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No tópico três da última aula de Literatura Brasileira III, chamado sintomaticamente “Uma inquietação prenuncia o Pós-Modernismo”, vimos que a linguagem poética e, por extensão, a própria linguagem literária, começa a questionar sua insuficiência para acessar o real, para veicular uma compreensão incontestável de verdades, que começam a ser abaladas. Temos aí então o que chamamos estética da falta, da fratura, da impossibilidade. A disciplina de Literatura Brasileira III encerrou-se com dois poemas de Carlos Drummond de Andrade, que incorporavam essa inquietação. Vamos retomar essa linha de tensão da poesia de meados do século XX como ponto de partida para o estudo desse momento da literatura brasileira que começa aí e que podemos chamar de Modernismo tardio, ou Pós- modernismo. No ano de 1945, Carlos Drummond de Andrade publicou um livro de poemas chamado A rosa do povo, que ficou conhecido por sua postura combativa, em que denuncia as mazelas do capitalismo, os horrores da guerra e a iniquidade das injustiças sociais. Entretanto, figura nesse livro que se poderia chamar engajado um poema, hoje canônico, que diverge do tom compromissado dos demais, e que faz uma reflexão importante sobre o fazer poético. O poema é “Procura da poesia”. Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Como cronista e contista, escreveu, entre outras obras, Fala, amendoeira, A bolsa e a vida, Quadrante 1 e 2 e cadeira de balanço. Na poesia, é possível observarmos a presença de pelo menos quatro fases. Vejamos: 1. Fase gauche: consciência e isolamento Nessa fase são comuns o pessimismo, o individualismo, o isolamento, a reflexão existencial, além de certas atitudes permanentes que se estenderão por toda a obra do autor, tais como a ironia e o uso da metalinguagem. Poema de sete faces Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos , raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode. Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo. 2. Fase social Nessa fase, o eu-lírico de seus poemas manifesta interesse pelos problemas da vida social, da qual estivera isolado até então. De certa forma, o gauchismo da primeira fase é deixado de lado. Essa mudança de postura diante da realidade observada nos poemas de Drummond relaciona- se ao contexto histórico, marcado pelo nazi-fascismo e a Segunda Guerra Mundial. No Brasil, viu-se ainda a Intentona Comunista (1935) e a ditadura de Vargas (1937- 45). Em todo o mundo se verificava o crescimento de uma literatura social engajada numa causa política. Percebe-se que muitos poemas são postos a serviço da causa revolucionária, transformada em instrumento de luta e de expressão da esperança e da solidariedade. Mãos dadas Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considere a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma história. Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela. Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida. Não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente. 3) O signo do não Na década de 1950, a poesia de Drummond tomou novos rumos. O período crítico de guerras, ditaduras e medo tinha passado. O mundo vivia então a Guerra Fria e o poeta acumulava o desencanto de sua aventura política pela poesia. A partir de Claro enigma, a criação poética de Drummond começou a seguir duas orientações: de um lado, a poesia reflexiva, filosófica e metafísica – em que, com frequência, aparecem os temas da morte e do tempo; de outro, a poesia nominal, com tendências ao Concretismo, em que ressalta a preocupação com recursos fônicos, visuais e gráficos do texto. um ausente Tenho razão de sentir saudade, tenho razão de te acusar. Houve um pacto implícito que rompeste e sem te despedires foste embora. Detonaste o pacto. Detonaste a vida geral, a comum aquiescência de viver e explorar os rumos de obscuridade sem prazo sem consulta sem provocação até o limite das folhas caídas na hora de cair. Antecipaste a hora. Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas. Que poderias ter feito de mais grave do que o ato sem continuação, o ato em si, o ato que não ousamos nem sabemos ousar porque depois dele não há nada? Tenho razão para sentir saudade de ti, de nossa convivência em falas camaradas, simples apertar de mãos, nem isso, voz modulando sílabas conhecidas e banais que eram sempre certeza e segurança. Sim, tenho saudades. Sim, acuso-te porque fizeste o não previsto nas leis da amizade e da natureza nem nos deixaste sequer o direito de indagar porque o fizeste, porque te foste. 4) Fase final: tempo de memória A produção poética de Drummond das décadas de 1970 e 1980 dá amplo destaque ao universo da memória. Nela, ao lado de temas universais, são retomados e aprofundados certos temas que nortearam toda obra do escritor, tais como a infância, Itabira, o pai, a família, a piada, o humor, o cotidiano e a auto-ironia. Itabira Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê Na cidade toda de ferro as ferraduras batem como sinos. Os meninos seguem para a escola. Os homens olham para o chão. Os ingleses compram a mina. Só, na porta da venda, Tutu caramujo cisma na derrota incomparável. A poesia da década de 40 do século XX deixa transparecer uma certa descrença nos projetos modernistas de transformação da poesia e da sociedade, uma em diálogo com a outra, projetos esses em geral presididos pela noção de identidade nacional. Alguns críticos literários demonstram, por sua vez, descrença em relação aos descrentes, isto é, reivindicam a volta de uma poesia que “diz”, que “afirma”, que contém “verdades” que possam ser verificadas no âmbito da sociedade. Vivemos uma fase crítica, demasiado refinada nuns, demasiado grosseira noutros; em todo o caso, pouco criadora, embora muito engenhosa. Em poesia, as melhores vozes ainda nos vêm de antes, como a de Henriqueta Lisboa (Flor da morte, 1949) ou Vinícius de Moraes (Poemas, sonetos e baladas, 1946), para não citar Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade, cujos primeiros livros são de 1930, ou Manuel Bandeira, pré-modernista e modernista da primeira hora. No romance, é significativo o êxito de um veterano, José Geraldo Vieira, cuja obra é revalorizada depois da publicação, em 1943, de A quadragésima porta. Obra de cunho cosmopolita, às voltas com problemas intemporais do destino humano, não raro tendo a Europa por cenário, carregada de intenções simbólicas,de vistosa erudição e complicados arrojos vocabulares. Não menos significativo, o de Clarice Lispector (Perto do coração selvagem, 1944; O lustre, 1946), que situa os seus romances fora do espaço, em curiosas encruzilhadas do tempo psicológico. Mais significativo do que tudo, porém, são as revistas e agrupamentos poéticos e críticos, as mais das vezes fascinados por problemas de organização formal da sensibilidade, de clarividência poética, e manifestando irritada impaciência com as impurezas literárias da geração anterior. (Antônio Cândido) A POESIA DA INQUIETAÇÃO Henriqueta Lisboa foi a segunda filha do farmacêutico e deputado federal João de Almeida Lisboa e de sua esposa Maria de Vilhena Lisboa. Foi a primeira mulher eleita membro da Academia Mineira de Letras. Publicou vários ensaios e poesias. Seu primeiro livro, chamado Fogo fátuo, foi publicado quando ela tinha vinte e um anos. Para as crianças, Henriqueta dedicou três obras: O menino poeta (1943), Lírica (1958) e a reedição de O menino poeta, em 1975. Este último livro foi lançado em disco, pelo Estúdio Eldorado. Henriqueta Lisboa recebeu diversos prêmios, entre eles o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras. Ela também foi inspetora de alunos, professora de literatura e tradutora - Henriqueta traduziu os famosos Cantos de Dante Alighieri. JOÃO CABRAL DE MELO NETO João Cabral de Melo Neto (Recife, 9 de janeiro de 1920 — Rio de Janeiro, 9 de outubro de 1999) foi um poeta e diplomata brasileiro. Sua obra poética, que vai de uma tendência surrealista até a poesia popular, porém caracterizada pelo rigor estético, com poemas avessos a confessionalismos e marcados pelo uso de rimas toantes, inaugurou uma nova forma de fazer poesia no Brasil. Irmão do historiador Evaldo Cabral de Melo e primo do poeta Manuel Bandeira e do sociólogo Gilberto Freyre, João Cabral foi amigo do pintor Joan Miró e do poeta Joan Brossa. Membro da Academia Pernambucana de Letras e da Academia Brasileira de Letras, foi agraciado com vários prêmios literários. Quando morreu, em 1999, especulava-se que era um forte candidato ao Prêmio Nobel de Literatura. Entre outras obras, João Cabral publicou O cão sem plumas, O rio, A educação pela pedra e Museu de tudo. CARACTERÍSTICAS LITERÁRIAS Quando o leitor é confrontado com a poesia de Cabral percebe-se, a princípio, um certo número de algumas dualidades antitéticas, trabalhadas com um certo barroquismo e à exaustão. Entre espaço e tempo, entre o dentro e o fora, entre o maciço e o não-maciço… Entre o masculino e o feminino, entre o Nordeste desértico e a Andaluzia fértil, ou entre a Caatinga desértica e o úmido Pernambuco. É uma poesia que causa algum estranhamento a quem espera uma poesia emotiva, posto que seu trabalho é basicamente cerebral e "sensacionista", buscando uma poesia construtivista e comunicativa, objetiva. Embora exista uma tendência surrealista em seus poemas, principalmente nos iniciais, como em Pedra do Sono, buscando uma poesia que fosse também expressiva, João Cabral não precisa recorrer ao pathos ("paixão") para criar uma atmosfera poética, fugindo de qualquer tendência romântica, mas busca uma construção elaborada e pensada da linguagem e do dizer da sua poesia, transformando toda a percepção em imagem de algo concreto e relacionado aos sentidos, principalmente ao do tato, como pode-se perceber bem em Uma faca só lâmina. Neste poema, Cabral apresenta a imagem da faca através da sensação de vazio que a facada deixa na carne, contrastando com a própria faca sólida que a penetra. Algumas palavras são usadas sistematicamente na poesia deste autor: cana, pedra, osso, esqueleto, dente, gume, navalha, faca, foice, lâmina, cortar, esfolado, baía, relógio, seco, mineral, deserto, asséptico, vazio, fome. Coisas sólidas e sensações táteis: uma poesia do concreto. Seu universo poético é essencialmente nordestino, com muitas referências à zona da mata e ao sertão. Fiel às origens, o autor pernambucano trouxe para o poema a aridez dos espaços em que se criou. A linguagem que utiliza aparece despida de ornamentos. As imagens da realidade são reduzidas à sua essência e as palavras estão dispostas em uma organização rigorosa. A reflexão sobre o fazer poético é um dos principais temas do autor. São freqüentes em sua obra, os metapoemas, ou seja, os poemas que falam sobre a composição poética. Catar Feijão Catar feijão se limita com escrever: jogam-se os grãos na água do alguidar e as palavras na folha de papel; e depois, joga-se fora o que boiar. Certo, toda palavra boiará no papel, água congelada, por chumbo seu verbo: pois para catar esse feijão, soprar nele, e jogar fora o leve e oco, palha e eco.[...] Vale lembrar que a sua obra inaugural, Pedra do sono (1942), ja apresentava uma inclinação para a objetividade, embora esteja identificada com a orientação surrealista. A partir da obra seguinte, O engenheiro (1945), verifica-se um afastamento da linha surrealista e uma tendência crescente à geometrização e à exatidão, como se o poeta procurassse ter como exemplo o trabalho de um engenheiro. A luz, o sol, o ar livre envolvem o sonho do engenheiro. O engenheiro sonha coisas claras: superfícies, tênis, um copo de água. O lápis, o esquadro, o papel; o desenho, o projeto, o número: o engenheiro pensa o mundo justo, mundo que nenhum véu encobre. [...] Talvez se possa afirmar que a poesia de João Cabral tenha sido a primeira a estabelcer um corte profundo entre a poesia romântica e a moderna. Para o poeta, a poesia não é o fruto de inspiração nem de estados emocionais, como o amor, a alegria,, etc.; ela resulta de um trabalho racional árduo, que implica fazer e desfazer várias vezes o texto até que atinja sua forma mais adequada. No conjunto da obra de Cabral, destacam-se três tendências fundamentais: a preocupação com a realidade, na qual se destaca seu trabalho mais conhecido, Morte e Vida Severina, a reflexão permanente sobre a criação artística, e o aprimoramento da poética da linguagem objeto, isto é, a linguagem que, pela própria construção, procura sugerir o assunto retratado. MORTE E VIDA SEVERINA — O meu nome é Severino, como não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mais isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Como então dizer quem falo ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites da Paraíba. CECÍLIA MEIRELES Primeira mulher a alcançar destaque no cenário da poesia brasileira, Cecília Meireles escreveu vários livros de poesia em que desenvolveu as tendências da corrente espiritualista da segunda geração. Na sua obra destacam-se Espectros (1919), Baladas para El-Rei (1925), Viagem (1939), Vaga música (1942), Mar absoluto (1945), Retrato natural (1949), Romanceiro da Inconfidência (1953), Canções (1956) e o livro de poesias infantis Ou isto ou aquilo (1964). Sua sensibilidade manifestava-se na valorização da intuição e da emoção como formas de interpretar o mundo. O lirismo delicado que caracteriza sua poesia está intimamente ligado a imagens da natureza (a água, o mar, o ar, o vento, o espaço, a rosa, etc.) e do infinito, compondo uma atmosfera de sonho e de fuga. Dotada de um forte rigor formal, o trabalho de Cecília Meireles apresenta preocupação com a seleção vocabular e com o verso curto. A efemeridade das coisas e a fugacidade do tempo – temas explorados pela tradição clássica,especialmente pelo Barroco – são também abordados pela poetisa e constituem um dos pontos altos de sua poesia. Retrato Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: — Em que espelho ficou perdida a minha face? Motivo Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta. Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento. Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, ― não sei, não sei. Não sei se fico ou passo. Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: ― mais nada. CLARICE LISPECTOR De origem judaica, terceira filha de Pinkouss e de Mania Lispector. A família de Clarice sofreu a perseguição aos judeus, durante a Guerra Civil Russa de 1918-1921. Seu nascimento ocorreu em Chechelnyk, enquanto percorriam várias aldeias da Ucrânia, antes da viagem de emigração ao continente americano. Chegou no Brasil quando tinha dois meses de idade. A família chegou a Maceió em março de 1922, sendo recebida por Zaina, irmã de Mania, e seu marido e primo José Rabin. Por iniciativa de seu pai, à exceção de Tania – irmã, todos mudaram de nome: o pai passou a se chamar Pedro; Mania, Marieta; Leia – irmã, Elisa; e Chaya, Clarice. Pedro passou a trabalhar com Rabin, já um próspero comerciante. Clarice Lispector começou a escrever logo que aprendeu a ler, na cidade do Recife, onde passou parte da infância. Falava vários idiomas, entre eles o francês e inglês. Cresceu ouvindo no âmbito domiciliar o idioma materno, o iídiche. Em 1939 Clarice Lispector ingressou na faculdade de direito, formando-se em 1943. Trabalhou como redatora para a Agência Nacional e como jornalista no jornal "A Noite". Casou-se em 1943 com o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem viveria muitos anos fora do Brasil. O casal teve dois filhos, Pedro e Paulo, este último afilhado do escritor Érico Veríssimo. Foi hospitalizada pouco tempo depois da publicação do romance A Hora da Estrela com câncer inoperável no ovário, diagnóstico desconhecido por ela. Faleceu no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes de seu 57° aniversário. Clarice publicou romances, contos, crônicas e literatura infantil. De suas mais de vinte obras destacam-se: Perto do coração selvagem, Laços de família (contos, 1960), A paixão segundo G.H. (romance, 1964), Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (romance, 1969), Água viva (prosa, 1973), A hora da estrela (romance, 1977) A bela e a fera (contos, 1979). CARACTERÍSTICAS LITERÁRIAS Estreando em 1944 com o romance Perto do coração selvagem, Clarice Lispector tornou-se uma das mais importantes escritoras brasileiras. Inicialmente mal compreendida pela crítica, introduziu em nossa literatura técnicas novas, que obrigavam a uma revisão de critérios avaliativos. Sua narrativa subverte com frequência a estrutura dos tradicionais gêneros narrativos ( o conto, a novela, o romance), quebra a sequência “começo, meio e fim”, assim como a ordem cronológica, e funde a prosa à poesia, ao fazer uso constante de imagens, metáforas, antíteses, paradoxos, símbolos, sonoridades, etc. Outro aspecto inovador da prosa de Clarice é o fluxo da consciência, uma experiência mais radical do que a introspecção psicológica, já praticada por vários escritores desde o Realismo no século XIX. A introspecção psicológica tradicional procura desvendar o universo mental da personagem de forma linear, com espaços determinados e com marcadores temporais nítidos. O leitor tem pleno domínio da situação e distingue com facilidade um momento do passado – revivido pela personagem por meio da memória – de um momento presente ou de um momento de imaginação. O fluxo de consciência quebra esses limites espaço- temporais que torna a obra verossímil. Por meio dele presente e passado, realidade e desejo se misturam. Como se fosse um painel de imagens captadas por uma câmera instalada no cérebro de uma personagem que deixa o pensamento solto, o fluxo de consciência cruza vários planos narativos, sem preocupação com a lógica ou com a ordem narrativa. Essas experiências já vinham sendo feitas no exterior pelos escritores Marcel Proust e James Joyce. No Brasil, foi Clarice quem as introduziu. Muitas vezes, além do fluxo de consciência, as personagens de Clarice vivem também um processo epifânico. Esse processo pode ser interrompido a partir de fatos banais do cotidiano: um encontrão, um beijo, um olhar, um susto. A personagem, mergulhada num fluxo de consciência passa a ver o mundo e a si mesma de outro modo. É como se tivesse tido, de fato, de uma revelação e, a partir dela, passasse a ter uma visão mais aprofundada da vida, das pessoas, das relações humanas, etc. De modo geral, esses momentos epifânicos são dilacerantes e dão origem a rupturas de valores e questionamentos filosóficos e existenciais, permitindo a aproximação de realidades opostas, tais como nascimento e morte, bem e mal, amor e ódio, matar ou morrer por amor, seduzir e ser seduzido, etc. Outra característica recorrente, na ficção de Clarice, é a presença constante de animais que representam o “coração selvagem” da vida, que pulsa descontrolada, sem se submeter às regras e expectativas sociais. Essa é uma forma também revolucionária de simbolizar a busca incessante das personagens pela libertação das amarras sociais . Clarice Lispector nunca aceitou o rótulo de escritora feminista. Apesar disso, muitos de seus romances e contos têm como protagonistas personagens femininas, quase sempre urbanas. Seus temas, no conjunto, são essencialmente humanos e universais, como as realações entre o eu e o outro, a falsidade das relações humanas a condição social da mulher, o esvaziamento das relações familiares e, sobretudo, a própria linguagem – única forma de comunicação com o mundo. ESTRUTURA RECORRENTE Se os temas abordados pela autora têm em comum o desejo de esmiuçar os processos interiores dos seres humanos, as narrativas também seguem uma estrutura semelhante, que o crítico Affonso Romano de Sant’Anna definiu em quatro passos: 1. A personagem é disposta numa determinada situação cotidiana. 2. Prepara-se um evento que é pressentido discretamente pela personagem (algo como uma inquietação). 3. Ocorre o evento que ilumina sua vida (epifania) 4. Apresenta-se o desfecho, no qual a situação da vida da personagem, após a epifania, é reexaminada. TRECHOS PARA ANÁLISE Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida. Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólidado que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem. No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha - com persistência, continuidade, alegria.[...] [...]Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles. Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar - o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir - como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada - o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão - Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava - o bonde estacou, os passageiros olharam assustados. (LISPECTOR, Clarice. Amor. Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. P. 19-20. Fragmento) GUIMARÃES ROSA Foi o primeiro dos sete filhos de Florduardo Pinto Rosa ("Fulô") e de D. Francisca Guimarães Rosa ("Chiquitinha"). Autodidata, começou ainda criança a estudar diversos idiomas, iniciando pelo francês quando ainda não tinha 7 anos, como se pode verificar neste trecho de entrevista concedido a uma prima, anos mais tarde: “Eu falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituano do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do checo, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração”. Ainda pequeno, mudou-se para a casa dos avós, em Belo Horizonte, onde concluiu o curso primário. Iniciou o curso secundário no Colégio Santo Antônio, em São João del-Rei, mas logo retornou a Belo Horizonte, onde se formou. Em 1925, matriculou-se na então "Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais", com apenas 16 anos. Em 27 de junho de 1930, casou-se com Lígia Cabral Pena, de apenas 16 anos, com quem teve duas filhas: Vilma e Agnes. Ainda nesse ano se formou e passou a exercer a profissão em Itaguara, então município de Itaúna (MG), onde permaneceu cerca de dois anos. Foi nessa localidade que passou a ter contato com os elementos do sertão que serviram de referência e inspiração a sua obra. De volta de Itaguara, Guimarães Rosa serviu como médico voluntário da Força Pública (atual Polícia Militar), durante a Revolução Constitucionalista de 1932, indo para o setor do Túnel em Passa-Quatro (MG) onde tomou contato com o futuro presidente Juscelino Kubitschek, naquela ocasião o médico-chefe do Hospital de Sangue. Posteriormente, entrou para o quadro da Força Pública, por concurso. Em 1933, foi para Barbacena na qualidade de Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria. Aprovado em concurso para o Itamaraty, passou alguns anos de sua vida como diplomata na Europa e na América Latina. No Brasil, em sua segunda candidatura para a Academia Brasileira de Letras, foi eleito por unanimidade (1963). Temendo ser tomado por uma forte emoção, adiou a cerimônia de posse por quatro anos. Em seu discurso, quando enfim decidiu assumir a cadeira da Academia, em 1967, chegou a afirmar sob tom sarcástico: "…a gente morre é para provar que viveu.". Faleceu três dias mais tarde na cidade do Rio de Janeiro, em 19 de novembro. CARACTERÍSTICAS LITERÁRIAS Realismo mágico, regionalismo, invenções linguísticas e neologismos são algumas das características fundamentais da literatura de Guimarães Rosa, mas não as suficientes para explicar seu sucesso. Guimarães Rosa prova o quão importante é ter a linguagem a serviço da temática, e vice-versa, uma potencializando a outra. O caráter regionalista que definiu a ficção da geração de 1930 aparece completamente transformado nas obras de Guimarães Rosa. As marcas regionais são evidentes nos termos utilizados, na recriação da fala de jagunços e de vaqueiros do interior de Minas. As questões tematizadas, porém, vão muito além de uma perspectiva regional. Em suas narrativas, Rosa nos revela os grandes dramas humanos: a dor, a morte, o ódio, o amor, o medo. Indagações filosóficas são expressas por homens simples, incultos, deixando claro que os grandes fantasmas da existência podem ser identificados em qualquer lugar, desde um grande centro urbano até um minúsculo vilarejo nos sertões das Gerais. Essa incansável busca de respostas para as angústias humanas faz com que o regionalismo, na ficção de Guimarães Rosa, ganhe uma dimensão universal. Guimarães Rosa tornou-se conhecido primeiro pelo livro de contos Sagarana. Quando a obra surgiu, em 1948, causou surpresa pela linguagem, que recriava o português como língua literária e dava uma dimensão nova ao regionalismo, vertente tão explorada na literatura brasileira. A novidade linguística trazida pelo regionalismo de Rosa foi a de recriar na literatura, a fala do sertanejo não apenas no plano do vocabulário, como outros autores tinham feito, mas também no da sintaxe (a construção da frase) e no da melodia da frase. Dando voz ao homem do sertão por meio de técnicas como o foco narrativo em 1ª pessoa, o discurso direto, o discurso indireto, o monólogo interior, a língua falada no sertão está presente nas obras do autor, resultado de muitos anos de observação, anotações e pesquisa linguística. GRANDE SERTÃO: VEREDAS Grande Sertão: veredas é a expressão máxima do que a ensaísta Dirce Cortes Riedel chamou de “sertão construído na linguagem", isto é, o sertão dos Campos Gerais apropriado e recriado pela poesia rosiana. Mais extensa das narrativas do autor, o livro é a narração pelo personagem Riobaldo, de suas andanças pelo sertão. O jagunço Riobaldo conta sua saga a um ouvinte letrado, cuja presença é perceptível apenas pelas marcas que deixa no discurso do narrador. O projeto de João Guimarães Rosa em Grande Sertão: veredas é o de discorrer sobre elementos universais, alegoricamente contextualizados em um ambiente pretextualmente regional, numa escrita poética marcada por inúmeras idiossincrasias. Dessa forma, eleva-se o sertão à condição de locus hominis: “o sertão é do tamanho do mundo”. O sertão é “onde o pensamento da gente se forma mais forte que o poder do lugar”. Local onde a vida contemplativa e absurda suplanta o automatismo da técnica modernae do senso comum (“quando acordei, não cri: tudo que é bonito é absurdo - Deus estável”). Nesse ambiente, o homem transborda de sua individualidade e redescobre-se no mundo. A aridez sertaneja, enfatizada sobretudo na linguagem visceralmente regionalista, contrasta com a dimensão universal da narrativa de Riobaldo. Homem e mundo, realidade e devaneio, mundano e divino, são aspectos de um mesmo conflito, exaustivamente contemplado pela literatura universal (casos paradigmáticos são a Ilíada, de Homero; a Divina Comédia, de Dante; o Dom Quixote, de Miguel de Cervantes e o Fausto, de Goethe) e que na obra de Guimarães Rosa figura sob o paradoxismo sertão-grande sertão. “E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente”. Guimarães Rosa declarou que esse romance é sua "autobiografia irracional". O grande sertão é o acontecimento do milagre no “vai-vem da vida burra” e cética, descrente de si. É a constatação plena de que "viver é negócio muito perigoso". Como "autobiografia", é a proposta de se viver de forma transcendente à limitada condição humana: ao invés de "viver para contá-la", o autor vai "contar para vivê- la". TRECHOS PARA ANÁLISE Lugar sertão se divulga;é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá - fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães...O sertão está em toda a parte." " Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada. Os bandos bons de valentões repartiram seu fim; muito que foi jagunço, por aí pena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no comércio vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje de gibão é feio e capiau." “De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava... (...) Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é a história de um sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!" " O senhor... Mira veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas -- mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. " TUTAMÉIA Publicado em julho de 1967, poucos meses antes da morte de Guimarães Rosa, Tutaméia [Terceiras estórias] é a reunião de 40 histórias extremamente curtas, que haviam sido veiculadas anteriormente no jornal Pulso, uma publicação dedicada aos médicos. No seu lançamento, o livro causou estranheza à crítica e aos leitores quer pelo número e extensão dos trabalhos, quer pelo próprio título que afirmava serem aquelas as 'terceiras estórias', sem que, no entanto, tivesse havido as 'segundas', depois do livro anterior. Visto isso, foram os que se perguntaram como encarar o livro de Guimarães Rosa: se como uma 'anedota de abstração' [expressão utilizada pelo próprio autor em um dos prefácios], como síntese de todo o trabalho, ou como um novo momento de escrita em que a linguagem - o texto falando de si próprio - seria predominante. Infelizmente, a questão sobre uma 'nova fase' nos textos de Guimarães Rosa ficou em aberto. Os livros que seriam publicados posteriormente em edições póstumas eram apenas coletâneas de material escrito em diferentes épocas e ainda não-publicado. Restou o livro em si como enigma. Um fato, entretanto, não se pode negar: nas 40 histórias, o enredo é muito tênue. São, como afirma Assis Brasil, no livro Guimarães Rosa, 'apenas 'seqüências', 'episódios', atos 'circunstanciais' - a trama eliminada, a história, fica apenas a vida a expor-se, a entremostrar, neste painel de tutaméias'. Isso faz com que se tenham flashes sobre determinadas situações que o leitor atento deve captar e, pelo raciocínio, completar, dando-lhe continuidade. Há, portanto, em todo o livro, um movimento de solicitar a participação efetiva do leitor. IMPORTANTE BERNARDO CARVALHO foi editor do suplemento de ensaios Folhetim, e correspondente da Folha de São Paulo em Paris e Nova Iorque. Seus dois primeiros livros foram editados na França. Bernardo Carvalho teve o seu livro Mongólia distinguido com o Prêmio APCA da Associação Paulista dos Críticos de Arte, edição 2003, bem como o Prêmio Jabuti de 2004, ambos na categoria romance. Antes, ele recebeu, a meias com Dalton Trevisan (Pico na Veia), o Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira, com o romance Nove Noites. NOVE NOITES Nove Noites, sexto livro de Bernardo Carvalho, narra uma investigação sobre a misteriosa morte de um antropólogo americano, Buell Quain, que aos 27 anos, em 1939, se suicida após uma estada em uma aldeia indígena situada no Tocantins, no Brasil, quando subitamente regressava à civilização. No meio da floresta, Quain, sem motivos aparentes, retalhou-se e enforcou-se na frente de dois índios horrorizados que o acompanhavam na volta para a cidade da Carolina. Este é o ponto de partida da narrativa de Bernardo Carvalho: um caso trágico, senão mórbido, perdido nos anos e na memória. Bernardo decidiu, a partir de tão poucas informações, tecer um romance utilizando a história fatídica de Buell Quain como base, entrelaçando história e ficção, texto jornalístico e um estranho narrador que entrecorta todo o livro. O narrador / confessor do antropólogo responde pela parte ficcional de Nove Noites, ao passo que o próprio Bernardo Carvalho encarna e responde pelo lado jornalístico, do levantamento de dados que indiquem os reais motivos que levaram Buell Quain a dar cabo de sua existência. Não se sabe quem investiga, até porque ninguém nunca lhe perguntou a razão da sua curiosidade. Há a desculpa de querer escrever um livro, que vai adiantando para não levantar suspeitas. A mistura que o autor tenta levar a termo é extremamente interessante como recurso literário: insere fotos e personagens da década de 1930 na história, como pessoas reais ou imaginárias, o leitor nunca sabe exatamente onde está pisando. Pela sua mão somos guiados por entrevistas com pessoas que privaram com Quain, arquivos públicos, e memórias deixadas em cartas, escritas pelo suicida antes de morrer, e por um seu amigo, com quem partilhou nove noites de conversas e revelações. São vários mistérios que se interligam, e adensam a narrativa, em que o leitor partilha a claustrofobia e evasão de identidade das personagens. Da mesma forma, Bernardo Carvalho abre um campo de especulação na mente do leitor, não somente sobre os motivos que ocasionaram a morte de Buell Quain, mas principalmente sobre o significado e as conseqüências da transferência de um jovem norte-americano para o interior das florestas brasileiras. O autor junta habilmente a realidade e a ficção, o romance e a investigação que desenvolveu sobre os índios e sobre o antropólogo. Como nos diz o próprio autor nos agradecimentos é uma combinação de memória e imaginação, - como todo o romance, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos direta. Em outras palavras, Nove Noites é um excelente exemplo do nem sempre salutar choque cultural. Nove Noites desconstrói as estratégias da narrativa realista e propõe um jogo com o real, jogo no qual, além de desconstruir as estratégiasda narrativa realista, este romance desafia os modos nos quais a cultura de massas "consome" realidade. A história de Quain é verdadeira. O autor soube dela por um artigo no "Jornal de Resenhas", da "Folha de S. Paulo", escrito pela antropóloga Mariza Corrêa, em que o caso era citado de passagem. A história do escritor, ao menos em parte, também procede: na orelha do livro há uma foto de Carvalho, aos seis anos, ao lado de um índio do Xingu, região onde seu pai de fato fora proprietário de terras. O resto permanece em suspense - e nem o próprio autor parece disposto a separar fato de ficção.
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