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NEM UNIVERSAIS, NEM RELATIVOS: UMA ANÁLISE CONTEXTUALISTA DOS DIREITOS HUMANOS NEITHER UNIVERSAL, NOR RELATIVE: A CONTEXTUALIST ANALYSIS OF HUMAN RIGHTS Luiza de Oliveira Revers RESUMO O Direito Internacional dos Direitos Humanos, tido por alguns teóricos como erga omnes enquanto inerente humanos seguem um conjunto de pressupostos pouco questionados no dia a dia prático de aplicação, quais sejam: (i) a existência de uma natureza humana universal; (ii) a dignidade humana absoluta e irredutível inerente a todos os indivíduos; (iii) a autonomia individual. Neste sentido, a afirmação de que todos são titulares do mínimo ético irredutível definido por inúmeros tratados internacionais sofre críticas no que tange justamente à sua dita universalidade; Como membros da sociedade internacional falham em garantir a efetividade destes, muitas vezes sob a escusa de estarem em desacordo com as regras do Direito Internacional dos Direitos Humanos? E quanto à sociedades que guardam ordem cultural diferente, impor uma série de normas a uma cultura diametralmente oposta não seria, em si, uma violação ao direito humano à autodeterminação e à autonomia individual? Pelo prisma do que caracteriza violações, não seria a nossa própria sociedade violadora de Direitos Humanos? A partir destes questionamentos, o trabalho visa analisar se estas normas realmente se configuram universais e evidentes como as declarações de direitos humanos tão amplamente e certamente trazem, ou se existe espaço para interpretação dentro do pluriverso dos Direitos Humanos. O trabalho se pauta pelo procedimento bibliográfico, a partir de análise crítica do tema como se encontra na literatura. Palavras-chave: direitos humanos; universalismo; relativismo; contextualismo. ABSTRACT International Human Rights Law, considered by some theorists as erga omnes and inherent to the human of assumptions little questioned in the practical day-to-day of its application, namely: (i) the existence of a universal human nature; (ii) the absolute and irreducible human dignity inherent in all individuals; (iii) individual autonomy. In this sense, the assertion that everyone is holder of the irreducible ethical minimum defined by numerous international treaties is criticized with regard to its so-called universality; How do members of international society fail to guarantee their effectiveness, often under the guise of being in violation of the rules of international human rights law? And as for societies that maintain a different cultural order, imposing a series of norms on a diametrically opposed culture would not be, in itself, a violation of the human right to self-determination and individual autonomy? From the perspective of what characterizes violations, would not our own society be a violator of Human Rights? Based on these questions, the work aims to analyze whether these norms really configure themselves as universal and evident as the declarations of human rights so widely and certainly bring, or if there is room for interpretation within the pluriverse of Human Rights. The work is guided by the bibliographic procedure, based on a critical analysis of the theme as found in the literature. Keywords: human rights, universalism; relativism; contextualism. INTRODUÇÃO Desde os primeiros agrupamentos humanos dos quais se tem registro escrito, a exemplo dos Estados Sumérios e Assírios na Mesopotâmia1, notam-se fatores de organização social por meio de regras ou conjuntos de normas estipuladas. Não obstante, nota-se o fato de que nem todo agrupamento se organiza conforme as mesmas regras, ou modelos idênticos de arranjo institucional. De fato, as ciências sociais mostram que assim como diversas sociedades podem existir, de mesmo modo, faz-se possível existir diversas modalidades de composição social; as possibilidades são inúmeras. No entanto, ainda que existam diversas possibilidades de organização e configuração social, há milhares de anos algumas destas sociedades conseguem concordar em certos padrões similares o suficiente para estabelecerem relações coordenadas. Assim, por mais diferentes que sejam, sociedades conseguem, por meio do diálogo, concordar quanto às normas que regem suas interações - inclusive com relação aos direitos humanos. Diferentemente do que se tem no ideário popular, os direitos humanos têm, então, uma história muito complexa e antiga, sendo mais de vinte e oito séculos de desenvolvimento social e teórico que culminam na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), no ano de 19482. Exemplos de como agrupamentos humanos desenvolveram o ideal de direitos humanos atual ao longo dos séculos são as diversas outras declarações de mesmo cunho que surgiram nos séculos anteriores a esta última [a DUDH], como é o caso da Bill of Rights, em 1689, da Constituição norte americana de 1787, da Declaração do Bom Povo de Virgínia, em 1776, da Declaração da Independência dos Estados Unidos, em 1776 e suas dez emendas que introduziam direitos, em 1791 , da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e dos Povos, em 1789 reeditada outras vezes posteriormente para abranger novo rol de direitos , da Carta de São Francisco, que institui a Organização das Nações Unidas, em 1945, etc. 1 ADAM, Watson. A evolução da sociedade internacional: uma análise histórica comparativa. Brasília: Editora UNB, 2004. 2 RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 31. Contudo, o que se pode absorver do breve histórico da construção dos direitos humanos e seu rol normativo é que apenas parcela ínfima das sociedades mundiais teve efetiva participação na construção formal destes e das declarações que os positivam. Neste sentido, surgem questionamentos acerca da dita universalidade destes direitos proclamados. Os direitos humanos podem se configurar universais, quando representam essencialmente opiniões e interesses apenas de determinados grupos? Mais além, podem se dizer universais quando refletem a estrutura e os valores éticos e morais de apenas parcela concisa das sociedades mundiais? o caminho que as sociedades do norte global percorreram até o florescer das primeiras declarações de direitos humanos feitas. A autora tece, em meio à narrativa, seu principal argumento de que os direitos humanos, ao contrário de como usualmente defendidos por muitos como óbvios ou evidentes, foram, em realidade, fruto de mudanças desfaz. Para a autora, foi apenas com o desenvolvimento de novas formas de pensar e novos olhares sociais sobre os indivíduos, seus direitos e o mundo em que viviam, que o terreno fértil para a invenção dos direitos humanos pôde existir3. Desta maneira, em período anterior às Declarações, já eram discutidas as ideias empregado à época): Desde a primavera de 1789 isto é, mesmo antes da queda da Bastilha em 14 de julho 4 Nota-se que as declarações não surgem do vazio, mas são reflexo de uma identidade prévia que sucede das relações sociais e ideias já discutidas por indivíduos a 3 HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 4 HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 23. partir de suas vivências5. Ainda, à época6, os direitos humanos eram um conceito recente e dependiam de interpretação para solidificar sua aplicação. Esta interpretação se encontrava ancorada a valores sociais pré-existentes e era distinta a depender do local e contexto social. Os direitos humanos configuram processos sociais, econômicos e políticos7, perpassam as diversas searas do meio social e são, de mesma maneira, fruto deste meio. documentos: baseiam-se numa disposição em relação às outras pessoas, um conjunto de convicções sobre como são as pessoas e como elas distinguem o certo e o errado 8. Estes direitos mostram-se como produto de um determinadogrupo, de um determinado tempo, de uma determinada noção e leitura de contexto; são fruto de uma época e de valores estritamente intrínsecos a esta. A fundação dos direitos humanos é também, em parte, a mudança nos valores sociais que permitiram o desenvolver de novos princípios com relação aos indivíduos9. A norma jurídica não tem existência por si só, mas em sociedade; e as normas não apar estudadas e, então, aceitas e positivadas. As declarações de direitos não estavam prontas esperando o momento certo de emergir, e sim passaram por um longo processo de turbulência social, política e econômica que as consagrou na história. Assim, devemos questionar a natureza dita evidente do que chamamos hoje de direitos humanos e a narrativa histórica é capaz de mostrar com avidez que as proposições que temos atualmente não são axiomáticas, mas antes percorreram uma longa jornada até sua conformação atual. 5 HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 28, 33. 6 Não apenas à época os direitos dependiam da interpretação e conformidade sociais, nos dias atuais sua aplicação funciona da mesma maneira. 7 HERRERA FLORES, Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. p. 13. 8 HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p 25. 9 HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 25; 58. No entanto, a relatividade desses conceitos não deve implicar na exclusão do rol de direitos que a sociedade internacional construiu até então. Os direitos humanos não precisam ser descartados por suas incongruências históricas, mas devem ser revisitados de maneira a buscar sua efetividade e garantia a todos os indivíduos. O pilar de proteção humana que se desenvolveu ao longo das décadas tem seu prestígio e sua importância na luta pelo alcance da dignidade humana. Dito isso, o trabalho tem por objetivo colocar em pauta a discussão acerca da natureza universal dos direitos humanos e do relativismo social e cultural proposto por determinados autores. O embate entre estes pontos abre espaço para o objetivo principal e final da pesquisa: a proposição de uma terceira via possível, o contextualismo. É por meio desta última percepção que se defende poder ser executável a busca e luta pelo respeito aos direitos humanos. A investigação daí deflagrada segue o procedimento de revisão bibliográfica, para, mediante análise crítica do estado da questão na literatura, promover o debate apresentado. Ainda, em um segundo momento, para fins de embasamento de argumentação, breve análise histórica da gênese e desenrolar dos Direitos Humanos será feita, assim como a apresentação de alguns exemplos para discussão. O trabalho se subdivide em seções que se dedicam a analisar temas específicos que contribuem para a discussão proposta, quais sejam: a teoria crítica de direitos humanos, a perspectiva dos universalistas, a perspectiva dos relativistas e, por fim, a perspectiva contextualista. 1. A PERSPECTIVA UNIVERSALISTA O Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) tem como marco inicial a Carta de São Francisco10 de 1945. Isto porque, foi após os eventos da Segunda Guerra Mundial que ocorreu o processo de internacionalização dos direitos humanos e humanização do Direito Internacional. Em 1948, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) traz 10 Tratado internacional que instituiu a Organização das Nações Unidas. explicitamente, em seu Artigo 1, a pretensão pela universalidade: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e 11. Percebe-se, então, que a busca era não apenas pela internacionalização dos direitos elencados, mas também pelo reconhecimento da sua natureza universal. Entretanto, a DUDH não é o primeiro documento a elencar série de direitos tomados como universais e inerentes a todos os seres humanos, a exemplo os já previamente citados na introdução deste trabalho: a Bill of Rights, de 1689, a Constituição norte americana de 1787, a Declaração do Bom Povo de Virgínia, de 1776, a Declaração da Independência dos Estados Unidos, de 1776 e suas emendas, a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e dos Povos, de 1789, etc. Ainda, houveram acontecimentos antecedentes ao DIDH, como explicita Ramos: É claro que, antes de 1945, houve importantes antecedentes do atual Direito Internacional dos Direitos Humanos, como a proibição da escravidão; o regime de mandatos da vetusta Sociedade das Nações, que impôs obrigações de respeito aos direitos das populações de territórios sujeitos ao mandato; a proteção dos trabalhadores, com a criação da Organização Internacional do Trabalho em 1919; a proteção das minorias na Europa Ocidental no pós Primeira Guerra Mundial, entre outros.12 A partir disso, pode-se atentar ao fato de que existia uma intenção de proclamar direitos comuns a todos os homens13 há séculos - ainda que a intenção se concentrasse geograficamente em locais como Estados Unidos da América e Europa. Ao passar dos anos, o rol pretendido foi abrangendo cada vez mais as especificidades de realidades distintas enfrentadas por pessoas e se estendendo a outros aspectos que permeiam a vida humana - inclusive, distinções foram criadas como os chamados direitos de primeira, segunda, terceira e quarta gerações.14 Assim, os direitos humanos passam a ser mais 11 Organização das Nações Unidas. UN, 2020. Secretary-General's remarks to the UN Human Rights . 12 RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. 4a ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 29. 13 Aqui, a intenção era a de proclamar direitos, mas especificamente aos homens, apenas. Excluindo-se as mulheres e outros grupos como analfabetos, negros, deficientes etc. 14 Este ideal de garantia de dignidade a todos os seres humanos tem uma de suas bases nos pensamentos ecumênico de Isaías, envolvendo-o na exigência de amor unive In: COMPARATO, Fábio Konder. A que a liberdade e propriedade, por exemplo, e englobam aspectos como o direito à alimentação, moradia, saúde, educação, saneamento básico, etc. Os direitos humanos se mostram na história em constante evolução, sempre reconhecendo, ano após ano, um novo aspecto merecedor de proteção internacional. Direitos, para Comparato15, é durante o período axial da História que a igualdade essencial entre indivíduos da espécie humana desponta. Dentro do argumento da universalidade, o autor explicita que o modelo de universalidade de direitos e a própria noção de garantia de um rol de direitos comuns a todas as pessoas têm base social: Ora, essa convicção de que todos os seres humanos têm direito a ser igualmente respeitados, pelo simples fato de sua humanidade, nasce vinculada a uma instituição social de capital importância: a lei escrita, como regra geral e uniforme, igualmente aplicável a todos os indivíduos que vivem numa sociedade organizada.16 De mesmo modo, Hunt aponta para a construção da noção de Direitos Humanos a partir da construção de um conceito do outro, tanto em sociedade como individualmente. Assim, dentro da coletividade, cada pessoa passa a enxergar a si mesma como um indivíduo autônomo que guarda características individuais, e, por conseguinte, passa a ver que seu vizinho também se caracteriza como um indivíduo. Então, os membros de uma sociedade passam a se enxergar - ao menos com relação à sua autonomia como indivíduos. Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 12a ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 25. É importante ressaltar que outras declarações de direitos foram feitas embasando-se em crenças que não a cristã - como é o caso da Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos, por exemplo. O que setraz aqui é, antes, um breve apontamento de como o pensamento religioso influenciou e influencia o que se entende como Direitos de uma sociedade e, no caso dos Direitos Humanos ocidentais na conformação atual, como o pensamento cristão serviu como terreno fértil para a positivação destes ideais de dignidade humana. Ainda, o trabalho não nega, tampouco ignora, o fato de que estas mesmas raízes religiosas foram utilizadas na história como pretexto para impetrar violações de direitos contra povos ameríndios, por exemplo, e que por grandes períodos da história as religiões ou negaram, ou deram de ombros para a questão dos Direitos Humanos. No entanto, em se considerando o escopo do presente trabalho, não cabe a discussão aprofundada de tais eventos e apontamentos. 15 COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 12a ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 26. 16 COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 12a ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 26. Os direitos humanos pressupõem a interpretação do outro como um sujeito de direitos, como indivíduo. No entanto, ainda se fazia necessária a empatia, que permite a um indivíduo observar o outro e se colocar em seu lugar, não desejando, então, que algo aconteça àquele. Para Hunt, a leitura de romances teve papel crucial na mudança social de que todas as pessoas são fundamentalmente semelhantes por causa de seus sentimentos íntimos, e muitos romances mostravam em particular o desejo de 17. É a partir do reconhecimento do outro como indivíduo e sujeito de direito que, em sociedade, pode-se pensar como proteger esses direitos inerentes a cada parcela individual: O que sustentava essas noções de liberdade e direitos era um conjunto de pressuposições sobre a autonomia individual. Para ter direitos humanos, as pessoas deviam ser vistas como indivíduos separados que eram capazes de exercer um julgamento moral independente; (...) os direitos do homem acompanhavam o indivíduo (...) Mas, para que se tornassem membros de uma comunidade política baseada naqueles julgamentos morais independentes, esses indivíduos autônomos tinham de ser capazes de sentir empatia pelos outros. Todo mundo teria direitos somente se todo mundo pudesse ser visto, de modo essencial, como semelhante.18 Neste sentido, foi a partir da desvinculação da pessoa humana da coletividade - para que fosse, então, vista como indivíduo - que os direitos individuais passaram a ser reconhecidos.19 É preciso primeiro compreender e edificar a concepção de corpos qua 20. Nota-se, neste sentido, uma contradição, qual seja, aquela da formação identitária individual se dar em comunidade; isto é, a individualidade pessoal não se constrói por si mesma, mas antes na comunidade em que os indivíduos participam. Em outras palavras, a noção de individualidade é, por fim, comunitária. Referindo-se à construção histórica 17 HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 39. 18 HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 25-26. 19 HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 20 COPELLI, Giancarlo Montagner. Os Direitos Humanos e o Debate entre Universalistas e Relativistas: necessidades de superação. (Re)Pensando Direito. Ano 05, n. 09, jan/jun, 2015, p. 11-32. p. 02. condições sociais e quando o desenvolvimento técnico permite satisfazê-los"21. Assim, as sociedades que propuseram os direitos humanos só foram capazes de fazê-lo porquanto tinham o desenvolvimento técnico para isso - qual seja, começaram a reconhecer o outro como indivíduo. Então, novas necessidades por direitos surgiram ao passo que as condições sociais mudaram. Direitos humanos são, em suma, sociais, porquanto surgem entre indivíduos, não entre indivíduos e outros aspectos do mundo físico. Hunt atrela a relevância dos direitos direitos humanos em oposição aos direitos divinos, ou direitos humanos em oposição aos direitos animais: são os direitos de humanos vis-à-vis 22. Com isso, pode-se auferir que os Direitos, como um todo, têm raiz social; com os direitos humanos isso não é diferente. E, geralmente, é essa raiz social que impulsiona a maior parte das críticas à universalidade dos Direitos Humanos como defendida pelos discursos de órgãos internacionais (como a Organização das Nações Unidas), como se verá de maneira mais aprofundada nas próximas sessões. por que discutir a questão da universalidade de direitos é relevante, quando autores como Norberto Bobbio tão claramente proclamam a inexistência de valor teórico desta afirmação?23 A resposta se encontra no fato de que ainda existe um discurso sobre Direitos Humanos que é muito propagado e difundido como necessidade universal. Isto abre espaço para questionamentos e críticas às instituições que pregam, ainda, este ideal de unidade absoluta dos preceitos atuais de DH. Ainda, é preciso reavaliar os conceitos que giram em torno dos direitos humanos - inclusive o da universalidade - para que se possa trabalhar para uma aplicação mais efetiva destes e efetivar a garantia de dignidade humana. Assim, a discussão da universalidade tem valor prático nos dias atuais. 21 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: LTC, 2020. p. 06. 22 HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. P 19. 23 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: LTC, 2020, 2. A PERSPECTIVA RELATIVISTA E TEORIA CRÍTICA DE DIREITOS HUMANOS O relativismo cultural tem sua gênese na tentativa de antropólogos de garantir respeito às culturas que não seguem o padrão ocidental dominante, e encontra a temática dos direitos humanos ao levantar questionamentos acerca da dita universalidade destes preceitos estipulados, grosso modo, por homens brancos e europeus.24 O relativismo é humanizar a partir do Ocidente, de modo que tais instrumentos (...) não passam de ferrament 25. Neste sentido, o relativismo cultural parte do pressuposto de que: sendo os Direitos produtos de diferentes culturas e meios sociais, e sendo os meios sociais existentes nas comunidades humanas divergentes entre si, torna-se impossível, então, defender a existência de um denominador comum capaz de conciliar todos os agrupamentos que partilham contextos idiossincráticos. O relativismo defende a ideia de 26, sendo inviável a universalidade de direitos. Assim, ainda que existam indícios de sociedades distintas que tenham tido intento - como exemplificamos na sessão anterior -, os valores de justiça, equidade, imparcialidade e humanidade eram diversos, já que são conceitos que variam no tempo e espaço a partir da construção social de cada grupo. Desta civilização ou cultura anterior ao século XVII teve uma prática confirmada, ou até mesmo 27. 24 BRENNAN, Katherine. The Influence of Cultural Relativism on International Human Rights Law: Female Circumcision as a Case Study. Minnesota journal of law & inequality. Mineápolis, vol. 7, n. 3, pp. 367- 398, dez., 1989. p 375. 25 COPELLI, Giancarlo Montagner. Os Direitos Humanos e o Debate entre Universalistas e Relativistas: necessidades de superação. (Re)Pensando Direito. Ano 05, n. 09, jan/jun, 2015, p. 11-32. p. 13. 26 COPELLI, Giancarlo Montagner. Os Direitos Humanos e o Debate entre Universalistas e Relativistas: necessidades de superação. (Re)Pensando Direito. Ano 05, n. 09, jan/jun, 2015, p. 11-32. p. 14. 27 DONNELLY, Jack. The Relative Universality of Human Rights. Human Rights Quaterly, Michigan, vol. 29, n. 2, pp. 281-306, mai., 2007. p. 285. Sendo os padrões éticos e morais diferentes a depender do meio social, Copelli defende que, se o Direito é a expressão de conjuntos de valores de uma sociedade - o que os indivíduos desta sociedadeentendem como certo e errado, aceitável e inaceitável -, os questionamentos levantados pelos relativistas desestabilizam o discurso da s direitos humanos: (...) se conceitos como verdade e falsidade, bem e mal e certo e errado, por exemplo, estão ligados à comunidade, ao local, como unificar critérios, ou, ainda, juízos, buscando direitos que, ao passo que sejam humanos, sejam também universais? A resposta, mais uma vez, não encontra eco satisfatório em face à pretensão da universalidade dos Direitos Humanos, colocando, assim, em xeque não os próprios juízos ou as avaliações, mas, sim, a validade destes, de modo que o caminho rumo à dignidade humana passa, inexoravelmente, pelo reconhecimento dos valores de cada grupo.28 Levanto novamente o exemplo utilizado na sessão anterior, o artigo primeiro da DUDH, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, seres humanos 29. Em uma análise inicial, a declaração pode transparecer uma ideia de solidariedade humana - pautada pelo fator tão necessário aos direitos humanos anteriormente apresentado: a empatia. No entanto, este movimento aparentemente inofensivo, de proclamar igualdade, para os relativistas, é fator gerador de desrespeito a individualidades existentes que não têm o dever de acatar o panorama cultural europeu base para a construção do ideal de direitos humanos como sendo a única resposta possível para se alcançar a dignidade humana. Para Herrera Flores, Não poderemos entender a força emancipadora dos direitos e muito menos explicá-los a quem não compartilha a visão ocidental do mundo se não somos capazes de introduzir em seu conceito e em sua prática a pluralidade e a diversidade de formas de abordar as lutas pela dignidade.30 O que se depreende das raízes históricas atreladas ao documento é incongruente se vê que, tal qual os direitos 28 COPELLI, Giancarlo Montagner. Os Direitos Humanos e o Debate entre Universalistas e Relativistas: necessidades de superação. (Re)Pensando Direito. Ano 05, n. 09, jan/jun, 2015, p. 11-32. p. 15. 29 Fundo das Nações Unidas para as Crianças (UNICEF). Declaração Universal dos Direitos Humanos. [s.d] 30 HERRERA FLORES, Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. p. 22. humanos se configuram como construto histórico, as violações desses direitos também o são. As desigualdades, exclusões e discriminações31 enfrentadas por grupos não pertencentes ao status quo social dominante acarretam no desencanto destes com discurso universalista. O Direito Internacional dos Direitos Humanos, assim como outras técnicas de direito, não se encontra desconexo dos valores daqueles que o perspectivaram. Esta proposição toma forma, por exemplo, ao percebermos o que se pretendia pelos próprios homens que idealizaram as primeiras declarações: suas intenções não eram inclusivas. Os artigos que declaravam liberdades e direitos a todos os homens sendo por muito aqui empregada aludia a toda a humanidade aplicavam-se somente a um seleto grupo de pessoas que tinha capacidade reconhecida como sujeito de direito32. Assim, para os relativistas, é impossível afirmar universalidade quando em frente à exclusão de deter 33. Nas palavras da autora: Essa afirmação de autoevidência, crucial para os direitos humanos mesmo nos dias de hoje, dá origem a um paradoxo: se a igualdade dos direitos é tão autoevidente, por que essa afirmação tinha de ser feita e por que só era feita em tempos e lugares específicos? Como podem os direitos humanos ser universais se não são universalmente reconhecidos?34 Ao longo da história dos direitos humanos, como anteriormente revisitada, nota-se que diferentes sociedades e indivíduos partilhavam opiniões diversas quanto à natureza dos direitos e dos indivíduos que poderiam desfrutá-los. Assim, se vê na discrepância entre Sepúlveda e Las Casas: enquanto o primeiro não julgava coerente povos indígenas desfrutarem de direitos, porquanto não se tratavam de seres iguais, humanos, mas 31 HERRERA FLORES, Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. p. 13. 32 HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p 25. 33 HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 16. 34 HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 18. indíg 35. Essa distinção denota a natureza conflituosa e impura dos direitos humanos, que não configuraram um consenso geral inquestionável. Ainda, a narrativa histórica clássica de que os direitos humanos passam a ter papel universal no plano internacional a partir da mudança de perspectiva gerada pelas atrocidades cometidas pelos Estados durante o período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) não é coerente. Isto porque até a atualidade os direitos humanos não eram aplicados de maneira universal e serviam a propósitos pré-determinados, claramente não universais. Para Boaventura de Sousa Santos: Se se observar a história dos direitos humanos no período imediatamente a seguir à Segunda Grande Guerra, não é difícil concluir que as políticas de direitos humanos estiveram em geral ao serviço dos interesses económicos e geopolíticos dos Estados capitalistas hegemônicos.36 Indo além, conquanto fossem reais as intenções de aplicação total dos direitos humanos ainda que isso não seja possível enquanto concebidos como universais por conta dos choques culturais esta aplicação claramente nunca logrou sucesso, sendo 37. Ademais, para os relativistas, a noção de que direitos são produtos sociais encontra-se diametralmente oposta à defesa da existência de certos direitos ditos universais na conformação em que se encontram atualmente. Ora, considerando ser o Direito vivo e mutável, se este se desenvolve conforme a sociedade se modifica em seus valores, é contraditório afirmar a existência de um rol de Direitos que se configurem unos, porquanto o globo é habitado por grupos sociais diversos, cada um com seus próprios valores e idiossincrasias intrínsecos. 35 RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. p. 37. 36 SANTOS, Boaventura de Sousa; SANTOS, Cecília MacDowell; MARTINS, Bruno Sena. Quem precisa dos direitos humanos?: precariedades, diferenças, interculturalidades. Coimbra: Almedina, 2019. P. 343. 37 SANTOS, Boaventura de Sousa; SANTOS, Cecília MacDowell; MARTINS, Bruno Sena. Quem precisa dos direitos humanos?: precariedades, diferenças, interculturalidades. Coimbra: Almedina, 2019. P. 343. Assim, os relativistas acusam que a narrativa da universalidade de direitos afunda raízes colonizadoras - ao passo que visa simplesmente implementar de maneira inconsequente, e apartada das realidades vivenciadas, determinados padrões de vida e dignidade que têm gênese indiscutivelmente cultural. Como dito anteriormente, os direitos humanos se assentam na ideia de empatia pelo próximo, e essa empatia se dá de maneiras diferentes em cada agrupamento social. Nas palavras de Herrera Flores, (...) uma declaração que se apresenta como universal aceita desde o primeiro momento a realidade do colonialismo. (...) o colonialismo foi e segue sendo uma das maiores violações à ideia de direitos humanos, pois coloca uns, os colonizadores, no papel de superiores e civilizados e outros, os colonizados, no papel de inferiores e bárbaros.38 A fim de ilustrar o argumento relativista, trago brevemente como exemplo uma prática que gerou diversas discussões no continente europeu e é capaz de demonstrar as nuances da discussão entre universalistas e relativistas: a prática da circuncisão feminina39. De acordo com Brennan, essa prática é antiga e existente em diversas sociedades. Quando o mundo ocidental teve contato com a notícia destas práticas, entrou em choque, prontificando-sea coibir estas práticas violadoras de direitos humanos e, pelo panorama ocidental, degradantes.40 Alguns relativistas, frente a este tópico, defendem a impossibilidade de o direito internacional dos direitos humanos lograr qualquer tipo de ingerência em culturas que exercem estas práticas há séculos, ainda que sejam práticas consideradas como violações. Isto porque, de acordo com o pensamento relativista, essas práticas têm função legítima dentro de cada cultura e julgá-las a partir de um olhar ocidental, 38 HERRERA FLORES, Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. P. 26. 39 Não é o objetivo central do trabalho discorrer de maneira aprofundada sobre esta temática tão complexa, mas sim trazer brevemente o exemplo para demonstrar as incongruências do pensamento ocidental a partir da perspectiva relativista. 40 BRENNAN, Katherine. The Influence of Cultural Relativism on International Human Rights Law: Female Circumcision as a Case Study. Minnesota journal of law & inequality. Mineápolis, vol. 7, n. 3, pp. 367- 398, dez., 1989. p 367. principalmente por meio da imposição do DIDH, seria infringir o direito cultural destes povos ao impetrar valores alienígenas a uma sociedade que guarda valores próprios.41 Para os relativistas, os ideais destas sociedades são merecedores de tanto resguardo quanto nossos próprios rituais ocidentais que, vistos de fora, também podem ser considerados cruéis, como: (i) a imposição de valores estéticos absurdos à mulheres, que se submetem a procedimentos cirúrgicos de alta periculosidade para atender a um padrão inalcançável; (ii) o furo para brincos nas orelhas de recém nascidos, que configuram, para alguns, uma violação à autonomia da vontade; e até mesmo (iii) o procedimento de circuncisão em neonatos seguindo outros ritos religiosos. Todos estes fatores são apontados como práticas que configuram violações de direitos humanos - inclusive tendo ligação direta com a autonomia sobre o próprio corpo -, mas que são aceitas em nossa sociedade. Assim, a sociedade ocidental convive com costumes que infringem, igualmente, a dignidade humana e, de modo mais específico, corpos femininos. Dados estatísticos mostram que, em nossa sociedade com acesso às mídias sociais, entre os anos de 2012 e 2015, os índices de depressão cresceram 50% em meninas. Outro estudo, feito em 2017 com crianças do sexo feminino de idade entre 13 e 17 anos, aponta para o fato de sintomas depressivos dentro desse grupo terem sofrido um acréscimo de 33 pontos percentuais entre 2010 e 2015; ainda, a taxa de suicídio (dentro deste mesmo grupo) cresceu 65%. A variação mais alarmante se dá na taxa de suicídio infantil, que cresceu 150%. Todos estes padrões apontam para o fato de que esses grupos de crianças eram expostos às mídias sociais.42 43 44 41 BRENNAN, Katherine. The Influence of Cultural Relativism on International Human Rights Law: Female Circumcision as a Case Study. Minnesota journal of law & inequality. Mineápolis, vol. 7, n. 3, pp. 367- 398, dez., 1989. p 370. 42 DENIS CAMPBELL. Depression in girls linked to higher use of social media: Research suggests link between social media use and depressive symptoms was stronger for girls compared with boys. The Guardian. 43 40+ Frightening Social Media and Mental Health Statistics. ETACTICS. Hudson, 12 de nov. de 2020. 44 De mesmo modo, o objetivo aqui não é discorrer de maneira aprofundada sobre o tema, mas antes levantar reflexão sobre o próprio ambiente destrutivo e violador que a sociedade ocidental proporciona e entende como natural. Quando se aponta para a questao estética, pode-se argumentar que a sociedade ocidental em que vivemos também pode ser considerada cruel com mulheres ao passo que os padrões impostos têm correlação direta com o aumento da taxa de jovens meninas que cometem suicídio, se automutilam, sofrem com depressão e disforia do corpo. Não seriam estas práticas igualmente violadoras da dignidade humana prevista pelos inúmeros tratados que compõem o DIDH? Não configuram estas práticas, de mesmo modo, tratamento cruel e degradante ou tortura? No entanto, estas condutas são normalizadas, ainda que, de alguma maneira, também cruéis e violentas - inclusive fisicamente - contra o corpo feminino.45 culturais a partir do crivo de normas internacionais seria inapropriado de acordo com 46. Desta maneira, o relativismo cultural aponta para o fato de que certos comportamentos normalizados em nossa sociedade, vistos por outro ângulo são, de mesma forma, dignos de indignação popular. Portanto, cada sociedade deveria ter a liberdade para se auto tutelar em seus próprios costumes sem a ingerência externa, já que os padrões de moralidade e eticidade mudam a depender do local. Assim, não faria sentido apontar no outro o que o ocidente julga cruel, sem perceber que a própria noção de crueldade é variável. Neste sentido, como previamente demonstrado, a nossa própria sociedade ocidental se caracteriza como violadora de DH. No entanto, como estamos já acostumados com nossos próprios padrões e hábitos culturais, isso não é tão comportamentos ou qualquer outra coisa são relativos à cultura 47. Ainda no tocante à percepção de uma cultura a partir de parâmetros externos, é importante ressaltar que as análises do outro são sempre maculadas pela bagagem cultural do observador. O modo como são narrados os rituais culturais também têm grande peso no julgamento do outro. Para ilustrar estes pontos, trago um experimento 45 Não se ignora aqui o fato de estarmos, aos poucos, como sociedade, questionando estes costumes. No entanto, ainda vivenciamos este sistema. 46 BRENNAN, Katherine. The Influence of Cultural Relativism on International Human Rights Law: Female Circumcision as a Case Study. Minnesota journal of law & inequality. Mineápolis, vol. 7, n. 3, pp. 367- 398, dez., 1989. p 371. 47 HERSKOVITS, Melville. Cultural relativism: perspectives in cultural pluralism. Random House, 1972. [s.p] literário feito por Horace Miner, nos anos 70. Miner narra práticas culturais, mais especificamente os ritos corporais, dos Nacirema, um grupo norte americano qu 48. As práticas envolvem caixas de encantamentos, águas sagradas, ritos de limpeza, fascinação pela cavidade bucal entre outros procedimentos chocantes àqueles que se encontram fora da cultura narrada, como explicita o excerto: O ritual do corpo executado diariamente por cada Nacirema inclui um rito bucal. Apesar de serem tão cuidadosos no cuidado bucal, este rito envolve uma prática que choca o estrangeiro não iniciado, que só pode considerá-la revoltante. Foi- me relatado que o ritual consiste na inserção de um pequeno feixe de cerdas de porco na boca juntamente com certos pós mágicos, e em movimentá-lo então numa série de gestos altamente formalizados. Além do ritual bucal privado, as pessoas procuram o mencionado sacerdote-da-boca uma ou duas vezes ao ano. Estes profissionais têm uma impressionante coleção de instrumentos, consistindo de brocas, furadores, sondas e aguilhões. O uso destes objetos no exorcismo dos demônios bucais envolve, para o cliente, uma tortura ritual quase inacreditável. O sacerdote-da-boca abre a boca do cliente e, usando os instrumentos acima citados, alarga todas as cavidades que a degeneração possa ter produzido nos dentes. Nestas cavidades são colocadas substâncias mágicas. Caso não existam cavidades naturais nos dentes, grandes seções de um ou mais dentes são extirpadas para que a substância sobrenatural possa ser aplicada. Foi a estas tendências que o Prof. Linton (1936) se referiu na discussão de uma parte específica dos ritos corporais que é desempenhada apenas por homens. Esta parte do rito envolve raspar e machucar a superfície da face com um instrumento afiado. Ritos especificamente femininos têm lugar apenas quatro vezes durante cada mês lunar, mas o quelhes falta em frequência é compensado em barbaridade. Como parte desta cerimônia, as mulheres costumam colocar suas cabeças em pequenos fornos por cerca de uma hora. O aspecto teoricamente interessante é que um povo que parece ser preponderantemente masoquista tenha desenvolvido especialistas sádicos. (...) Como conclusão, deve-se fazer referência a certas práticas que têm suas bases na estética nativa, mas que decorrem da aversão profunda ao corpo natural e suas funções. Existem jejuns rituais para tornar magras pessoas gordas, e banquetes cerimoniais para tornar gordas pessoas magras. Outros ritos são usados para tornar maiores os seios das mulheres que os têm pequenos e torná- los menores quando são grandes. A insatisfação geral com o tamanho do seio é simbolizada no fato de a forma ideal estar virtualmente além da escala de variação humana. Umas poucas mulheres, dotadas de um desenvolvimento das mamas quase inumano, são tão idolatradas que podem levar uma boa vida simplesmente indo de cidade em cidade e permitindo aos embasbacados nativos, em troca de uma taxa, contemplarem-nos.49 48 MINER, Horace. Ritos corporais entre os Nacirema. In: ROONEY, A. K; VORE, P. L. You and the Others: Readings in Introductory Anthropology. Cambridge, Winthrop Publishers, 1973. [s.p] 49 MINER, Horace. Ritos corporais entre os Nacirema. In: ROONEY, A. K; VORE, P. L. You and the Others: Readings in Introductory Anthropology. Cambridge, Winthrop Publishers, 1973. [s.p] Por fim, com um olhar mais aguçado, percebe-se que o autor fala de nossa cabeça das mulheres em fornos nada mais é do que o narrar de procedimentos realizados em salões de beleza ao redor do globo; machucar a face com um instrumento afiado nada mais é que o ato de se barbear; o pequeno feixe de cerdas trata-se da escovação dos dentes, feita religiosamente por membros nossa sociedade ocidental diariamente, sem que achemos essa prática absurda; o sacerdote-da-boca? Trata-se do dentista, que, com sua impressionante coleção de instrumentos, consistindo de brocas, furadores, sondas e aguilhões, para nós não acusa mais que uma profissão rotineira. A partir deste experimento, podemos notar como a nossa percepção das sociedades é moldada a partir do discurso, e é por isso que os relativistas tão veementemente argumentam que não podemos decidir o certo e o errado - e principalmente impor estes valores no outro - baseando-nos por nossa perspectiva. Ora, a nossa própria cultura a depender da narrativa e ponto de observação pode parecer completamente inaceitável para o outro, e nossas práticas igualmente reprováveis e revoltantes. Basicamente, os relativistas afirmam que as sociedades deveriam ser livres para se autogerir sem ingerência externa: Se sociedades têm sistemas internos adequados para proteger seus próprios membros, os instrumentos de direitos humanos são desnecessários e irrelevantes. De fato, julgar práticas culturais a partir de normas internacionais seria inapropriado de acordo com relativistas culturais porque iria impor valores externos nestas culturas.50 Por fim, os relativistas apontam para a impossibilidade de julgar costumes culturais a partir do DIDH por conta de sua natureza ocidental. Desta maneira,para os relativistas, os direitos humanos não apenas representam práxis essencialmente ocidentais, bem como foram construídos a partir da ética destas sociedades e, por este motivo, não 50 BRENNAN, Katherine. The Influence of Cultural Relativism on International Human Rights Law: Female Circumcision as a Case Study. Minnesota journal of law & inequality. Mineápolis, vol. 7, n. 3, pp. 367- 398, dez., 1989. p 371. podem ser utilizados como padrão de julgamento dentro de culturas que têm valores distintos. 3. A PERSPECTIVA CONTEXTUALISTA A partir da discussão apresentada, o que se depreende é que nem o universalismo, nem o relativismo são capazes de lidar com as questões levantadas; ambas as perspectivas se mostram insuficientes. O universalismo é incapaz de, de maneira satisfatória, não violar as particularidades intrínsecas de culturas diferentes sem ignorar seus traços, e o relativismo cultural não oferece opções para garantia de direitos comuns a todas as pessoas. Assim, é preciso superar ambas as visões e buscar satisfazer este propósito por uma terceira via: qual seja, o contextualismo. A problemática central do discurso embasado no conceito abstrato de universalidade de direitos se encontra na incapacidade de incluir grupos que não partilham da mesma visão de mundo que levou à construção normativa dos direitos humanos como se tem atualmente. Basicamente, isso implica dizer que a narrativa da universalidade desenfreada apaga idiossincrasias importantes e busca uniformizar a humanidade através das lentes ocidentais. Por este prisma, é preciso que a interculturalidade esteja presente para que a complexidade dos direitos humanos seja capaz de abarcar as diferentes concepções do que configura a dignidade humana.51 Neste sentido, Boaventura de Sousa Santos explicita que nenhuma cultura é inteiramente completa. É por este motivo que, ao propor o método da hermenêutica diatópica para os direitos humanos, o professor consegue apontar um caminho alternativo que busque levar em consideração valores culturais diferentes e ponderá-los a fim de garantir a implementação dos direitos humanos sem incorrer em mera globalização de um localismo.52 Por serem contextos distintos, pode-se defender que o discurso da universalidade já serviu a um propósito na história dos direitos humanos. No entanto, tal interpretação 51 HERRERA FLORES, Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. p. 22. 52 SANTOS, Boaventura de Sousa; SANTOS, Cecília MacDowell; MARTINS, Bruno Sena. Quem precisa dos direitos humanos?: precariedades, diferenças, interculturalidades. Coimbra: Almedina, 2019. P. 343. merece ser revisitada, principalmente ao aceitarmos a posição de que nenhum direito existe no vazio, mas tem embasamento nas relações sociais turbulentas que se desenvolvem a todo instante. Nenhum conceito jurídico configura-se imutável, a própria noção de direitos humanos atual pressupõe esta afirmação ao passo que configura rol aberto e meramente exemplificativo - não fechado e engessado; existe, portanto, a possibilidade de adição a este rol53. Assim como é possível calibrar o tertium comparationis dentro da disciplina de direito comparado para analisar diferentes sistemas jurídicos e encontrar semelhanças entre eles, o DIDH, de mesmo modo, pressupõe a possibilidade de existência de certo rol de regras que seriam comuns a todas as sociedades do mundo. Isso seria viável já que, ainda que diferentes entre si, as sociedades do mundo poderiam partilhar de um mínimo ético comum irredutível capaz de unificar as práticas com relação à pessoa humana e seus direitos inerentes à sua condição (de ser humano), e assim não existiria a problemática da imposição. Por este viés, a aplicação do DIDH pode ser feita de maneira a não configurar uma intrusão ou imposição de valores ocidentais à uma sociedade - ainda que ela não seja ocidental. Isto porque, em tese, todas as sociedades mundiais, independentemente de suas coordenadas geográficas, podem se influenciar e dialogar a fim de partilhar de certos padrões éticos comuns. Desta maneira, por meio do diálogo intercultural, padrões específicos de uma cultura, então, seriam possíveis de serem analisados por outra ao modelarmos o ponto de vista da análise. Para ilustrar, se olharmos de perto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (predominantemente ocidental) é demasiadamente diferente da Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos. No entanto, se calibrarmos a distância da comparação e analisarmos de maneira mais distante, ambos são instrumentos que buscam defender os direitos humanos dentrode seu próprio padrão cultural. 53 Faz-se importante ressaltar que isso se dá pela necessidade de permitir maleabilidade das normas aos contextos em que se aplicam. Assim, pode-se defender a possibilidade de diálogo entre as culturas que seriam utilizados como base para implementar o rol de DH definido pelas convenções atuais respeitando as realidades distintas de cada sociedade. ral é a 54. Assim, não há como se falar em universalidade de direitos pela imposição de valores, considerando que estes são produtos de uma realidade cultural determinada. Portanto, não seria possível a existência de uma cultura global una, mas sim a existência de diálogo entre culturas distintas. Ainda, os direitos humanos ocidentais, como fruto cultural, não são o ápice indiscutível da proteção de direitos, tampouco são capazes de se blindar de falhas. Isto porque cada cultura entende a si mesma como completa, mas quando colocada em comparação com duas ou mais outras culturas, pode-se perceber sua incompletude.55 Assim, se analisados frente a outras práticas culturais, os direitos humanos ocidentais têm lacunas de proteção que devem ser examinadas. O questionar da universalidade permite comparar a percepção de direitos humanos entre culturas, e esta comparação permite o enriquecimento destes [os direitos humanos], ao passo que cada uma [cultura] tem a capacidade de contribuir para a identificação de falhas na aplicação efetiva de DH. Portanto, esse movimento de interpretação diatópica permite o enriquecimento da cultura dos direitos humanos. Desta maneira, a análise da universalidade reside essencialmente no interior do escopo de uma cultura específic universalidade dos direitos humanos é uma questão cultural do Ocidente. Logo, os direitos humanos são universais apenas quando olhados de um ponto de vista 56 54 SANTOS, Boaventura de Sousa; SANTOS, Cecília MacDowell; MARTINS, Bruno Sena. Quem precisa dos direitos humanos?: precariedades, diferenças, interculturalidades. Coimbra: Almedina, 2019. P. 341. 55 SANTOS, Boaventura de Sousa; SANTOS, Cecília MacDowell; MARTINS, Bruno Sena. Quem precisa dos direitos humanos?: precariedades, diferenças, interculturalidades. Coimbra: Almedina, 2019. P. 341. 56 SANTOS, Boaventura de Sousa; SANTOS, Cecília MacDowell; MARTINS, Bruno Sena. Quem precisa dos direitos humanos?: precariedades, diferenças, interculturalidades. Coimbra: Almedina, 2019. P. 341. Para Santos, os direitos humanos funcionam como uma forma de fenômeno bivalente, que em seu enredamento assumem tanto a forma de localismo globalizado, quanto de cosmopolitismo subalterno57. Assim, a depender da aplicação e contextualização, bem como da forma como são encarados e descritos, os direitos humanos atuam de maneiras diversas em um mesmo eixo, podendo se revestir de uma roupagem nova e completamente oposta à anterior, tamanha sua complexidade. Assim, não é meramente sua gênese europeia que anularia a validade dos direitos humanos em outros lugares, mas a possibilidade de esses lugares partilharem ou não de seus valores e concordarem com suas premissas como padrão geral. Neste sentido, para o aut 58 das sociedades com os direitos humanos. Uma perspectiva mais positivista do tema se embasa no fato de que o processo os Estados participantes das Nações Unidas e que, aqueles que não participaram do processo decisório, mais tardiamente puderam concordar com estes termos. No caso, a DUDH e outros inúmeros tratados que proclamam DH têm com pedra angular o consentimento livre e esclarecido de cada Estado (neste sentido, cada sociedade) e, por isso, o rol atual representa a vontade universal de reconhecer estes como os DH de todos. Neste sentido: A resposta positivista para o relativismo cultural é a de que, independentemente de ideologias conflitantes e valores culturais aos quais as nações aderem, as normas promulgadas das Nações Unidas representam acordos entre as nações participantes para que trabalhem em direção a um objetivo comum. Se determinados Estados-membros têm uma tradição de valorizar a dignidade individual ou não, é irrelevante. Se ratificaram instrumentos de direitos humanos que se baseiam nesta teoria de direitos individuais, estes Estados participaram voluntariamente no processo da ONU e se obrigaram a proteger estes direitos.59 Ainda, os direitos humanos não são aplicados de maneira uniforme. Existem variadas formulações distintas entre si a depender do instrumento, e cada região tem um 57 SANTOS, Boaventura de Sousa; SANTOS, Cecília MacDowell; MARTINS, Bruno Sena. Quem precisa dos direitos humanos?: precariedades, diferenças, interculturalidades. Coimbra: Almedina, 2019. P. 399. 58 SANTOS, Boaventura de Sousa. p. 340. 59 BRENNAN, Katherine. The Influence of Cultural Relativism on International Human Rights Law: Female Circumcision as a Case Study. Minnesota journal of law & inequality. Mineápolis, vol. 7, n. 3, pp. 367- 398, dez., 1989. p 372. sistema de proteção de direitos humanos para melhor atender aos interesses e necessidades culturais da origem. Sobre este assunto, Cançado Trindade: No processo de generalização da proteção dos direitos humanos, a unidade conceitual dos direitos humanos - todos inerentes à pessoa humana - veio a transcender as distintas formulações de direitos reconhecidos em diferentes instrumentos. Em nada surpreende que ao indivíduo seja concedida a liberdade de escolha do procedimento internacional a ser acionado (...). Tampouco em nada surpreende que se aplique o critério da primazia da norma mais favorável à suposta vítima de violação de direitos humanos (...). Tal complementaridade de instrumentos de direitos humanos em níveis global e regional reflete a especificidade e autonomia do Direito Internacional dos Direitos Humanos, caracterizado essencialmente como um direito de proteção.60 É importante explicitar aqui que o mero transplante de certo rol ou princípios de direito para outros sistemas jurídicos é tido, para a disciplina de direito comparado, por exemplo, como prática legislativa que não leva em consideração as particularidades de outros sistemas. Neste prisma, a grande chance de inefetividade de ditas normas ou princípios - por serem alheios à tradição jurídica receptiva é capaz de encabeçar consequências desastrosas dentro destes contextos. No entanto, ainda que o rol atual dos direitos humanos tenha gênese em certas culturas específicas, isso não é impedimento para a possibilidade de aplicação desde rol respeitando particularidades inerentes à cada sociedade. Desta maneira, os direitos humanos atuais merecem ser revisitados, mas isso não implica no descarte das proposições que temos, tampouco na invalidade ou deslegitimidade dos sistemas jurídicos de proteção de direitos humanos. No que tange à universalidade dos direitos humanos pretendida, esta não pode ser levada a cabo pela mera imposição de princípios que derivam de valores culturais sem antes se permitir adaptável ao cenário que os irão receber. Neste sentido, qualquer tipo de divisão de mundo a partir de linhas concretas mostra-se prejudicial para a análise dos Direitos Humanos. Isto porque as sociedades interagem entre si, sendo assim, as - que permite a passagem e troca de informação entre os meios -, do que à uma muralha que impede qualquer tipo de compartilhamento entre meios. Assim, o contexto real fica 60 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Vol. 1. Porto Alegre: SAFE, 1997. p. 28. esquecido no debate encabrestado entre universalismo e relativismo. Sobre isso, Melina Fachin: Os debates polarizados, entre um pretenso universalismo ou relativismo, não levam em conta, ao menos em um primeiro plano, esta dimensão política-social. Possuem, destarte, uma visão parcial, e portanto reduzida, do real (...)61 O enfoque relativista acaba por inviabilizaro debate internacional e a consequente adaptação cultural de direitos. Assim, o diálogo configuraria como principal ponto de partida para abrir a porta da possibilidade de aplicação de direitos humanos e incorporação destes em diferentes culturas sem apagar traços inerentes a elas. Mas a crítica relativista denuncia a incapacidade do discurso da universalidade de efetivamente proteger a dignidade humana. Para Herrera Flores, a realidade vivida atualmente sob a égide do pensamento neoliberal, responsável, em grande parte, pelas ideias de superioridade de alguns Estados frente a outros e da crescente repúdia pelos 62 O relativismo, contudo, falha ao não considerar a possibilidade de diálogo intercultural. Ademais, a cultura não configura fator determinante do pensamento de uma 63. Para Melina Fachin, aqui reside o grande equívoco do relativismo: 64. As constantes denúncias de violações de direitos humanos que continuam a existir, o frequente descaso de Estados que se omitem para com a garantia efetiva dos 61 FACHIN, Melina Girardi. Fundamentos dos Direitos Humanos: teoria e práxis na cultura da tolerância. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 234. 62 HERRERA FLORES, Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. P. 20. 63 FACHIN, Melina Girardi. Fundamentos dos Direitos Humanos: teoria e práxis na cultura da tolerância. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 236. 64 FACHIN, Melina Girardi. Fundamentos dos Direitos Humanos: teoria e práxis na cultura da tolerância. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 236. direitos humanos, bem como a tomada de ações positivas, por parte destes, que explanam sua insubordinação a estas normas - não apenas em sua própria dimensão territorial ou pessoal, mas também fora dos limites de sua soberania -, e a aparente inexequibilidade de sanções aos capazes de violar os discursos e normas de direitos humanos são fatores que acusam a não total efetividade do sistema de direitos humanos atual. Faz-se importante entender que a mera normatividade ou positividade de direitos - sejam quais forem - não confere grau algum de respeito ou garantia. Existe um abismo surpreendente entre a norma jurídica e a sua efetividade e capacidade de proteção do ser humano. Não há como idolatrar a judicialização e abandonar a realidade social que escancara a falha do olhar puramente normativo dos direitos humanos. Há, por trás dos sistemas jurídicos, sistemas sociais que definem privilégios e desigualdades. Para Herrera Flores, Falamos de direitos e parece que tal reconhecimento jurídico já solucionou todo o problema que envolve as situações de desigualdade ou de injustiça que as normas devem regular. Somente devemos nos preocupar com as garantias judiciais dos direitos, desprezando absolutamente que, atrás de todo edifício jurídico, se escondem sistemas de valores e processos de divisão do fazer humano que privilegiam uns grupos e subordinam outros.65 Como explicitado anteriormente, positivar direitos não implica assegurar estes direitos, tampouco universalizá-los. Por este motivo, a perspectiva contextualista que é capaz de estabelecer como denominador comum entre as sociedades globais o diálogo, mostra-se macular práticas culturais. CONSIDERAÇÕES FINAIS O que se pode depreender do que foi trabalhado ao longo das sessões anteriores é o que o debate entre universalistas e relativistas precisa ser revisitado. A teoria crítica de direitos humanos e a perspectiva relativista são necessárias para que possamos revisitar fundamentos ultrapassados e discursos não inclusivos, marcados pelo 65 HERRERA FLORES, Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. p. 21. preconceito e aversão ao outro. De mesmo modo, o argumento relativista não deve ser utilizado como preceito para deslegitimar o rol de direitos humanos ou os diversos sistemas de proteção atuais. As perspectivas universalista e relativista não se mostram capazes de trazer soluções efetivas quanto à garantia dos direitos humanos. A primeira, falha em atender as diferentes nuances culturais, e, a segunda, falha em compreender que sociedades, ainda que distintas, não existem de maneira isolada uma das outras, tampouco determinam a imutabilidade de um sistema. Assim, a possibilidade de diálogo entre diferentes culturas mostra-se como não apenas um caminho possível, mas também um caminho capaz de proporcionar enriquecimento à matéria de direitos humanos. É importante ressaltar, novamente, que em se considerando a gênese dos direitos humanos na conformação que se tem atualmente, estes podem ser tidos como produtos históricos de uma determinada cultura, um determinado local e um determinado tempo. No entanto, a raiz europeia ou norte americana desses direitos, mesmo com o possível espelhar de aspectos culturais, sociais e políticos destes lugares, não é fator impeditivo para que estes sejam aplicados de maneira a abranger ou se adaptar à diferentes culturas, tampouco é fator para o descarte de todo o sistema de DH vigente. Assim, a relatividade desses conceitos não deve implicar na exclusão do rol de direitos que a sociedade internacional construiu até então. Os direitos humanos não precisam ser descartados por suas incongruências históricas, mas devem ser revisitados de maneira a buscar sua efetividade e garantia a todos os indivíduos. O pilar de proteção humana que se desenvolveu ao longo das décadas tem seu prestígio e sua importância na luta pelo alcance da dignidade humana. O contextualismo se configura como terceira via capaz de proporcionar a aplicação bem-sucedida dos direitos humanos, porquanto é uma perspectiva que assume a possibilidade de diálogo intercultural, sem impor conceitos engessados às sociedades e suas práticas culturais - como faz tanto universalismo, como relativismo. Por fim, se os direitos humanos constituem a luta para ter desejos e necessidades humanas individuais e coletivas respeitados66, a depender do contexto em que se inserem, o método de análise de Boaventura de Sousa Santos se mostra ideal para a consecução destes: a visão contextualista se revela como um terceiro caminho possível para o implementar dessas lutas de maneira efetiva, sem descartar idiossincrasias culturais e sem desvalidar o sistema de direitos humanos atual. 66 HERRERA FLORES, Joaquín. 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