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A Análise do Discurso Prof.ª Aline Saddi Chaves Descrição Origem, fases e perspectivas da Análise do Discurso. Os conceitos de formação discursiva, interdiscurso e ideologia. As condições de produção do discurso. Propósito Compreender as condições sociais e históricas do surgimento da Análise do Discurso, bem como seus principais conceitos, para ampliar o conhecimento linguístico e a capacidade leitora. Preparação Tenha em mãos ou consulte na Internet um dicionário da área de estudos linguísticos, como o Dicionário de Termos Linguísticos, hospedado no Portal da Língua Portuguesa. Você também pode consultar o Dicionário de Análise do Discurso, organizado por Charaudeau e Maingueneau. Objetivos Módulo 1 Origem, correntes e perspectivas da Análise do Discurso Identificar a origem, as fases e as perspectivas da Análise do Discurso. Módulo 2 Formação discursiva, interdiscurso e ideologia Definir os conceitos de formação discursiva, interdiscurso e ideologia. Módulo 3 As condições de produção do discurso Reconhecer as condições de produção do discurso. Introdução Vamos estudar a origem da Análise do Discurso (AD), no contexto social e político efervescente da França do final dos anos 1960. Vamos conhecer a evolução da teoria do discurso em suas três fases e apresentar algumas perspectivas atuais em Análise do Discurso. Também aprofundaremos nossos conhecimentos sobre a concepção teórica da Análise do Discurso, abordando três de seus conceitos basilares: a formação discursiva, o interdiscurso e a ideologia. Ainda trabalharemos nossa compreensão sobre as condições de produção do discurso, conceito que atribui à Análise do Discurso uma especificidade com relação às outras abordagens teóricas da língua em uso, ou seja, a relação intrínseca que todo discurso, sob a forma material de textos, institui com a história, o sujeito e a ideologia. Vamos aos nossos estudos! 1 - Origem, correntes e perspectivas da Análise do Discurso Ao �nal deste módulo, você será capaz de identi�car a origem, as fases e as perspectivas da Análise do Discurso. A origem da Análise do Discurso A Análise do Discurso: conjuntura histórica e teórica No final dos anos 1960, a Linguística encontrava-se em plena expansão, fruto de uma tradição de mais de 40 anos em torno da língua (langue), definida por Ferdinand de Saussure como um sistema de signos socialmente compartilhado e essencialmente explicado a partir de uma visão interna e sem relação com seus usos reais nos variados contextos de fala. Não se pode negar, entretanto, que o estudo da língua em uso já estava em curso, especialmente nas abordagens funcionalistas da língua, a exemplo da Sociolinguística, da Pragmática e da Linguística Textual. Isso significa que, por um lado, o chamado “núcleo duro” da Linguística (fonologia, morfologia, lexicologia, sintaxe e semântica) encontrava-se estabilizado e disciplinarizado, enquanto suas margens, formadas pelas abordagens funcionalistas, tentavam explicar a relação entre a língua e seus elementos externos. A Análise do Discurso veio abalar ainda mais a compreensão sobre o funcionamento da língua em sua relação com o contexto extralinguístico. Avançando em um terreno pouco familiar para os linguistas, a teoria do discurso permaneceu algum tempo às margens da academia, o que se explica por alguns motivos. Vejamos pelo menos dois motivos que retardaram a aceitação e legitimação da Análise do Discurso como uma disciplina teórica das ciências da linguagem. Primeiro motivo: o contexto do movimento de Maio de 1968 Grafite em uma sala de aula da Universidade de Lyon durante a revolta dos estudantes em 1968. Primeiramente, é necessário situar o contexto de surgimento da Análise do Discurso na França efervescente do final dos anos 1960. Mais precisamente, em 1968, Paris foi palco de um movimento que transformaria profundamente os comportamentos, consequência tardia da Revolução Francesa, considerada uma revolução eminentemente política e administrativa. Protestos de maio de 1968, em Paris. O Maio de 1968 foi um movimento político e cultural que deu início às primeiras manifestações organizadas de estudantes, lotando as ruas de Paris, como forma de protesto ao ensino rígido e tradicionalista. Rapidamente, outras pautas e categorias se associaram ao movimento, a exemplo da luta feminista e operária, resultando em um acontecimento social difuso e ainda atualmente objeto de debates e reflexões, como forma de compreender aquele que foi um período único, considerado até mesmo o maior movimento político da França no século XX. É nessa conjuntura social e política que o jovem filósofo Michel Pêcheux, pesquisador na École Normale Supérieure (ENS), inicia sua aventura teórica. Motivado por questões alheias, em princípio, à Linguística, Pêcheux se associa a alguns colaboradores para pensar uma ciência das ideologias. Sendo a língua um vetor de posicionamentos sociais, não demoraria muito até que o filósofo se interessasse por um tema caro à Linguística, e mais especificamente à Semântica: o problema do sentido, até então tratado como “significado”. Segundo motivo: o discurso como objeto de estudo O segundo motivo pelo qual a Análise do Discurso tardou a se estabelecer no meio universitário e nas comunidades científicas pode ser explicado pelo objeto que atraía a atenção de seus estudiosos: o discurso. Esse objeto não se confunde com a gramática, nem com a língua-sistema. Em sua concepção francesa original, o discurso não é um objeto empírico, mas um conceito teórico que permite explicar o processo de construção de sentido dos textos, mediante uma teorização e um método inovadores, sustentados por três pilares: língua, sujeito e ideologia. Como explica Maldidier (2003, p. 15), a respeito do empreendimento de Michel Pêcheux, o discurso “é o lugar teórico em que se intrincam literalmente todas suas grandes questões sobre a língua, a história, o sujeito”. Propor uma tal concepção de língua/linguagem representou uma significativa ruptura da sólida tradição de interpretação de textos na França. Situada no cruzamento da Linguística, da Psicanálise e da História, a Análise do Discurso inova por seu caráter interdisciplinar, ao mesmo tempo que abala os estudos sobre o significado na língua, isto é, a Semântica. Mais especificamente, a Análise do Discurso propõe um estudo linguístico das condições de produção do discurso. Essa afirmação contém uma questão primordial para se compreender o conceito de discurso, e que distingue a Análise do Discurso de outras abordagens da língua em uso (funcionalistas). A pesquisadora Eni Orlandi nos explica: A contribuição da Sociolinguística, nesse sentido, é a de que se deve observar o uso atual da linguagem; e a da Pragmática é a de que a linguagem em uso deve ser estudada em termos dos atos de fala. Embora essas questões indiquem uma certa mudança em relação à dominância dos estudos da gramática, não produzem um rompimento maior, mas apenas o de se acrescentar um outro componente à gramática. O discurso caracteriza-se como o que vem a mais, o que vem depois, o que se acrescenta. Em suma, o secundário, o contingente. (ORLANDI, 1986, apud BRANDÃO, 1993, p. 16) Como vimos, a Análise do Discurso estuda as condições de produção do discurso, servindo-se, para esse propósito, da língua como materialidade significante, atravessada pela ideologia. Em sua origem, a Análise do Discurso não integrava as preocupações da Linguística, pois o projeto inicial de Pêcheux e de seus colaboradores era constituir uma ciência das ideologias. Apesar disso, as interlocuções do filósofo francês com linguistas como Catherine Fuchs e Françoise Gadet, entre outros, resultou na aproximação gradativa da Análise do Discurso para com as problemáticas caras à Linguística, em particular o estudo do significado, relegado à Semântica. Na abordagem teórica da Análise do Discurso, a noção de significado cede lugar à de sentido; uma diferença que não se restringeà terminologia empregada, mas a uma concepção renovada de língua e linguagem. Orlandi nos oferece também uma explicação sobre esse ponto: A análise de discurso não trabalha com a língua enquanto um sistema abstrato, mas com a língua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a produção de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja O que vem a ser, então, esse algo a mais? enquanto sujeitos seja enquanto membros de uma determinada forma de sociedade. (ORLANDI, 2015, p. 13) O discurso é o objeto teórico em torno do qual a teoria se estabelece, pois, como explica Maldidier (2003, p. 45), “ele liga todos os fios: da linguística e da história, do sujeito e da ideologia, da ciência e da política”. É a partir do conceito de discurso que outros irão surgir, a exemplo de formação discursiva, pré-construído, paráfrase, polissemia, interdiscurso e memória discursiva, conceitos que estudaremos mais adiante. As três fases da Análise do Discurso francesa Primeira fase A primeira fase da Análise do Discurso estende-se de 1969 a 1975. Em 1969, é publicada a obra fundadora da AD: Análise automática do discurso (GADET; HAK, 2014). Trata-se de uma fase experimental, em que o conceito de discurso é introduzido pela primeira vez. O conceito é proposto nos seguintes termos: [O discurso é] uma reformulação da fala saussuriana, desembaraçada de suas implicações subjetivas. (MALDIDIER, 2003, p. 22) Para Pêcheux, assim como a língua (langue) forma um sistema, a fala (parole, para Saussure) também é autorregulada, constituindo uma “maquinaria discursiva” determinada por condições de produção supostamente estáveis. Nessa fase, predominam os conceitos de ideologia e sujeito inconsciente. Estudam-se, preferencialmente, os chamados discursos doutrinários, isto é, fortemente regulados pelo Estado, a exemplo dos textos políticos. Segunda fase A segunda fase da Análise do Discurso estende-se de 1975 a 1981. Em 1975, é publicada a obra Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Nessa fase, o discurso deixa de ser considerado um objeto fechado, à medida que os autores observam as relações que os discursos entretêm uns com os outros. Os conceitos de formação discursiva e interdiscurso vão aparecer nessa fase, contribuindo para consolidar uma das teses centrais da Análise do Discurso: a de que as palavras que pronunciamos não são nossas, mas encontram seu sentido na história e nas instâncias sociais a partir das quais nós falamos. Tais instâncias, chamadas de formação social (política, escola, mídias etc.), constituíram-se historicamente a partir de um sistema de representações sociais, a formação ideológica, que, por sua vez, adquire forma material em textos, assim surgindo o conceito de formação discursiva. Disso resulta que o discurso é, em última instância, o produto das dinâmicas sociais, históricas e ideológicas. Terceira fase A terceira fase da Análise do Discurso tem início em 1980, ano em que acontece o colóquio Materialidades discursivas, na Universidade de Nanterre, na França. Segundo Maldidier (2003), enquanto as fases anteriores consistiram em tentativas de construção da teoria, a última fase marcou um período de questionamentos e revisão do edifício teórico da Análise do Discurso. Re�exão Questionava-se, por exemplo, se não haveria uma relação intrínseca entre a Análise do Discurso e seu objeto, especialmente uma relação política, o que colocaria em jogo o caráter científico da proposta. Somou-se a esse quadro o enfraquecimento do conceito de ideologia, agravado pela ruptura da união da esquerda na França, bem como um interesse crescente pelo estudo dos discursos ordinários, e não mais exclusivamente dos textos doutrinários. Ao invés de máquina estrutural, autorregulada e homogênea, o discurso passa a ser concebido como uma “máquina paradoxal”, constitutivamente heterogêneo. A heterogeneidade é, com efeito, a palavra que melhor resume a terceira fase, promovendo a abertura da máquina discursiva (e por extensão, da própria teoria) rumo à descrição das formas linguísticas da alteridade. Em outras palavras, entra em cena o outro, que pode ser compreendido como “outro sujeito”, “outro discurso”, “outra voz”, que constitui os sujeitos em sua incompletude e explica, em larga medida, o sentido das palavras, e de forma mais ampla, dos textos. No colóquio Materialidades discursivas, Pêcheux entra em contato com Jacqueline Authier, linguista que será responsável por renovar o quadro teórico e analítico da Análise do Discurso, com efeitos que se fazem sentir até os dias atuais. Em sua tese de doutorado, publicada sob a forma de livro, Authier propõe uma refinada descrição da heterogeneidade discursiva, servindo-se para esse propósito de três principais contribuições: a Análise do Discurso francesa, a Psicanálise lacaniana e o princípio dialógico da linguagem, tal como trabalhado pelo Círculo de Bakhtin. A problemática do discurso adquire novos ares, passando a integrar questões até então pouco abordadas, e até mesmo vetadas na Análise do Discurso que se poderia chamar de “clássica”. Authier propõe o estudo de enunciados proferidos em situações corriqueiras de linguagem, extraídos de falas cotidianas. Além disso, busca em Bakhtin o princípio dialógico da linguagem, segundo o qual todo enunciado responde aos anteriores e institui um novo diálogo, resultando no caráter ininterrupto e irrepetível dos discursos. A contribuição do princípio dialógico da linguagem na Análise do Discurso é fundamental para se compreender o devir dessa disciplina nas décadas seguintes. Com efeito, ao propor uma descrição linguística das formas da alteridade discursiva, Authier promove uma abertura da Análise do Discurso para os estudos enunciativos, até então rechaçados por seus fundadores. Integrar as questões enunciativas ao estudo do discurso significa levar em conta não somente o outro, sujeito inconsciente, mas também o outro interlocutor, ou seja, a dimensão imediata da fala, o que permitiu aproximar a Análise do Discurso das problemáticas da enunciação, como os atos de fala, as interações orais, os gêneros do discurso, e não longe dessas questões, o texto e a variação linguística. A memória é outra noção trabalhada na terceira fase. Frequentemente estudada em seu aspecto cognitivo e/ou social, a memória é trabalhada na Análise do Discurso francesa pela ótica do discurso. A memória discursiva é um conceito que potencializa a tese de que as palavras não nos pertencem, e que seus sentidos ressurgem nos textos sem que o sujeito se dê conta, visto que não tem controle sobre a língua. A memória discursiva está relacionada ao já-dito, uma vez que os dizeres não surgem no ato da enunciação, a não ser aparentemente, mas já foram formulados em outros discursos. De modo correlato à memória, trabalha-se a ideia do esquecimento. Sobre esse ponto, Orlandi nos explica o seguinte: Os sujeitos ‘esquecem’ que já foi dito – e este não é um esquecimento voluntário – para, ao se identificarem com o que dizem, se constituírem em sujeitos. É assim que suas palavras adquirem sentido, é assim que eles se significam retomando palavras já existentes como se elas se originassem neles e é assim que sentidos e sujeitos estão sempre em movimento, significando sempre e de muitas e variadas maneiras. Sempre as mesmas, mas, ao mesmo tempo, sempre outras. (ORLANDI, 2015, p. 34) A situação em que se encontrava a Análise do Discurso no início dos anos 1980 se resume a dois aspectos: O enfraquecimento da ideologia e do estudo de textos doutrinários. O crescente interesse dos estudiosos pelos discursos não doutrinários e o peso conferido ao interdiscurso e à memória discursiva. Vejamos, então, as perspectivas da Análise do Discurso, decorrentes dessa terceira fase. Perspectivas da Análise do Discurso Nos anos 1980, a Análise do Discurso deixa de ser uma teoria marginal e começa a se expandir para além do círculo restrito de Pêcheux e seus colaboradores.Já na terceira fase, como observa Maldidier (2003, p. 78), “a análise de discurso devia ser oficialmente consagrada disciplina da linguística no início dos anos 83”. Segundo a autora, o sucesso da Análise do Discurso não constituía, porém, uma garantia, pois a disciplina continuou representando “uma forma de resistência intelectual à tentação pragmática” (MALDIDIER, 2003, p. 96). Comentário A autora se refere à postura adotada por todo analista do discurso de não restringir a análise dos textos apenas ao contexto imediato de sua produção; mas, antes disso, ou para além disso, o analista deve levar em conta as condições históricas e ideológicas de produção do discurso. Sem abandonar esse espírito de resistência intelectual, na virada do século XXI, a Análise do Discurso atraiu o interesse de todo pesquisador que se propôs a estudar a construção do sentido nos textos. Seja pelo viés da Pragmática, da Linguística Textual, da Sociolinguística, da Linguística Aplicada, da Semiótica, entre outras perspectivas teóricas, a Análise do Discurso representou uma passagem obrigatória, ainda que as finalidades e os objetos tenham se acomodado aos propósitos dessas perspectivas. Disso resulta que o próprio conceito de discurso se tornou polissêmico. Segundo Dominique Maingueneau (2015, p. 24), há pelo menos oito maneiras de se conceber o discurso: O discurso é uma unidade linguística superior à frase. O discurso é uma forma de ação. O discurso é interativo. O discurso é contextualizado. O discurso é assumido por um sujeito. Nessas maneiras de se conceber o discurso, é possível notar a influência de outras áreas da Linguística, como a Pragmática e a Linguística Textual, bem como de outras ciências humanas e sociais, a exemplo da Filosofia da Linguagem, da Etnometodologia, da Psicologia de Vigotsky, do Pós-Estruturalismo, da Sociologia do Conhecimento, entre outras. Como explica Maingueneau (2015, p. 15), a Análise do Discurso é “um espaço de pesquisa fervilhante e que não pode ser remetido a um lugar de emergência exato”. No entanto, o autor considera que a França foi “um dos principais lugares de desenvolvimento da análise do discurso, talvez o lugar em que, pela primeira vez, a análise do discurso foi definida, sob esse nome, como um empreendimento ao mesmo tempo teórico e metodológico específico”. Comentário Como é possível observar, a Análise do Discurso continua sendo uma disciplina resistente a uma definição única e unânime, tendo em vista a própria história de sua constituição, atrelada a uma conjuntura política, e sua vocação para ser uma ciência das ideologias. Para Maingueneau (2015, p. 23), a instabilidade e a polivalência desse campo de estudos têm a ver, ainda, com “uma dupla apropriação da noção: por teorias de ordem filosófica e por pesquisas empíricas sobre o funcionamento dos textos”. No século XXI, são inúmeras as correntes que se valem da etiqueta do “discurso”. Entre outras denominações que surgiram em diferentes contextos geográficos e epistemológicos, podemos mencionar: Análise do Discurso francesa O discurso é regido por normas. O discurso é assumido no bojo de um interdiscurso. O discurso constrói socialmente o sentido. ADF Análise de Discurso AD Análise Crítica de Discurso ACD Análise Dialógica do Discurso ADD Análise do Discurso em Interação ADI Análise Arqueológica do Discurso AAD A título de exemplo, a Análise Dialógica do Discurso aproxima a problemática do discurso das ideias do Círculo de Bakhtin, em torno do conceito de dialogismo. Nessa vertente, trabalhada no Brasil por autores como Beth Brait (2010), o enfoque recai sobre uma concepção filosófica da linguagem. Entre as abordagens, há pontos de contato, mas também pontos de distanciamento. Na perspectiva dos estudos bakhtinianos, há uma reflexão menos centrada na língua em favor de uma concepção ampla de linguagem, de um ponto de vista mais filosófico-antropológico do que linguístico. Por outro lado, a aproximação do discurso ao dialogismo está fundamentada no projeto de constituir uma ciência para além da Linguística Geral, o que Bakhtin chamará de Metalinguística. Nesse ponto de encontro, o dialogismo contribui para reforçar a tese da “indissolúvel relação entre língua, linguagens, história e sujeitos” (BRAIT, 2010, p. 10). A partir dessas ideias mais gerais sobre a Análise do Discurso, vamos aprofundar nossos conhecimentos sobre os conceitos basilares da AD nos próximos módulos. A Análise do Discurso Assista agora a um vídeo em que se apresenta o contexto histórico do surgimento da Análise do Discurso, destacando as características de suas três fases, bem como as perspectivas desse campo dos estudos linguísticos. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 A Análise do Discurso de linha francesa surge no final dos anos 1968, contexto marcado por grande ebulição política e ideológica. Assinale a alternativa correta a respeito do surgimento da Análise do Discurso: A A Análise do Discurso aspirava ser uma ciência das ideologias. B A Análise do Discurso foi concebida por linguistas tradicionais. C O estudo da língua em uso foi inaugurado pela Análise do Discurso. D A Análise do Discurso surgiu na França no final dos anos 1970. Parabéns! A alternativa A está correta. A Análise do Discurso foi concebida pelo filósofo Michel Pêcheux, que se juntou a outros filósofos e linguistas, para pensar uma ciência das ideologias, combinando três áreas de conhecimento: a Linguística, a Psicanálise e a História. Questão 2 O conceito de discurso é uma questão central no surgimento do campo da Análise do Discurso (AD). Sobre o conceito de discurso, na primeira fase da AD, assinale a alternativa correta: Parabéns! A alternativa B está correta. O discurso foi concebido como um objeto homogêneo, sem relação com os outros discursos. A partir da segunda e terceira fases, o conceito sofreu reformulações, passando a ser teorizado como um objeto heterogêneo e atravessado por outros discursos. E A Análise do Discurso obteve uma aceitação imediata no meio científico. A O discurso desvincula a língua das condições de produção dos textos. B O discurso, inicialmente, foi entendido como um objeto homogêneo. C O discurso é um conceito abstrato e não regido por normas. D O discurso não tem a ver com a língua em uso. E O discurso desconsidera o sujeito e a ideologia. 2 - Formação discursiva, interdiscurso e ideologia Ao �nal deste módulo, você será capaz de de�nir os conceitos de formação discursiva, interdiscurso e ideologia. Formação discursiva Para construir o edifício teórico da Análise do Discurso, Michel Pêcheux e seus colaboradores desenvolveram um aparelho conceitual em torno do discurso, no qual encontramos os seguintes conceitos: Formação discursiva Interdiscurso Esses conceitos permitem o fortalecimento da seguinte tese: Há uma relação indissolúvel entre língua, sujeito e ideologia. Os conceitos de formação discursiva e de ideologia acabaram perdendo gradativamente sua força, por razões teóricas e conjunturais. Mesmo assim, eles explicam em grande parte o que move o analista do discurso: desvendar os sentidos do texto, para além de sua materialidade verbal significante. Já o conceito de interdiscurso continua sendo uma opção forte, notadamente pelo diálogo que a Análise do Discurso passou a travar com outras perspectivas teóricas da Linguística e das Ciências Humanas e Sociais. Vamos trabalhar esses conceitos começando pelo de formação discursiva. A expressão “formação discursiva” aparece pela primeira vez na obra A arqueologia do saber, publicada em 1969, do filósofo francês Michel Foucault (2008). A formação discursiva é definida como um conjunto de enunciados dispersos que entretêm uma regularidade, possível de ser resgatada e descrita pelo historiador. Confira o entendimento inicial de formação discursiva nas próprias palavras de Foucault: Nos casos em que fosse possível descrever,entre alguns enunciados, um tal sistema de dispersões, no caso em que, entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, fosse possível definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que estamos diante de uma formação discursiva [...]. (FOUCAULT, 2008, p. 56, tradução nossa) Ideologia A perspectiva teórica de Foucault é historicista, sendo ele mesmo reconhecido como um historiador das ideias. Nessa obra em particular, o filósofo propõe o método arqueológico, que nos é explicado pelo professor Roberto Baronas: A arqueologia do saber se constitui numa descrição bastante complexa e didática do método arqueológico, uma teoria que procura compreender o funcionamento dos discursos que constituem as ciências humanas, tomando- os não mais como conjuntos de signos e elementos significantes que remeteriam a determinadas representações e conteúdos, tal como pensavam os estruturalistas tributários de Saussure, mas como um conjunto de práticas discursivas que instauram os objetos sobre os quais enunciam, circunscrevem os conceitos, legitimam os sujeitos enunciadores e fixam as estratégias sérias que rareiam os atos discursivos. (BARONAS, 2011, p. 1) Como explica Baronas, a perspectiva de Foucault busca compreender o funcionamento dos discursos das Ciências Humanas, a exemplo da História, em termos de práticas e regras que regulam tais discursos, sendo a formação discursiva um conceito que permite compreender como enunciados dispersos podem ser caracterizados como pertencentes a um discurso. No método arqueológico, a língua não é um aspecto primordial, a não ser como parte das práticas discursivas, o que nos permite perceber o distanciamento dessa formulação para com as problemáticas típicas da Análise do Discurso, que atribui um papel central ao signo linguístico. Com efeito, a perspectiva foucaultiana difere dos propósitos da Análise do Discurso francesa, muito influenciada pelo marxismo, pela Psicanálise freudiana e pela Linguística saussureana. Na Análise do Discurso, o conceito de formação discursiva está relacionado a dois clássicos marxistas: A formação social A formação ideológica Partindo da tese de que “as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam [...]” (PÊCHEUX, 1988, p. 160), Pêcheux formula o conceito de formação discursiva, na obra Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio, e que transcrevemos a seguir: Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa etc.). (PÊCHEUX, 1988, p. 160, grifos do autor) Como podemos observar, em Análise do Discurso, a formação discursiva refere-se a unidades linguísticas — “palavras, expressões, proposições” —, que são diretamente determinadas pela formação ideológica na qual o sujeito está inscrito. Além disso, a formação discursiva indica que o sujeito não é livre para dizer, pois, ocupando uma dada posição naquela formação ideológica, vê-se impelido a dizer apenas “o que pode e deve ser dito”, sob a forma de um gênero discursivo, que também vem a ser uma unidade linguística, mas de grau superior à palavra. Formação discursiva na análise de vídeo de campanha política O conceito de formação discursiva é particularmente produtivo para analisar discursos polêmicos, como os discursos político e religioso. Para Maingueneau (2001, p. 243), apesar de o conceito ter-se enfraquecido, por se prestar à análise de textos doutrinários, ele continua atual para analisar posicionamentos de ordem ideológica. É o que podemos compreender na análise do texto a seguir, pertencente ao discurso político. Que Brasil você quer? O que abandona ou o que acolhe? O que debocha ou o que ampara? O que mata, mata e desmata? Ou o que cuida, protege e salva? O que quer guerra ou o que vai pra luta? O do ódio ou o do amor? ’Onde houver ódio, que eu leve o amor’ Vamos juntos pelo Brasil. (Fonte: Vídeo “Que Brasil você quer”, Partidos dos Trabalhadores, São Paulo, 2022) O texto faz parte do vídeo de campanha de um dos candidatos à presidência da República na pré-campanha eleitoral de 2022. Uma análise discursiva do texto conduz o leitor a interpretar os efeitos de sentido das palavras para além de seu significado estável ou, como diz Pêcheux, para além das evidências da língua. Com efeito, tal leitura se mostraria superficial se não levasse em conta os elementos extralinguísticos do texto, que fornecem informações sobre o sujeito produtor e receptor do texto, além do tempo e o lugar históricos em que esses dizeres se situam. Desse ponto de vista, o texto em questão deve ser relacionado às suas condições de produção, que indicam se tratar de um discurso político, produzido por um partido de posição ideológica de esquerda, o qual esteve no poder em quatro gestões anteriores, sendo depois sucedido por representantes considerados do espectro político de centro e de direita. Relacionar esse texto a tais condições de produção significa situar seu posicionamento histórico e ideológico, ou seja, significa remetê-lo a um discurso que não se originou nessa enunciação em particular, mas que já produzia sentidos anteriormente. Além dessas condições de produção, que são históricas e ideológicas, o texto também apresenta informações sobre o contexto imediato da fala. Trata-se de informações mais factuais, como: o meio de divulgação (digital); as finalidades pragmáticas (veicular uma campanha política); o gênero discursivo (vídeo); e a data (2022). Desse modo, as condições de produção envolvem tanto o contexto histórico do texto quanto o contexto imediato da fala. Esse gesto interpretativo permite ao leitor desvendar o posicionamento ideológico do texto, considerando- se que todo texto emana de uma posição-sujeito. Em se tratando de um dizer proferido pela posição-sujeito ex-presidente Lula, figura símbolo da esquerda no país, ocupante do cargo máximo da nação em anos anteriores, o texto em questão significa de um modo particular. Diremos que ele significa, na relação polêmica instalada entre a formação ideológica da esquerda, representada por Lula, e a formação ideológica da direita, representada pelo presidente Jair Bolsonaro, seu concorrente na campanha presidencial de 2022. O texto atualiza duas formações discursivas (FD) antagônicas, que podem ser assim descritas: FD DIREITA FD ESQUERDA abandona acolhe debocha ampara mata, mata, desmata cuida, protege e salva guerra vai pra luta ódio amor Tabela de exemplos de formações discursivas (FD) antagônicas. Como se pode notar, são unidades linguísticas, mais especificamente verbos conjugados na terceira pessoa do presente do indicativo e substantivos, que veiculam os posicionamentos ideológicos antagonistas a partir da visão ideológica de esquerda. Trata-se, portanto, de unidades da língua que manifestam posições ideológicas históricas: da esquerda (acolhe, ampara, cuida, luta, amor) e da direita (abandona, debocha, mata, desmata, defende a guerra, o ódio). É claro que se o texto fosse produzido por representantes de candidaturas tidas como de direita, as posições seriam outras. Comentário É nesse sentido que, para a Análise do Discurso, as palavras não são neutras e tampouco refletem o ato individual de criação dos falantes. De modo contrário, as palavras significam antes, na história, e recebem seus sentidos da formação ideológica em que o sujeito está inscrito. Essa análise discursiva, baseada no embate de duas formações discursivas, coloca em evidência outro conceito fundamental na Análise do Discurso: o interdiscurso. Isso porque, ao construirseu discurso, a posição-sujeito Lula convoca o discurso do outro, isto é, da direita, pela imagem ou representação que faz desse outro: abandono, deboche, morte, guerra, ódio. Portanto, no discurso da esquerda, proferido por Lula, aparece o discurso do outro, a direita, representada pela posição-sujeito Jair Bolsonaro, de onde se depreende que ambos os discursos entram em relação. É sobre essa relação entre discursos que falaremos a seguir. Interdiscurso Interdiscurso no sentido restrito e amplo Como pudemos notar na análise do vídeo da campanha de Lula, o conceito de formação discursiva não tem nada de homogêneo e fechado. Ao integrar o discurso do outro em seu próprio discurso, Lula deixa à mostra — pelo menos para o olhar arguto do analista do discurso — a influência dessa alteridade sobre a própria constituição do sentido de seu discurso. Desse modo, o conceito de formação discursiva tem relação direta com o conceito de interdiscurso. A esse respeito, Orlandi afirma o seguinte: O interdiscurso disponibiliza dizeres, determinando, pelo já-dito, aquilo que constitui uma formação discursiva em relação a outra. (ORLANDI, 2015, p. 41) Em outras palavras, a formação discursiva revela que o discurso é heterogêneo, pois integra outros dizeres, e ainda, portador de uma memória, pois só é possível compreender a formação discursiva antagonista a partir do que já foi dito sobre esta última. É assim que, ao assistir ao vídeo da campanha de Lula, o espectador tem acesso a dizeres que circulam sobre a direita, pelo ponto de vista da esquerda. O interdiscurso é um conceito que dá conta da relação que todo discurso entretém com outro(s) “dizeres presentes e dizeres que se alojam na memória” (ORLANDI, 2015, p. 41). Para Maingueneau (2001), o interdiscurso pode ser definido em duas dimensões: Em sentido restritivo, o interdiscurso “é uma articulação contraditória de formações discursivas que se referem a formações ideológicas antagônicas”, de acordo com Courtine (1981, p. 54 apud MAINGUENEAU, 2001, p. 286). É nesse sentido restritivo que analisamos o texto da campanha de Lula, que entra em embate com o discurso da direita. Em sentido amplo, o interdiscurso designa “o conjunto das unidades discursivas (que pertencem a discursos anteriores do mesmo gênero, de discursos contemporâneos de outros gêneros etc.) com os quais um discurso particular entra em relação implícita ou explícita” (MAINGUENEAU, 2001, p. 286). Os exemplos de interdiscurso em sentido amplo serão vistos em seguida. Vamos analisar um exemplo de interdiscurso no sentido amplo a partir de uma peça publicitária de uma marca de roupa: Dimensão restritiva Dimensão ampla Campanha publicitária “Hearts”, 1996. Neste anúncio da marca de vestuário italiana Benetton, veiculado em 1996, podemos visualizar três corações, cada um deles designado pelas palavras white, black e yellow. Para compreender esse texto, não basta relacionar a imagem de um órgão do corpo humano às palavras “branco”, “preto” e “amarelo”, escritas em inglês. O sentido desse texto reside justamente no princípio da interdiscursividade, segundo o qual todo discurso entretém uma relação, implícita ou explícita, com outro(s) discursos. Nesse caso, temos um exemplo de interdiscurso implícito, em que a alteridade (o outro discurso) não é dada a reconhecer, podendo ser apreendida somente na relação entre sentido e história. Vejamos. A marca Benetton, célebre por fundar a propaganda de tipo engajada, convoca um outro discurso para reforçar o seu próprio. Assim sendo, o discurso do anúncio só pode ser compreendido se referido a um discurso científico dominante no início do século XIX, na Europa, baseado na superioridade da raça branca sobre as demais. Tal discurso tem origem em experiências científicas que tomaram por objeto o tamanho do crânio de indivíduos caucasianos, supostamente maiores do que o de indivíduos de outras raças. Na campanha da Benetton, esse discurso ressurge, evocando uma memória de outros dizeres, neste caso, em específico, o discurso científico que tentava embasar a teoria da superioridade das raças. Tal discurso foi desconstruído no século XX, mas não deixa de criar sentidos, agindo por meio da memória e, paradoxalmente, do esquecimento. Assim, para a Análise do Discurso, a língua não é transparente, mas sujeita à falha e ao equívoco. O sentido “não existe ‘em si mesmo’ (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico [...]” (PÊCHEUX, 1988, p. 160). É nesse sentido que, no anúncio da Benetton, a relação interdiscursiva é implícita, atribuindo ao leitor a tarefa de ativar uma memória histórica e discursiva para apreender os efeitos de sentido do texto. Notemos, ainda, que o outro discurso ressurge sob uma forma diferente da que fora originalmente enunciada. Assim, no lugar de crânios, o autor da peça publicitária escolheu representar corações, o que acrescenta um valor emotivo à campanha, como é próprio da publicidade, ou seja, um discurso de alto poder simbólico e ideológico. A lembrança do discurso histórico da suposta hierarquia das raças também (ou sobretudo) fica por conta da língua, pois as palavras “branco”, “preto” e “amarelo” significam de modo não evidente, ou ainda, pela não transparência do signo. Podemos dizer que a interpretação dessas palavras como referentes de raças humanas é possível graças às condições de produção do discurso, que, entre outras coisas, informam que o gênero “anúncio publicitário engajado” aborda temas como o dessa campanha. A esse respeito, é interessante consultar outros anúncios publicitários da marca Benetton, cujos temas versam sobre situações de desigualdade social, diversidade, entre outros. Interdiscurso e intertexto Além de sua forma implícita, como no anúncio da Benetton, o interdiscurso também pode se manifestar de modo explícito. Isso ocorre nos textos em que a alteridade é dada a reconhecer ao receptor. Assim, nos casos em que o outro discurso é dado a ver e a interpretar, tem-se o intertexto, ou seja, a relação mais ou menos explícita que um texto entretém com outro. Enquanto o interdiscurso é um conceito amplo, que dá conta da relação constitutiva que todo discurso entretém com outro(s), significando pela história e pela ideologia, o intertexto é uma noção restrita, pois permite localizar a alteridade. Devemos considerar, então, que o intertexto é “um tipo particular de interdiscursividade” (FIORIN, 2010, p. 191). Vejamos um exemplo. Essa imagem que circula na Internet, na maioria das vezes na forma de meme, diz muito sobre a realidade da invasão tecnológica na vida contemporânea, em que a popularização de celulares com múltiplas funcionalidades e seu fascínio sobre as pessoas criam situações anódinas ou de banalização, tal como a que é retratada na ilustração. Vemos, assim, cinco pessoas filmando uma cena de afogamento, importando-se menos em salvar o afogado do que em eternizar a cena trágica em seus aparelhos, certamente com o intuito de fazê-la viralizar. Há memes, como essa imagem, cujo título é “Sociedade do espetáculo”, remetendo à obra homônima do filósofo francês Guy Debord, A sociedade do espetáculo, publicada em 1967, na qual o autor já refletia sobre o poder desenfreado das imagens na sociedade de massas e de consumo. O título do meme “Sociedade do espetáculo” entretém uma relação intertextual com o título da obra de Debord, textualizada ipsis litteris, ainda que sem menção ao autor da obra em questão. Sem perceber essa relação, o leitor não terá atingido a totalidade de efeito de sentido do meme, que produz sentido(s) ao colocar em relação dois discursos, mas sob o modo da intertextualidade, visto que é possível localizar a referência ao outro discurso, qual seja, a obra de Debord. Segundo essa leitura, a “sociedade do espetáculo” prenunciada por Debord, no final dos anos 1960, ganha todoo sentido nas sociedades digitais do século XXI. Desse modo, os dizeres “sociedade do espetáculo” não são transparentes, tampouco remetem a um significado estável, dicionarizado; de modo distinto, tais dizeres significam com relação à formação ideológica e discursiva da obra de Debord, em uma relação de aliança ou concordância. Mas, afinal, o que permite que os sentidos continuem circulando, seja quando a alteridade é implícita ou explícita? De modo mais consequente, é a ideologia que sustenta os dizeres; ela é a garantia de que os sentidos irão se reproduzir, a despeito do sujeito, em sua ilusão de controle da língua. É sobre o conceito de ideologia que nos debruçaremos a seguir. Ideologia O conceito de ideologia foi apropriado pela Análise do Discurso para fortalecer as bases teóricas dessa disciplina, juntamente com os conceitos de língua e sujeito. Mas em que medida a ideologia faz parte do tripé que sustenta a teoria do discurso? Lembremos que, em seu gesto fundador, a Análise do Discurso aspirava ser uma ciência das ideologias. Aliás, um dos textos publicados por Pêcheux, já em 1968, intitula-se Notas para uma teoria geral das ideologias (MALDIDIER, 2003, p. 20). Filósofo de formação, Michel Pêcheux está preocupado em elaborar uma “reflexão sobre a história das ciências e da ideologia” (MALDIDIER, 2003, p. 19). Sua motivação, bem como a de seus colaboradores na época, como Paul Henry e Michel Plon, é construir um projeto original e inédito, em torno de um objeto novo: o discurso. Comentário A hipótese desses pesquisadores é a de que algumas ciências “sob acobertamento do sujeito psicológico, ignoram, ou não querem saber, de sua relação com a política, que ainda por cima se paramentam com os atributos da cientificidade emprestando seus métodos da estática e da linguística”, como também explica Maldidier (2003, p. 20). Para denunciar que as ciências são atravessadas pela ideologia, os iniciadores da teoria vão colocar à prova os discursos doutrinários, oriundos da política, da religião e das ciências, questionando sua aparente neutralidade e objetividade. Perseguindo essa hipótese, trabalham o conceito de ideologia em relação com a língua e seus efeitos de sentido. Vamos iniciar essa compreensão pela seguinte afirmação: Podemos começar por dizer que a ideologia faz parte, ou melhor, é a condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. O indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o dizer. [...]. Assim considerada, a ideologia não é ocultação, mas função da relação necessária entre linguagem e mundo. (ORLANDI, 2015, p. 44-45) Nessa citação, Orlandi resume apropriadamente a relação que a ideologia entretém com a língua e o sujeito. Em Análise do Discurso, a ideologia é um sistema de ideias e representações compartilhado por uma determinada classe social, no âmbito da sociedade capitalista. No entanto, essas ideias não ficam alojadas na mente, mas adquirem uma forma material, em práticas e em discursos. Desse modo, para propor uma ciência das ideologias, Pêcheux e seus colaboradores se interessaram pela materialidade verbal, também chamada “intradiscurso”. É nessa materialidade, manifesta por meio de palavras, que os analistas podem observar o funcionamento da ideologia, e com base nisso, interpretar os efeitos de sentido do texto, aqui tomado como produto do discurso. É importante mencionar a influência determinante do filósofo Louis Althusser sobre o pensamento gestado na Análise do Discurso em sua primeira fase. Na obra Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado, Althusser (1980) conceitua aparelhos ideológicos como instituições sociais: a família, a escola, a política, a religião, as mídias e as artes (cultura). Segundo ele, tais aparelhos funcionam pela ideologia da classe dominante, não apenas reproduzindo valores, mas também regulando as práticas sociais e a linguagem. É nesse sentido que, para a Análise do Discurso, o sujeito não é livre para dizer, pois, ocupando uma certa posição na formação ideológica em que está inserido, seu discurso é restringido pela ideologia dominante. Em outras palavras, a linguagem não é sinônimo de liberdade, mas o lugar em que as posições ideológicas se manifestam, reproduzindo práticas e discursos históricos “já ditos”. Agora podemos compreender melhor a afirmação: “o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia”. O indivíduo é um ser do mundo físico, dotado de uma identidade única; o sujeito é a posição, ou as posições, que o indivíduo ocupa na sociedade, na qual as dinâmicas já estão em curso quando ele toma a palavra. Sua identidade não é individual, mas coletiva. Enquanto o indivíduo fala pela primeira vez, o sujeito reproduz falas já ditas. Para o indivíduo, a língua é criativa, sinônimo de liberdade; para o sujeito, a língua é restritiva, sinônimo de assujeitamento. A esse respeito, Orlandi traz um exemplo interessante: Quando falo a partir da posição de ‘mãe’, por exemplo, o que digo deriva seu sentido, em relação à formação discursiva em que estou inscrevendo minhas palavras, de modo equivalente a outras falas que também o fazem dessa mesma posição. Quando, ao abrir a porta para um filho altas horas da madrugada, a mãe fala ‘Isso são horas?’ ela está, na posição-mãe, falando como as mães falam. Exatamente. Podemos até dizer que não é a mãe falando, é sua posição. Ela aí está sendo dita. E isso a significa. Isso lhe dá identidade. Identidade relativa a outras: por exemplo na posição de professora, de atriz etc. (ORLANDI, 2015, p. 47) A tese do assujeitamento pela ideologia foi muito bem-sucedida no período de gestação da Análise do Discurso. Entretanto, após a terceira fase, essa tese começou a se tornar problemática. Isso se explica, em parte, pelo enfraquecimento das ideologias na pós-modernidade, época marcada pelo consumo em massa e pelo esvaziamento das causas sociais, muito embora o século XXI esteja assistindo a uma retomada de pautas coletivas. Por outro lado, é notável a relação explícita que a ideologia mantinha com o materialismo histórico e sua crítica à regulação da sociedade pelas classes dominantes, por uma ótica essencialmente econômica. Esse programa de leitura mostrou-se restritivo à medida que outros estudos emergiram, mostrando que o poder não é exclusivamente econômico, mas possui regionalizações distintas. Na sociedade digital, as mídias ocupam um lugar de poder, assim como uma formação profissional também é sinônimo de poder. Seja como for, a ideia, segundo a qual as práticas e os discursos estão intimamente ligados à formação ideológica em que os sujeitos se inscrevem, não deixou de existir. O que se questiona, desde a última fase da Análise do Discurso, é o posicionamento de alguns analistas que restringem essa questão aos textos fortemente doutrinários, pela leitura althusseriana da ideologia no estudo do discurso. Comentário Na contemporaneidade, a Análise do Discurso se debruça tanto sobre discursos doutrinários quanto sobre discursos menos regulados, a exemplo das manifestações de rua, os comentários nas redes sociais, os memes, a publicidade. Na realidade, todo discurso pode se prestar a uma análise discursiva, pois, como reflete Maingueneau (1997, p. 19), “todos os fenômenos linguísticos são suscetíveis, a priori, de interessar a AD”. Para concluir nossas reflexões sobre o conceito de ideologia na Análise do Discurso, vamos considerar o seguinte slogan presente em cartazes, propaganda de partidos políticos e manifestações de diversos movimentos sociais: Lugar de mulher é na política. De um ponto de vista interpretativo, esse enunciado não encontra seu referente na língua, que fornece o significado das palavras sem uma relação necessária com o contexto extralinguístico. Pela ótica do discurso, o sentido desse enunciado é sustentado pela ideologia, haja vista a posição que as mulheres ocuparam nas sociedades ao longo da história. Esse imaginário sobre o lugar das mulheres é exemplarmente discursivizadoem outro enunciado: “Lugar de mulher é na cozinha”, que entra em relação polêmica com o enunciado do slogan já mencionado. É interessante notar que o enunciado “Lugar de mulher é na cozinha” apresenta uma identidade linguística, notadamente lexical e sintática, com o enunciado original, cuja fonte enunciadora é desconhecida (esquecida). Trata-se de uma expressão estereotipada, metaforizada pelo cômodo da casa em que as mulheres passam boa parte de seu tempo, assegurando o bom funcionamento do lar, reproduzindo, assim, as práticas da família, tomada como instituição social. Entre os dois enunciados, observa-se uma única alteração: a substituição de “cozinha” por “política”. Assim sendo, o enunciado do slogan inicial constitui um exemplo de interdiscurso mais ou menos explícito, ao qual podemos chamar de alusivo. Essa substituição estabelece uma relação polêmica entre duas posições- sujeito: a posição-sujeito da mulher que permanece nos limites do lar versus a posição-sujeito da mulher que passa a ocupar o espaço público, para além do lar. Resumindo Como podemos observar, essa leitura só é possível porque há uma memória histórica e discursiva sobre o lugar da mulher, ou ainda, uma ideologia dominante que informa sobre esse lugar histórico. Com essas reflexões, encerramos o módulo sobre os três conceitos basilares da Análise do Discurso. Formação discursiva, interdiscurso e ideologia Assista agora a um vídeo em que se aborda o desenvolvimento dos conceitos de formação discursiva, interdiscurso e ideologia no campo da Análise do Discurso, exemplificando com alguns gêneros discursivos. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Analise as afirmativas a seguir: I. A formação discursiva reflete a formação ideológica. II. O interdiscurso entretém uma relação com a memória discursiva. III. Na Análise do Discurso, a formação discursiva se refere à dispersão dos enunciados. IV. O filósofo Michel Pêcheux é quem primeiro lança e desenvolve o conceito de ideologia na AD. Está correto o que se afirma em Parabéns! A alternativa C está correta. As afirmativas I e II estão corretas porque a formação ideológica está presente na formação discursiva, além disso, o interdiscurso estabelece uma ligação com a memória discursiva. As afirmativas III e IV estão incorretas porque, na Análise do Discurso, a formação discursiva é um conceito que explica as restrições sofridas pelo sujeito em sua ilusão de controle da língua. A definição de formação discursiva foi primeiramente elaborada por Foucault, para explicar a dispersão dos enunciados. A I apenas. B II e III. C I e II. D III e IV. E todos os itens. Questão 2 O conceito de ideologia é um dos três aspectos que estudamos para compreender o arcabouço teórico da Análise do Discurso. Sobre esse conceito, é correto afirmar que a ideologia Parabéns! A alternativa C está correta. Na Análise do Discurso, a ideologia é um sistema de representações sociais que se materializa na língua, por meio dos textos que circulam em sociedade. Desse modo, ela não permanece no plano das ideias, mas adquire uma existência material. As demais alternativas não devem ser assinaladas porque elas negam aspectos condizentes o conceito de ideologia no contexto da Análise do Discurso. A não é um dos tripés da teoria do discurso. B não sustenta o sentido das palavras, em última instância. C não é um conjunto de ideias que se restringe ao pensamento. D não é um sistema de representações sociais que reproduz o funcionamento da sociedade de classes. E não adquire uma forma material, em textos. 3 - As condições de produção do discurso Ao �nal deste módulo, você será capaz de reconhecer as condições de produção do discurso. A produção do discurso Diferentemente da Sociolinguística e da Pragmática, a Análise do Discurso não restringe a análise linguística/textual à situação imediata da fala. Ela vai além, ao considerar que as condições de produção do discurso estão relacionadas às instâncias sociais que produzem linguagem, sendo essa relação histórica e ideológica. Ademais, a Análise do Discurso não trata os falantes como indivíduos singulares, mas como sujeitos que se inscrevem em uma determinada posição, por sua vez, também determinada pelas instâncias sociais a partir da qual eles enunciam. Tais instâncias são chamadas de “aparelhos ideológicos”, historicamente regulados na sociedade capitalista, a saber: a família, a escola, a religião, a política, as mídias, a cultura. Nessa concepção inédita de linguagem, todo texto é produto de um discurso, sendo este vinculado a uma instância social e ideológica que reproduz práticas e discursos. Desse modo, nenhum sujeito é “dono” de sua fala, mas reproduz um determinado discurso. Daí a ideia de que nenhum discurso é inédito ou criativo, mas produto das dinâmicas sociais, que se originaram muito antes do sujeito que enuncia. Para a Análise do Discurso, os sentidos já estão postos, ainda que cada texto seja único e irrepetível, tendo em vista seu caráter singular, instituído a cada enunciação. As condições de produção do discurso poderiam ser aproximadas da noção de contexto, muito empregado nas abordagens funcionalistas da língua em uso. No entanto, as condições de produção do discurso não se limitam ao contexto no sentido que essas abordagens lhe dão, qual seja a situação comunicativa que envolve todo texto: seu produtor, seus receptores, o tempo e o espaço da enunciação, o suporte de veiculação, entre outros parâmetros da comunicação. Na perspectiva da Análise do Discurso, interpretar um texto é uma atividade que não se limita a decifrar o significado das palavras, tampouco a identificar os elementos imediatos da situação de comunicação. Sobre esse ponto, Orlandi esclarece o seguinte: Não se trata de transmissão de informação apenas, pois, no funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não meramente transmissão de informação. (ORLANDI, 2015, p. 19) Assim, as condições de produção do discurso envolvem a situação de comunicação e, sobretudo, o contexto histórico e ideológico que sustenta toda produção de linguagem, leia-se, todo texto, tomado como produto do discurso. Como explica Maldidier (2003, p. 23): “A referência às condições de produção designava a concepção central do discurso determinado por um ‘exterior’, como se dizia então, para evocar tudo o que, fora a linguagem, faz que um discurso seja o que é: o tecido histórico-social que o constitui”. Dessa perspectiva, conhecer as condições de produção de um discurso é uma condição necessária, uma garantia para acessar os efeitos de sentido dos textos. Pois, se pensarmos o texto unicamente como uma totalidade de sentido, isto é, como uma materialidade acabada, composta por um início e um fim, não teremos acesso ao que ele “quer dizer”, para além de suas fronteiras visíveis. Para a Análise do Discurso, o texto é vislumbrado como a manifestação do discurso, que já está em curso muito antes de sua manifestação em um objeto material e acabado. Portanto, para fazer sentido, o texto não pode ser lido apenas em sua superfície, visto que ele já produz sentidos antes mesmo de adquirir um acabamento. Isso explica por que Pêcheux considera que “é impossível [...] analisar um discurso como um texto [...] é necessário referi-lo ao conjunto de discursos possíveis, a partir de um estado definido das condições de produção” (MALDIDIER, 2003, p. 23). Desse modo, o texto é mais do que uma materialidade significante; ele é atravessado por outros textos, ou melhor, por outros discursos. E são as condições de produção que fornecem os elementos necessários para se acessar os reais efeitos de sentido do texto. É possível compreender essa dinâmica de constituição do sentido, considerando que o texto e o discurso correspondem a eixos distintos:O texto Corresponde ao eixo horizontal, da ordem do dito. O eixo horizontal corresponde, segundo Orlandi (2015, p. 31), “à formulação, isto é, aquilo que estamos dizendo naquele momento dado, em condições dadas”. O discurso Pertence ao eixo vertical, atravessando o texto, sendo da ordem do não dito. O eixo vertical corresponde “aos dizeres já ditos — e esquecidos — em uma estratificação de enunciados que, em seu conjunto, representa o dizível” (ORLANDI, 2015, p. 30). Análise de discurso nos eixos horizontal e vertical Para compreender o modo de funcionamento dos textos na relação entre o eixo horizontal e o eixo vertical da leitura, pela ótica da Análise do Discurso, vamos analisar o texto a seguir: Armandinho: O quanto será que as religiões, sem que a gente perceba... ... influenciam nas nossas opiniões e preconceitos?... Mãe: Filho, não fale assim que é pecado! (Adaptado de BECK, A. Armandinho. Tirasbeck, 2015.) O texto é, originalmente, parte do diálogo de uma tirinha, com a personagem Armandinho, uma criança. Nesse sentido, no eixo horizontal, o leitor tem diante de si um texto verbo-visual, pertencente ao gênero discursivo tirinha. Essa materialidade significante é composta por signos verbais e não verbais, dispostos segundo o regime prototípico desse gênero. Sabendo-se que os gêneros discursivos apresentam características temáticas, estilísticas e composicionais relativamente estáveis, vemos que o texto aborda um tema que faz parte do universo de sentido do gênero. Assim, a personagem Armandinho, uma criança, reflete sobre questões típicas de adultos. Com relação ao estilo, o diálogo, prototípico do gênero tira, está presente, pois Armandinho faz um questionamento, e é correspondido por outra personagem, sua mãe. Observemos de que modo esse texto significa com relação ao que ele efetivamente “diz”, ou seja, em relação ao eixo horizontal da leitura. Lembremos que, no eixo horizontal, encontram-se as condições imediatas de produção do texto, também chamadas de situação de comunicação, como seu autor (Alexandre Beck) e o ano de publicação (2015). No texto propriamente dito, temos ainda um outro contexto, qual seja o contexto do texto (cotexto), em que um locutor (Armandinho) dialoga com sua mãe (interlocutora), observado por outro personagem (sapo), na sala de sua casa. Atendo-nos, por ora, a estas informações sobre o eixo horizontal da leitura, vamos interpretar o texto. Armandinho inicia um questionamento sobre a influência que as religiões exercem sobre nossas opiniões e preconceitos, sem que nos demos conta disso. O questionamento é finalizado, e entra em cena a mãe de Armandinho, o que se pode perceber pela réplica “Filho!”. A mãe toma a palavra para chamar a atenção de Armandinho, dizendo-lhe: “Não fale assim que é pecado!”. Na ficção criada pelo cartunista Alexandre Beck, temos um diálogo entre filho e mãe, no qual a mãe repreende a criança por questionar o poder das religiões, o que ela julga ser um “pecado”. É possível ocorrer um efeito de riso pela relação estabelecida entre o questionamento de Armandinho e a reação de sua mãe. Em termos pragmáticos, podemos dizer que o texto extrai seu efeito cômico da contradição entre o objeto do questionamento de Armandinho — a influência das religiões — e a reação da mãe, pois, quando ela afirma que “é pecado” questionar a influência das religiões, termina por confirmar a dúvida do filho. Comentário Essa interpretação é possível porque o efeito cômico advém de uma informação implícita. Para acessar esse implícito, o leitor precisará realizar uma inferência, ou seja, precisará fazer um esforço de raciocínio para depreender da fala da mãe a contradição que vem a ser o objeto do riso. Mas, afinal, qual é essa informação implícita? Ainda no eixo horizontal, podemos dizer que o implícito reside na relação semântica entre “pecado”, termo proferido pela mãe, e o teor do questionamento de Armandinho. Em outras palavras, o leitor terá de colocar em relação dois termos que participam do mesmo campo semântico: pecado e religião. Ainda que essa leitura já se mostre complexa, pois ativa conhecimentos extralinguísticos, fundamentais para a coerência do texto, ainda não se pode dizer que a interpretação horizontal do texto fornece todos os seus efeitos de sentido. O que realmente explica o sentido desse texto são suas condições de produção históricas e ideológicas. Como vimos anteriormente, segundo Orlandi (2015), o eixo vertical da leitura corresponde ao interdiscurso (já dito), à memória (esquecimento) e ao dizível. Apesar de já termos mencionado o implícito, essa noção não é suficiente para se compreender o modo como o texto produz sentido. O dito e o não dito Com efeito, em Análise do Discurso, o que sustenta o sentido do texto é aquilo que ele não diz (não dito), e isso não tem a ver com um conteúdo inferencial, característico das abordagens pragmáticas. O não dito diz respeito aos outros discursos, produzidos antes, em outro lugar, esquecidos. Ao ressurgirem, esses já ditos sofrem o efeito da memória discursiva, podendo ser: Idênticos ao já dito: nesse caso, temos a paráfrase. Reformulados em relação ao já dito: nesse caso, temos a polissemia. Orlandi assim explica os processos da paráfrase e da polissemia: A paráfrase representa assim o retorno aos mesmos espaços do dizer. Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. A paráfrase está do lado da estabilização. Ao passo que, na polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação. Ela joga com o equívoco. (ORLANDI, 2015, p. 34) No diálogo entre Armandinho e sua mãe, observamos um processo parafrástico, uma vez que os termos “religiões” e “pecado” são estáveis na formação ideológica do discurso religioso cristão. Tanto é que o enunciado “Não fale assim que é pecado!” soa familiar, apesar de já não ser possível encontrar a fonte enunciativa desse dizer. Ele pode ter sido ouvido na igreja, no ambiente familiar, na escola, em uma telenovela; seja como for, sua origem não pode ser localizada com exatidão — e mesmo que o fosse, tal enunciado não é propriedade de um ou outro falante, pois já circulava antes, em outro lugar. Sobre esse aspecto, Orlandi comenta: Quando nascemos, os discursos já estão em processo e nós é que entramos nesse processo. Eles não se originam em nós. Isso não significa que não haja singularidade na maneira como a língua e a história nos afetam. Mas não somos o início delas. Elas se realizam em nós em sua materialidade. Essa é uma determinação necessária para que haja sentidos e sujeitos. (ORLANDI, 2015, p. 33) Ao afirmar que o sujeito não está na fonte do sentido, e que esta é uma condição necessária para que haja sujeitos e sentidos, a autora está se referindo ao caráter determinante do não dito sobre o efeito de sentido dos discursos. No texto que estamos analisando, essa questão é representada pelo conflito vivenciado por Armandinho, ao se questionar sobre a influência das religiões em nossas opiniões e preconceitos. Dito de outro modo, é porque as religiões exercem influência sobre nossas opiniões e preconceitos que Armandinho se questiona. Ele demonstra não saber se essa influência existe, mas é como se soubesse. Tal interpretação é possível porque a própria personagem diz: “sem que a gente perceba”. Esse enunciado fornece ao leitor, analista do discurso, as evidências de que a memória discursiva e o inconsciente são constitutivos do sujeito. Por essa leitura, tipicamente discursiva, podemos considerar que a formação ideológica religiosa cristã constitui o sujeito Armandinho, que, neste ponto, deixa de ser a personagem singular das tiras de Alexandre Beck, e assume, por seus dizeres, uma posição-sujeito que extrapola o texto, visto que tal posição é histórica e atravessada por uma ideologia religiosa dominante no Ocidente. É desse lugar, abstratamente falando, que a personagem fala. De outro lado, o enunciado da mãe de Armandinho também carrega consigouma memória do discurso que defende a ideologia religiosa cristã, por um processo parafrástico. Mas, diferentemente do filho, a posição- sujeito mãe defende o discurso religioso cristão, reproduzindo uma fala histórica, que soa familiar. Tanto é que, antes de dizer que “é pecado”, ela afirma: “Não fale assim...”. Esse sintagma está no modo imperativo, soando como uma repreensão, ou melhor dizendo, uma censura ao questionamento do filho. Em sua posição-sujeito, a mãe dita, portanto, o que o sujeito pode e deve dizer, demostrando que a língua sofre interditos. Essa análise que fizemos revela que o sentido dos textos, na perspectiva do discurso, não é transparente, tampouco evidente. Por isso, dizemos que analisar um discurso é realizar um gesto interpretativo, adotar uma postura que consiste em ver além da materialidade significante. Analisar um discurso significa relacionar a língua a suas condições históricas e ideológicas de produção. Somente desse modo é possível acessar os efeitos de sentido de um texto. As condições de produção do discurso Assista agora a um vídeo em que se apresentam as condições de produção do discurso, destacando a relação intrínseca que todo discurso, sob a forma material de textos, institui com a história, o sujeito e a ideologia. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Uma importante contribuição da Análise do Discurso está relacionada com os estudos voltados para as condições de produção do discurso. Sobre essas condições de produção, assinale a alternativa correta. Parabéns! A alternativa B está correta. Em Análise do Discurso, as condições de produção compreendem a situação imediata da fala e o contexto histórico e ideológico de produção do discurso. Ambos são importantes, mas o contexto histórico e ideológico é determinante para haver sentido, em última instância. Questão 2 Analise as afirmativas a seguir sobre o conceito de texto na Análise do Discurso: I. O texto é uma totalidade de sentido, composta por um início e um fim, sendo algo completo em si mesmo. II. O texto é produto do discurso, sua materialização. A A situação imediata da fala não faz parte das condições de produção do discurso. B O contexto histórico é determinante para se analisar um discurso. C A ideologia não faz parte das condições de produção do discurso. D O conhecimento da estrutura de uma língua é uma garantia para o sentido dos textos. E O conceito de condições de produção foi proposto nas abordagens pragmáticas. III. O texto possui um acabamento, mas isso não é suficiente para haver sentido. Está correto o que se afirma em Parabéns! A alternativa E está correta. A afirmativa I está incorreta e as afirmativas II e III estão corretas porque, na Análise do Discurso, o texto é compreendido como a materialização do discurso, que não se origina no sujeito, visto que já está em processo desde que nascemos. Nesse sentido, não se pode dizer que o texto possui uma completude ou totalidade de sentido, ainda que ele tenha algum acabamento, pois ele está relacionado a outros textos/discursos, significando pela memória e pela história. Considerações �nais Aprendemos que a Análise do Discurso conheceu diferentes fases, em que o conceito de discurso foi aos poucos reformulado, com o auxílio de outros, como interdiscurso, formação discursiva, memória discursiva, contribuindo para edificar a teoria. A partir de sua última fase, no início dos anos 1980, a Análise do A I, II e III. B I e III. C I apenas. D III apenas. E II e III. Discurso reavaliaria alguns de seus conceitos e, sobretudo, seus métodos, passando a integrar as problemáticas típicas das abordagens pragmáticas, como a enunciação. Essa abertura promoveu o contato da teoria com outras perspectivas científicas e filosóficas. Atualmente, existem várias “análises” do discurso, segundo os propósitos e os objetos de seus estudiosos. É possível falar em Análise do Discurso Digital, Análise do Discurso em Interação, Análise Dialógica do Discurso, entre outras. Entretanto, o que essas “etiquetas” concordam em manter é o estudo das condições de produção do discurso — frequentemente, com outras denominações —, que envolvem locutores em situações imediatas de fala, mas, sobretudo, sujeitos que se inscrevem em determinadas formações ideológicas. Os desdobramentos da teoria enfraqueceram alguns de seus conceitos fundadores, como a ideologia e a formação discursiva, mas, por outro lado, enriqueceram a tese do primado do interdiscurso e da memória discursiva. Seja qual for o ponto de vista adotado, fazer análise do discurso significa não se submeter às evidências da língua e considerar que as palavras falam “com outras palavras”, “antes”, em “outro lugar”. Podcast Ouça agora um podcast que apresenta a origem, o desenvolvimento e os principais conceitos da Análise do Discurso de linha francesa, destacando o conceito de discurso, interdiscurso, ideologia e produção discursiva. Explore + Confira as indicações que separamos para você! Leia os seguintes artigos da professora Maria do Rosário Gregolin: Análise do Discurso e mídia: a (re)produção de identidades, publicado na revista Comunicação, Mídia e Consumo, v. 4, n. 11, 2007, disponibilizado no portal da ESPM. A Análise do Discurso: conceitos e aplicações, publicado pela ALFA: Revista de Linguística, v. 39, 2001, e disponibilizado no Repositório Institucional da Unesp. Assista aos vídeos disponíveis no canal da Abralin, no YouTube: Dominique Maingueneau: A Análise do Discurso e a crise do Coronavirus, vídeo em que o próprio pesquisador e teórico Dominique Maingueneau fala, em português, sobre a pandemia na perspectiva da AD. Entrevista: Eni Orladi, vídeo em que a linguista apresenta seus estudos e abordagem da AD. Análise de Discurso: linguagem, ideologia e inconsciente no gesto de análise, debate entre alguns linguistas sobre temas relacionados com a AD. Referências ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Trad. Joaquim José de Moura Ramos. Lisboa: Editorial Presença, 1980. BARONAS, R. L. Formação discursiva e discurso em Foucault e em Pêcheux: notas de leitura para discussão. In: Seminário de Estudos em Análise do Discurso, 5., 2011, Porto Alegre. Anais [...]. Porto Alegre: UFRGS, 2011. BRAIT, B. (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010. BRANDÃO, H. H. N. Introdução à Análise do Discurso. 2. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1993. FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010. p. 161-193. FOUCAULT, M. L’archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 2008. GADET, F.; HAK, T. (orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 5. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014. MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2001. MAINGUENEAU, D. Discurso e Análise do Discurso. Trad. Sírio Possenti. 1. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2015. MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso. 2 ed. São Paulo: Pontes, 1997. MALDIDIER, D. A inquietação do discurso – (Re)ler Michel Pêcheux hoje. Campinas, SP: Pontes, 2003. ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2015. PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1988. Material para download Clique no botão abaixo para fazer o download do conteúdo completo em formato PDF. Download material O que você achou do conteúdo? Relatar problema javascript:CriaPDF()
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