmbito da atenção em saúde (MELLO, 2011). É importante entender que a sigla LGBTQIA+ variou e variará quanto mais a sociedade entender que a diversidade sexual não se resume em palavras, afinal, a sexualidade humana é pura criatividade. Acompanhe a seguir as variações que a sigla já teve: GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) U i l i d ló i Uma sigla mais mercadológica. GLBT Que retira o simpatizante por entender que ele não é, exatamente, um sujeito da luta. LGBT Que traz o L para frente para dar visibilidade às mulheres lésbicas. LGBTT Que engloba travestis e transexuais. LGBTQ Que traz o queer para a sigla e reúne travestis e transexuais em transgêneros. LGBTEQI Que traz os intersex. LGBTQIA+ Que traz os assexuados e o sinal de adição (+) para sinalizar a infinidade de possibilidades etc. Partindo-se desse pressuposto, o ano de 2004 foi um marco para a produção de políticas de cuidado em saúde para a população LGBTQIA+, haja vista o lançamento pelo governo federal do "Programa Brasil sem homofobia - Programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e de promoção da cidadania homossexual". Outra iniciativa voltada a essa comunidade foi a Carta dos direitos dos usuários da saúde, aprovada por meio da Portaria nº 675, de 30 de março de 2006, na qual está presente o direito ao cuidado, ao tratamento e ao atendimento no âmbito da saúde pública, sem qualquer discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Saiba mais Nessa mesma carta, enuncia-se, também, o fato de que as pessoas têm o direito de serem nomeadas e publicamente chamadas pelo nome que preferirem ― o nome social ―, independentemente do registro civil (MELLO, 2011). Também em 2004, o governo federal lançou o documento Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e diretrizes, no qual se dá atenção às diversidades de ser mulher no Brasil, a partir de distintos marcadores como raça, etnia e sexualidade que produzem comuns, mas também distintas, experiências para mulheres negras, indígenas e lésbicas (MELLO, 2011). Na segunda metade dos anos 2000, outros projetos não voltados exclusivamente para a população LGBTQIA+ foram capazes de mobilizar recursos e estratégias que contemplaram demandas para alguns desses segmentos. Dentre esses movimentos, destaca-se a 13ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 2007, que levantou o debate da revogação da Portaria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que, até então, proibia gays e outros HSH (homens que fazem sexo com homens) de doarem sangue. Algo que, de fato, só foi juridicamente revogado em 2020. Em maio de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inconstitucional a “regra” que impedia um homem que fez sexo com outro homem de doar sangue antes de completar 12 meses da relação sexual. Após essa decisão do Supremo, a Anvisa revogou restrição à doação de sangue por homens gays. Ainda em 2007, houve forte incentivo à pesquisa e à produção de conhecimentos sobre o SUS e o fomento a uma política nacional de saúde integral à comunidade LGBTQIA+. Nesse mesmo ano, houve também o Plano integrado de enfrentamento da feminização da epidemia de AIDS e outras DST e o Plano nacional de enfrentamento da epidemia de AIDS e DST entre gays, outros homens que fazem sexo com homens e travestis. DST Respeita-se o termo utilizado pela política à época, mas o termo atual, utilizado pelas políticas de saúde, é Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), já que nem toda infeção configura um processo de adoecimento. No ano de 2009, pudemos acompanhar o Plano nacional de promoção da cidadania e direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais e o III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), no qualo tema da atenção à saúde da população LGBTQIA+ foi protagonizado. Em 2010, foi divulgada a Política nacional de saúde integral de LGBT com diretrizes que consideravam a construção de um cuidado atravessado pelos marcadores sociais como orientação sexual, identidade de gênero, ciclos de vida e raça-etnia (MELLO, 2011). Mais recentemente, o Ministério da Saúde, em 2013, lançou algumas campanhas em parceria com as Secretarias de Direitos Humanos (SDH) e de políticas para as mulheres com o objetivo de conscientizar sobre a saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais para a valorização da saúde como um direito humano de cidadania. Isso ressaltou, por fim, que a população LGBTQIA+ tem direito a receber atendimento livre de qualquer discriminação, restrição ou negação em virtude da orientação sexual e identidade de gênero. Apesar da existência de vários projetos, programas e outros compromissos do governo federal relativos ao tema da saúde da população LGBTQIA+, até hoje perduram desafios para a efetivação da cidadania e dos direitos a essa população historicamente subalternizada. Há uma distância entre a proposta da política e o fato de que ela se torne orgânica aos profissionais de saúde e aos usuários. Inúmeros profissionais ainda patologizam trajetórias não heterocisnormativas e tratam mal ou desdenham das trajetórias LGBTQIA+. Alguns profissionais insistem em não chamar os sujeitos travestis e transexuais pelos seus nomes sociais, alegando que o registro civil se sobrepõe a suas autodeterminações, entre outros problemas. O caminho para a construção de um cuidado à comunidade LGBTQIA+ foi aberto, mas ainda perduram os desafios que precisamos enfrentar para garantir dignidade e direitos a um grupo que, historicamente, foi vinculado a uma semântica degradante e desumanizante. O cuidado em saúde para a comunidade LGBQTIA+ se trata apenas de fazer garantir que, como qualquer outro grupo cidadão, ela tenha respeito, reconhecimento e atendimento de qualidade que promova saúde e bem- estar biopsicossocial. Bem-estar em todas as esferas da vida e não só naquelas que apontam para o desejo e as práticas corpóreas sexuais desses sujeitos. Por que reduzimos os sujeitos LGBTQIA+ às questões do corpo e do desejo sexual? Será que esse não é um preconceito que nos impede de enxergar sujeitos não heterocisnormativos para além de suas genitálias e práticas sexuais? As conquistas e os desa�os das políticas LGBTQIA+ ao longo do tempo Neste vídeo, o professor reflete sobre as diversas mudanças que aconteceram nas políticas de cuidado à população LGBTQIA+, conquistas, desafios e impasses. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Qual o principal elemento que está presente na construção da ideia de cuidado em saúde prevista pelo Sistema Único de Saúde (SUS)? Parabéns! A alternativa C está correta. O cuidado em saúde é a garantia de tratamento ao usuário do sistema de saúde, com respeito e acolhimento ao seu sofrimento. Isso só é possível ao considerar o contexto sócio-histórico e material dos sujeitos assistidos pela política pública, e implica atentar-se para suas vulnerabilidades e suas potências na resolutividade de seus problemas no âmbito da saúde-doença para além das questões corpóreas-biológicas. Questão 2 Em linhas gerais, as políticas de cuidado aos LGBTQIA+ sustentadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) pretendem A Em sua prática, é necessário que o profissional em saúde abra mão dos conceitos científicos e alicerce sua assistência a partir de princípios morais. B Em sua prática, assim como previsto pela Constituição Federal de 1988, é garantido que o profissional de saúde haja segundo suas convicções religiosas. C O cuidado em saúde é um projeto de assistência que prevê o sujeito como um cidadão que merece ser acolhido e respeitado em sua história pessoal, material e simbólica. D O cuidado em saúde deve ser balizado por cada profissional tendo em vista os interesses pessoais de cada um. E O cuidado em saúde é o rompimento total com o modelo biomédico de promoção e prevenção em saúde. Parabéns! A alternativa B está correta. As inúmeras políticas de cuidado à comunidade LGBTQIA+ no âmbito da saúde existem para garantir que os sujeitos dessa comunidade tenham acesso a toda a política pública de saúde sem que sofram preconceito e discriminação. É importante reforçar que esses sujeitos acessam o SUS não apenas para questões que envolvem seus corpos e suas práticas sexuais, mas também para toda e qualquer questão que envolva a necessidade de manutenção de bem-estar biopsicossocial. Essa política, por fim, não prejudica os sujeitos cisheterossexuais, que historicamente são reconhecidos como humanos pelos serviços do Estado. A impedir que sujeitos heterossexuais tenham uma boa assistência em política de saúde pública. B garantir que a população LGBTQIA+ seja tratada com cuidado universal, integral e equitativo como qualquer outro grupo cidadão do Brasil. C cuidar apenas das condições sexuais dos sujeitos LGBTQIA+. D fazer o tratamento das inúmeras ISTs/AIDS que ainda acometem, majoritariamente, os LGBTQIA+. E garantir que os LGBTQIA+ tenham um tratamento em saúde melhor que os sujeitos que estão mais próximos à heterocisnormatividade. 2 - A sexualidade humana Ao �nal deste módulo, você será capaz de reconhecer a sexualidade humana como processo de construção biopsicossocial. Sexualidade para além do sexo A sexualidade humana é um campo de construções biopsicossociais que comprovam que os sentidos sobre nossos corpos, nossas práticas e nossos desejos sexuais são um processo, e não uma instância física perene. Os processos da sexualidade são movimentações subjetivas, complexas, contraditórias, paradoxais e embebidas em uma negociação constante do sujeito com a sua comunidade e do sujeito consigo. Com isso, queremos dizer que a sexualidade não pode ser compreendida, unicamente, por uma via racional e descritiva. Será que a sopa de letrinhas da diversidade é capaz de abarcar todos os arranjos de sexo-gênero-desejo? Nunca se esqueça do sinal + da sigla. A diversidade é infinita. A sexualidade é fluxo, assim como a experiência de ser humano, e esse fluxo se inicia antes mesmo do nosso nascimento! Mais do que entender a sexualidade humana como um campo unicamente da experiência sensível pessoal, é preciso compreender a sexualidade como campo científico de estudos transdisciplinares que investigam a experiência do corpo, do prazer e das criações que o ser humano empenha para se relacionar com o outro afetivo e sexualmente. Seja como for, as abordagens contemporâneas da sexualidade em antropologia mantêm os pressupostos da disciplina relativos à análise sistêmica dos símbolos culturais duma sociedade ou grupo social, do relativismo cultural (a não confundir, todavia, com relativismo moral) e da comparação intercultural. Por fim, se o campo da sexualidade tem vindo a autonomizar-se na nossa sociedade – e, por isso, nas ciências sociais –, a sua abordagem em antropologia é necessariamente também um esforço de leitura, desconstrução e crítica das abordagens passadas do tema na disciplina. (ALMEIDA, 2003, p. 2-3) Isso quer dizer que os estudos sobre a sexualidade humana são pensamentos críticos e reflexivos sobre como abordagens antigas da experiência afetivo-sexual humana foram moralizantes e patologizantes acerca da diversidade sexual. Atualmente, o esforço acadêmico-político visa colaborar para a construção de saberes e práticas em saúde que lidem com a sexualidade humana como uma produção simbólica e cultural e, portanto, criativa e inventiva. Onde habita o consenso afetivo-sexual entre figuras adultas não deveria haver espaço para preconceito e discriminação! Mas você já reparou como a nossa própria sexualidade e a dos outros são tomadas como um campo de vigília por grande parte da comunidade social e política? A questãoaqui não é negar a matriz biológica. Todos compartilhamos pontos de partida para a construção do corpo e da existência que são inegavelmente herdados. Mas, além da biologia, existe uma cultura que nos constrói e nos inventa nesse mundo. Que cultura poderosa é essa? A seguir, compreenderemos melhor a importância de se considerar não só a influência biológica, mas também a cultural para nossa construção humana. O que é gênero? O gênero é parte fundamental da nossa cultura! Trata-se de um campo da ciência – também chamado de Estudos de Gênero – que pretende investigar o sujeito e a sociedade a partir do lugar epistemológico do indivíduo no mundo. Nesse sentido, o gênero é uma categoria de análise sócio-histórica que se recusa a enxergar as diferenças e as desigualdades entre homens e mulheres apenas como questões biológicas assim como, historicamente, muitas leituras patriarcais o fizeram. Em outras palavras, gênero é uma “lente de análise” para enxergar as relações sociais e como elas padronizam, em um contexto histórico e político, papéis sociais distintos e desiguais para homens e mulheres. As expectativas de gênero seriam todas essas prescrições – algumas mais e outras menos implícitas – que criam modelos tradicionais que se pretendem biológicos, mas são ensinados cotidianamente para produzir o que um homem ou uma mulher é na sociedade. Veja um exemplo de como o gênero muda ao longo do tempo: Na época do Antigo Regime francês até a Revolução Francesa, entre os séculos XVII e XIX, era comum que homens da realeza usassem perucas e maquiagens, as quais significavam poder econômico e, portanto, virilidade e poder. Atualmente, maquiagem e peruca são mais associadas às feminilidades. Provavelmente, nas ruas de qualquer cidade brasileira, homens que usassem esses utensílios seriam hostilizados. Assim como há expectativas de gênero, há também expectativas em relação às orientações sexuais. Grande parte da sociedade não deseja de modo algum que seus filhos sejam LGBTQIA+ porque naturalizamos que o destino de qualquer corpo-desejo é o corpo heterocisnormativo. Essa expectativa é subjetiva, social, histórica e política, e impede que tenhamos como projeto de vida o desejo de que as pessoas sejam o que elas quiserem ser. Muito pelo contrário, fantasiamos gostos, estéticas, casamentos, parceiros, filhos e um modelo de organização da vida privada, familiar e pública do nascimento até o último dia de vida de uma pessoa. Nessa direção, a sexualidade é central na organização das subjetividades modernas e contemporâneas. Todos nós pensamos em pessoas a partir das categorias do gênero e da orientação sexual e áreas relacionadas. Heterossexualidade compulsória é, justamente, o modelo normativo de vida, o desejo e as instituições que colocam como destino natural o casamento heterossexual, as divisões sociais de trabalho e gênero, a monogamia e a reprodução como modelos únicos e padronizados de existência (RICH, 2010). Essa discussão não objetiva impedir que as pessoas assumam orientações heterossexuais. Isso é impossível. Durante a vida, cada um vai desejar o que quiser (e puder) desejar! A discussão sobre o caráter construcionista da sexualidade visa garantir que quem assumir outra forma de desejo afetivo-sexual, diferentemente da heterossexual, possa existir sem ser exterminado por isso. Atenção! A normalização da heterossexualidade como modelo único de desejo sexual é reforçada por discursos religiosos, midiáticos e, até mesmo, científicos. Ainda que isso esteja mudando atualmente, muitas gerações de jovens adultos atravessaram a puberdade e fase adulta sem terem acesso à literatura, à mídia, aos filmes e aos documentários que mostrassem a vida LGBTQIA+ como um modelo de vida. E quando se referiam a essa comunidade, historicamente isso foi feito com desrespeito e humor, no mínimo, controverso. Interseccionalidade As décadas de 1960 e 1970 são, marcadamente, um período histórico de bastante mobilizações e reivindicações por direitos sociais e políticos para além das questões de classe relacionadas às condições trabalhistas. Certos de que a desigualdade econômica é um grave problema no mundo, vários movimentos, também no período de 1960 e 1970, introduziram elementos e categorias relacionadas a lutas por reconhecimento ― como as questões de raça, gênero e sexualidade ― nas pautas sobre justiça social econômica. A ideia que começou a ser construída é a de que nenhuma experiência de exploração se sobrepõe à outra. Classe e problemas econômicos são tão centrais para a compreensão do mundo quanto outros sistemas de poder e exclusão. Nesse período, mulheres negras organizadas, por exemplo, tiveram dificuldade em encontrar algum movimento social que as representasse de modo mais efetivo. Isso porque, em função do racismo estrutural, era difícil para elas reconhecerem pautas antirracistas em um movimento feminista branco e da classe média. Ao mesmo tempo, ao procurarem solidariedade com o movimento negro, os sexismos dos companheiros homens de luta antirracista também colocavam limites às parcerias a qualquer custo. Qual o lugar da mulher negra na luta por um mundo mais justo? A interseccionalidade é compreendida como um movimento teórico- político protagonizado, sobretudo por mulheres negras, o qual empreende um projeto de justiça social que intersecciona vários marcadores sociais – classe, raça, gênero, sexualidade e outros – para compreender as lógicas de opressão da sociedade. Ao mesmo tempo, esse movimento defende a importância de se pensar vários sistemas de opressão juntos – pobreza, racismo, LGBTQUIA+fobia, sexismo e outros – para empreender lutas e processos de combate à desigualdade social que assola o mundo (MAYORGA, 2014). A interseccionalidade não é uma soma exata de características individuais e coletivas desses distintos grupos, mas, sim, uma forma de olhar para os problemas do mundo com mais complexidade e produzir justiça social. Não se trata de afirmar simplesmente a necessidade de trabalhar com a multiplicidade de diferenças que caracterizam as mulheres a partir de uma somatória de opressões. É muito importante compreender como essas diferenças se instituem como desigualdade e devem-se analisar quais sistemas as produzem e também como estão em interseção. Isso porque principalmente categorias como gênero, raça, classe e sexualidade se expressam, muitas vezes, através de antagonismos. Desse modo, a noção de interseccionalidade será tomada como uma resposta à necessidade evidente em nossas sociedades para compreender as formas de opressão de forma articulada, considerando a complexidade das sociedades contemporâneas, bem como para construir enfrentamentos que possam ser não fragmentados. (MAYORGA, 2014, p. 228) Várias expectativas de gênero e sexualidade, ao serem atravessadas por esses outros marcadores sociais, como raça e classe, produzem novas e distintas violências e desumanizações para alguns corpos. Interseccionar o pensamento é pensar classe, gênero, raça e sexualidade de forma conjunta. Durante aproximadamente três séculos, os corpos negros foram associados a um produto que pertencia ao poder luso-europeu. Corpos vendáveis, bestializados, “sexualmente salientes”, bons para o trabalho braçal, não pensantes. Negros eram corpos para o poder colonial. Toda essa lógica de poder colaborou para um processo de sexualização dos corpos negros, que foram associados a uma força física e sexual tão brutal que, até hoje, circula no senso comum a ideia de que mulheres negras são mais assanhadas e que homens negros possuem melhores performances sexuais e genitálias maiores do que homens brancos. Esse senso comum é um dispositivo do sistema moderno colonial de gênero que criou a ideia da humanidade dos europeus, fossem homens ou mulheres, em detrimento da bestialidade e animalização dos povos colonizados, como indígenas, aborígenes e africanos, os quais foram mais enquadradoscomo machos e fêmeas do que como homens e mulheres. Imagem ilustrativa do mercado de escravos do livro Revelações de um contrabandista de escravos, publicado em 1860. Em função da lógica colonial de gênero, mulheres brancas foram historicamente associadas à virgindade, à castidade e ao casamento. Mulheres negras, por outro lado, foram associadas à fornicação e ao sexo selvagem. Compreender as construções simbólicas da sexualidade exige de nós, profissionais da saúde, do cuidado e da assistência, complexidade para analisar os fatos conforme foram produzidos ao longo da história. Os sistemas de saúde estão atravessados por ideias preconceituosas e discriminatórias. Por isso mesmo, os dados mostram que mulheres negras são mais vítimas de estupros e feminicídios no Brasil. Há relatos que mostram como médicos, na década de 80, realizaram esterilizações compulsórias em mulheres negras sem que elas tivessem desejado isso. Por fim, há também denúncias de como mulheres negras recebem menos anestesias para procedimentos biomédicos que causam dor (GONZAGA; MAYORGA, 2019). Qual a lógica por trás dessas atitudes violentas? O fato de que, historicamente, o corpo da mulher negra foi considerado uma aberração, um problema e uma máquina que tudo pode aguentar. O que sustenta todo esse processo de desumanização às mulheres negras é a ideia de que o corpo da mulher preta, principalmente pobre, é forte, não sofre, não sente dor e, por isso, não merece sequer reproduzir descendentes no mundo. No entanto, retomando o que foi afirmado na definição de interseccionalidade, não se esqueça de que grupos sociais, historicamente, sempre tiveram condições de lutar contra essas condições de exploração e opressão. Movimentos sociais de mulheres negras, faveladas, lésbicas, mães etc. têm se empenhado em questionar o racismo-patriarcado-elitismo institucional que embebe a saúde de violências aos seus corpos e aos de outros grupos sociais vulnerabilizados, como, por exemplo, pessoas com deficiência. Portanto, os profissionais da saúde e do cuidado precisam, definitivamente, atentar-se para as ficções em torno da sexualidade, do gênero, da raça e da classe. Só assim estaremos vigilantes para que nossas práticas não reproduzam violências e hostilizações a grupos historicamente subalternizados. O SUS ganha muito ao ouvir as propostas dos movimentos sociais, o que é previsto como um dos princípios do SUS: o controle social. Esse controle garante a participação da sociedade civil no processo de formulação, crítica, controle e reivindicação das políticas públicas de saúde. Movimentos sociais, SUS e as práticas de cuidado Neste vídeo, o professor reflete sobre a negativa influência de construções em torno da sexualidade, do gênero, da raça e da classe nas práticas de cuidado na saúde e a importante atenção à justiça social. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Acerca do campo de estudos sobre a sexualidade humana, podemos afirmar que A a sexualidade humana é um campo da experiência sensível privada e, por isso mesmo, os estudos que embasam esse campo não requerem método científico. B a sexualidade humana é um campo do saber transdisciplinar interessado em criar parâmetros únicos e universais de afetividades e sexualidades. C o campo de estudos da sexualidade humana é um conjunto de pensamentos e ações morais e patologizantes da diversidade sexual. D os estudos sobre sexualidade humana partem do pressuposto que as diferentes formas de expressão dos arranjos afetivos e sexuais constituem um processo histórico comum no mundo. Parabéns! A alternativa D está correta. Mais do que entender a sexualidade humana como um elemento que depende apenas de sensações e opiniões pessoais, é preciso tomar os estudos sobre a sexualidade como campo científico transdisciplinar que investiga a experiência do corpo e do prazer consigo e com outros. Atualmente, as abordagens teóricas da sexualidade descontroem e criticam visões passadas que patologizavam e moralizavam a diversidade sexual. Hoje, o esforço acadêmico-político é garantir a produção de um conhecimento que valorize a diversidade dos modos de existir sexualmente no mundo. Questão 2 Acerca do debate interseccional sobre as interações de gênero, raça, classe e sexualidade, podemos afirmar que E as abordagens atuais de estudos sobre sexualidade humana encontram-se muito bem alinhadas com as perspectivas mais antigas tanto em seu âmbito ético quanto conceitual. A o movimento interseccional pretende pensar a construção de um mundo que privilegie apenas mulheres negras. B o debate interseccional é um movimento teórico- político para compreender as desigualdades sociais e os processos de combate a esses sistemas de poder. C a interseccionalidade é um movimento preocupado em fazer um somatório de opressões para saber quem sofre mais no mundo. D a interseccionalidade é um movimento preocupado apenas em compreender as opressões sistêmicas do mundo. E a interseccionalidade pressupõe que a desigualdade econômica é mais central para compreender as violências e opressões no mundo. Parabéns! A alternativa B está correta. A interseccionalidade é um movimento protagonizado por mulheres negras que compreenderam que o estudo da desigualdade social no mundo requereria mais do que só compreender a classe e as opressões econômicas. Sem negar a dimensão econômica que prejudica o mundo com a experiência da pobreza, há outros sistemas de poder – como o gênero, a raça, a sexualidade e a colonialidade – que também devastam o mundo. Desse modo, o movimento interseccional propõe que compreendamos o mundo a partir de análises mais complexas sobre ele, o que só é possível por meio de um campo teórico-político complexo e robusto que não analise as violências sociais separadamente. E, mais do que analisar a desigualdade, a interseccionalidade pretende também construir saídas e resistências a esses mesmos sistemas de poder. Isso é feito tendo em vista um mundo mais justo e igualitário para todos e todas, e não só para as mulheres negras que iniciaram esse movimento. 3 - Políticas públicas de saúde Ao �nal deste módulo, você será capaz de localizar as políticas públicas de saúde da mulher e do homem. Gênero e políticas públicas O campo da saúde foi mudando ao longo do tempo e, atualmente, ele se ancora em uma perspectiva mais ampliada de modo que, além dos aspectos biológicos, outros fatores são considerados nas demandas da saúde-doença. Marcadores como gênero, raça, etnia, cultura, entre outros, são considerados ao se pensar a construção de políticas públicas. Nesse sentido, para que a política pública seja eficiente e eficaz, é preciso pensar estrategicamente em como abarcar as singularidades dos grupos público-alvo. Para pensar de modo estratégico em como aproximar e garantir cuidados em saúde para homens e mulheres, o SUS foi se embebendo da perspectiva do gênero na organização de seus serviços. Se gênero é uma categoria para interpretarmos a sociedade como um todo, nesse momento, estamos interessados em lançar luz à relação entre essa categoria e o campo das políticas públicas. Ao analisar políticas públicas e programas governamentais a partir da perspectiva de gênero, pretende- se ir além da identificação de políticas e programas que atendam a mulheres, embora a identificação de tais políticas seja um momento necessário da própria pesquisa. Ao adotar o conceito de gênero como referência para a análise, procurou- se chamar a atenção para a construção social e histórica do feminino e do masculino e para as relações sociais entre os sexos, marcadas em nossa sociedade por uma forte assimetria. (FARAH, 2004, p. 47-48) Dito isso, precisamos, primeiramente, entender que, ao falarmos de políticas públicas a partir do gênero, é imprescindível dar-se conta das questões particulares de homens e de mulheres. E não só de mulheres! Gêneroé relação e, portanto, diz sobre todos e todas. Homens e mulheres, ao longo da vida, em função de questões sociais e culturais, tendem a estar mais ou menos vulneráveis a algumas questões. Precisamos interseccionar gênero e outros marcadores para compreender como um fenômeno psicossocial produz práticas, políticas e dispositivos sociais diferentes entre homens e mulheres. Exemplo É interessante refletir sobre por qual motivo o seguro de carros de homens jovens é mais caro que os planos para mulheres. Mas vamos entender como isso aparece no caso da saúde. Gênero e saúde As políticas públicas de saúde, que tomam o gênero como um marcador, dividem-se em dois grandes blocos. A saúde da mulher e a saúde do homem. A saúde da mulher é pensada a partir das fases da vida das mulheres e, no âmbito da Estratégia Saúde da Família (ESF), esse sistema implica pensar a mulher para além da materialidade biológica, reconhecendo que na trajetória de existência da mulher brasileira encontram-se dificuldades, preconceitos, discriminações e violências que precisam ser considerados. Também precisamos estar atentos a toda a potência de vida que essas mulheres constroem em seus itinerários. A atenção à saúde da mulher precisa, portanto, estar embebida em interseccionalidade para que a política pública seja eficaz. Afinal, todas as marcas sociais, econômicas, culturais e raciais construirão essa mulher. Isso prova que, para compreender a vulnerabilidade de risco a algumas complicações em saúde, o gênero é imprescindível! Em linhas gerais, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, de 2004, pretende melhorar as condições de vida e saúde das mulheres brasileiras por meio da promoção, prevenção, assistência e recuperação da saúde, contribuindo para a redução da morbidade e mortalidade feminina no Brasil, especialmente por causas evitáveis, em todos os ciclos de vida e nos diversos grupos populacionais. Ressaltamos que a saúde da mulher não pode ficar restrita a questões gineco-obstétricas, uma vez que ela está para além do seu útero. Foi por meio do debate de gênero protagonizado pelas feministas que a saúde da mulher não ficou centrada unicamente nas questões de saúde materno-infantil. Muito pelo contrário, a saúde da mulher é organizada também tendo em vista o prazer, o desejo e a autonomia sexual. No entanto, essa autonomia tem limites culturais e estatais. Exemplo Pense no aborto. Ele está diretamente relacionado com questões genitais e sexuais, mas não só. Isso porque, se você vive no Brasil, certamente sabe que o aborto permanece sendo um tema político, religioso e moral. Aborto e saúde Mulheres interrompem a gravidez desde sempre. E, mais do que isso, no caso do Brasil, o abortamento representa uma das principais causas de mortalidade materna, configurando-se como um problema de saúde pública. No Brasil, dados indicam que o aborto provocado é um fenômeno frequente e persistente entre as mulheres de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e religiões: em 2016, quase 1 em cada 5 mulheres aos 40 anos já realizou, pelo menos, um aborto. Em 2015, foram, aproximadamente, 416 mil mulheres. Há, no entanto, heterogeneidade dentro dos grupos sociais. Como já mostrado em pesquisas, metade das mulheres utilizou medicamentos para abortar, e quase metade das mulheres precisou ficar internada para finalizar o aborto (DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2017). Assim como: Contrário aos estereótipos, a mulher que aborta é uma mulher comum. O aborto é frequente na juventude, mas também ocorre com muita frequência entre adultas jovens. Essas mulheres já são ou se tornarão mães, esposas e trabalhadoras em todas as regiões do Brasil, todas as classes sociais, todos os grupos raciais, todos os níveis educacionais e pertencerão a todas as grandes religiões do país. Isto não quer dizer, porém, que o aborto ocorra de forma homogênea em todos os grupos sociais. Há diferenças que merecem atenção de análises adicionais, em particular as maiores taxas entre mulheres de baixa escolaridade e renda, pretas, pardas e indígenas, além das expressivas diferenças regionais. (DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2017, p. 659) Mulheres sem muitas condições financeiras recorrem a procedimentos ilegais, sem qualidade, que colocam em risco as suas próprias vidas. Quem morre pela ilegalidade do aborto no Brasil são as mulheres pretas e pobres. O aborto, portanto, é um problema social, econômico e cultural. Mulheres abortam. A questão é como reduzir os danos, e não como impedir a sua prática, uma vez que, como falamos, mulheres interrompem gravidezes desde sempre. Nesse contexto, como profissionais da saúde, devemos garantir bem-estar e acolhimento a essas mulheres, as quais já estão fragilizadas pelas escolhas que fizeram. No Brasil, o aborto induzido só é legalizado e, portanto, realizado por médico em três condições: risco de vida à mãe, gravidez resultado de estupro e anencefalia fetal. Em qualquer outro caso, o aborto induzido é crime, com pena prevista de 1 a 3 anos de detenção para a gestante, e de 1 a 4 anos de reclusão para o médico ou qualquer outra pessoa que tenha realizado o procedimento de retirada do feto. A cena do aborto nunca será confortável para uma mulher, e é preciso que estejamos preparados como equipe de saúde para lidar com isso, seja nos casos legalizados ou em outros. É preciso lembrar que somos profissionais da saúde, e não operadores morais de condutas alheias. Em 2005, o Ministério da Saúde publicou a Norma técnica de atenção humanizada ao abortamento como resposta a esse problema de saúde pública. O que sabemos, no entanto, é um pouco alarmante: várias mulheres que apresentam complicações em função do aborto são tratadas como criminosas por profissionais de saúde e, em inúmeros casos, elas não são atendidas por profissional da Psicologia ou do Serviço Social como preconiza a norma técnica (GONZAGA; ARAS, 2016). Não se trata de ser a favor ou não do aborto, mas, sobretudo, de garantir cuidados em saúde a quem precisar deles. Precisamos fazer valer a norma técnica em questão. Só assim seremos, de fato, profissionais responsáveis e mantenedores de saúde. Isso porque essa normativa aponta os procedimentos que devem ser realizados para garantir o direito à saúde, à informação e à autonomia das mulheres que buscam realizar um aborto legal ou sanar complicações decorrentes de um aborto provocado em situações inseguras (GONZAGA; ARAS, 2016). Atenção! O SUS serve para garantir saúde a todas! Até para as pessoas das quais, individualmente, discordamos. Saúde do homem Assim como na saúde da mulher, a saúde do homem responde a uma infinidade de atravessadores biopsicossociais que trazem algumas especificidades ao se pensar uma política pública de cuidado e assistência a ele. As várias modificações no decorrer da vida de sujeitos do gênero masculino mostram que variáveis culturais e atravessamentos de gênero potencializam uma série de crenças e valores do que é ser homem que os tornam mais vulneráveis às doenças, sobretudo às enfermidades graves e crônicas. Em linhas gerais, isso prova que os homens morrem mais precocemente que as mulheres (BROLEZI; MARQUES; MARTINEZ, 2014). As políticas públicas de saúde voltadas para esse grupo são produzidas para reduzir o impacto social das mortes em homens. Sendo assim: Dados de pesquisas do ano de 2011 revelaram que doenças do aparelho circulatório, causas externas, neoplasias e doenças do aparelho respiratório foram as quatro principais causas de morte entre homens. Contudo, complicações desse gênero poderiam ser evitadas se os homens realizassem medidas de prevenção primária. (BROLEZI; MARQUES; MARTINEZ, 2014, p. 3) No entanto, apesar de as taxas masculinas assumirem um peso significativo nos perfis de morbimortalidade, observa-se que a presença de homens nos serviços de atenção primária à saúde é menor do que a das mulheres (BROLEZI; MARQUES; MARTINEZ, 2014).As doenças cardiovasculares são uma das principais causas de morte dos homens, e isso se relaciona aos fatores de risco provenientes de hipertensão arterial, obesidade, diabetes mellitus e alguns hábitos de estilos de vida menos saudáveis como dieta rica em calorias, gorduras saturadas, consumo de bebida alcoólica, tabagismo e sedentarismo. Por causalidade externa, o que significa traumatismos, lesões ou quaisquer outros agravos à saúde como consequência direta de violência ou outra causa exógena, os homens também lideram o ranking de mortes. O aumento da taxa de homicídio nos últimos anos tem levado adolescentes e adultos jovens a perderem potenciais anos de vida. Por fim, homens vão à óbito por câncer de próstata, tumor de testículo e câncer de pênis, ainda que este último seja bastante raro. No entanto, ainda que raro, tal prevalência é explicada por diversos fatores de risco, sendo os principais: má higiene íntima e presença do HPV. Por qual razão os homens se colocam em situações de risco, fazendo com que morram por causas externas? E, ainda, por que se cuidam tão pouco a ponto de morrerem por causas evitáveis? A resposta a essa pergunta, certamente, perpassa as próprias expectativas do que é ser homem na sociedade. Para parte da cultura masculina, características como dor, fraqueza, medo, ansiedade, insegurança e necessidade de cuidados são antagônicas à ideia de ser homem. O Ministério da Saúde, ao se dar conta disso, a partir de agosto de 2009, institucionalizou a Política nacional de atenção integral à saúde do homem, o que está diretamente associado à agenda com as demais políticas públicas voltadas para a promoção da equidade de gênero. Isto é, em função da maior resistência dos homens em buscar os serviços no nível da atenção básica por associarem prevenção e autocuidado à fragilidade, agravam-se a saúde e a morte precoce do grupo masculino. Isso requer atenção de toda a rede de saúde para conscientização dos homens na construção de suas autonomias em saúde. Exemplo Uma política que considera a diversidade de gênero masculina é a utilização do termo homens que fazem sexo com homens (HSH) junto a bissexual e gay/homossexual masculino. Para muitos homens que realizam práticas de afetividade e sexualidade com outros homens, o termo homossexual/gay/bissexual seria demasiado, forte e taxativo, e poderia trazer questões afetivas e pessoais desconfortáveis para o sujeito que prefere não se identificar a uma cultura LGBTQIA+. Estariam inclusos homens gays não assumidos, homens heterossexuais casados que praticam sexo com outros homens, presidiários e egressos do sistema prisional que, eventualmente, fazem sexo com outros homens etc. O desafio de uma campanha em saúde para que os homens acessem o SUS deve considerar que nem todo homem que faz sexo com homem se identifica aos termos colocados política e culturalmente ao campo LGBTQIA+. O termo HSH é um dos exemplos que fazem com que a política de saúde dos homens seja possível para prevenção e cuidados ao HIV e a outras ISTs. Interseccionar a categoria da masculinidade é muito importante. Não há um jeito único de ser homem no mundo! Pensar a masculinidade de jovens negros e periféricos é primordial para se construir cuidado em saúde. Afinal, no Brasil, um jovem negro tem mais chance de perder a vida do que um jovem branco, portanto a saúde do jovem negro e a do jovem branco não são iguais. Isso nos obriga a compreender saúde para além de dimensões biomédicas. Sem pensar raça, gênero, classe e sexualidade, podemos cair na armadilha de acreditar que existe um sujeito universal do SUS, o que não é verdade! Somos diferentes, e nossas diferenças nos colocam em lugares distintos de qualidade de vida e de adoecimento. É central que pensemos a saúde de forma interseccionada com marcadores da diferença-desigualdade para que possamos produzir condições e desejo de vida na maior parte da população. Atenção humanizada ao abortamento e atenção à saúde do homem Neste vídeo, o especialista reflete sobre a importância da Norma técnica de atenção humanizada ao abortamento e a Política nacional de atenção integral à saúde do homem na interseccionalidade gênero e saúde no Brasil. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Sobre a relação entre saúde pública, aborto e mulheres, podemos afirmar que A a Norma técnica de atenção humanizada ao abortamento obriga o profissional da assistência em saúde a alterar a sua convicção moral sobre o aborto. B o aborto é um problema que acomete, em grande medida, mulheres solteiras, sem família, pobres e Parabéns! A alternativa E está correta. O aborto induzido, como mostram as pesquisas, sobretudo, a PNA – Pesquisa Nacional de Aborto (2016), é uma prática frequente no Brasil e que atravessa distintas gerações, religiões, estados civis e raça-etnia. Indo contra qualquer estereótipo da “mulher abortista”, em 2016, quase 1 em cada 5 mulheres aos 40 anos já realizou, pelo menos, um aborto. A prática de interrupção de gravidez é histórica e independe de nossas convicções morais. No Brasil, o aborto é unicamente legalizado para risco de vida à mãe, estupro e anencefalia. Ainda assim, caso estejamos lidando com uma mulher que tenha praticado aborto em condições ilegais, como profissionais de saúde, devemos obedecer à Norma técnica de atenção humanizada ao abortamento. Essa norma prediz que garantamos acolhimento e bem-estar às mulheres, seja no aborto espontâneo ou induzido. Questão 2 Sobre a especificidade de cuidados à saúde do homem, podemos afirmar que pouco instruídas academicamente. C o serviço de abortamento, no Brasil, é legalizado apenas em caso de risco de vida para mãe, anencefalia, estupro e gravidez indesejada. D o aborto é um problema individual e deve se evitar tratá-lo como um problema de saúde pública. E é importante, como profissionais da saúde, que se garanta acolhimento e bem-estar às mulheres, seja no aborto espontâneo ou induzido. A questões culturais não influenciam aspectos da saúde-doença dos homens, diferentemente das mulheres. Parabéns! A alternativa C está correta. As pesquisas em saúde do homem demonstram que, em função de um padrão de masculinidade hegemônico, a ideia do que é ser homem está atravessada de estereótipos de gênero e sexualidade que associam higiene pessoal e cuidados em saúde a alguma fragilidade e, portanto, a algo que, em tese, pertenceria ao “mundo das mulheres”. Isso tem como efeito uma menor aderência dos homens ao sistema de saúde como uma tentativa de provar que eles não precisam de cuidados e são viris. Esse sintoma social dos homens aumenta os níveis de adoecimento de doenças controladas e também os torna mais vulneráveis em função de outros riscos associados à socialização deles. B homens tendem a estar mais dispostos a se preocuparem com questões de saúde e a promoverem autocuidado. C os parâmetros de masculinidade hegemônica levam alguns homens a se cuidarem menos e a procurarem menos os serviços de saúde. D a masculinidade e os estereótipos de gênero não têm forte influência sobre as questões de saúde dos homens. E os dados mostram que a má higiene dos homens, ainda que grave, não está relacionada a questões de gênero. 4 - Saúde e a diversidade sexual Ao �nal deste módulo, você será capaz de empregar a ética no cuidado em saúde frente à diversidade sexual. Por uma prática pro�ssional de cuidado sem moralizações Várias pessoas se referem à sexualidade como tema tabu ou polêmico, como se a discussão de questões referentes a esse campo tivesse que permanecer no espaço privado e estas jamais pudessem ser alçadas como coletivas e públicas. Provavelmente, você já deve ter escutado que não se discute religião, política e futebol no Brasil. Mas, enquanto, de fato, religião e futebol apontam para questões individuais, a política é a esfera de decisão sobre o bem público. Como é possíveldecidir sobre os bens compartilhados de uma sociedade sem debate? Ficaremos reféns das pessoas que decidem sobre o destino de nossa comunidade e sociedade sem que possamos disputar o que é bom para nós e para o mundo? O debate é parte central da política! Não queremos fazer uma discussão panfletária da sexualidade humana, mas é preciso reconhecê-la dentro de um debate ético para que não localizemos os estudos sobre sexualidade no âmbito de opiniões individuais e morais. A moral, portanto, refere-se à normatividade oriunda da sociedade, refere-se aos costumes, às normas e às regras que permeiam o cotidiano e que visam regular as relações entre os sujeitos. A ética é a reflexão crítica sobre a moral, ou seja, pensar naquilo que se faz, repensar os costumes, as normas e as regras vigentes na sociedade. Ao refletir criticamente sobre a moral, o sujeito assume uma postura ativa ― condição essencial para a existência do sujeito ético ― pois não limita sua ação às circunstâncias, à vontade de um outro ou aquilo que é considerado moralmente como sendo certo ou errado. O sujeito ético/ativo indaga, problematiza, avalia, debate antes de partir para a ação. (MEDEIROS, 2002, n.p.) Ao assumirmos o lugar das ciências em saúde, precisamos garantir que a ética seja nosso horizonte de partida e de chegada para os saberes e fazeres que produzimos para cuidar. O campo da saúde precisa ter uma postura ética e de respeitabilidade diante do outro, entendendo a diversidade sexual e a diferença como inerentes à experiência humana e jamais como aspectos que são “aceitáveis” de um lado ou “anormais” do outro. Comentário Se os padrões de sexualidade que atualmente sustentamos foram definidos pelas crenças e pelos valores da sociedade, precisamos de uma base ética que nos ajude a fortalecer uma prática profissional de cuidado sem moralizações. O histórico religioso das profissões da assistência e do cuidado já foi abandonado pelos atuais e críticos projetos ético-políticos dessas profissões. Se é certo que o Estado brasileiro é laico, todos podem professar a religião que bem entenderem; se é certo também que o Brasil não é uma teocracia, nenhum modelo religioso pode nos organizar como cidadãos. Pela perspectiva ética do cuidado, nenhum profissional da saúde pode assumir comportamento religioso ou julgamento direcionado às questões sexuais dos usuários das políticas públicas. O caráter familista das políticas de cuidado, assistência e saúde no Brasil, portanto, preveem que todos os membros da família brasileira sejam assistidos em cuidados em toda a sua diversidade. Falaremos um pouco mais sobre família para, em seguida, tecermos algumas relações imprescindíveis com o campo da sexualidade. Políticas públicas e família O foco das políticas públicas brasileiras precisa considerar a relação do Estado com a família ― uma instituição social ―, que é central na organização da vida afetiva e comunitária de todos nós. A família é um dos principais locais em que nos re(produzimos) como seres sociais e cidadãos. É nela que construímos interesses, desejos, projetos, competências e habilidades, pensamentos, visões de mundo etc. Evidentemente, as prescrições da família não precisam ser nosso destino, e podemos, durante a vida, discordar ou criar outros parâmetros de existência para nossa caminhada. No entanto, é inegável o papel que a família tem como instituição socializadora e estruturante das nossas subjetivações. A instituição família, para muito além dos atravessamentos de uma transmissão genética comum, desempenha influência na construção de possibilidades e limites para o que podemos ser. Mais do que uma herança biológica, a família nos impõe uma herança social, transmitindo para seus descendentes as posições de classe, os privilégios ou as dificuldades que marcam a trajetória dela. Não há destino biológico nisso e descendentes de famílias pobres, por exemplo, podem ascender economicamente. No entanto, a origem popular permanece sendo um operador de subjetivação, ainda que seja pela via de sua negação. Sendo assim: A teoria social tem, portanto, localizado na família o centro do processo de reprodução social e, portanto, um lugar decisivo para intervir em realidades sociais indesejáveis, como a pobreza e o baixo capital humano. O foco tem sido, sobretudo, a reflexão sobre os destinos das gerações futuras, pensando a organização e os recursos familiares em suas consequências para a socialização dos filhos. (ITABORAÍ, 2005, p. 2) O Estado liberal e moderno, ao construir a ideia de família como guardiã da propriedade privada, assumiu também que a família seria um lugar de proteção social e de asseguramento de direitos para seus descendentes. No entanto, as crises do capitalismo liberal mostraram as fragilidades da família como uma instituição total e perfeita. E, nessa direção, a sociedade civil organizada exigiu que o Estado cumprisse com uma função de bem-estar social e investisse em seu povo na garantia de direitos que algumas famílias ― mais fragilizadas econômico, cultural e politicamente ― não seriam capazes de prover por si mesmas. A ideia de cidadania começa a se deslocar da família e da contribuição previdenciária – que durante muito tempo foi o critério para o acesso a serviços da população –, tornando-se universal, e não mais focalizada a situações específicas. Todo cidadão brasileiro teria acesso a serviços considerados básicos. Estava aí construído o tripé da Seguridade Social brasileira, no intuito de reduzir a violência, a pobreza e a desumanização do povo brasileiro: Assistência social Saúde Previdência Historicamente, a família tem sido tomada como mantenedora da paz ou, pelo menos, como uma aliada na construção de bons princípios e valores para a maximização da cidadania de seus descendentes. Mas isso é uma verdade absoluta? Pense na sua família: Se, nas sociedades pré-modernas, a segurança provinha do pertencimento a grupos sociais dentro dos quais o sujeito precisava se submeter a laços de dependência, o Estado providência ― o Estado de bem-estar social garantido pelo Estado brasileiro pós-Constituição de 1988 ― assegura aos indivíduos alguns direitos por meio da visão de um cidadão individualizado, mas também coletivo. O Estado reconhece que todas as famílias se estruturam segundo relações de poder que não garantem uma redistribuição equânime de recursos simbólicos e materiais aos seus descendentes. Ainda assim, entende que não conseguirá, jamais, colaborar com a manutenção de um projeto cidadão sem o apoio das famílias. E, por isso, por meio da promoção de políticas públicas, pede apoio à família: uma instituição Há uma coerência absoluta nos laços sociais que vocês estabelecem? Todos se amam e se respeitam igualmente? Todos colaboram para que tenham seu desenvolvimento humano garantido ao máximo? social, inevitavelmente central na formação de qualquer sujeito que habita o mundo ocidentalizado e capitalista-liberal. Percebe que, no âmbito das políticas públicas, essa contradição move o cuidado e a assistência? Se a família, portanto, é uma grande contradição ― como qualquer outra instituição social ―, é justamente nesse local em que se espera amor que cenas violentas despontam como um problema público. Você sabia, por exemplo, que a maior parte de estupros, feminicídios e abusos sexuais infantis é realizada por membros da família? (GASPAR; PEREIRA, 2018). Já parou para pensar que essa família violenta é a mesma que se recusa a debater gênero e sexualidade humana com seus descendentes e se opõe à presença desse debate no espaço da escola? Se a família que violenta seus membros se recusa a ensinar sobre gênero e sexualidade e não deseja que isso seja debatido na escola, onde mais crianças e adolescentes aprenderão sobre ISTs, autonomia do desejo, consentimento, auto-higiene, prevenção ao abuso sexual etc.? Com base na acusação de que a discussão de gênero e sexualidade geraria uma“ideologia de gênero” que acabaria com os princípios da família tradicional, parte da sociedade brasileira tem se colocado contra o ensino crítico sobre sexualidade nas escolas. “Ideologia de gênero”: um conceito impossível cienti�camente O gênero é uma “lente de análise” para enxergar as relações sociais e como elas padronizam, em um contexto histórico e político, os papéis sociais distintos e desiguais para homens e mulheres. Se gênero é um campo de estudos que visibiliza processos invisíveis e ideologia é um conceito que mostra como somos impedidos de ver a realidade, você percebe que o termo ideologia de gênero não faz nenhum sentido científico? A ideologia é um sistema de poder que nos faz tomar processos históricos como realidades verdadeiras e naturais da sociedade. Assim, alienamo-nos de vários processos violentos e os tomamos como natureza e destino. E, nessa direção, não questionamos absolutamente nada. A ideologia nos faz ver o mundo sem história e, portanto, sem possibilidade de mudança, tornando-nos submissos às escolhas daqueles que possuem poder, afinal, nada poderia ser feito. O mundo é assim e ponto final! O gênero atua, justamente, no sentido contrário. Ele é o movimento teórico-político que nos torna conscientes de processos de construção de masculinidades e feminilidades não como horizontes biológicos, mas, sobretudo, como construções políticas e culturais que mantêm homens e mulheres em posições de desigualdade. Uma vez munidos do debate do gênero, reconhecemos que podemos nos transformar. Assim, ideologia e gênero são termos excludentes e, portanto, a expressão não faz, absolutamente, nenhum sentido científico. Ideologia, para as Humanidades, não é qualquer ideia ou valor em geral, mas ideias e valores que nos mantêm cegos no que diz respeito à compreensão dos sistemas de poder que degradam o mundo. O gênero é um sistema de poder que, inevitavelmente, ensina-nos o que seria propriamente dos homens e, por outro lado, o que pertenceria ao mundo das mulheres, ainda que esses ensinamentos sejam frágeis para alguns e uma verdade absoluta para outros. Ideologia é alienação. O estudo de gênero é crítico! Não seria interessante que todos pudessem saber que algumas prescrições de gênero e sexualidade não são verdades universais e que existem outros modos de organizar o desejo? Aprender isso não implica tornar heterossexuais em homossexuais ou pessoas cis em pessoas trans. Significa, apenas, reconhecer que há uma diversidade no mundo que merece ser garantida e valorada. Educação sexual: construindo uma ética da diversidade Já ouviu falar de crianças que conseguiram se dar conta de que passavam por abusos sexuais porque elas tiveram aulas de educação sexual e de prevenção ao abuso no ambiente escolar? Nesse caso, as políticas públicas voltadas para o gênero e a sexualidade são primordiais como dispositivo educador por meio dos cuidados em saúde em qualquer nível de atenção; em todos os equipamentos da Assistência Social e, também, na escola. É para a ordem do dia a necessidade de se pensar estratégias de intervenção, em todos os âmbitos em que se possa imaginar, em que a temática do gênero e da diversidade seja utilizada para se garantir a construção de um mundo que respeite a diversidade sexual e impeça violências e abusos infantojuvenis. Construindo uma ética da diversidade Neste vídeo, o especialista reflete sobre como as políticas públicas voltadas para o gênero e a sexualidade são primordiais como dispositivo educador por meio dos cuidados em saúde em qualquer nível de atenção. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Acerca da ética, podemos afirmar: A A esfera da ética e a da moral dizem respeito ao mesmo campo de afetos e de atitudes. Parabéns! A alternativa B está correta. A diferença, aqui, é muito simples e objetiva. A moral é o conjunto de regras que prescreve às pessoas o que é certo ou errado. A ética, por sua vez, é a morada da dúvida, da pergunta e do enigma, é a reflexão sobre a moral. Questão 2 Sobre a educação sexual e de gênero nas escolas, podemos afirmar que B Enquanto a moral prescreve, a ética questiona. C Enquanto a ética prescreve, a moral questiona. D A moral e a ética prescrevem e questionam ao mesmo tempo. E A moral e a ética são campos de questionamentos. A a educação sexual é, rotineiramente, feita pela família brasileira e, portanto, é desnecessário que a Escola se responsabilize por isso. B os dados mostram que as violências sexuais acontecem dentro da escola e, portanto, é incompatível que ela debata gênero e sexualidade. C a educação sexual é importante no âmbito da Escola porque, além de a família brasileira não assumir esse assunto, são os familiares mais íntimos que praticam abusos. D a educação sexual deveria ser de fórum íntimo e privado, já que, no Brasil, não se apresentam problemas coletivos relacionados à sexualidade. Parabéns! A alternativa C está correta. Em função dos dados alarmantes sobre violência sexual infantojuvenil no âmbito da família, tem-se provado que os estudos de gênero e sexualidade colaboram para que crianças e adolescentes estudem sobre consentimento, autonomia do corpo e se protejam de potenciais abusadores que estejam próximos de suas relações sociais. A família brasileira, por seu histórico patriarcal e conservador, não assume determinados debates sobre a sexualidade e, pelo contrário, protagoniza grande parte da violência que recai sobre esses jovens. É dever do Estado, por meio de políticas públicas e da Educação, proteger crianças e adolescentes de toda e qualquer violação. A educação sexual protege crianças de serem sexualizadas por figuras adultas, portanto. Nessa direção, a escola emerge como um local de proteção importantíssimo para a redução da violência sexual por meio da educação sexual. Considerações �nais Neste conteúdo, vimos que a sexualidade é um processo biopsicossocial e, portanto, requer forte investigação científica para que possamos compreendê-la em toda a sua complexidade. Dentro desse contexto, foi possível localizar a importância de políticas de inclusão e cuidado para a população LGBTQIA+ de modo que essa comunidade tenha acessos e direitos em saúde garantidos pelo Estado conforme prediz a Constituição de 1988. Ao mesmo tempo, avaliamos algumas políticas de saúde específicas para homens e mulheres, reconhecendo que as demandas do processo de saúde-doença são atravessadas por questões simbólicas e culturais. Por fim, defendemos o campo da educação sexual como um caminho para o autocuidado, a autonomia no desejo e a proteção de abusos e violências relacionados à sexualidade. E a educação sexual sexualiza crianças e adolescentes e, por isso, deve ser proibida. Podcast Neste podcast, o especialista irá destacar a importância da consciência por parte do profissional de saúde para compreender a sexualidade humana como um processo simbólico e cultural. Explore + Para saber mais sobre o conteúdo estudado, recomendamos: Assista ao vídeo Psicologia e relações de gênero e sexualidade, do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, disponível no YouTube. Assista ao vídeo Gênero e saúde, de PAHO TV, disponível no YouTube. Assista ao vídeo Papo saúde - violência de gênero, de Telessaúde SC, disponível no YouTube. Referências ALMEIDA, T. O perfil da escolha de objeto amoroso para o adolescente: possíveis razões. 2003. Trabalho de conclusão de curso de Psicologia, UFSCar, São Carlos, SP, 2003. BROLEZI, E. A.; MARQUES, G. de O.; MARTINEZ, L. C. B. As principais causas de adoecimento e morte em homens no Brasil. Unifia Revista Eletrônica Saúde Foco, 2014. DINIZ, D.; MEDEIROS, M.; MADEIRO, A. Pesquisa nacional de aborto 2016. 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