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89 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA Unidade II 5 LITERATURA MOÇAMBICANA 5.1 Contexto histórico e social Zâmbia M al áu i Tanzânia Mocímboa da Praia Nampula Tete Chimoio Beira Xai-Xai Zam bez e M ad ag ás ca r Oceano Índico Canal de Moçambique Ch ire Maputo Quelimane Pemba Nacala Moçambique Zimbábue Bo ts ua na África do Sul Essuatíni Figura 24 – Mapa de Moçambique Adaptada de: https://cutt.ly/jG6DRN7. Acesso em: 6 maio 2022. Antes de tratarmos da literatura propriamente dita, faremos uma breve contextualização, uma vez que a produção literária moçambicana está marcada pelo contexto histórico e cultural que a cerca. A maioria da população atual de Moçambique é descendente dos grupos bantus, que se instalaram no país ao longo dos séculos III e IV. Os primeiros estados bantus que surgiram antes do primeiro milênio foram os Luba, Congo e Lozi. Já os estados do Zimbawe e do Monomotapa surgiram a partir do século X. Lembrete Em Moçambique, falam-se muitas línguas, como emakhuwa (macua) e xalanga, as mais faladas, e cibalke, cinyungwe, sena, lomwe, entre muitas outras. A língua portuguesa é a língua oficial. Maxixe 90 Unidade II Os portugueses chegaram à Ilha de Moçambique em 1498 e lá se fixaram por ser um ponto de apoio para os navios em trânsito. Os nativos receberam os visitantes com hospitalidade, mas logo perceberam suas intenções em explorá-los. Começaram então as primeiras lutas para expulsar os já denominados invasores. Desde o início da ocupação de Moçambique houve muita resistência dos nativos, que se recusavam a pagar impostos, não respeitavam as autoridades portuguesas e não permitiam a penetração de comerciantes estrangeiros. Em contrapartida, o governo português iniciou campanhas de ocupação mais intensas, em que eram usados vários métodos de opressão, como ações punitivas, suborno a alguns chefes corrompidos e, por fim, a implantação da violência pela administração colonial portuguesa. Ao final do século XIX, o Estado de Gaza era comandado por um de seus últimos líderes: Ngungunyane, Gungunhane ou Gungunhana. Nessa época, o sul de Moçambique foi assolado pela guerra, cujo objetivo era destruir esse líder africano, um dos mais importantes de seu tempo. A representação ficcional desse período e do imperador Gungunhana pode ser vista nas obras Gungunhana, Ualapi (1987) e As mulheres do imperador (2017), de Ungulani Ba Ka Khosa, e a trilogia As areias do imperador, de Mia Couto: Mulheres de cinzas (2015), Sombras da água (2016) e O bebedor de horizontes (2018). A resistência dos africanos foi contida diante do forte armamento e do poder militar dos portugueses, tendo como auge os anos 1960, durante o Salazarismo. O Estado Novo montou uma verdadeira máquina de opressão, assim como ocorrera em Angola, protagonizando o que conhecemos hoje como guerra colonial. O principal movimento de libertação de Moçambique foi a Fundação Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique). A luta armada contra os portugueses se iniciou em 1965 e durou até 25 de setembro de 1975, quando foi proclamada a independência. Infelizmente, após essa data, iniciou-se uma outra guerra, a guerra civil, que durou até 1992, devastando todo o país. Tal período foi contemplado por Mia Couto em sua obra mais famosa, Terra sonâmbula. Leia um trecho do artigo “Moçambique: identidade, colonialismo e libertação: não vamos esquecer!”, do professor Omar Ribeiro Thomaz (2009, p. 268-269): No “mato”, mas também longe dele, no “caniço” ou no “cimento”, são cotidianas as histórias sobre o “tempo colonial”. Trata-se de um longo período, entrecortado por matizes de toda a ordem. Alguns se lembram que, na altura, os preços eram mais baixos, que com escudos moçambicanos ou libras sul-africanas podia-se comprar muito mais que com os atuais meticais moçambicanos (moeda local). Mas todos recordam os trabalhos forçados. Invariavelmente quando inquiridos sobre lembranças antigas, os mais velhos recorrem à imagem de homens atados por correntes indo para a labuta ou trabalhando nas obras públicas, nos caminhos de ferro, nas estradas. Suas lembranças são conflitantes com aquelas reivindicadas por outros que também insistem em cultivar a memória, portugueses coloniais – neste caso, geralmente memórias marcadas fundamentalmente pela 91 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA nostalgia. Estes afirmam o equilíbrio do período colonial, a hierarquia regulada pelo espírito português. É o luso-tropicalismo. Geralmente, os moçambicanos do “mato”, do “caniço” e do “cimento”, do Norte, do centro e do Sul são enfáticos: o equilíbrio colonial se mantinha, entre outras coisas, pelo peso do aparato estatal colonial, e pelas múltiplas possibilidades dos colonos e descendentes em explorar o trabalho “indígena”. Quando um português, ou um branco, caminhava pelo meio-fio da antiga Lourenço Marques, atual Maputo, o negro moçambicano devia ceder a passagem; os empregados negros, geralmente homens, eram todos chamados de “rapaz”, o correspondente lusitano para o boy dos ingleses. O quão doloroso era para um senhor africano ser chamado de “rapaz” por um jovem branco, em sociedades tão marcadas por clivagens de autoridade e respeito entre os grupos etários! As lembranças coloniais – refiro-me aos antigos colonos – vão noutra direção. A sociedade branca colonial se defendia numa poderosa estrutura de autoajuda, e se houve colonos pobres, estes não só foram minoritários como tinham que desaparecer. O colonialismo contemporâneo na África, particularmente naquelas colônias com presença branca significativa tais como Angola e Moçambique, Quênia, Rodésia do Sul e África do Sul se constitui num aprofundamento da segregação racial que, entre outras coisas, defendia o colono diante do nativo, e impedia a pobreza branca. Atrelado ao sistema capitalista, sim, mas como uma extraordinária máquina de ação afirmativa voltada para a construção e manutenção de uma elite quase que exclusivamente branca. Como nos esclarece o professor, as lembranças do período colonial são várias e contrastantes. Os antigos colonos sentem uma espécie de saudosismo e até alguns colonizados mais antigos consideram que na época colonial era melhor, pois não lhes faltava nada. Mas é nítido que os negros eram oprimidos e a segregação racial uma realidade, conforme o exemplo dado. Um senhor adulto ser chamado de rapaz era algo humilhante. A violência era, portanto, não só física, como também psicológica. 5.2 Literatura moçambicana e seus autores Desde o século XVIII já circulavam na colônia de Moçambique textos literários; contudo, eram escritos por portugueses e nos padrões estéticos europeus. Somente no início do século XX surgiram, segundo Francisco Noa (2017), as primeiras elites letradas de origem africana, precursoras da literatura moçambicana. Vale observar que o percurso dessa literatura também passa pelo jornalismo. Os irmãos José e João Albasini, mestiços, foram os grandes idealizadores do jornal moçambicano O africano, o qual está ligado diretamente ao grêmio africano e foi a primeira associação nacionalista composta por alguns mulatos e negros com nível superior que reivindicavam a instalação e o acesso ao ensino para todos. 92 Unidade II Além desse jornal, os irmãos editavam o Brado literário. João Albasini foi o autor da primeira obra ficcional moçambicana: O livro da dor, edição póstuma em 1925. Segundo Francisco Noa (2017, p. 13-14), a literatura moçambicana apresenta as seguintes características: Emerge durante o período da vigência do sistema colonial; é uma literatura relativamente recente: cerca de 100 anos de existência; traduz os paradoxos e complexidades gerados pela colonização, como sejam, literatura escrita difundida na língua do colonizador, dualismo cultural ou identidade problemática dos autores, oscilação entre absorção e negação dos valores e códigos da estética ocidental etc.; em praticamente todo o percurso dessa literatura,a maior parte dos textos é difundida sobretudo na imprensa, fato que irá prevalecer sensivelmente até meados da década de 80. É um fenômeno essencialmente urbano. Como ocorreu em Angola, os escritores moçambicanos tinham em mente um projeto de reconstrução de sua história, da formação de sua identidade nacional e do resgate das narrativas orais de seu povo. O professor Francisco Noa (2017) divide a literatura moçambicana em três momentos distintos. Primeiramente, na década de 1940, a geração do jornal Itinerário, a qual “se debruçava sobre questões ligadas à realidade sociopolítica vivida em Moçambique num tom de revolta contra o colonialismo, de denúncia das arbitrariedades e injustiças geradas pela dominação” (NOA, 2017, p. 17). Como exemplo, cita Noémia de Sousa e José Craveirinha, entre outros. Já os anos 1960, antes da independência, são considerados um momento de transição, quando surge Luís Bernardo Honwana, com o livro Nós matamos o Cão-Tinhoso!, e se consagram José Craveirinha, com Xigubo, e Orlando Mendes, com Portagem, primeiro romance moçambicano. Os primeiros anos após a independência foram marcados por um grande fervor revolucionário que atingiria todas as manifestações artísticas, mas com pouca relevância estética. Em outro momento, a partir dos anos 1980, entretanto, a literatura moçambicana iria se revitalizar e se consolidar: Dois fatores influíram poderosamente para o movimento de renovação da literatura moçambicana na década de 80: primeiro, a criação da Associação dos Escritores Moçambicanos (Aemo), em 1982, que além de se instruir como um espaço de debate e de tertúlia, promoveu a maior parte dos escritores nela inscritos, através da edição dos seus livros. Em segundo lugar, o nascimento da revista Charrua (1984), a partir da Aemo, que iria aglutinar algumas das mais importantes vozes da literatura moçambicana (NOA, 2017, p. 20). 93 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA Destacam-se, a partir de então, os escritores Paulina Chiziane, Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa, entre muitos outros. Saiba mais Para saber mais sobre a literatura moçambicana, veja o dossiê sobre Moçambique da revista Via Atlântica: VIA Atlântica, v. 1, n. 16, 24 dez. 2009. Disponível em: https://cutt.ly/tG3gQyo. Acesso em: 2 maio 2022. Sobre a literatura colonial, leia o artigo do professor Francisco Noa: NOA, F. Literatura colonial em Moçambique: o paradigma submerso. Via Atlântica, v. 1, n. 3, p. 58-69, 1999. Assista também à palestra do professor Francisco Noa: O PODER da representação na literatura colonial: o caso de Moçambique. 2020. 1 vídeo (108 min). Publicado pelo canal UAB Unifesp. Disponível em: https://youtu.be/qNwa9kBJvkA. Acesso em: 7 maio 2022. No site da revista Via Atlântica, pesquise o termo “Moçambique”. Você terá acesso a vários artigos sobre a literatura moçambicana, inclusive em estudos comparados com outras literaturas. Disponível em: https://bit.ly/3tFbLR5. Acesso em: 5 maio 2022. 5.2.1 José Craveirinha (1922–2003) José Craveirinha é considerado o maior poeta moçambicano. Foi o primeiro escritor africano a receber o Prêmio Camões, em 1991. Entre suas principais obras estão: Xigubo (1964); Cantico a un dio di Catrame – bilíngue português-italiano (1966), com tradução e prefácio de Joyce Lussu; Karingana ua karingana (1974); Cela 1 (1980); e Maria (1988). Era filho de uma africana com um português e escolheu a África para ser cidadão e escritor. Em seus versos exprime sua “aversão ao colonialismo” (CHAVES, 2005, p. 142) e traduz em suas palavras a dor e o sofrimento dos excluídos: A obra poética de José Craveirinha é povoada por homens e mulheres que, guardando a dimensão existencial que os humaniza, apresentam-se numa relação concreta com a vida: têm corpo, têm doenças, têm tradições e têm definidas as marcas sociais que os particularizam no conjunto um tanto amorfo a que se poderia chamar de moçambicano, africano ou mesmo negro (CHAVES, 2005, p. 146). 94 Unidade II Leia a seguir trechos de alguns poemas de José Craveirinha: Um homem não chora Um homem nunca chora Acreditava naquela história do homem que nunca chora. Eu julgava-me um homem. Na adolescência meus filmes de aventuras na arrogante criancice do herói de ferro. Agora tremo. E agora choro. Como um homem treme. Como chora um homem! Nem desconfia Todo o poeta quando preso é um refugiado livre no universo de cada coração na rua. O chefe da polícia de defesa da segurança do estado sabe como se prende um suspeito mas quanto ao resto não sabe nada. E nem desconfia. Guerra Aos que ficam resta o recurso de se vestirem de luto [...] Fonte: Craveirinha (1980, p. 20). Nesse poema, o eu lírico se contrapõe ao antigo estereótipo de que homem não chora, mesmo considerando que nunca foi um covarde. Frente aos sofrimentos da guerra, é impossível não chorar. Em versos livres, como um poema em prosa, Craveirinha expressa a dimensão existencial da dor da perda e do luto. Grito negro Eu sou carvão! E tu arrancas-me brutalmente do chão e fazes-me tua mina, 95 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA Patrão. Eu sou carvão! E tu acendes-me, patrão, para te servir eternamente como força motriz mas eternamente não, Patrão. Eu sou carvão e tenho que arder sim; queimar tudo com a força da minha combustão. Eu sou carvão; tenho que arder na exploração arder até às cinzas da maldição arder vivo como alcatrão, meu irmão, até não ser mais a tua mina, Patrão. Eu sou carvão. Tenho que arder Queimar tudo com o fogo da minha combustão. Sim! Eu sou o teu carvão, Patrão. [...] Fonte: Craveirinha (1980, p. 13). Nesse emblemático poema, José Craveirinha utiliza versos de cinco sílabas (redondilhas menores), alternados com versos de 12 sílabas (alexandrinos), em que se destacam rimas potentes em ão, como carvão/patrão/exploração/combustão, criando uma cadência rítmica marcante. A metáfora “eu sou carvão” conduz a uma consciência e revolta do homem negro escravizado e explorado que perde sua humanidade, torna-se um objeto destruído, mas que serve de combustível para o progresso de seu patrão. O escravo não se conforma com sua situação, como podemos observar em “E tu acendes-me, patrão, para te servir eternamente como força motriz; mas eternamente não, patrão”. Hino à minha terra [...] Amanhece sobre as cidades do futuro. E uma saudade cresce no nome das coisas [...] 96 Unidade II E grito Inhamússua, Mutamba, Massangulo!!! E torno a gritar Inhamússua, Mutamba, Massangulo!!! E outros nomes da minha terra afluem doces e altivos na memória filial e na exata pronúncia desnudo lhes a beleza. Chulamáti! Manhoca! Chinhambanine! Morrumbala, Namaponda e Namarroi e o vento a agitar sensualmente as folhas dos canhoeiros [...] Oh, as belas terras do meu áfrico País e os belos animais astutos ágeis e fortes dos matos do meu País e os belos rios e os belos lagos e os belos peixes e as belas aves dos céus do meu País [...] Vocabulário Todos os nomes em língua nativa são localidades de Moçambique. Fonte: Craveirinha (1980, p. 21-23). Em “Hino à minha terra”, a exemplo dos românticos brasileiros da primeira geração, o eu lírico, representação do próprio Craveirinha, enaltece Moçambique, não somente suas belezas naturais, mas a beleza da língua da infância, falada por sua mãe: “afluem doces e altivos na memória filial”, um patrimônio inestimável. Saiba mais Para saber mais sobre o autor, acesse: JOSÉ Craveirinha. Escritas. [s.d.]. Disponível em: https://cutt.ly/SG3l7KW. Acesso em: 3 maio 2022. Veja o vídeo em que José Craveirinha declama “Grito negro”: GRITO negro (José Craveirinha, Mozambique). 2007. 1 vídeo (1 min). Publicado pelo canal Festival Internacional de Poesía de Medellín. Disponível em: https://youtu.be/p6Ug9c2riCU. Acesso em: 7 maio 2022. 97 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA 5.2.2 Orlando Mendes (1916–1990) Figura 25 – Orlando Mendes Disponível em: https://cutt.ly/AHv6OhG. Acesso em: 16 maio 2022. Orlando Mendes foi biólogo, poeta,dramaturgo e romancista. Recebeu o Prêmio Fialho de Almeida e o Prêmio de Poesia de Lourenço Marques, ambos em 1946. Dirigiu a Aemo (Associação dos Escritores Moçambicanos). Coube a ele a autoria do primeiro romance moçambicano, Portagem, publicado em 1965, em plena guerra colonial. Por meio de seu enredo, a obra leva o leitor a reflexões sobre mestiçagem, hibridação, raça, gênero e diferenças sociais. O protagonista João Xilim, um menino mestiço, de mãe negra e pai branco (o patrão), vive dúvidas e conflitos em busca de sua identidade. Xilim é um apelido dado ao menino, com referência à moeda inglesa xelim. No artigo “A voz e o corpo: hibridação na narrativa de Orlando Mendes, Mia Couto e Paulina Chiziane”, a pesquisadora portuguesa Ana Teixeira explica em que consistem os conceitos de hibridação, hibridismo e mestiçagem. Segundo a autora: Na nossa leitura, importa, assim, clarificar que o conceito de “hibridação” será entendido como o processo de encontro de identidades diferenciadas. “Hibridismo” designará o resultado sociocultural desse mesmo processo. “Mestiçagem”, por seu lado, referir‑se‑á à manifestação corpórea de fusões idiossincráticas distintas. O processo de hibridação produz, deste modo, identidades híbridas (conjugações sincréticas de diferentes vivências culturais), que poderão, ou não, resultar na emergência de identidades mestiças (TEIXEIRA, 2009, p. 2, grifo nosso). 98 Unidade II Sobre a obra Portagem e a personagem João Xilim, a autora acrescenta: Parece-nos, então, legítimo o pressuposto de que as três narrativas se estruturam a partir do já referenciado triângulo conceptual raça/género/classe, sempre construído social e culturalmente. Num diálogo entre Laura, patroa recente do muleque Xilim, e a sua filha Maria Helena, a determinação da mestiçagem no percurso do protagonista é, desde logo, anunciada. Para D. Laura, os mulatos: “São mais falsos do que os pretos”, ao que Maria Helena responde “os muleques pretos são tão estúpidos, mãe” (TEIXEIRA, 2009, p. 5). Filho do encontro entre a sua mãe, Kati, e o branco Patrão Campos, Xilim se considera um amaldiçoado e pergunta significativamente à sua mãe porque não é preto: Portagem “Por que eu não sou preto como toda a gente?”. Kati responde: “Tu nasceu mais claro porque nasceu numa noite de lua grande. Mas tu és negro como tua mãe e teu pai”. O diálogo entre as duas personagens, e a discriminação que Xilim sofre ao longo do seu percurso na narrativa de Mendes, remetem-nos para a discussão do próprio conceito de africanidade. Há que entender que não é concretamente a evidência corpórea da raça que se torna determinante no entendimento e na aceitação identitária, mas, sim, a determinação sociocultural a ela subjacente. Dando voz ao protagonista, o narrador afirma: “[...] Mal de mim é ser mulato. [...] Branco está sempre a pensar que mulato é filho dum crime [...]” Fonte: Mendes (1991, p. 53 apud TEIXEIRA, 2009, p. 10). Saiba mais Vale a pena ler todo o artigo a seguir e verificar como essas questões aparecem nas obras O outro pé da Sereia, de Mia Couto, e O alegre canto da perdiz, de Paulina Chiziane: TEIXEIRA, A. A voz e o corpo: hibridação na narrativa de Orlando Mendes, Mia Couto e Paulina Chiziane. Via Atlântica, v. 1, n. 16, p. 63-78, dez. 2009. Disponível em: https://cutt.ly/qG6nZKu. Acesso em: 9 maio 2022. Leia trechos de um poema em que Orlando Mendes descreve sensivelmente a Ilha de Moçambique e os contrastes do período colonial: 99 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA Minha ilha Nos paralelepípedos das mais antigas infâncias dei também meus passos balbuciantes e seguintes. Todos os dias pés sem idade acorrentados trituravam o salitre poeirado pelo vento Índico e a cortiça nua das solas e dos dedos fazia o périplo da ilha sobre corais onde no palácio o governador-geral mandava despachos que a corte recebia incrustada de pedrarias nas entranhas digerindo riquezas carnais. E o salitre vinha e ardiam os pés das gerações e nos pátios dos prédios senhoris floridos se construíam novos lares de oriunda linhagem. Por ali estiveram Camões das amarguras itinerantes e Gonzaga da Inconfidência no desterro em lado oposto. Era a rota dos gemidos e das raivas putrefatas e dos partos que haviam de povoar as américas com braços marcados a ferro nas lavras e colheitas. [...] Vocabulário Poeirado: em forma de pó. Périplo: viagem circundando um continente. Fonte: ORLANDO... (2008). Em versos livres, o eu lírico apresenta as agruras do tráfico negreiro, da escravidão em contraste com a vida confortável das elites. O salitre a arder os pés de gerações de negros nos pátios floridos dos palácios, negros que iriam povoar as américas. Observação Como sabemos, Moçambique, como os outros países do Palop, foi colonizado pelos portugueses. Em seu poema, Orlando Mendes cita o poeta Luís Vaz de Camões, que passou pelas terras africanas, mas também o poeta da Inconfidência Mineira Tomás António Gonzaga, que, apesar de se opor à colonização portuguesa no Brasil, migrou para Moçambique e lá também foi um colonizador e dono de escravos, lucrando com o tráfico negreiro. Ambiguidades que nos mostram que a história sempre tem dois lados e que visões maniqueístas, a luta entre o Bem e o Mal, são bem ilusórias. 100 Unidade II Exemplo de aplicação Um dos poemas mais emblemáticos da primeira fase do romantismo brasileiro é a “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias. Nesses versos se destacam duas características marcantes dessa fase romântica: o nacionalismo (valorização da pátria) e o naturalismo (valorização das belezas naturais). Releia os trechos dos poemas “Hino à minha terra”, de José Craveirinha, e “Minha ilha”, de Orlando Mendes, e observe que o nacionalismo romântico é retomado, mas de forma diversa, sem idealizações e com uma visão crítica. Eis os primeiros versos da “Canção do exílio”: Canção do exílio Minha terra tem palmeiras Onde canta o Sabiá, As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Fonte: Dias (1995, p. 41). 5.2.3 Noémia de Sousa (1926–2002) Noémia de Sousa serviu de inspiração para várias gerações e ficou conhecida como “mãe dos poetas moçambicanos”, por meio de uma obra densa, marcada pela resistência, dando voz à mulher negra africana. Publicou vários poemas em jornais variados, como O brado africano, de 1948 a 1951. Em 2001, seus 46 poemas foram finalmente publicados no livro Sangue negro, pela Aemo. Em 2016, a obra passou a ser publicada no Brasil pela editora Kapulana. Nesse livro há também vários artigos e análises sobre a autora e seus poemas. Segundo a professora Carmen Lucia Tindó Secco (2016): Noémia de Sousa não é apenas uma grande dama da poesia moçambicana. É, também, uma grande dama da poesia africana em língua portuguesa, tendo em vista sua voz ardente ter ecoado por diversos espaços e 101 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA compartilhado seu grito com outras vozes, em prol dos que lutaram e clamaram pela liberdade dos oprimidos, entre os anos 1940-1975, no contexto do colonialismo português. Sangue negro pode ser considerado um dos mais bem elaborados livros sobre negritude, um porta-voz dos explorados, dos marginalizados pela cor da pele. Vejamos a seguir trechos de alguns poemas dessa obra: Súplica Tirem-nos tudo, mas deixem-nos a música! Tirem-nos a terra em que nascemos, onde crescemos e onde descobrimos pela primeira vez que o mundo é assim: um labirinto de xadrez… Tirem-nos a luz do sol que nos aquece, a tua lírica de xingombela nas noites mulatas da selva moçambicana (essa lua que nos semeou no coração a poesia que encontramos na vida) tirem-nos a palhota – humilde cubata onde vivemos e amamos, tirem-nos a machamba que nos dá o pão, tirem-nos o calor de lume (que nosé quase tudo) mas não nos tirem a música! [...] E no nosso lamento escravo estará a terra onde nascemos, a luz do nosso sol, a lua dos xingombelas, o calor do lume, a palhota onde vivemos, a machamba que nos dá o pão! E tudo será novamente nosso, ainda que cadeias nos pés e azorrague no dorso… [...] 102 Unidade II – Por isso pedimos, de joelhos pedimos: Tirem-nos tudo… mas não nos tirem a vida, não nos levem a música! Vocabulário Xingombela: dança tradicional do sul de Moçambique. Machamba: terra de cultivo. Fonte: Sousa (2016, p. 30-31). Nesses versos irregulares e de pura emoção, o eu lírico, como o próprio título diz, suplica pela própria vida simbolizada pela música tradicional, suas raízes africanas. Percebemos que tudo já foi perdido, a luz do sol, a comida, a liberdade; nada resta, somente a música. O eu lírico se dirige ao seu algoz, aquele que tudo lhe levou, mas não fala somente de si, mas de todo um povo escravizado e alienado de sua cultura e liberdade, de sua identidade, o que se confirma pelo constante uso dos pronomes “nós” e “nosso”, povo ao qual o eu lírico pertence, o povo moçambicano. Negra Gentes estranhas com seus olhos cheios doutros mundos quiseram cantar teus encantos para eles só de mistérios profundos, de delírios e feitiçarias... Teus encantos profundos de África. Mas não puderam. Em seus formais e rendilhados cantos, ausentes de emoção e sinceridade, quedaste-te longínqua, inatingível, virgem de contatos mais fundos. E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual, jarra etrusca, exotismo tropical, demência, atração, crueldade, animalidade, magia... e não sabemos quantas outras palavras vistosas e vazias. Em seus formais cantos rendilhados foste tudo, negra... menos tu. [...] 103 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA E ainda bem. Ainda bem que nos deixaram a nós, Do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma, sofrimento, a glória única e sentida de te cantar com emoção verdadeira e radical, a glória comovida de cantar, toda amassada, moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE Fonte: Sousa (2016, p. 65). Podemos considerar que o termo “negra” se refere não somente a uma pessoa negra, ou aos negros em geral, mas a todo um continente, a África. Nesse sentido, a “sílaba imensa e luminosa”, grafada em letras garrafais: MÃE, a mãe África. Observe quantos estereótipos sobre a África e seus povos são desconstruídos nestes versos: “E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual / jarra etrusca, exotismo tropical / demência, atração, crueldade / animalidade, magia”. Os versos de Noémia de Sousa são vibrantes e eloquentes, dignos de serem declamados em alto e bom som. Apesar de terem sido escritos em meados da década de 1950, continuam tristemente atuais e necessários. Saiba mais Leia o artigo a seguir e observe os poemas “Poema a Jorge Amado”, “Deixa passar o meu povo”, “Moças das Docas” e “Súplica”, citados pela professora Carmen L. T. Secco: SECCO, C. L. T. Noémia de Sousa, grande dama da poesia moçambicana. Prefácio. In: SOUSA, N. Sangue negro. São Paulo: Kapulana, 2016. (Série Vozes da África). Disponível em: https://cutt.ly/cG64AnE. Acesso em: 9 maio 2022. 5.2.4 Luís Bernardo Honwana (1942–) Luís Bernardo Honwana notabilizou-se por seu livro Nós matamos o Cão-Tinhoso!, publicado inicialmente em 1964, ano em que o autor, um militante da Frelimo, foi preso por seu ativismo, permanecendo nessa situação até 1969. Nós matamos o Cão-Tinhoso! é um livro de contos que se propõe a denunciar a realidade da população oprimida durante o período colonial português em Moçambique. Interessante notar que a maioria dos contos é narrada pela perspectiva de um narrador criança. O livro é muito lido ainda hoje nos países africanos de língua portuguesa. 104 Unidade II Lembrete Em seu livro Os da minha rua, o autor angolano Ondjaki nos apresenta o conto “Nós choramos pelo Cão-Tinhoso” em que resgata, de forma comovente, sua experiência ao ler esse conto na escola, na oitava classe (8ª série). Reveja a análise desse conto na unidade I. Leia um trecho desse conto sensível e impactante: Nós matamos o Cão‑Tinhoso! Cão-Tinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham brilho nenhum, mas eram enormes e estavam sempre cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho. Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer. Eu via todos os dias o Cão-Tinhoso a andar pela sombra do muro em volta do pátio da Escola, a ir para o canto das camas de poeira das galinhas do Senhor Professor. As galinhas nem fugiam, porque ele não se metia com elas, sempre a andar devagar, à procura de uma cama de poeira que não estivesse ocupada. O Cão-Tinhoso passava o tempo todo a dormir, mas às vezes andava, e então eu gostava de o ver, com os ossos todos à mostra no corpo magro. Eu nunca via o Cão-Tinhoso a correr e nem sei mesmo se ele era capaz disso, porque andava todo a tremer, mesmo sem haver frio, fazendo balanço com a cabeça, como os bois e dando uns passos tão malucos que parecia uma carroça velha. Fonte: Honwana (2017, p. 11). Saiba mais O conto está disponível em: HONWANA, L. B. Nós matamos o Cão-Tinhoso! [s.d.]. Disponível em: https://cutt.ly/iG65o0e. Acesso em: 9 maio 2022. Conheça mais sobre Honwana e suas obras no site da editora Kapulana: LUÍS Bernardo Honwana. Kapulana, 11 set. 2017. Disponível em: https://cutt.ly/wG65G82. Acesso em: 9 maio 2022. 105 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA 5.2.5 Paulina Chiziane (1955–) Figura 26 – Paulina Chiziane Disponível em: https://cutt.ly/yHbwY1x. Acesso em: 16 maio 2022. Paulina Chiziane, como ela mesma se intitula, é uma contadora de histórias, o que não a exclui de ser umas das mais importantes romancistas da atualidade: “Dizem que sou romancista e que fui a primeira mulher moçambicana a escrever um romance [...], mas eu afirmo: sou contadora de estórias, estórias grandes e pequenas. Inspiro-me nos contos à volta da fogueira, minha primeira escola de arte” (CHIZIANE, 2021, contracapa). Sua prosa é marcada pela oralidade e pela poesia, com imagens marcantes, sonoras, visuais e líricas. Ao mesmo tempo, apresenta ao leitor um retrato contundente da cultura moçambicana e da mulher africana. Em 2021, foi agraciada com o Prêmio Camões. Publicou as seguintes obras: Balada de amor ao vento (1990); Ventos do apocalipse (1993, sem edição brasileira); O sétimo juramento (2000); Niketche: uma história de poligamia, de 2002 (Companhia de Bolso, 2021); O alegre canto da perdiz, de 2008 (Dublinense, 2018); As andorinhas (2009); Na mão de 106 Unidade II Deus (2012); Por quem vibram os tambores do além (2013); e Eu, mulher por uma nova visão do mundo (2013). A editora Nandyala, de Belo Horizonte, publicou o livro O canto dos escravizados (poesia) e Tenta (literatura infantil), este último ilustrado por Samora Délcio, em 2018. Ventos do apocalipse O romance se constrói como um testemunho dos traumas da guerra civil moçambicana e da situação de extrema miséria e violência contra os sobreviventes nesse conflito, atrocidades sem fim. Segundo Bezerra e Souza (2014, p. 1): A capacidade de perceber as coisas miúdas faz da narrativa feminina o painel do avesso em Ventos do apocalipse, de Paulina Chiziane. Além de contar, fixa, através da escrita, a memória do que foram os anos de morte, fuga pela densa mata e de carências de diversa ordem. Publicado em 1990, o romance narra a saga de mais ou menos quinze anos de devastação da terra e do homem moçambicano, por meio de ataques, saques e perseguições implacáveis na luta de irmão contra irmão: africano contra africano; régulo contra a comunidade; filhos contra os pais. Desconfiança generalizada, desamparo e desolação. Cenas de atrocidades inauditas, protagonizadas por conhecidos, vizinhos, parentes. Toda uma enxurrada de memórias, na maior parte das vezes, escatológicas ocupa as páginas dessa narrativa. Observação O termo apocalipse,segundo o Dicionário Houaiss (2009), refere-se a “qualquer dos antigos escritos judaicos ou cristãos (esp. o último livro canônico do Novo Testamento, atribuído a são João) que contém revelações, em particular sobre o fim do mundo, e apresentadas, quase sempre, sob a forma de visões”. Por extensão, refere-se a um grande cataclismo, algo aterrorizante, ao fim do mundo. Leia um trecho a seguir, em que, simbolicamente, os quatro cavaleiros do Apocalipse surgem. Eis uma alegoria da fome e destruição no contexto da guerra em Moçambique: Ventos do apocalipse Há cavaleiros no céu. O som das trombetas escuta-se no ar. Na terra há saraivada e fogo e tudo se torna em “Absinto”. Quem tem olhos que veja, quem tem ouvidos que escute. Os cavaleiros são dois, são três, são quatro. São os quatro cavaleiros do Apocalipse, maiwêê! é tempo de cavarmos as nossas sepulturas, y ô! Descem do céu do canto do pôr do 107 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA Sol. São majestosos, fortes, brilhantes como o sol. São invisíveis como o vento e impiedosos como o fogo, y ô!, quem tem olhos que os veja! Fonte: Chiziane (2010, p. 29). Mas a obra em questão não trata somente da morte e da destruição. Há esperança e um forte amor à vida: O povo de Mananga não teme a morte, mas ama a vida e não quer perdê-la. A vida é a dádiva mais sagrada de todos os seres. No momento de agonia ou de alegria mais nos aconchegamos a ela sussurrando-lhe ao ouvido este belo poema: Vida, apesar das amarguras eu amo-te com as tuas delícias e malícias adoro-te. Fonte: Chiziane (2010, p. 59). Por meio das mulheres, a vida se renova. O ritual tradicional da Mbelel é praticado em Mananga, e nele o feminino e a fertilidade revelam-se, trazendo esperança. Nesse ritual, o sacrifício de animais é oferecido à vida enquanto as mulheres dançam nuas: Só a nudez das mamãs quebrará silêncio dos ventos, porque a mulher é a mãe do universo. [...] As mentes das gentes saciadas fabricam fantasias. Quem disse que o poder dos homens arrasa quando o estômago vaza? Olhai para todos esses deslocados, vede, pois, com os vossos olhos. Os ventres de todos estão dilatados, mas os das fêmeas, para além da fome, também incubam amor e vida, último suspiro de esperança. Fonte: Chiziane (2010, p. 61-69). 108 Unidade II Niketche: uma história de poligamia Figura 27 – Capa da edição brasileira de Niketche: uma história de poligamia Fonte: Chiziane (2021, capa). Essa interessante narrativa destaca os diferentes conflitos entre o mundo moderno e o mundo tradicional. O livro é narrado em primeira pessoa por Rami, esposa de Tony, um alto funcionário da polícia. Após vinte anos de casados, Rami descobre que seu marido é polígamo, com outras quatro mulheres e muitos filhos. A protagonista parte da revolta inicial para uma atitude inusitada: procurar todas as esposas espalhadas pelo país, tentando compreender como mulheres tão diferentes provocaram o interesse de seu marido. Em entrevistas, a autora diz que o livro não se coloca a favor ou contra a poligamia, mas tem o intuito de levar os leitores à reflexão. Observação Segundo a sinopse do livro (CHIZIANE, 2021), “Niketche é uma das danças do norte de Moçambique, extremo oposto de onde mora Rami. Ritual de amor e erotismo, a dança é desempenhada pelas meninas durante cerimônias de iniciação”. 109 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA O livro apresenta momentos de puro lirismo e de grande sofrimento, medo de perder o marido, medo da solidão e inconformismo por não entender o que aconteceu. Vejamos um trecho: Niketche: uma história de poligamia No coração da noite residem os sonhos. Umas vezes são coloridos como as flores. Outras, pássaros negros dançando nas trevas como fantasmas. Anoitece, meu Deus, eu tenho pavor de uma cama fria. Encosto a cabeça no travesseiro e conto o número de vezes que morri. Resisto. Não consigo aceitar a ideia de ser rejeitada. Eu, Rami, mulher bela. Eu, mulher inteligente. Fui amada. Disputada por vários jovens do meu tempo. Causei paixões incendiárias. De todos os que me pretenderam escolhi o Tony, o pior de todos, que na altura julgava ser o melhor. [...] Ninguém pode entender os homens. Como é que o Tony me despreza assim, se não tenho nada errado em mim? Fonte: Chiziane (2021, p. 13). Já o trecho a seguir é repleto de ironia e humor. Ao saber que o filho possuía várias esposas, algo que a própria Rami revelou para toda a família, a sogra resolveu fazer uma campanha em prol da poligamia: A minha sogra andou esvoaçando entre casas e caminhos. Visita as novas noras, os netos, e distribui rebuçados e chocolates. Conquista-os. Visita os irmãos, filhos, famílias. Busca aliados e consensos. Fala de boca em boca. Busca votos de confiança. Faz a campanha a favor da família alargada, as noras devem ser loboladas. Não é de mim que eu falo, dizia ela. Fala em nome das crianças que crescem marginalizadas, sem conhecer as suas origens. Fala em nome daquelas mulheres pescadas no deserto da vida, produzindo almas que engrandecem esta família, mas que vivem à margem da sombra que lhes pertence. São chamadas de mães solteiras, confundidas com as divorciadas e as adúlteras, por viverem longe da sombra do seu homem. Grita não à monogamia, esse sistema desumano que marginaliza uma parte das mulheres, privilegiando outras, que dá teto, amor e pertença a umas crianças, rejeitando outras, que pululam pelas ruas. Grita não contra o novo costume de ter uma esposa à luz e várias concubinas, com filhos escondidos. Os meus netos marginalizados pela lei clamam por reconhecimento. O sangue da grande família deve ser reunido na sombra da grande árvore dos antepassados. O meu filho é belo, dizia ela. As mulheres não resistem aos seus encantos. O meu filho tem sangue forte, em cada contato produz um filho. O meu filho é um rizoma. É bambu. Estende-se pelos campos, alastra-se, multiplica-se. O meu filho tem destino de rei, de patriarca. O pai dele só teve poucos filhos, três apenas, mas Deus deu-nos o Tony para vingar a fertilidade da família estendendo o nosso grande nome pelos quatro cantos do mundo. Vai ter com o irmão padre e confronta-o. Por causa das vossas doutrinas as nossas famílias africanas não passam de montanhas isoladas boiando nas nuvens. Tu, padre, és filho da poligamia, filho da terceira mulher. Como podes tu condenar a poligamia que te trouxe ao mundo? Afasta as tuas más influências do meu filho. Deixa-o em paz com as suas esposas e filhos, nós africanos somos felizes assim. Todas aquelas mulheres devem ser loboladas. Fonte: Chiziane (2021, p. 107). 110 Unidade II Saiba mais Para a sogra de Rami, as mulheres devem ser loboladas, ou seja, passar pelo lobolo, casamento tradicional ao sul de Moçambique. No caso, são as famílias das noivas que recebem dinheiro pela perda da filha. Leia a reportagem a seguir sobre o assunto: LOBOLO – os casamentos em Moçambique ontem e hoje. Deutsche Welle, 30 jun. 2006. Disponível em: https://cutt.ly/JHqoLUm. Acesso em: 2 maio 2022. O alegre canto da perdiz Figura 28 – Capa de O alegre canto da perdiz Fonte: Chiziane (2018, capa). 111 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA Leia um trecho do romance O alegre canto da perdiz, sobre uma de suas personagens mais instigantes, Maria, uma andarilha: O alegre canto da perdiz O tempo correu, sim. Quando partiu, não tinha calos nos pés. Nem cabelos brancos. Nem imagens tenebrosas nos arquivos da memória. Quando partiu, não conhecia tantas estradas, nem paisagens nem pessoas. Não conhecia ainda os terrores da vida. O tempo passou, sim. Mas como tudo começou? Começou ou terminou? Na vida nada é princípio, nada é fim. Tudo é continuidade [...] tudo começou com uma relação que envolvia sexo e amargura. Filhos e fuga. Torpor e ausência. Escalada de uma montanha. Soldados brancos na defesa do império de Portugal. Dinheiro e virgindade. Magia. Fortuna. Fonte: Chiziane (2018, p. 23). Saiba mais Em seu artigo “A voz e ocorpo: hibridação na narrativa de Orlando Mendes, Mia Couto e Paulina Chiziane”, Ana Teixeira também trata de O alegre canto da perdiz: TEIXEIRA, A. A voz e o corpo: hibridação na narrativa de Orlando Mendes, Mia Couto e Paulina Chiziane. Via Atlântica, v. 1, n. 16, p. 63-78, dez. 2009. Disponível em: https://cutt.ly/qG6nZKu. Acesso em: 9 maio 2022. Outro protagonista nessa trama é José, um nativo negro que precisa tornar-se assimilado para sobreviver, tornando-se um sipaio, um soldado a serviço do império. Os assimilados eram aqueles nativos que passavam a viver dentro da cultura portuguesa, usando roupas, falando português, vivendo como os ocidentais. Para isso, deveriam abandonar suas raízes africanas. Sofriam preconceito tanto dos portugueses como dos nativos que não eram assimilados: Quem não se ajoelha perante o poder do império não poderá ascender ao estatuto de cidadão. Se não conhece as palavras da nova fala jamais se poderá afirmar. Vamos, jura por tudo que não dirás mais uma palavra nessa língua bárbara. Jura, renuncia, mata tudo para nasceres outra vez. Mata a tua língua, a tua tribo, a tua crença. Vamos, queima os teus amuletos, os velhos altares e os velhos espíritos pagãos. José faz o juramento perante um oficial de justiça. [...] José assina o documento que o transforma em assimilado. Mesmo sem ler. As suas capacidades didáticas não lhe permitiam semelhante luxo. Apenas assinou. Fonte: Chiziane (2018, p. 119). 112 Unidade II Saiba mais Saiba mais sobre a autora e sua obra em: PAULINA Chiziane – contadora de estórias e memórias. Templo Cultural Delfos, 2015. Disponível em: https://cutt.ly/0HqfzMr. Acesso em: 4 maio 2022. Veja a participação da autora na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) 2021: MESA 6 | Árvores e escrita, com Paulina Chiziane e Itamar Vieira Junior – áudio original. 2021. 1 vídeo (77 min). Publicado pelo canal Flip – Festa Literária Internacional de Paraty. Disponível em: https://youtu.be/UnU1KrOXNJQ. Acesso em: 9 maio 2022. Veja também uma entrevista com ela: PAULINA Chiziane: “O mundo da mulher ficou muito escondido. É preciso falar mais sobre o que somos”. 2018. 1 vídeo (3 min). Publicado pelo canal pordentrodaafrica. Disponível em: https://youtu.be/_upOGNEbldI. Acesso em: 4 maio 2022. 5.2.6 Mia Couto (1955–) Figura 29 – Mia Couto Disponível em: https://cutt.ly/sHbeg1k. Acesso em: 16 maio 2022. 113 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA Um dos autores que se destacam na atualidade é Mia Couto (Antônio Emílio Leite Couto), nascido em Beira. Ele é considerado por muitos como um dos melhores de sua geração. Segundo o autor, o apelido Mia se refere a sua paixão por gatos. Jornalista e biólogo, possui uma vasta produção de contos e romances, em um estilo original, envolvente, cheio de neologismos e fatos insólitos, circulando entre o fantástico e o real. Suas últimas obras tendem ao romance histórico ou à metaficção, nas quais fatos históricos são retomados, vistos com outro olhar, misturados à ficção. Suas obras têm sido traduzidas em diversas línguas e várias são publicadas no Brasil. Boa parte de suas obras são publicadas em Portugal pela editora Caminho e no Brasil pela Companhia das Letras. Em 2016, várias obras receberam reedições com novas capas. Como sua obra é bem extensa, composta de poesia, conto, teatro, romance, crônica e literatura infantil, citaremos somente algumas. Em parênteses, o ano das publicações no Brasil: Vozes anoitecidas, de 1986 (Companhia das Letras, 2016); Cada homem é uma raça, de 1990 (Companhia das Letras, 2013); Terra sonâmbula, de 1992 (Companhia das Letras, 2007); Estórias abensonhadas, de 1994 (Companhia das Letras, 2016); O último voo do flamingo, de 2000 (Companhia das Letras, 2016); Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, de 2002 (Companhia das Letras, 2005); Fio de missangas, de 2004 (Companhia das Letras, 2009); Outro pé da sereia, de 2006 (Companhia das Letras, 2006); Contos de nascer da Terra, de 2009 (Companhia das Letras, 2014); a trilogia As areias do imperador, composta pelas obras Mulheres de cinzas, de 2015 (Companhia das Letras, 2015), Sombras da água, de 2016 (Companhia das Letras, 2016), e O bebedor de horizontes, de 2018 (Companhia das Letras, 2018); A água e a águia, com ilustrações de Danuta Wojciechowska, de 2018 (Companhia das Letrinhas, 2019); e Mapeador de ausências, de 2020 (Companhia das Letras, 2021). Terra sonâmbula Essa obra é uma das mais marcantes do autor e provavelmente a que o tornou mais conhecido internacionalmente. A narrativa trata das ruínas deixadas pela guerra civil, tanto materiais como espirituais. Assim, o romance retrata o pós-guerra em Moçambique, uma terra devastada pela qual pessoas caminham perdidas, sonâmbulas, em busca de um horizonte, da construção de uma nova estrada. A crítica social é evidente, e os fatores que envolvem a guerra são explicitamente condenados. Para tal, Mia Couto nos apresenta uma linguagem poética e simbólica, sendo que o mundo real se mistura ao mundo do sonho e do fantástico. Nas narrativas fantásticas da literatura ocidental, normalmente o insólito surge em auxílio de seus heróis. Em Terra sonâmbula, o transcendental não cumpre essa função, pois integra-se à narrativa significativamente, saindo também fraturado. O desafio é recriar esse mundo real e metafísico tão devastado pela guerra. Encontraremos ao longo da narrativa elementos fantásticos e fantasmagóricos, assim como diferentes grupos sociais representados, como os indianos, pessoas das aldeias, colonos, soldados, guerrilheiros e políticos. Tradições dos povos nativos também são resgatadas. 114 Unidade II Vale ressaltar que uma marca muito significativa do autor, que será retomada em outras obras, é o uso de neologismos e da prosa poética. Há dois focos narrativos, primeira e terceira pessoa, sendo que as histórias e personagens se entrecruzam. Primeiramente, há o uso da terceira pessoa, um narrador onisciente: Terra sonâmbula Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte. A estrada que agora se abre a nossos olhos não se entrecruza com outra nenhuma. Está mais deitada que os séculos, suportando sozinha toda a distância. Pelas bermas apodrecem carros incendiados, restos de pilhagens. Na savana em volta, apenas os embondeiros contemplam o mundo a desflorir. Um velho e um miúdo vão seguindo pela estrada. Andam bambolentos como se caminhar fosse seu único serviço desde que nasceram. Vão para lá de nenhuma parte, dando o vindo por não ido, à espera do adiante. Fogem da guerra, dessa guerra que contaminara toda a sua terra. Vão na ilusão de, mais além, haver um refúgio tranquilo. Vocabulário Bermas: caminhos estreitos. Embondeiros: árvores típicas da região. Fonte: Couto (2004, p. 11). Nos capítulos em terceira pessoa, o leitor acompanhará a história do menino Muidinga e o velho Tuhair, sobreviventes da guerra, que caminham a esmo, perdidos, em busca de alimento e de um lugar para dormir. Observe o uso do neologismo “bambolentos”, uma conjunção de bambos e lentos, muito significativa. Há uma potente carga poética, sonora e metafórica, com várias personificações: “a guerra tinha morto a estrada”, “a natureza se mestiçara”. Nesse percurso, Muidinga encontra os cadernos do sonhador Kindzu, que o levam a suportar tanta miséria e crueldade. Esses cadernos compõem a segunda narrativa, os diários de Kindzu, em primeira pessoa. Esse rapaz vive momentos dolorosos durante a guerra e relata episódios de sua infância, suas aventuras e seus sonhos: Depois, os tiroteios foram chegando mais perto e o sanguefoi enchendo nossos medos. A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os rios da nossa alma. De dia já não saímos, de noite não sonhávamos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos. Aos poucos, eu sentia a nossa 115 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA família quebrar-se como um pote lançado no chão. Ali onde eu sempre tinha encontrado meu refúgio já não restava nada. Nós estávamos mais pobres que nunca. Fonte: Couto (2004, p. 11). Nas narrativas de Kindzu é que encontramos os relatos mais fantásticos e fantasmagóricos, assim como algumas crenças africanas. No trecho a seguir, o rapaz conversa com seu pai morto: Meu pai me surgiu no sonho, perguntando: – Queres sair da Terra? – Pai, eu já não aguento aqui. Fecho os olhos e só vejo mortos, vejo a morte dos vivos, a morte dos mortos. Se tu saíres terás que me ver a mim: hei-de-te perseguir, vais sofrer para sempre as minhas visões... Fonte: Couto (2004, p. 25). Nessa obra riquíssima, como podemos observar por esses curtos excertos, Mia Couto expõe toda a sua habilidade com a manipulação da linguagem, assim como seu talento para contar histórias. Destacamos como os atos de leitura e escrita são valorizados nessa narrativa. Ler e escrever são caminhos encontrados para a humanização e sobrevivência. É por meio da leitura dos cadernos de Kindzu que Muidinga consegue sobreviver à miséria, à fome e à falta de perspectiva. Mesmo o velho Tuhair, que não sabe ler, não consegue dormir sem ouvir aquelas histórias. Já o jovem guerreiro precisa escrever para encontrar um rumo para sua vida, refletir sobre seu passado, reconhecer que ainda sobrevive e almejar um certo futuro: Os cadernos de Kindzu se tinham tornado o único acontecer naquele abrigo. Procurar lenha, cozinhar as reservas da mala, carregar água: em tudo o rapaz se apressava. [...] Os escritos de Kindzu lhe começam a ocupar a fantasia. Fonte: Couto (2004, p. 25 e 37). Trata-se de uma bela obra e um excelente autor que merecem ser apreciados como um bom exemplo do que há de mais especial na literatura da atualidade. Saiba mais Há um filme homônimo moçambicano baseado em Terra sonâmbula, com roteiro do próprio Mia Couto: TERRA sonâmbula. Direção: Teresa Prata. Moçambique: Marfilmes, 2007. 97 min. 116 Unidade II Exemplo de aplicação A seguir, vemos três capas do livro Terra sonâmbula, em diferentes edições, de 1992, 2015 e 2016: Figura 30 – Capa da edição de 1992 de Terra sonâmbula, da Editorial Caminho Fonte: Couto (1992, capa). Figura 31 – Capa da edição de 2015 de Terra sonâmbula, da Companhia das Letras Fonte: Couto (2015b, capa). 117 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA Figura 32 – Capa da edição de 2016 de Terra sonâmbula, também da Companhia das Letras Fonte: Couto (2016b, capa). Observe como cada edição destaca um aspecto do livro. Na capa de 1992, na edição portuguesa da Editorial Caminho, há destaque para a figura de um guerreiro naparama estilizado. Kindzu sonhava em ser um naparama e, após a morte de seus familiares e a destruição de sua aldeia, parte em busca do grupo, mas o destino lhe reserva outras aventuras. Já na capa da Companhia das Letras de 2015, houve a opção de se destacar a mala com os escritos de Kindzu perdida na estrada – lembrando que a estrada é um elemento muito significativo no enredo. Logo no primeiro capítulo, “A estrada morta”, o narrador nos diz que “a guerra tinha morto a estrada” (COUTO, 2004, p. 11). Ao final, a estrada continua presente na narrativa de Kindzu: “A estrada me descaminhou. O destino o que é senão um embriago conduzido por um cego?” (COUTO, 2004, p. 220). Já na nova capa da Companhia das Letras de 2016, há um destaque para o ônibus incendiado (machimbombo), ponto de intersecção entre as duas histórias, e um imenso baobá, árvore típica da região, todo iluminado. Veja como cada capa destaca diferentes pontos da narrativa, ora realçando a figura do naparama, o sonho de Kindzu, ora sua mala com seus cadernos e a estrada morta pela guerra, e, ao fim, o ônibus incendiado, em que as histórias de Kindzu, Tuhair e Muidinga se cruzam, em um contexto específico moçambicano simbolizado pelo baobá. Observar e comparar capas é um exercício muito interessante para a compreensão da própria narrativa, a partir de diferentes pontos de vista. Infelizmente, há capas que não são bem elaboradas. Fique atento. 118 Unidade II As areias do imperador Figura 33 – Capas das edições brasileiras da trilogia As areias do imperador Fonte: Couto (2015a; 2016a; 2018). A partir de 2015, Mia Couto adentrou uma nova forma de romance, a metaficção, aos moldes de José Saramago e José Eduardo Agualusa, entre outros, iniciando a trilogia As areias do imperador, em que retoma fatos históricos em uma nova perspectiva, acrescentando histórias e personagens fictícios, fios condutores da narrativa. Essas obras situam-se nos últimos anos do século XX, época em que o sul de Moçambique era governado por Ngungunyane (ou Gungunhane, como ficou conhecido pelos portugueses), o último dos líderes do Estado de Gaza, segundo maior império no continente comandado por um africano. No primeiro livro, Mulheres de cinzas, vamos conhecer o sargento português Germano de Melo, que foi enviado ao vilarejo de Nkokolani para a batalha contra o imperador, que ameaçava o domínio colonial. Ali, o militar encontra Imani, uma garota de 15 anos que aprendeu a língua dos europeus e será sua intérprete. Ela pertence à tribo dos VaChopi, uma das poucas que ousou se opor à invasão de Ngungunyane. Mas enquanto um de seus irmãos lutava pela Coroa de Portugal, o outro se unia ao exército dos guerreiros do imperador africano. O envolvimento entre Germano e Imani passa a ser cada vez maior, mesmo que sejam tão diferentes. O romance é narrado alternadamente pela voz de ambos. Leia um pequeno trecho do primeiro capítulo, quando Imani nos conta sobre a chegada dos soldados do imperador Ngungunyane a sua aldeia: 119 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA Mulheres de cinzas Certa vez, já a manhã peneirada, uma bota pisou o Sol, esse Sol que a mãe havia eleito. Era uma bota militar, igual à que os portugueses usavam. Desta vez, porém, quem a trazia calçada era um soldado nguni. O soldado vinha a mando do imperador Ngungunyane. Os imperadores têm fome de terra e os seus soldados são bocas devorando nações. Aquela bota quebrou o Sol em mil estilhaços. E o dia ficou escuro. Os restantes dias também. Os sete sóis morriam debaixo das botas dos militares. A nossa terra estava a ser abocanhada. Sem estrelas para alimentar os nossos sonhos, nós aprendíamos a ser pobres. E nos perdíamos da eternidade. Sabendo que a eternidade é apenas o outro nome da Vida. Fonte: Couto (2015a, p. 15). Com talento e sensibilidade, Mia Couto compõe uma narrativa atual e universal, pois a guerra e seus opressores, infelizmente, não cessam de existir. Saiba mais Leia no site da Companhia das Letras sobre os dois outros livros da trilogia As areias do imperador. Também estão disponíveis, gratuitamente, trechos para leitura: COUTO, M. Sombras da água. São Paulo: Companhia das Letras, 2016a. Disponível em: https://cutt.ly/lHwMJN5. Acesso em: 10 maio 2022. COUTO, M. O bebedor de horizontes. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. Disponível em: https://cutt.ly/mHwMX4I. Acesso em: 10 maio 2022. Contos do nascer da Terra Mia Couto é um grande contista e há várias coletâneas de seus contos disponíveis, ótimas para trabalhar com os alunos da educação básica. Em Contos do nascer da Terra, publicados orginalmente em 2009, encontraremos histórias inusitadas, de fantasia e maravilhamento, com diferentes reflexões para o mundo real, com uma linguagem poética muito envolvente, bons exemplos do estilo de Mia Couto. Destacamos “O não desaparecimento de Maria Sombrinha”, “A viagem da cozinheira lacrimosa”, “A menina sem palavra” e “Raízes”. Vejamos um trecho de “Raízes”,uma rica alegoria para o mundo da imaginação e da criação literária: Contos do nascer da Terra Uma vez um homem deitou-se, todo, em cima da terra, A areia lhe servia de almofada. Dormiu toda a manhã e quando tentou levantar não conseguiu. Queria mexer a cabeça: não foi capaz. Chamou pela mulher e pediu-lhe ajuda. 120 Unidade II — Veja o que me está a prender a cabeça. A mulher espreitou por baixo da nuca do marido, puxou-lhe levemente pela testa. Em vão. O homem não desgrudava do chão. — Então, mulher? Estou amarrado? — Não, marido, você criou raízes. — Raízes? Já se juntavam como vizinhanças. E cada um puxava sentença. O homem, aborrecido, ordenou à esposa: — Corta! [...] E desistiram. Um por um se retiraram. Uma mulher, dia seguinte, chamou os sábios. Que iria ela fazer para desprender o homem da terra inteira? Pode-se tirar toda a terra, sacudir as remanescentes areias, disse um. Mas um outro argumentou: assim teríamos que transmudar o planeta todo inteiro, acumular um monte de terra do tamanho da terra. E o enraizado, o que que se faria dele e de todas as suas raízes? Até que falou o mais velho e disse: — A cabeça dele tem que ser transferida. E para onde, santos deuses? Se entreolharam todos, aguardando pelo parecer do mais velho. — Vamos plantar a cabeça dele lá! E apontou para cima, para as celestiais alturas. Os outros devolveram a estranheza. Que queria o velho dizer? — Lá, na lua. E foi assim, por estreia, um homem passou a andar com a cabeça na lua. Nesse dia nasceu o primeiro poeta. Fonte: Couto (2010a, p. 197-199). 121 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA A água e a águia Nessa obra dedicada ao público infantil, e não somente, Mia Couto faz um trocadilho com as palavras “água” e “águia”, materializando suas letras. O livro trata da falta de água e nos leva a refletir como nosso meio ambiente e toda a natureza têm sido cada vez mais desprezados e destruídos. As ilustrações são belíssimas, em plena harmonia com o belo texto de Mia Couto. Figura 34 – Capa de A água e a águia Fonte: Couto (2019, capa). O mapeador de ausências Figura 35 – Capa da edição brasileira de O mapeador de ausências Fonte: Couto (2021, capa). 122 Unidade II Em seu romance mais atual, Mia Couto compõe uma narrativa com nuances autobiográficas, baseando-se na vida de seu pai, o qual, como ele mesmo esclarece, foi um jornalista e poeta português que, em 1973, recebeu as provas fotográficas de um massacre realizado pelas tropas portuguesas em Moçambique e envolveu-se inocentemente em uma trama misteriosa. O protagonista do romance é Diogo Santiago, um professor universitário em Maputo, que volta à Beira, sua cidade natal, após muito tempo, às vésperas do grande ciclone que arrasou a cidade em 2019, fato real, para receber homenagens a seu falecido pai. Saiba mais Veja a entrevista de Mia Couto para a historiadora Lilian Schwarcz: LILI entrevista | Mia Couto. 2019. 1 vídeo (11 min). Publicado pelo canal Lili Schwarcz. Disponível em: https://youtu.be/hgJTAT_0mlA. Acesso em: 10 maio 2022. Veja também o vídeo a seguir: MIA Couto – Há quem tenha medo que o medo acabe. 2013. 1 vídeo (7 min). Publicado pelo canal Despertai Consciências. Disponível em: https://youtu.be/5xtgUxggt_4. Acesso em: 10 maio 2022. 5.2.7 Ungulani Ba Ka Khosa (1957–) Figura 36 – Ungulani Ba Ka Khosa Fonte: Ba Ka Khosa (2016, orelha). 123 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA Ungulani Ba Ka Khosa tem sua obra marcada pelo desejo de recontar a história de Moçambique e de seus atores por um outro prisma, diferente da visão oficial dos colonizadores. O livro Ualalapi, de 1987, conta a história do guerreiro homônimo que recebe a missão de matar o rei hosi (rei, imperador, em língua tsonga) Mafename, a mando de seu próprio irmão Ngungunhane-Gungunhana que se torna, assim, o imperador de Gaza. Esse imperador é famoso pela resistência que opôs aos portugueses nos finais do século XIX, mas a narrativa revela que Ngungunhane era um homem cruel e violento, um tirano para o seu povo. Como vimos, anos depois, a história desse imperador também é narrada ficcionalmente por Mia Couto, em sua trilogia As areias do imperador, publicada a partir de 2015. Em 2018, a editora Kapulana publicou o livro Gungunhana, que reúne a história de Ualalapi acrescida de As mulheres do imperador, a qual apresenta a queda do imperador e seu exílio de 15 anos em Portugal. Mas as protagonistas são suas mulheres, que o acompanham nesse degredo. Na fotografia a seguir vemos Gungunhana com suas esposas em Lisboa: Figura 37 – O imperador Gungunhana e suas esposas Disponível em: https://cutt.ly/pHyXopN. Acesso em: 11 maio 2022. Outras obras de Ungulani Ba Ka Khosa publicadas no Brasil são o livro de contos Orgia dos loucos, de 2016, um dos finalistas do Prêmio Jabuti, e a obra infantil O rei mocho. 124 Unidade II Figura 38 – Capa de Orgia dos loucos Fonte: Ba Ka Khosa (2016, capa). Na contracapa de Orgia dos loucos lemos: Em Orgia dos loucos, todos os passos parecem caminhar para o fim, realidade sugerida, aliás, na recorrência de imagens e processos escatológicos que tecem os contos. Paradoxalmente, a experiência caótica do fim dos corpos, fim dos homens, fim do mundo, aponta pela própria essência cíclica da vida, para a construção de outros começos (TEIXEIRA, 2016, contracapa). Vejamos um trecho do comovente conto “Morte inesperada”: Morte inesperada [...] — O que é que se passa? — Morreu um homem. — Em que andar? — No décimo, mamã –, e os dois moços desapareceram. E depois vieram outros, e a gritaria aumentou. A velha tentou lançar-se às escadas. O corpo não a ajudou. Em vez de se preocupar de novo com o andar sinistrado teve o cuidado de perguntar pelo nome do filho, com a nítida preocupação de não querer ouvir o nome do filho. Ao chegar ao quinto andar, após inúmeras perguntas, informaram-na, longe de saberem que se tratava da mãe. Nada 125 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA mais fez que sentar-se e esvair as lágrimas que saltavam dos olhos encovados e cansados com tal intensidade que em poucos segundos atingiram os seios flácidos, e continuaram a descer, em jorros contínuos, pelo vestido, ensopando-o e colando-o ao corpo. Minutos depois, levada pelo pressentimento infundado de que a morte tocara outra porta, subiu as escadas, recordando-se, no entanto, como todas as mães abaladas pelo infortúnio de um filho perdido em plena força da idade, do dia em que largara a enxada e percorrera, com as mãos e joelhos assentes na terra, o atalho que levava a casa, sentindo o filho bulindo no ventre. As mulheres acorreram no seu encalço e levaram-na à cabana principal. Foi o princípio duma semana de dores intensas ante o espanto e o medo das velhas que a largaram no fim do primeiro dia, cientes de que o demônio que carregava não mais viria, pois de tantas cenas macabras a que já puderam assistir nunca presenciaram cena igual, em que uma mulher de tanto gritar passara a uivar como os cães que pela noite adentro vão lançando maus presságios nas casas trancadas. O curandeiro, chamado a propósito, confessara, após três dias e três noites de trabalho intenso, ser incapaz de esconjurar os maus espíritos que dela se tinham apossado. E os uivos preencheram os dias e as noites até que Simbine, no sétimo dia, assomou por entre as coxas da mãe que desmaiou no momento em que acabara de lançar um uivo tão lancinante que as pessoas que cercavam a casa enterraram as mãos e os rostos na areia branca, enquanto outras, mais distantes, atiraram-se às mangueiras que cobriam o átrio. Terás uma morte maldita, filho, disse-lhe, anos depois, o filho já adolescente, quando este recusava ir à escola, invocando razões já invocadas pelo avô, quando em redor do fogo que lançava chispas intermitentes a noite polvilhada de estrelas, afirmara que os pretos viveram séculos sem o quinino e o livro, e que a sua vitalidade ia de gerações em gerações, e sua Históriacorria na memória fértil dos velhos que habitaram estas terras antes dos homens da cor do cabrito esfolado entrarem com o barulho das suas armas, a sua língua e os seus livros. [...] Fonte: Ba Ka Khosa (2016, p. 71-80). Em um contexto contemporâneo e urbano, o narrador nos relata a morte a tiros de dois homens presos no elevador de carga em um prédio no subúrbio de uma cidade moçambicana, assim como a angústia de uma mãe para saber se aquele era ou não seu filho, descrito por ela como um delinquente. A culpa e a dor perseguem essa mulher, que já havia amaldiçoado o filho quando pequeno. O estilo de Ungulani é marcante e envolvente. Saiba mais Para saber mais sobre o autor e suas obras, leia a seguinte entrevista: WEG, R. M. Entrevista com Ungulani Ba Ka Khosa, moçambicano, autor de “Gungunhana: Ualalapi | As mulheres do Imperador”. Kapulana, 4 out. 2018. Disponível em: https://cutt.ly/NHyMtMg. Acesso em: 11 maio 2022. 126 Unidade II Haveria ainda muitos outros autores e obras a serem apresentados a você, aluno, uma vez que a literatura moçambicana é riquíssima e variada e cada vez mais tem sido publicada no Brasil, fazendo parte de estudos acadêmicos e agradando aos leitores e à crítica. Sugerimos então que pesquise a respeito e encontre outras obras e autores para ampliar seus horizontes. 6 CABO VERDE Cabo Verde é composto por um conjunto de dez ilhas vulcânicas e cinco ilhotas cobertas de vegetação tropical. Devido à sua localização, foi entreposto para navegantes e comerciantes de escravos, lembrando que, de 1936 a 1974, os portugueses mantiveram na ilha o campo de concentração do Tarrafal. Lembrete O português é a língua oficial de Cabo Verde, mas o crioulo cabo-verdiano (krioulu kauberdianu) é a língua materna, falada e escrita, uma mistura do português e de línguas africanas nativas. O crioulo é a base da identidade cultural desse país e atravessa fronteiras. Grande parte de sua população tem emigrado, devido tanto à precariedade econômica quanto ao clima muito instável, alternando períodos de fortes chuvas e longas secas. É um país de grande riqueza cultural, destacando-se principalmente na literatura e na música. Santo Antão Mauritânia Senegal Oceano Atlântico Sal MaioSantiago Fogo PraiaBrava Mindelo Santa Luzia São Vicente São Nicolau Boa Vista Figura 39 – Mapa de Cabo Verde Adaptada de: https://cutt.ly/MHy06Xt. Acesso em: 11 maio 2022. 127 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA Saiba mais Uma das cantoras cabo-verdianas mais famosas é Cesária Évora. Ouça-a cantando a música “Sodade”, em crioulo. Saudade, um tema muito comum na música e na literatura: ÉVORA, C. Sodade. Vagalume. [s.d.]. Disponível em: https://cutt.ly/KHy2YbE. Acesso em: 10 maio 2022. Assista também: #QICURTAS – crioulo cabo-verdiano. 2019. 1 vídeo (3 min). Publicado pelo canal Qi News. Disponível em: https://youtu.be/Hin8RdZ1IJU. Acesso em: 10 maio 2022. Como ocorreu em Angola e Moçambique, a literatura cabo-verdiana também começou com a imprensa, por meio dos periódicos Cabo Verde, em 1907, A voz de Cabo Verde, em 1911, O Mindelense, em 1913, O cabo-verdiano, em 1918, entre outros. Em 1936, surgiu a revista Claridade, que durou até meados de 1960 e tinha como lema “fincar os pés na terra cabo-verdiana”. Um dos destaques da revista era o escritor Baltasar Lopes, e ela contava também com a colaboração de Jorge Barbosa, Manuel Lopes, Antônio Aurélio Gonçalves, Henrique Teixeira de Sousa, Jorge Pedro Barbosa, Orlanda Amarílis, entre outros. Esses autores possuíam uma educação literária portuguesa e europeia (em especial, na literatura francesa do século XIX) e são considerados os criadores da literatura cabo-verdiana. Eles introduziram temas como a estiagem, a emigração ou diáspora e a vida urbana. Alguns analistas literários tendem a dividir a trajetória da literatura cabo-verdiana em três grandes fases: pré-claridosa, na qual se localizam autores denominados “nativistas”; claridosa, que se projetou em torno da revista Claridade; e pós-claridosa, de ruptura, que vai de 1960 até a atualidade. Dessa última geração, destacam-se Amílcar Cabral, Corsino Fortes, Jorge Carlos Fonseca, João Vário, Vera Duarte, Dina Salústio, Germano Almeida, entre outros. 128 Unidade II Saiba mais Para conhecer melhor a literatura cabo-verdiana e seus autores, recomendamos o site da ACL (Academia Cabo-Verdiana de Letras): Disponível em: https://bit.ly/3zLDFP6. Acesso em: 10 maio 2022. Leia também o livro: GOMES, S. C.; PEREIRA, É. A. (org.). Literatura cabo-verdiana: seleta de poesia e prosa em língua portuguesa. Belo Horizonte: Nandyala, 2015. Traremos aqui apenas uma pequena mostra da literatura cabo-verdiana. 6.1 Baltasar Lopes (1907-1989) Baltasar Lopes da Silva estudou Direito e Filologia na Universidade de Lisboa. Retornando a Cabo Verde, tornou-se professor. Foi cofundador da revista Claridade e sua obra mais conhecida é o romance Chiquinho, de 1947, considerado o primeiro romance cabo-verdiano. Foi também poeta, ensaísta e estudioso do crioulo. Chiquinho narra a infância e a juventude de Francisco Soares, um rapaz na ilha de São Nicolau, contendo elementos autobiográficos do autor. Vejamos um excerto dessa obra, que trata da escravidão: Chiquinho Grande negreiro era nhô Maninho Bento, capitão de navios de escravatura. Ia buscar negros à Costa d’África para Cabo Verde, Brasil e Oeste Índia. Os escravos vinham em três-mastros, a monte, e dizia-se que em viagem muitos morriam e os botavam ao mar. Mamãe-Velha ainda conheceu um escravo trazido por nhô Maninho. Falava um crioulo arrevesado, misturado com palavras da língua dele, e todos os dias prostava-se no chão, a matutar não se sabe em quê. Ficaram na tradição as crueldades de nhô Maninho. Dizem até que na casa onde ele morreu há todas as noites grande arrastar de correntes e gritos agoniados. É a alma de nhô Maninho, remorsada pelas judiarias com os negros. Nhô Quimquim Soares era outro Senhor cruel com os escravos. Botava-lhes correntes nos pés para o trabalho. Por qualquer coisa, dava-lhes de rebém e nas cortaduras punha sal e pimenta. Teve um fim triste, nhô Quinquim. Certo dia, só por desaforo de corpo, deu dois lanhos na cara a um escravo da Guiné, rapaz brioso e decidido. O negro suportou a 129 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA afronta em silêncio, mas à noite, em companhia de outros negros, entrou feito um leão no quarto do senhor e amarrou-o. Levaram nhô Quinquim para o fundo da tabuga, abriram uma grande cova, e ali o enterraram vivo. Mas de uma maneira geral, os escravos eram tratados quase como família. Tinham as suas festas, e era um gosto vê-los nas danças. Sua grande festa era a Páscoa do Espírito Santo. Nesse dia tinham liberdade. Saíam em procissão, mas tudo com governo: havia reis, rainhas, pajens. À frente, ia o meirão com a vela encruzada ao vento, segurada por uma linha a servir de escota. À noite os negros iam foliar para casa de nhô João Tomé, na Ladeira, onde dançavam lundu e outras danças trazidas da Costa d’África. Vocabulário Rebém: chicote. Tabuga: cemitério. Meirão: bandeira. Fonte: Lopes (1986, p. 20-21). Observe como a escravidão é tratada de forma ambígua. Apesar de todas as humilhações e maus-tratos sofridos, há os que consideravam que havia um lado bom, com festas e animação. Note também a linguagem do texto, com muitos termos em crioulo. 6.2 Orlanda Amarílis (1924-2014) Orlanda Amarílis Lopes Rodrigues Fernandes Ferreira nasceu na ilha de Santiago e morou seis anos em Goa, na Índia, onde conclui seu curso de magistério. Esposa do também escritor Manuel Ferreira, foi membro do Movimento Português contra o Apartheid e da ACL. Começou a escrever contos para a revista Certeza em 1944 e desde então notabilizou-se como grande contista. Suas obras são: Cais do Sodré té Salamansa (1974), Ilhéu dos pássaros (1983), A casa dos mastros (1989) e Facécias e peripécias (1990), dedicada ao público infantil. Uma marcaimportante nos contos de Orlanda Amarílis é a forma como trata a infância, assim como as situações vividas na diáspora, nas quais o racismo e as saudades da pátria se revelam, com destaque também para as experiências femininas. Em documentário para a RTP, a contista diz: Ela (a mulher) vai tendo a consciência das suas possibilidades, e ele o conhecimento do seu valor, isto é, das mesmas possibilidades. [...] Homem e mulher serão amanhã os companheiros que se completam [...]. Então o mito da inferioridade feminina será para todos, como já é agora para nós, um fantasma da civilização (GRANDES..., 2014). 130 Unidade II Vejamos um excerto do conto “Thonon-les-Bains”, que trata das experiências da filha Piedade e do enteado Gabriel de nh’Ana (dona Ana), que emigraram para a França: Thonon‑les‑Bains Gabriel ia dando notícias sobre aquele frio de França em Thonon-les-Bains perto da fronteira com a Suíça. França tem muito frio, mamãe, mas gente põe galochas forradas, luvas e capote. Mana fez-me um gorro e um cachecol vermelho. Anteontem foi domingo e, por acaso, encontrei Mochinho um moço badio de Ribeira da Barca. Ele apalpou o meu cachecol e experimentou o meu gorro e riu muito, mamãe. Disse eu estava rascon, já podia conquistar menina-branca de Thonon. O seu trabalho no torno numa fábrica de esquis agradava-lhe sobremaneira. Descrevia em pormenor como apertava os parafusos, dava a volta aqueles paus informes, aparava-os, alindava-os à força de máquinas, desapertava os parafusos de novo e lá iam eles para outras mãos fortes para os polirem, depois para outras para lhes colocarem os ferros e assim por diante. A irmã estava no serviço de colar as etiquetas e dar uma limpeza final a cada esqui. Não fiques apoquentada com esta conversa sobre o frio de Thonon, mamãe, porque mana também faz limpeza no hotel de manhãzinha muito cedo e o patrão deixa-nos dormir no caveau da escada no corredor onde tem um calorzinho sabe dia e noite. Piedade procurava sossegar a mãe, estivesse descansada porque aqui na França não é preciso coser enxoval. A gente vai nos magasins e compra tudo, roupa de casa, roupa de-baixo, tudo-enquanto. Ela e Gabriel iam arranjar para morar junto duns amigos, patrícios de Santanton, tinham uma casa grande, ela ia ficar a morar aí quando casasse. Jean era um bocado ciumento, tinha quarenta e dois anos, era separado de uma outra mulher, mas era muito seu amigo. Trazia-lhe chocolates quando vinha namorar com ela, tudo à vista de Gabriel e dos seus amigos. Nunca ficava só com ele porque Gabriel não deixava, sempre a espiar, até os dois amigos eram capazes de lhe ir contar qualquer coisa mal feita ela viesse a fazer. Nh’Ana descansou. A filha não esquecera ainda os bons ensinamentos de sua mãe. Esta, no entanto, evitava falar nas cartas à sua comadre. Era boa criatura, mas debaixo de suas boas intenções ainda era capaz de deitar algum quebranto na vida de sua filha. Quebranto podia apanhar qualquer pessoa em qualquer idade. Por isso gente põe os fios de conta, pretas e brancas, de volta das barrigas de menino-novo, por baixo do umbigo. Gente-grande não precisa de um fio de conta de quebranto, mas quando desconfia de quebranto vindo por via de um elogio quase sempre (inveja), de um olhar intenso (mau olhado), é fazer figas com a mão esquerda escondida por entre as saias, debaixo de uma prega ou mesmo com a mão atrás das costas. Figa canhota, bardolega, mar de Espanha. E assim a força malfazeja de olhar ou das palavras é afastada. 131 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA Ia guardando as cartas debaixo do pano bordado da cômoda ou então debaixo da caixa de joias. Algumas vezes relia-as para saborear as coisas sabe-de-mundo de França, terra onde todos os menininhos falavam francês desde pequeninos. Assim iam passando os dias, nh’Ana a pensar no seu botequim no seu negócio para depois do casamento da Piedade. Todavia, ou por muitos afazeres ou por um pouco de preguiça, as cartas da filha iam rareando. Uma vez por outra quando dava notícias eram logo umas quantas folhas de papel de carta daquelas azuis ou cor-de-rosa com flores estampadas, coisas só mesmo de França. Não parecia muito entusiasmada com a perspectiva do casamento, mas continuava a dizer bem do noivo, era seu amigo dava-lhe muitos presentes, já a tinha levado duas vezes à Suíça, era muito perto de Thonon, só atravessar a fronteira e pronto. Gabriel abria-se mais com a madrasta. Mãe Ana, comprei anteontem uma televisão a cores. Sabe como é? As pessoas se estão vestidas de encarnado ou de azul, a gente vê tudo tal e qual de encarnado de azul ou verde. A minha televisão está em frente da minha cama e quando a quero apagar tenho uma maquininha onde carrego num botão e já está. É como uma pistola, mãe Ana. Aponto para a televisão e carrego no botão e ela apaga-se. Não é uma coisa bonita, mãe Ana? [...] Vocabulário Badio: que nasceu na Ilha de Santiago. Caveau: seria cofre em francês, mas parece se referir a um compartimento embaixo da escada. Fonte: Amarílis (1982, p. 18-21). Observamos nesse conto o modo de vida dos cabo-verdianos na diáspora, longe de seu país, sempre em busca de melhores condições de vida, mas que vivem em situação precária, sem mesmo um lugar decente para dormir. O conto é polifônico, trazendo diferentes vozes narrativas. As vozes de Gabriel e Piedade chegam ao leitor por meio de suas cartas à mãe. A essas vozes mesclam-se também as reflexões de Nh’Ana. Podemos supor que essas pessoas em diáspora acabem por suprimir detalhes mais dolorosos, para não preocupar a mãe. Veja que interessante a visão tradicional da mãe, preocupada que a filha fizesse “qualquer coisa mal feita”, mas sabia que era “comportada”, assim como fala da inveja e do mau-olhado e das mandingas para combatê-los. A descrição que Gabriel faz da televisão em cores é bem peculiar, aguçando as diferenças sociais e materiais dos emigrados. 132 Unidade II Saiba mais Sobre o conto “Thonon-les-Bains”, leia o artigo: PEREIRA, K. Violência, gênero e diáspora na curta ficção africana de língua portuguesa. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC, 12., 2011, Curitiba. Anais [...]. Curitiba: Abralic, 2011. Disponível em: https://cutt.ly/LHr655w. Acesso em: 10 maio 2022. 6.3 Corsino Fortes (1933-2015) O poeta Corsino Antônio Fortes nasceu na Ilha de São Vicente e formou-se em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa. Presidiu a Associação dos Escritores de Cabo Verde e foi o primeiro presidente da ACL. Além de sua preocupação com a cultura e literatura cabo-verdiana, exerceu as funções de juiz, embaixador e ministro da Justiça. Em 2001, foi publicada a obra A cabeça calva de Deus, composta pelos livros Pão & fonema, Árvore & tambor e Pedras de sol & substância, publicados anteriormente. Sua poesia é bastante original e moderna e traz importantes reflexões sobre o país e seu povo. Entre seus temas estão paisagem, clima, problemas de seca, fome, diáspora, música e cultura. Leia um trecho de um de seus poemas: De boca a barlavento I Esta a minha mão de milho & marulho Este o sol a gema E não o esboroar do osso na bigorna E embora O deserto abocanhe a minha carne de homem E caranguejos devorem esta mão de semear Há sempre Pela artéria do meu sangue que g o t e j a 133 LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA De comarca em comarca A árvore E o arbusto Que arrastam As vogais e os ditongos para dentro das violas [...] Fonte: Fortes (2001, p. 10). Observe como o poeta trabalha com a materialidade das palavras, aos moldes dos poetas concretistas brasileiros. O sangue goteja e parece escorrer pela página, letra a letra. Uma situação dolorosa de um homem do campo, um semeador, metaforicamente ou não, morrer sob o sol escaldante do deserto, é apresentada com uma carga semântica e ritmo primorosos. Saiba mais O concretismo foi um movimento literário que surgiu em meados da década de 1950 (seguindo os passos das artes visuais, a arte concreta) representado
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