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Professora conteudista: Lidiana Flora Vidôto da Costa É professora titular da Universidade Paulista (UNIP) desde 2004, graduada em Enfermagem pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP), em 1988, mestre em Enfermagem pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 2008, e doutora em Patologia Ambiental e Experimental pela Universidade Paulista (UNIP), em 2015. Ministra as disciplinas de Ética em Enfermagem e Exercício Prossional no curso de graduação em Enfermagem da UNIP e de Aspectos Éticos, Filosócos, Políticos e Legais em Saúde nos cursos de pós-graduação em Enfermagem em Obstetrícia, Enfermagem em Urgência e Emergência e Enfermagem do Trabalho. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogaçao na Publicaçao (CIP) C837e Costa, Lidiana Flora Vidôto da. Ética em Enfermagem e Exercício Prossional. / Lidiana Flora Vidôto da Costa. – São Paulo: Editora Sol, 2016. 116 p., il Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXII, n. 2-078/16, ISSN 1517-9230. 1. Enfermagem e bioética. 2. Ética prossional. 3. Dilemas Éticos. I. Título. CDU 616-083 U502.21 – 19 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administraçao e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitarias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pos-Graduaçao e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduaçao Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didatico – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualicação e Avaliação de Cursos Projeto gráco: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Giovanna Oliveira Rose Castilho Sumario Ética em Enfermagem e Exercício Profissional APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 ÉTICA PROFISSIONAL ..................................................................................................................................... 13 1.1 Ética e Moral .......................................................................................................................................... 13 1.2 Fundamentos da Ética ........................................................................................................................ 16 1.2.1 Consciência ............................................................................................................................................... 17 1.2.2 Valores ......................................................................................................................................................... 17 1.2.3 Autonomia e liberdade ......................................................................................................................... 19 1.2.4 Responsabilidade e verdade ............................................................................................................... 20 1.2.5 Respeito e reciprocidade ...................................................................................................................... 21 1.3 Responsabilidades ética e legal ...................................................................................................... 22 1.3.1 Responsabilidade civil ........................................................................................................................... 23 1.3.2 Responsabilidade penal ........................................................................................................................ 27 1.3.3 Responsabilidade ética ......................................................................................................................... 31 2 ÉTICA PROFISSIONAL E AS PRINCIPAIS LEGISLAÇÕES...................................................................... 32 2.1 Conceitos ................................................................................................................................................. 32 2.1.1 Deontologia ............................................................................................................................................... 32 2.1.2 Diceologia .................................................................................................................................................. 33 2.1.3 Imprudência .............................................................................................................................................. 33 2.1.4 Negligência ................................................................................................................................................ 35 2.1.5 Imperícia ..................................................................................................................................................... 36 2.2 Lei do Exercício Prossional ............................................................................................................. 37 2.3 Resoluções relevantes do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) ............................ 39 2.3.1 Resolução Cofen nº 390/2011 ............................................................................................................ 39 2.3.2 Resolução Cofen nº 389/2011 ............................................................................................................ 39 2.3.3 Resolução Cofen nº 388/2011 ............................................................................................................ 40 2.3.4 Resolução Cofen nº 381/2011 ............................................................................................................ 40 2.3.5 Resolução Cofen nº 376/2011 ............................................................................................................ 41 2.3.6 Resolução Cofen nº 516/2016 ........................................................................................................... 43 2.3.7 Resolução Cofen nº 487/2015 ........................................................................................................... 43 2.4 Código de Ética dos prossionais de enfermagem e os dilemas éticos ......................... 45 2.5 Entidades de classe e a Enfermagem ........................................................................................... 49 2.5.1 Sindicatos ................................................................................................................................................... 50 2.5.2 Associações e sociedades de especialistas .................................................................................... 50 2.5.3 Conselhos de Enfermagem ................................................................................................................. 53 3 ÉTICA E PESQUISA EM SAÚDE .................................................................................................................... 55 4 LEGISLAÇÃO, DEONTOLOGIA E AS INTERFACES COM A ENFERMAGEM E O CLIENTE .......... 61 4.1 Direitos do paciente ............................................................................................................................ 61Unidade II 5 ENFERMAGEM E BIOÉTICA .......................................................................................................................... 65 5.1 Conceito e história ............................................................................................................................... 65 5.2 Princípios da bioética.......................................................................................................................... 68 5.2.1 Justiça .......................................................................................................................................................... 68 5.2.2 Autonomia ................................................................................................................................................. 69 5.2.3 Benecência .............................................................................................................................................. 71 5.2.4 Não malecência .................................................................................................................................... 71 6 PRINCIPAIS DILEMAS ÉTICOS E AS INTERFACES COM A ENFERMAGEM .................................. 72 6.1 Aborto ....................................................................................................................................................... 73 6.1.1 Conceitos .................................................................................................................................................... 73 6.1.2 História do aborto .................................................................................................................................. 73 6.1.3 A legalização do aborto no mundo e no Brasil .......................................................................... 74 6.1.4 Aborto: prevalência no mundo, dilemas éticos e políticos .................................................... 76 6.1.5 O aborto, o enfermeiro e a ética prossional .............................................................................. 78 6.2 Violência, discriminação étnica e social ...................................................................................... 80 6.3 Transfusão sanguínea e as losoas religiosas ........................................................................ 83 6.4 Doação e transplante de órgãos .................................................................................................... 86 6.5 Bioética diante das questões da morte e do processo de morrer .................................... 89 6.5.1 Eutanásia .................................................................................................................................................... 89 6.5.2 Distanásia ................................................................................................................................................... 90 6.5.3 Ortotanásia ................................................................................................................................................ 91 7 GENÉTICA E DILEMAS ÉTICOS..................................................................................................................... 93 7.1 Células-tronco de embriões ............................................................................................................. 93 7.2 Alimentos transgênicos ..................................................................................................................... 94 8 DESCOBERTA DO MAPEAMENTO GENÉTICO HUMANO E AS IMPLICAÇÕES ÉTICAS ............ 95 8.1 Nanotecnologia ..................................................................................................................................... 96 7 APRESENTAÇÃO A disciplina Ética em Enfermagem e Exercício Prossional busca fornecer elementos para a capacitação para a tomada de decisão ético-legal no exercício da prossão. Ao nal do curso, o aluno deverá ser capaz de construir signicados a partir da abordagem dos fundamentos da Ética, de caracterizar as responsabilidades prossionais, destacando a questão da autonomia e dos dilemas éticos da prossão, e promover reexões éticas sobre as questões de saúde e da vida humana. Deverá, ainda, ser capaz de promover discussões sobre o Código de Ética dos Prossionais de Enfermagem e sobre as tomadas de decisões éticas enquanto classe, no exercício ético legal da prossão. A disciplina tem como objetivos: • conhecer as distinções entre Ética e Moral e os fundamentos da Ética, além de discutir seus principais conceitos; • compreender e utilizar o Código de Ética dos Prossionais de Enfermagem no embasamento de atos éticos decisórios; • reconhecer dilemas éticos e legais no exercício da Enfermagem; • conhecer as responsabilidades éticas e legais do prossional de enfermagem; • diferenciar as diversas entidades representativas da Enfermagem e suas nalidades cientícas, técnicas e culturais; • avaliar as inuências de códigos e leis, nacionais e estaduais, na garantia de direitos de grupos populacionais, consumidores e usuários de serviços de saúde; • construir conhecimentos sobre Ética, deontologia e bioética; • conhecer e discutir os princípios fundamentais da bioética e os envolvimentos com as prossões de saúde; • construir o saber em Enfermagem, relacionando a necessidade do conhecimento para a atuação responsável do enfermeiro, respeitando os princípios de Ética e bioética; • conhecer os aspectos éticos e legais na pesquisa de Enfermagem; • discutir e conhecer as perspectivas do exercício da Enfermagem atual; • discutir os signicados de autonomia, privacidade, condencialidade e as inter-relações voltadas à realidade das ações assistenciais desenvolvidas nas instituições de saúde; 8 • discutir a atuação ética e legal do prossional enfermeiro frente às questões: eutanásia, aborto, transplante de órgãos, planejamento familiar, reprodução assistida, engenharia genética; • conhecer o Código de Defesa do Consumidor e os direitos do paciente e suas implicações éticas e legais; • conhecer os aspectos éticos e legais envolvendo a pesquisa de enfermagem em seres humanos e suas implicações éticas e legais; • conhecer as diretrizes da formação e da atuação da comissão de Ética em enfermagem nas instituições de saúde; • identicar as perspectivas do exercício prossional de enfermagem. INTRODUÇÃO Caro aluno, pode ser que, no decorrer do curso, as disciplinas técnicas-operativas sejam as que mais atraiam sua atenção e, consequentemente, sua dedicação aos estudos. É importante saber como atender a uma parada cardiorrespiratória, como administrar um medicamento, realizar uma sondagem vesical ou um curativo. É sabido que esses interesses ocorrem à maioria dos alunos que passam pela graduação do curso, porém, é sabido também que a prática de enfermagem inclui dois componentes igualmente importantes: o técnico-operativo e o ético-moral (OGUISSO; SCHIMIDT, 2007, p. 13). Como futuro prossional, lembre-se sempre de que o enfermeiro não pode focar suas atividades diárias apenas no fazer pelo fazer, ou idealizar as rotinas estabelecidas e as normas técnicas dos serviços de saúde e educação. No ensino da Enfermagem, a Ética faz parte do currículo, sendo uma disciplina com conteúdo que deve permitir a criação de espaços para a reexão, com a característica de fazer “parar para pensar”. Seu objetivo é fazer o prossional raciocinar adequadamente bem para conduzir com competência, comprometimento e responsabilidade sua prossão. A Ética pode ser denida como saber que agrega e integra as várias disciplinas do currículo de enfermagem, para que todos tenham uma linguagem comum, relacionada aos princípios éticos que norteiam nossa prossão (FORTES, 1998, p. 32). Precisamos buscar a percepção e a reexão de nossas ações, conhecendo as consequências de cada uma delas para os nossos pacientes, a sociedade prossional e a comunidade institucional.E devemos fazê-lo de acordo com as fundamentações da Ética e da bioética para que nossas ações se reitam numa assistência de equilíbrio: não puramente técnica ou puramente focada em legislações e na boa vontade do cuidar. Precisamos, prezado aluno, buscar desenvolver nossas atividades prossionais embasadas no conhecimento cientíco e no respeito ao indivíduo, sempre permeadas pela Ética. Essa é uma postura 9 que deve ser adotada pelos prossionais, assumindo a responsabilidade social e respeitando o direito à cidadania. Nesse contexto, faz-se necessário que a Enfermagem avalie sua postura e suas práticas não apenas sob a perspectiva deontológica, mas que, ao contrário, analise sua atuação compreendendo a complexidade dos fatores envolvidos – cultura, religião e ciência – pautada no diálogo, na tolerância e no respeito a todas as partes envolvidas (COFEN, 2015). A prática assistencial e a Ética prossional caminham juntas, equilibrando-se, tendo como único objetivo a relação intrínseca que existe entre a evolução e a qualidade dos processos de cuidar de enfermagem e os aspectos de excelência técnico-cientíca e éticos-morais desses cuidados idealizados e prestados. O conhecimento do enfermeiro sobre a legislação acerca de sua prossão e das atividades que a permeia, assim como das regras e das diretrizes, possibilita-lhe compreender e questionar os reexos de suas atividades, as consequências de suas ações, seus direitos e deveres, suas responsabilidades e, inclusive, suas obrigações. Conhecer as resoluções dos órgãos representativos de sua prossão, como o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e o Conselho Regional de Enfermagem (Coren), implica estar sempre atento às mudanças, às discussões e aos pensamentos da categoria. Se, por um lado, temos as diretrizes dos conselhos, temos, por outro, as ciências e as técnicas modernas, que produzem mudanças qualitativas no agir do homem. As novas tecnologias engendram crescimento brutal dos poderes do homem, tornando-o objeto de suas técnicas. Tudo isso pode se converter em ameaça, exigindo reformulação Ética para o nosso tempo. As antigas e as novas tendências dessas novas tecnologias devem ser vistas sob o ponto de vista da bioética e dos seus possíveis impactos à população assistida, às gerações que virão e, por que não, ao planeta em que vivemos. Como exemplo, temos a genética e a nanotecnologia, que são temas atuais e de evidência na sociedade técnico-científica, e podem impactar a sociedade em que vivemos. Você pode se perguntar: de que forma? Vamos refletir: Não é maravilhoso pensar que genes específicos para determinados tipos de câncer e drogas que, com modificações moleculares, poderão agir especificamente nesse tipo de célula cancerígena, estão prestes a ser descobertos e que, assim, o tratamento será muito mais eficiente do que os que existem atualmente? Qual o ponto de vista dos cientistas? O que pensam os religiosos? Todos os pacientes portadores desse tipo de câncer poderão pagar por este tratamento? E qual será o impacto desse tratamento para a saúde pública? Será que alguns tipos de neoplasias malignas deixarão de ter taxas de morbidade e mortalidade altas no planeta? Será que todos os países do planeta poderão oferecer esse tratamento à população? Todos esses questionamentos deverão ser discutidos em uma esfera ampla, pluralista, de acordo com os princípios da benevolência, da não maledicência, da autonomia e da justiça, e é isso que denominamos “bioética”. Outros temas importantes de bioética que valem a pena discutir são: o aborto, a violência, os transplantes de órgãos, a discriminação racial e social, a eutanásia e tantos outros que trataremos neste livro. 10 Assim, como tudo na vida, as experiências e os novos conhecimentos fazem a evolução do ser humano, e podemos armar que o mesmo ocorre na Enfermagem. Os avanços tecnológicos e cientícos contribuem constantemente para as mudanças de conduta no fazer e pensar das prossões, e a Enfermagem está incluída nessa jornada de transformações. A gura seguinte demonstra uma estudante de enfermagem atendendo uma criança na década de 1940. E hoje? Você se vê assim? O ambiente hospitalar mudou? E o uso de equipamentos de proteção individual? Onde estão as luvas para que a enfermeira aplique a medicação? Será que as luvas para procedimentos já existiam? O que fez com que mudanças ocorressem com o passar do tempo? A resposta, como você pode imaginar, é: conhecimentos e tecnologia. Agora resta pensar: devido ao fato de os conhecimentos dos mecanismos de transmissões de doenças e das tecnologias estarem em constante evolução, tornou-se uma diretriz do trabalho da enfermagem o uso das luvas para procedimentos. O mercado de artigos hospitalares dispõe desse material com opções de tamanhos, contendo matéria-prima antialérgica, com luvas produzidas por diversas opções de materiais, em látex e até mesmo em silicone, entalcadas ou sem talco, enm, é a tecnologia atendendo aos avanços da ciência. Nesse simples exemplo, vale salientar que, além das diretrizes nacionais e internacionais voltadas para as medidas de segurança ocupacional para evitar que os prossionais da saúde quem expostos às doenças em seu ambiente de trabalho, existem as leis que asseguram essas diretrizes, exigindo, por exemplo, que os empregadores forneçam os materiais necessários para o trabalhador. Mas será que todos os profissionais de saúde, atualmente, utilizam essa tecnologia, esses conhecimentos e os benefícios das diretrizes e das leis para a utilização das luvas para procedimentos, como exemplificada, ou para qualquer outra conduta necessária para o atendimento do paciente, ou para as relações com as equipes de trabalho, a família e a comunidade? Será que muitos profissionais de enfermagem ainda adotam bases técnicas e procedimentos arraigados em épocas primitivas do saber? Com todas as melhorias e anteparos técnicos, cientícos e legais criados com a evolução da humanidade, há garantias de que todos os prossionais de enfermagem façam respeitar as condutas desejadas para a assistência prestada? A resposta é simples: claro que não. Muitas vezes, mesmo dispondo da tecnologia e da ciência a seu favor, alguns prossionais de enfermagem se apropriam desses privilégios. Poderão faltar os insumos necessários para o trabalho, o interesse pela atualização prossional e, principalmente e mais importante, a consciência das consequências de suas decisões para as condutas adotadas. Acredita-se que a conduta humana é muito complexa. O processo de conduta não é apenas racional, pois dependerá de diversos fatores distintos para cada um. A consciência, as percepções, as crenças e os valores, mesmo na presença da evolução do conhecimento e da tecnologia, poderão tramitar entre a razão e a objeção. 11 Figura 1 Portanto, caro aluno, fazemos o convite para que você participe de alguns ensinamentos acerca dessas temáticas, para que possamos exercitar o poder de ter uma mente livre, interessada pelos conhecimentos e aprimoramentos, de modo a favorecer a compreensão e o discernimento para o exercício prossional pleno. 13 ÉTICA EM ENFERMAGEM E EXERCÍCIO PROFISSIONAL Unidade I 1 ÉTICA PROFISSIONAL 1.1 Ética e Moral Desde a Antiguidade, os homens têm se preocupado com as questões éticas e morais, vinculadas à natureza, à política, às regras de convivência social e ao comportamento humano. As concepções sobre o ajuizamento ético têm evoluído ao longo da história da humanidade (OGUISSO, 2012, p. 45). A situação histórica atual é bem diferente daquela da época de Aristóteles, Platão e Sócrates, na qual o bem era a preservação da ordem natural, ou dos ensinamentos judaicos e cristãos, na qual o bem equivalia à obediência às orientações divinas. A Moral e a Ética não possuem um significado rígido e estático na história da Filosofia. A Moral está associada aos costumes, regras, convenções e tabus estabelecidos pela sociedade. Já a Ética estáassociada aos valores morais que dão orientação ao comportamento humano na sociedade (BOFF, 2003, p. 2). Esses dois termos possuem origens etimológicas distintas e, inicialmente, nos primórdios, Ética e Moral tinham praticamente o mesmo signicado, diferindo apenas na semântica. A palavra “moral” é originária do termo latino “morales”, que signica “relativo aos costumes”, isto é, aquilo que se consolidou como verdadeiro do ponto de vista da ação. A Moral pode ser denida como o conjunto de regras aplicadas no cotidiano e que são utilizadas constantemente por cada cidadão. Tais regras orientam cada indivíduo que vive na sociedade, norteando os seus julgamentos sobre o que é certo ou errado, moral ou imoral, e as suas ações. A Moral é construída por uma sociedade com base nos valores históricos e culturais. Como exemplo, podemos dizer que, na sociedade em que vivemos hoje, quando avistamos casais de namorados andando de mãos dadas pelas ruas, julgamos ser algo bonito, inspirador, terno, porém, em outros tempos, nessa mesma sociedade, isso poderia ser considerado imoral. Portanto, a consciência e os valores morais podem mudar com o tempo. Quando falamos de Moral, podemos pensar em um outro exemplo. A Moral pode ser distinta quando comparamos, em uma mesma época, dois ou mais grupos de pessoas que convivem. É comum encontramos populações ou até mesmo grupos que possuem opiniões distintas sobre determinado assunto ou comportamento social e costumes diferentes. Podemos dizer que o que são consideradas atitudes e costumes “normais”, corriqueiros e cotidianos para uma população, podem ser “aberrações” para outra. Um exemplo claro disso seria o costume do traje usado pela mulher em público. De acordo com a interpretação dos talibãs do livro sagrado dos muçulmanos, o Alcorão, os homens e as mulheres 14 Unidade I devem viver com modéstia e discrição máximas enquanto estiverem expostos em público. Portanto, o uso da burca, uma peça do vestuário tradicional das mulheres muçulmanas, principalmente as afegãs, caracterizada por cobrir todo o corpo, o cabelo e o rosto, começou a ser considerado obrigatório pelas mulheres no Afeganistão entre 1995 e 2001 (período do regime do talibã). Sabe-se que aproximadamente 60% das mulheres afegãs atualmente continuam utilizando a burca, seja por tradição ou por medo de represálias dos pequenos núcleos de muçulmanos extremistas que permanecem na região. Dessa forma, podemos dizer que essa população atribui preceitos morais a esse costume e que caso uma mulher habituada a diferentes costumes para se vestir não use a burca, provavelmente será vista como uma pessoa agindo de modo imoral. E o contrário também pode acontecer. O costume de uma mulher afegã pode ser visto por uma comunidade que não tem esse hábito como um ato que reduz a mulher à servidão e ameaça a sua dignidade. Ou seja, sua vestimenta, assim, não seria vista como um sinal de religião, mas de subserviência. Nesse caso, estão sendo questionados o princípio da laicidade e o da ponderação entre o direito à liberdade religiosa e o direito à igualdade de gênero. Assim, podemos concluir que um costume considerado moral, como um determinado “modelo ideal de boa conduta socialmente estabelecida”, que reete certa forma de vida, pode se alterar em um período de tempo diferente ou diferir de uma população para outra. Lembrete Valores morais são os conceitos, juízos e pensamentos considerados “certos” ou “errados” por determinada pessoa ou por um determinado grupo na sociedade. A palavra “Ética” é proveniente do grego “ethos”, signica, literalmente, “morada”, “hábitat”, “refúgio”, ou seja, o lugar onde as pessoas habitam, caráter, modo de ser de uma pessoa. O lósofo Aristóteles acreditava que a Ética era caracterizada pela nalidade e pelo objetivo a ser atingido, que seria viver bem, ter uma boa vida. A palavra “Ética” também pode ser denida como um conjunto de conhecimentos extraídos da investigação do comportamento humano na tentativa de explicar as regras morais de forma racional e fundamentada. Nesse sentido, trata-se de uma reexão sobre a Moral. A Filosoa foi a primeira a surgir, antes de se tratar da Ética propriamente dita, emergindo quando se concluiu que a verdade do mundo e dos humanos não era algo secreto e misterioso, que precisasse ser revelado por divindades a alguns escolhidos, mas que, ao contrário, podia ser conhecida por todos, através da razão, que é a mesma em todos. Surgiu, dessa forma, quando se descobriu que tal conhecimento depende do uso correto da razão ou do pensamento e que, além de a verdade poder ser conhecida por todos, podia, pelo mesmo motivo, ser ensinada ou transmitida a todos (CHAUÍ, 2000, p. 20). A Ética como teoria losóca tem por objetivo estudar o comportamento dos indivíduos frente aos apelos morais da sociedade em que estes vivem. Ela se manifesta de diferentes maneiras conforme a 15 ÉTICA EM ENFERMAGEM E EXERCÍCIO PROFISSIONAL cultura, costumes e hábitos de determinadas populações. Traduz, assim, a maneira de buscar a harmonia entre todos os indivíduos, uma forma de conviver e viver com outras pessoas, de modo que cada um buscasse seus interesses e todos cassem satisfeitos. Lembrete Do ponto de vista da Filosoa, a Ética se dedica a pensar sobre as ações humanas e seus fundamentos, reetindo, portanto, sobre os valores e princípios morais de uma sociedade e seus grupos. Nesse sentido, pode-se considerar a Ética um tipo de postura que se refere a um modo de ser, à natureza da ação humana. Trata-se de uma maneira de lidar com as situações da vida e do modo como estabelecemos relações com outra pessoa. Quais são as nossas responsabilidades pessoais em uma relação com o outro? Como lidamos com as outras pessoas em sociedade? Uma conduta Ética pode ser um tipo de comportamento mediado por princípios e valores morais. Assim, Ética é a parte da Filosoa que estuda a Moral, pois reete e questiona as regras morais, compreendendo que a Ética por si só não avalia se um ato é correto ou incorreto. Contudo, apesar de esses conceitos serem distintos, existe uma estreita articulação entre si, na medida em que a Ética tem como objeto de estudo a própria Moral. Embora a Ética e a Moral estejam interligadas, são independentes (PEDRO, 2014). Saiba mais O lme a seguir, baseado em um dos mais famosos livros sobre a Filosoa, é excelente para se entender questões losócas, Ética e Moral, e pode propiciar uma inter-relação com o conteúdo sobre Ética e Moral: O MUNDO de Soa. Dir. Erik Gustavson. Noruega; Suécia: Audiovisuellt Produksjonsfond, 1999. 113 minutos. Leia também o texto a seguir: PEDRO, A. P. Ética, moral, axiologia e valores: confusões e ambiguidades em torno de um conceito comum. Kriterion, Belo Horizonte, v. 55, n. 130, p. 483-498, 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0100-512X2014000200002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 1 ago. 2016. Quem pratica a Ética são sujeitos éticos, que devem ter liberdade de pensamento, sem serem coagidos por forças internas ou externas para que os atos éticos sejam livres, voluntários e conscientes. 16 Unidade I Hoje em dia, Ética tem se confundido com ideologia, política, entre outros conceitos, porém a abordagem da Ética contemporânea difere da tradicional, pois origina-se de uma sociedade secular e democrática, afastando-se das conotações das morais religiosas, e respira em preceitos pluralistas, aceitando a diversidade de enfoques, posturas e valores. Observação Platão, Aristóteles e Sócrates foram lósofos inauguradores da losoa ocidental como a que concebemos ainda hoje, em muitos aspectos. O período em que despontaram é considerado o período áureo da Filosoa, dada a sua imensa contribuição para o avanço do pensamento losóco e ético na época e até mesmo na atualidade. 1.2 Fundamentos da Ética Como já foi mencionado anteriormente, o homem é um ser social que aprende com suas experiências, aprendizagemque exige tempo e maturidade. A cultura signica todo aquele complexo que inclui o conhecimento, a arte, as crenças, a lei, a Moral, os costumes e todos os hábitos e aptidões adquiridos pelo ser humano. Ela muda com o tempo, evoluindo continuamente e mudando a forma de pensar e agir em sociedade. Com isso, por exemplo, assumem-se diferentes valores na forma de viver, relacionar-se, comer, vestir, comemorar. O homem, tendo a consciência do universo em que vive, criando e modicando continuamente esse ambiente, pode requisitar, interferir e criar sua evolução na história. Com isso, sente a liberdade de conquistar novos pensamentos e criações. Sabemos também que: A Ética e a Moral devem partir de experiências originárias que se encontram no cotidiano das pessoas para identicar seus fundamentos, como a liberdade, os valores, o cuidar e o solidarizar-se com os outros. Desse modo, a Ética e a Moral buscam fazer com que as pessoas sejam melhores e mais responsáveis pelos seus próprios atos (OGUISSO, 2012, p. 49). E seguindo aqui a máxima de Aristóteles dita na Ética a Nicômaco e repetida em seu pensamento sobre a Moral de forma geral: “somos o resultado de nossas escolhas”. Portanto, a Ética possui elementos importantes nos quais se fundamenta e eles devem nos estruturar como seres humanos, resultando, positivamente ou não, em nossas escolhas. Dentre estes fundamentos, encontram-se: consciência, valores, autonomia, liberdade, responsabilidade, verdade, respeito e reciprocidade, que serão detalhados a seguir. 17 ÉTICA EM ENFERMAGEM E EXERCÍCIO PROFISSIONAL 1.2.1 Consciencia Consciência é a capacidade de julgar o que é correto e o que não é, de acordo com valores morais, de conhecimento e de sabedoria. Sendo racionais, os seres humanos têm a capacidade de sentir a própria identidade, podendo interpretar o presente, o futuro e o passado. Portanto, quanto maior o conhecimento, a paciência para compreender a situação, melhor será o julgamento entre o correto e o não correto, o que deve e não deve ser feito, e as consequências dos próprios atos. A pessoa que possui consciência e vontade pode compreender o que se passa ao redor melhor do que aquela que não as possui. Portanto, o conhecimento, a experiência e a reexão fazem com que o indivíduo desenvolva em seu percurso, na vida, consciência de seus próprios atos. Porém, viver em sociedade representa as relações do homem com o mundo e com outros homens, primordiais para a evolução. Ele não evolui sozinho, não constrói sua identidade sem essas experiências, seja com o outro ou com o mundo. Observação Para reetir: o enfermeiro possui sua consciência, formada com base em suas experiências construídas no decorrer de sua vida. A equipe de saúde, a família do paciente e o próprio paciente também a possuem. Contudo, será que todos compartilham de uma mesma consciência? Será que ao compartilharmos essas experiências e ao procurarmos compreender a identidade alheia, estamos facilitando a convivência e o entendimento entre as pessoas? 1.2.2 Valores Os valores são fundamentais para a formação da conduta moral e da Ética na vida do ser humano, pois os atribuímos aos objetos (naturais ou não naturais), aos sentimentos e às emoções, uma vez que o agir humano é uma forma de expressar valores. [O valor é uma] qualidade abstrata e secundária de um objeto, estado ou situação que, ao satisfazer uma necessidade de um sujeito, suscita nele interesse ou aversão por essa qualidade. [...] O valor radica no objeto, mas sem o interesse de um sujeito, o objeto deixaria de ter valor. Os valores ideais são ideias consistentes e objetivas do mundo racional humano (CABANAS, 1999). 18 Unidade I A manifestação de uma pessoa ou de um grupo dependerá dos valores atribuídos por eles mesmos, e, dessa forma, a manifestação dependerá de um juízo de valor. Exemplo: note a diferença entre as duas descrições a seguir: • “O paciente é baixo e musculoso” é um juízo real, pois apresenta as características físicas da pessoa, assim como de fato é. • “O paciente tem um bom preparo físico”, por outro lado, é um juízo de valor, pois as características físicas “baixo e musculoso” foram avaliadas como sendo próprias de pessoas consideradas “com bom preparo físico”. Portanto, a tomada de decisão estará embasada nos valores éticos agregados, que poderão diferir de pessoa para pessoa, de comunidades para comunidades, de populações para populações, entre outros. Essas atitudes estão ligadas a valores que orientam e justicam tais comportamentos. Um valor é uma experiência transmitida ou vivida que elegemos para dar sentido à nossa vida cotidiana. Esse valor é considerado uma referência justa, verdadeira e, portanto, necessária. Como os valores são constantes, orientam nossa conduta – valor moral – pela vida inteira. E é pelo valor ético que nossa vontade é controlada, independentemente da presença do outro (TRANCOSCO, 2013). O modo de pensar, a vontade e agir religam os elementos construtivos da tomada de decisão, mostrando, mediante o ato em si, a identidade de cada pessoa, pois o homem existe para criar e realizar coisas, e dessa forma construindo o modo de viver, aprendendo a cuidar de si do outro e do mundo. Lembrete O valor é uma variável da mente que ajuda a pessoa a tomar decisões (OGUISSO; SCHIMIDT, 2007, p. 33). Os valores atribuídos diferem signicativamente entre as pessoas, sociedades e populações, diferenciando as tomadas de decisão sobre um mesmo dilema ético. Exemplo de aplicaçao Para reetir: o enfermeiro possui valores agregados em sua vida desde sua infância. Com as experiências e conhecimentos adquiridos em sua formação acadêmica e posteriormente prossional, amplia, muda e concebe novos e importantes valores prossionais e éticos. Pensando nisso, reita: • Você acredita que o conhecimento e a experiência prossional transformam e melhoram a capacidade do enfermeiro de compreender sua equipe e o próprio paciente? • Quais são os valores envolvidos? 19 ÉTICA EM ENFERMAGEM E EXERCÍCIO PROFISSIONAL 1.2.3 Autonomia e liberdade Autonomia é um termo de origem grega cujo significado está relacionado com independência, liberdade ou autossuficiência. O antônimo de autonomia é heteronomia, palavra que indica dependência, submissão. Liberdade signica o direito de agir segundo o seu livre-arbítrio, de acordo com a própria vontade (desde que não se prejudique outra pessoa), é a sensação de estar livre e não depender de ninguém. Os signicados desses dois vocábulos correspondem a uma determinada corrente losóca, a da liberdade incondicional. Com respeito às suas diferenças, pode-se sustentar que a liberdade é a capacidade do sujeito de agir com autonomia. Desse modo, por exemplo, a autonomia prossional pode ser vista como um componente da liberdade do enfermeiro (PRZENYCZKA et al., 2012, p. 428). Pensando em autonomia como o direito de governar-se pelas próprias regras, de forma independente, deve-se aceitar que sua ação, de responsabilidade própria, deve também reportar-se à comunidade (OGUISSO; SCHIMIDT, 2007 p. 35). O homem é um ser de decisões, colocando-se diante de diversas alternativas para escolhas em relação às suas ações, tomando decisões com base na orientação que buscou. Assim, vai construindo e realizando, o que condiz com a liberdade. Observação Aqueles que conservarem mais conhecimento, certamente, estarão numa posição vantajosa para o exercício de sua autonomia. E quanto mais os enfermeiros são expostos aos conceitos e ideias de outras disciplinas, como a Antropologia, a Sociologia e a Filosoa, seguramente, maior será a assimilação satisfatória e razoavelmente rápida desses conceitos na prática da enfermagem (PRZENYCZKA et al., 2012, p. 430). A liberdade é o poder incondicional da vontade para determinar a si mesma; sem constrangimentos internos ou externos, o agente é totalmente pleno em suas ações. 20 Unidade I Saiba mais As referências a seguir podem propiciaruma inter-relação com o conteúdo de liberdade e autonomia: CRASH: no limite. Dir. Paul Haggis. Alemanha; EUA: Bob Yari Productions, 2004. 112 minutos. LIMA, G. G. Criança: objeto a liberado? Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 25, n. 1, p. 203-218, 2009. Disponível em: <http://www.scielo. br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-46982009000100011&lng=e n&nrm=iso>. Acesso em: 30 jun. 2016. PRZENYCZKA, R. A. et al. O paradoxo da liberdade e da autonomia nas ações do enfermeiro. Texto Contexto Enferm., Florianópolis, v. 21, n. 2, p. 427-431, 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/tce/v21n2/ a22v21n2>. Acesso em: 23 jun. 2016. LARANJA mecânica. Dir. Stanley Kubrick. Reino Unido; EUA: Warner Bros., 1971. 136 minutos. 1.2.4 Responsabilidade e verdade Verdade signica aquilo que está intimamente ligado a tudo o que é sincero, que é verdadeiro, é a ausência da mentira, é a armação do que é correto, do que é seguramente o certo e está dentro da realidade documentada e vivida. O que é verdade? Verdade é aquilo em que você acredita. O valor da verdade é que, a partir de nossas interpretações sobre os fatos, a forma como pensamos se incorpora em nossas estruturas sociais e individuais, transformando vidas. A verdade tem valor signicativo no dia a dia, nas políticas de saúde, de educação, economia, religiosidade, entre tantos outros seguimentos. As verdades surgem quando vamos interpretar os fatos da vida cotidiana. Então alguém vai dizer: “A enfermeira não administrou o medicamento corretamente, merece ser processada”. Outro vai dizer: “O que leva o enfermeiro a fazer isso: falta de recursos ou jornada dupla de trabalho para sustentar os lhos e ganhar tão pouco?”. Veja, são interpretações diferentes do mesmo fato, o que nos leva a armar que essas pessoas têm valores diferentes, e, portanto, suas verdades são distintas. Saber o que é verdadeiro na prossão dependerá de disciplina, de pensamentos, experiências e discussões com a classe prossional, além de conhecimento e aprimoramento contínuos. A percepção, a sensibilidade e a investigação contribuirão para a verdade. 21 ÉTICA EM ENFERMAGEM E EXERCÍCIO PROFISSIONAL As verdades que advêm de múltiplas experiências têm grande valor, e, com base nessa compreensão, o homem deve tornar-se responsável por aquilo que escolhe ao criar algo em torno de si (OGUISSO; SCHIMIDT, 2007, p.37). Ser responsável signica assumir a própria vida, jamais justicar seus erros, muito menos atribuindo a culpa às circunstâncias ou a qualquer outra pessoa, pois nada que não tenhamos permitido nos acontece, consciente ou inconscientemente. A responsabilidade é o dever de arcar com as consequências do próprio comportamento ou do comportamento de outras pessoas. Ser responsável é assumir não somente os próprios acertos, mas também os próprios erros, sem se envergonhar, mas tirando proveito disso. 1.2.5 Respeito e reciprocidade Respeito signica consideração, deferência, apreço e reverência. O respeito é um dos valores mais importantes da convivência entre os seres humanos, e tem grande importância na interação social. Pensando nas inter-relações da enfermagem, sabemos que o respeito deve ser reverenciado nas ações diárias, tanto nos relacionamentos multidisciplinares, como no atendimento prestado ao paciente e na atenção às normas, diretrizes e legislações da prossão. O respeito impede que uma pessoa tenha atitudes reprováveis em relação à outra. O enfermeiro deve falar sobre um tema com respeito (como diferentes religiões, crenças e condutas) e falar de forma ponderada e sensível. Respeitar envolve ouvir o que o outro tem a dizer, buscando interpretar o que ouvimos, ter compaixão, ser tolerante, honesto e atencioso; é entender a necessidade do autoconhecimento para poder respeitar a si próprio e, então, respeitar o outro. A reciprocidade, por sua vez, signica correspondência mútua, recíproca e está intimamente relacionada ao respeito. Veja, se o enfermeiro agir com respeito, favorecerá a reciprocidade. É fácil entender. Quando demonstramos respeito por alguém, por uma situação vivenciada, pela instituição em que trabalhamos, ocorre a reciprocidade, ou seja, a credibilidade de que nossas ações são dignas de conança e de respeito. O contrário também ocorre. Agir com desrespeito resultará na reciprocidade, ou seja, trará àquele que age assim a imagem de ser um prossional com atitudes não conáveis perante os olhos do próximo (paciente, equipe, comunidade) e, logo, indigno de respeito. Exemplo de aplicaçao Sobre respeito e reciprocidade na assistência de enfermagem e de acordo com os princípios éticos- humanistas, reita: • Como enfrentar as diculdades radicais que se apresentam diante de nós? • Como atuar no novo cenário em que coisas que fazíamos tão bem precisam ser reaprendidas? 22 Unidade I • Como lutar sem deixar valores fundamentais? • Como saber a medida exata no momento certo? • Como responder aos questionamentos anteriores com respeito e reciprocidade? Figura 2 – Respeito e reciprocidade 1.3 Responsabilidades ética e legal A palavra responsabilidade tem origem nas palavras latinas: repondere e responsus e signica responder ou ser responsável. Nos dicionários de língua portuguesa Houaiss e Michaellis, encontramos as seguintes denições para “responsabilidade”: 1. obrigação de responder pelas ações próprias ou dos outros. 2. caráter ou estado do que é responsável (HOUAISS; VILLAR, 2009). Dever jurídico de responder pelos próprios atos ou de outrem, sempre que estes violem os direitos de terceiros protegidos por lei e de reparar os danos causados [...] Dever de dar conta de alguma coisa que fez ou mandou fazer, por ordem pública ou particular [...] Imposição legal ou Moral de reparar ou satisfazer qualquer dano ou perda (POLITO, 2008). 23 ÉTICA EM ENFERMAGEM E EXERCÍCIO PROFISSIONAL Na linguagem jurídica, responsabilidade signica violação do direito, o que obriga ao dever da reparação, com admissão das consequências que o dano cause, conduzindo a uma ordem jurídica na sociedade. Como enfermeiros, precisamos conhecer e compreender esses conceitos para que a tomada de decisão tenha não somente o respaldo técnico-cientíco, mas também a inferência das normas, das diretrizes e das legislações vigentes. Estudaremos três tipos de responsabilidades para o exercício prossional do enfermeiro: a responsabilidade civil, a penal e a ética. Observação No caso de o enfermeiro ou de qualquer membro da equipe de enfermagem ser responsável por algum dano, seja de ordem física ou psíquica, a alguém, decorrente das práticas de seu exercício profissional, poderá responder perante a responsabilidade civil, penal e ética, distintamente. 1.3.1 Responsabilidade civil A responsabilidade civil parte do posicionamento de que todo aquele que violar um dever jurídico através de um ato lícito ou ilícito tem o dever de reparar o dano, pois todos temos um dever jurídico originário: o de não causar danos a outrem. Ao violar esse dever jurídico originário, passamos a ter um dever jurídico sucessivo, o de reparar o dano que foi causado (CAVALIERI FILHO, 2012, p. 2). Chama-se direito civil o ramo do direito que trata do conjunto de normas reguladoras dos direitos e obrigações de ordem privada concernente às pessoas, aos seus direitos, obrigações, bens e relações enquanto membros da sociedade. Em outros tempos, como na época medieval, a resposta a um descumprimento das regras estabelecidas, mesmo que causado por uma única pessoa, resolvia-se através da vingança coletiva, como as guerras entre reinos, e com a morte de inúmeros inocentes. Saiba mais O lme a seguir pode propiciar uma inter-relação com o conteúdo sobre a responsabilidade civil reparada por meio de uma guerra. Trata-se de Troia, lme épico de guerra baseado na Ilíada, célebre poema do autor grego Homero sobre a guerra de Troia. TROIA. Dir. Wolfgang Petersen. EUA; Malta; Reino Unido: Warner Bros., 2004. 163 minutos.24 Unidade I Sabe-se também que o homem, em outros tempos, já tratou das reparações dos danos por meio de sistemas de penas pelos quais o autor de um delito devia sofrer castigo igual ao dano por ele causado. Eram os tempos daquela que cou conhecida como a Lei de Talião. A existência da Lei de Talião foi descoberta por meio do Código de Hamurabi, conjunto de leis escritas escritas em 1780 a.C., no reino da Babilônia. Observação O Código de Hamurabi é um conjunto de 280 leis talhadas numa rocha de diorito, criadas na Mesopotâmia, por volta do século XVIII a.C, pelo Rei Hamurabi, da primeira dinastia babilônica. Tendo como objetivo principal unicar o reino através de um código de leis comuns, Hamurabi mandou espalhar cópias desse código em várias regiões do reino. O código é baseado na Lei de Talião: “olho por olho, dente por dente”. O sistema legislativo que tem como base a Lei de Talião serviu de modelo por séculos, vigorando em muitas legislações remotas, predominante e comumente na Idade Média. A Lei de Talião era interpretada não só como um direito, mas até como uma exigência social de vingança em favor da honra pessoal, familiar ou tribal. A expressão: “olho por olho, dente por dente” fora vivenciada em quase todas as leis das diversas nações, embora vista por nossos olhos atualmente como absurda e até passível de causar indignação. Contudo, temos que ter em mente que se tratava de outra época, em que o homem era “bárbaro”, tinha pouca ou nenhuma consciência do que era o respeito ao seu semelhante, e que só era contido pelo medo dos castigos, tão ou mais cruéis do que o ato passível de punição (MARQUES, 2000). Entre as penas estabelecidas pelo modelo de Lei de Talião, podem-se citar: a morte, a mutilação através do corte de membros, o tormento, a prisão, o açoite e a multa. Os crimes sexuais praticados por homens, por exemplo, poderiam ser condenados à castração ou à amputação do pênis. Lembrete Antigamente, a resposta civil se dava através da vingança coletiva, como as guerras entre reinos, por exemplo. Posteriormente, o conceito de vingança evoluiu para uma reação individual, como a justiça pelas próprias mãos, como no caso da Lei de Talião: “olho por olho, dente por dente”. Atualmente, para se viver em sociedade e reparar um dano causado a outrem, no Brasil, amparamo-nos pela lei federal, denominada Código de Direito Civil. 25 ÉTICA EM ENFERMAGEM E EXERCÍCIO PROFISSIONAL Em um país há duas leis fundamentais: a Constituição e o Código Civil. A primeira estabelece a estrutura e as atribuições do Estado em função do ser humano e da sociedade civil; a segunda se refere à pessoa humana e à sociedade civil como tais, abrangendo suas atividades essenciais. O Código Civil é “a Constituição do homem comum”, do homem que vive em sociedade, assegurando-lhe, por exemplo, as reparações aos danos causados por outros, seja direta ou indiretamente. A reparação de danos, prevista na lei, pode ocorrer de duas formas: • reparação natural ou especíca; • reparação pecuniária ou por equivalência. A reparação natural ou especíca consiste em reparar o dano causado por meio da indenização de forma integrável, ou seja, se quebrar um vaso alheio, o responsável comprará outro igual para fazer a reposição, ou de forma monetária, que possibilitará ao prejudicado adquirir o mesmo vaso. Na enfermagem, quando causamos um dano a um paciente, a outra pessoa da equipe de trabalho ou até mesmo à instituição, se esse dano for reparável de forma natural, a substituição ou ressarcimento monetário serão sucientes. Por exemplo, imagine um enfermeiro que verica que o paciente está com uma prótese dentária que precisa ser retirada para a realização de um exame. O enfermeiro se descuida e perde a prótese do paciente. Ele, então, de acordo com o Código Civil, irá ressarcir o paciente, para que seja providenciada nova prótese. Porém, existem danos que são irreparáveis da forma natural, e a indenização, nesses casos, é feita por meio de um novo “estado”, o que mais se aproximar do anterior. Ocorre então a reparação denominada “pecuniária” ou por equivalência, ou seja, um valor monetário é atribuído aos danos de modo que permita, de forma justa, reparar o dano. Esse preço não é pensado para amenizar a dor, mas para ser um meio de atenuar as consequências da lesão, pois se sabe que não há equivalência para a dor sofrida com certos danos. Exemplo de aplicaçao Considere a reparação pecuniária ou por equivalência decorrente de um dano causado acidentalmente, sem intenção, por um enfermeiro, a um paciente, e que lhe traga, por exemplo, como consequência, a perda de um dos membros inferiores. Como esta fatalidade poderá ser reparada? Antes de responder, reita: trata-se apenas da invalidez? Como podemos reparar os danos referentes aos seus sentimentos sobre a mudança dos hábitos e da rotina à qual ele tentará se adaptar? Como reparar o tempo que levará para o paciente se reabilitar e a perda de um membro funcional? As atividades prossionais exercidas pelo paciente antes do dano continuarão sendo realizadas? Ele perderá o emprego? E a ansiedade e o medo do enfrentamento dessa nova situação? Como cará o deslocamento do paciente para as atividades da vida diária? Como ele enfrentará a sociedade? Poderá 26 Unidade I tornar-se improdutivo? Terá depressão? Como cuidará de sua família? Ele possui carteira prossional e é registrado no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), órgão federal pertencente ao Ministério da Previdência Social, para receber os seus benefícios? Para ser obrigada a reparar um dano, a pessoa deve ser juridicamente capaz de fazê-lo. De acordo com o artigo 5º do Código Civil Brasileiro (BRASIL, 2002), são considerados civilmente incapazes indivíduos menores de 16 anos, e aqueles que, por enfermidade ou deciência mental, não tenham necessário discernimento para a prática desses atos e aqueles que, mesmo por causa transitória, não possam exprimir sua vontade. Essa incapacidade cessa para os menores por: • concessão dos pais; • casamento; • colação de grau no ensino superior; • exercício de emprego público efetivo; • estabelecimento civil ou comercial, desde que o menor, ao completar 16 anos, tenha economia própria. Pontos relevantes relacionados à responsabilidade do enfermeiro para se conhecer no Código Civil brasileiro: Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê- lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu m econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. [...] Art. 944: A indenização mede-se pela extensão do dano. Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização. [...] Art. 951: O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade prossional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho (BRASIL, 2002). 27 ÉTICA EM ENFERMAGEM E EXERCÍCIO PROFISSIONAL Como exemplo, o enfermeiro responsável pelo dano físico ou outro ao paciente, de acordo com o Código Civil, poderá arcar com as despesas do novo tratamento, indenizando o cliente, inclusive referente aos lucros cessantes, até o m de sua convalescença. Se houver danos permanentes, poderá, além disso, ser condenado ao pagamento de pensão vitalícia ao paciente, e decorrendo morte, arcar com as despesas do funeral, bem como com pensão aos dependentes do falecido (OGUISSO, 2012). O fato de o enfermeiro ser responsabilizado na esfera civil não afasta a possibilidade de se ver responsabilizado também na esfera penal e na ético-administrativa (no âmbito do Conselho Federal de Enfermagem).Deduz-se, portanto, que a responsabilização do enfermeiro pode vir nas três esferas anteriormente mencionadas, pois são independentes entre si, conforme a legislação vigente. Saiba mais Leia os textos a seguir: BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 15 jul. 2016. CAVALIERI FILHO, S. Programa de Responsabilidade Civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012. MARQUES, A. A Lei de Talião ainda sobrevive para o autor do crime de estupro. 2000. Disponível em: <http://www.soleis.com.br/artigos_taliao. pdf>. Acesso em: 20 jun. 2016. RAMOS, V. Responsabilidade civil no direito brasileiro: pressupostos e espécies. 2014. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/ exibir/8754/Responsabilidade-civil-no-Direito-brasileiro-pressupostos-e- especies>. Acesso em: 20 jun. 2016. 1.3.2 Responsabilidade penal O prossional de enfermagem pode ser chamado a responder na esfera penal se for responsável por danos, lesões físicas ou maus-tratos causados a outras pessoas direta ou indiretamente, mesmo que sem intenção. A responsabilidade penal signica a obrigação ou o direito de responder perante a lei por um fato cometido, fato este considerado pela lei vigente como um crime ou uma contravenção, ou seja, é um atributo jurídico. Para ser responsável penalmente por um determinado delito, são necessárias três condições básicas: ter efetivamente praticado o delito à época do fato, ter tido entendimento do caráter criminoso da ação e ter sido livre para escolher entre praticá-lo ou não (BRASIL, 1940). 28 Unidade I Alguns pontos relevantes do Código Penal brasileiro aos quais devemos atentar no exercício prossional de enfermagem são a coautoria e a falsidade ideológica, por serem infrações que o enfermeiro pode estar arriscado a cometer em seu dia a dia. Coautoria signica autoria coletiva, pluralidade de agentes de um crime; sua característica é a simultaneidade de dois ou mais agentes na prática do mesmo delito, ou seja, quando mais de uma pessoa, ciente ou voluntariamente, participa da mesma infração penal. Regras comuns às penas privativas de liberdade Art. 29 – Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. § 1º – Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço. § 2º – Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave (BRASIL, 1940). O enfermeiro, como líder de equipe, responde tecnicamente pela equipe e, portanto, se algum técnico de enfermagem cometer qualquer erro, o enfermeiro será corresponsável pelo ato. O técnico de enfermagem, por exemplo, poderá alegar que cometeu o delito por nunca ter sido orientado na instituição sobre esse procedimento. Embora seja obrigação do prossional conhecer e realizar suas atividades fundamentando-se nas normas técnico-cientícas, o juiz poderá interpretar que a ausência de capacitações e de treinamentos durante o período em que o técnico exerceu suas atividades na instituição facilitou a ocorrência, e como responsável técnico, o enfermeiro poderá responder o processo como coautor. De acordo com a Lei do Exercício Prossional (Lei n° 7.498, de 25 de junho de 1986), cam claras as funções privativas do enfermeiro: Art. 11. O Enfermeiro exerce todas as atividades de enfermagem, cabendo-lhe: I – privativamente: a) direção do órgão de enfermagem integrante da estrutura básica da instituição de saúde, pública e privada, e chea de serviço e de unidade de enfermagem; c) planejamento, organização, coordenação, execução e avaliação dos serviços da assistência de enfermagem; 29 ÉTICA EM ENFERMAGEM E EXERCÍCIO PROFISSIONAL j) prescrição da assistência de enfermagem; l) cuidados diretos de enfermagem a pacientes graves com risco de vida (BRASIL, 1986); Outros exemplos caberiam também, como delegar uma atividade que envolva tecnologia nova sem preparo ou capacitação prévia da equipe para o uso do novo equipamento. Nesse caso, se algum integrante da equipe de enfermagem realizar um procedimento com o equipamento em questão que cause algum dano ao paciente por uso inadequado, o enfermeiro será considerado coautor. Portanto, ca clara a participação indireta do enfermeiro como líder de equipe e responsável por ela, sendo vulnerável, no caso, a cometer esse tipo de crime. E o que fazer para evitar essa vulnerabilidade? É aconselhável que o enfermeiro tenha um planejamento das atividades desenvolvidas na unidade em que trabalha, quer seja um hospital, uma unidade básica de saúde ou até mesmo uma empresa. Nesse planejamento, estão engajados: • a construção de normas técnicas assistenciais e administrativas, atualizadas de acordo com as diretrizes vigentes. • o treinamento e a capacitação técnica da equipe perante as normas descritas, com anuência do funcionário por meio dos registros dessas práticas educativas. • a avaliação do prossional capacitado durante as atividades prossionais, da mesma forma, documentada. Embora seja esperado que essas ações sejam inerentes no trabalho do enfermeiro, vale a pena ressaltar que essas três ações distintas permitirão que o enfermeiro trabalhe com segurança legal, quando pensamos na defesa de algum eventual processo envolvendo crime de coautoria. Outro tipo de crime previsto no Código Penal brasileiro é a falsidade ideológica. É importante falarmos a respeito, visto que o enfermeiro, no cotidiano de sua prossão, deve car atento, pois poderá facilmente cometê-lo, tanto por indução quanto por coerção. A questão concerne os registros de enfermagem. Por meio desses instrumentos, os prossionais de enfermagem diariamente anotam todas as atividades assistenciais realizadas no cliente ou planejadas para ele durante o atendimento. Cabe também lembrar que, além das anotações, o enfermeiro, privativamente, realiza o planejamento das ações de enfermagem para cada paciente, conhecido como Sistematização da Assistência de Enfermagem. Deixar de registrar informações, por omissão ou esquecimento, e registrar informações não verdadeiras ou diferentes do ocorrido em encontro com o paciente poderão ser consideradas infrações penais, ou seja, crime de falsidade ideológica. 30 Unidade I O Código Penal refere-se ao crime de falsidade ideológica como: Art 299. Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o m de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante (BRASIL, 1940). A penalidade prevista é de reclusão de um a cinco anos e multa, se o documento for público; e de um a três anos, se o documento for particular. Exemplo de aplicaçao Reita sobre as possibilidades de o enfermeiro ou qualquer outro prossional da equipe de enfermagem cometer falsidade ideológica. Será que a falta de tempo, a pressa e as demandas de pacientes de alta complexidade com dimensionamento de pessoal inadequado, ou até mesmo as superpopulações despejadas nas enfermarias e nos prontos-socorros, ultrapassando a capacidade prevista de atendimento, não expõem a qualidade do atendimento, podendo levar à falta de registros ou até mesmo a registros incompletos? O medo de descrever no prontuário do paciente uma situação vivenciada no ambiente prossional que possa comprometer a instituição, ou a equipe médica, por exemplo, e de sofrer retaliações pode levar o enfermeiro a omitir informações importantes? Outro tema importante previsto no Código Penal brasileiro são os maus-tratos que o enfermeiro ou algum membro da equipe de enfermagem possa cometer ao deixar de assistir as necessidades do paciente sob sua responsabilidade, tratando-se especicamentedo caso de negligenciar o cuidado. Verique que a lei é abrangente, pois considera maus-tratos não apenas a privação da condição física do cuidado, mas também a privação da educação, guarda ou vigilância ao paciente e à família. Art. 136. Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis (BRASIL, 1940). Observação Reita sobre as possibilidades do enfermeiro ou de qualquer outro prossional da equipe de enfermagem cometer maus-tratos. As consequências dessas privações, sob o ponto de vista das ações de enfermagem, podem levar o paciente e a família a lesões físicas e psicológicas. 31 ÉTICA EM ENFERMAGEM E EXERCÍCIO PROFISSIONAL Como exemplos dessas consequências, podemos citar desconforto, infecções, sofrimento ou agravamento da doença e até mesmo antecipação da morte. 1.3.3 Responsabilidade etica Ética prossional é o conjunto de normas éticas que formam a consciência do prossional e representam imperativos de sua conduta. Observação O conjunto de valores de uma prossão está expresso nos códigos de Ética. Na enfermagem, esses valores podem ser a promoção da saúde, a prevenção das enfermidades, a recuperação da saúde e o alívio do sofrimento (OGUISSO; SCHIMIDT, 2007). Somente o ser humano é constituído como ser ético, por causa do uso da razão, capacidade, liberdade e consciência de seus próprios atos, envolvendo a si mesmo, o outro e a sociedade de acordo com a interiorização das convicções pessoais. Assim, cada indivíduo possui sua própria Ética (OGUISSO; SCHIMIDT, 2007, p. 45). Figura 3 – He that Entereth not by the Door, Udo Keppler (Áustria, 1838-1894), ilustração, 1898 32 Unidade I 2 ÉTICA PROFISSIONAL E AS PRINCIPAIS LEGISLAÇÕES 2.1 Conceitos A enfermagem compreende um componente próprio de conhecimentos cientícos e técnicos, construído e reproduzido por um conjunto de práticas sociais, éticas e políticas que se processa pelo ensino, pesquisa e assistência. Realiza-se na prestação de serviços à pessoa, família e coletividade, no seu contexto e circunstâncias de vida. O aprimoramento do comportamento ético do prossional passa pelo processo de construção de uma consciência individual e coletiva e pelo compromisso social e prossional congurado pela responsabilidade no plano das relações de trabalho com reexos no campo cientíco e político (COFEN, 2007). Portanto, é fundamental que a formação do enfermeiro seja desenvolvida por meio de competências e habilidades, necessitando, assim, de experiências e oportunidades do ensino-aprendizagem que vão além do cognitivo. Por meio da formação por competências, espera-se que o futuro prossional seja capaz de articular diversos conhecimentos na solução de problemas do cotidiano, relacionando cultura, sociedade, saúde, Ética e educação, garantindo capacitação de prossionais com autonomia para assegurar a integralidade da assistência prestada (BARBOSA; FERNANDES; RIGITANO, 2004). Saiba mais Com relação a esse tema, leia: LIMA, J. O. R. et al. A formação ético-humanista do enfermeiro: um olhar para os projetos pedagógicos dos cursos de graduação em enfermagem de Goiânia, Brasil. Interface, Botucatu, v. 15, n. 39, p. 1.111-1.125, out./dez. 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/icse/2011nahead/aop3211. pdf>. Acesso em: 23 jun. 2016. 2.1.1 Deontologia Deontologia é uma losoa que faz parte da losoa moral contemporânea, que signica ciência do dever e da obrigação. A deontologia é um tratado dos deveres e da Moral. É uma teoria sobre as escolhas dos indivíduos, o que é moralmente necessário e serve para nortear o que realmente deve ser feito. Além disso, a deontologia também pode ser o conjunto de princípios e regras de conduta ou deveres de uma determinada prossão, ou seja, cada prossional deve ter a sua deontologia própria para regular o exercício da prossão, lembrando que ela deve estar de acordo com o Código de Ética de sua categoria. Na enfermagem, o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e o Conselho Regional de Enfermagem (Coren) são responsáveis por nortear e elaborar as normas deontológicas da prossão. 33 ÉTICA EM ENFERMAGEM E EXERCÍCIO PROFISSIONAL Observação O termo “deontologia” (grego “déontos”, que signica “o que é obrigatório, necessário”) foi criado, no ano de 1834, pelo lósofo inglês Jeremy Bentham, para falar sobre o ramo da Ética em que o objeto de estudo é o fundamento do dever e das normas. A deontologia é ainda conhecida como “Teoria do Dever”. 2.1.2 Diceologia Diceologia signica o conjunto dos direitos de uma determinada classe social. O termo disceologia ou diceologia (do grego dikaio + logía) está relacionado, portanto, aos estudos dos direitos prossionais. É importante conhecermos essas terminologias, para que vários conceitos de nossa área possam ser melhor compreendidos. 2.1.3 Imprudencia Segundo o Dicionário Online de Português (2016a), o termo “imprudência” signica “sem prudência; ausência de cautela”. Dirigir bêbado, por exemplo, é uma imprudência. Além disso, a imprudência também compreende “comportamento, ação ou discurso da pessoa imprudente; particularidade ou característica de imprudente” (DICIONÁRIO ONLINE DE PORTUGUÊS, 2016a). Sob o aspecto jurídico, imprudência signica “ação irresponsável; falta de observação daquilo que poderia evitar um mal” (DICIONÁRIO ONLINE DE PORTUGUÊS, 2016a). A seguir incluímos alguns exemplos de uso do termo: Os integrantes do consórcio e do Metrô foram acusados pelo Ministério Público Estadual de negligência e de imprudência, com a argumentação de não terem tomado providências que poderiam evitar a cratera. Folha de São Paulo, 23/07/2009. Ele disse ver imprudência e excesso de conança dos responsáveis e armou que o correto, nesse tipo de situação, é esvaziar o barco antes do reparo. Folha de São Paulo, 23/07/2009. Em sua imprudência, sem medo de curvas perigosas, permanecem trafegando alucinadamente pela via elevada. Folha de São Paulo, 09/08/2009 (DICIONÁRIO ONLINE DE PORTUGUÊS, 2016). 34 Unidade I Na enfermagem, podemos usar o termo imprudência quando realizamos algum ato com afoiteza, sem considerar as regras, as normas técnicas e deontológicas. O caso a seguir, retirado de um trecho de uma sentença divulgada no jornal Carta Forense, em 10 de dezembro de 2002, é um exemplo de imprudência que pode ocorrer na enfermagem. Imprudencia de prossional de enfermagem leva a condenaçao de hospital Os desembargadores da 6ª Câmara Cível do TJRS mantiveram parcialmente a condenação do Hospital Círculo Operário Caxiense e o Círculo Operário Caxiense a indenizarem os pais pela morte de sua lha em decorrência de erro no atendimento pós-operatório. [...] Em julho de 2009, os pais levaram a lha de um ano para realizar uma cirurgia de gastrostomia. No procedimento cirúrgico, seria criado um orifício articial externo ao estômago da menina para auxiliar na alimentação e suporte nutricional. Os autores da ação narraram que a bebê também apresentava início de pneumonia, de forma que foram orientados a realizar, também, uma traqueostomia no Hospital Círculo Operário Caxiense, em Caxias do Sul. A medida era para facilitar a respiração da menor que sofria de uma síndrome. A cirurgia durou cerca de uma hora. Na troca de plantão, no turno da noite, a enfermeira que ingressou insistiu em dar banho na criança, mesmo advertida pela mãe sobre as orientações do médico de não realizá-lo. Após o banho, o cordão da traqueostomia da paciente cou solto e a técnica de enfermagem, achando que resolveria sozinha, constatou que a criança estava cianótica. Buscou, então, ajuda com a médica plantonista e outra enfermeira, que tentaram reverter o quadro, mas a menina teve uma parada cardíaca, que a levou à morte, devido ao deslocamento da cânula. Fonte: Ascom-TJ/RS (2012). No caso anterior, podemos perceber que, ao agircom afoiteza, sem questionar o que deveria ser realizado, a técnica de enfermagem tomou a frente e realizou cuidados que, mesmo sem intenção de prejudicar a criança, acabaram levando a assistência prestada a um resultado desastroso. 35 ÉTICA EM ENFERMAGEM E EXERCÍCIO PROFISSIONAL Saiba mais Consulte a reportagem na íntegra: ASCOM-TJ/RS. Imprudência de prossional de enfermagem leva à condenação de hospital. Carta Forense, 10 dez. 2012. Disponível em: <http:// www.cartaforense.com.br/conteudo/noticias/imprudencia-de-prossional- de-enfermagem-leva-a-condenacao-de-hospital/9594?fb_comment_id= 397113500368385_979885365424526#f2c73c5aa9324c>. Acesso em: 4 ago. 2016. Com relação a esse tema, leia o texto a seguir: FREITAS, G. S.; OGUISSO, T. Ocorrências éticas na Enfermagem. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 56, n. 6, p. 637-639, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/reben/v56n6/a09v56n6.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2016. No Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem, encontram-se reunidas as normas e princípios, direitos e deveres pertinentes à conduta ética do profissional, e, entre elas, no Capítulo 1, Sessão I, como dever do profissional de enfermagem, prevê-se: “Art. 12 – Assegurar à pessoa, família e coletividade assistência de enfermagem livre de danos decorrentes de imperícia, negligência ou imprudência” (COFEN, 2007). Esse artigo é importante porque estabelece o compromisso entre o profissional da enfermagem e o seu cliente, para que o melhor seja feito, de acordo com as diretrizes técnico-científicas e éticas. 2.1.4 Negligencia A negligência pode ser denida como inércia psíquica, a indiferença do agente que, podendo tomar as devidas cautelas exigíveis, não o faz por displicência ou preguiça mental (DICIONÁRIO ONLINE DE PORTUGUÊS, 2016b). Portanto, negligenciar o atendimento de um paciente é um ato grave, podendo implicar muitas vezes em consequências sérias. Como exemplo: um paciente queixa-se de dor e o enfermeiro ignora esta queixa e não o medica. Dizemos que ele negligenciou as queixas de dor do paciente, que sofrerá em seu leito, mesmo havendo em sua prescrição médica uma conduta que o livraria desse desfortuno. Outro exemplo, com consequência mais grave, seria identicar que o paciente está com sinais e sintomas de choque hemorrágico e ignorar uma conduta, levando o paciente a óbito, para o qual responderá nas esferas civil, penal e ética. 36 Unidade I É importante que o enfermeiro esteja sempre atento para o desempenho de suas funções/ atribuições, exercendo sua profissão com domínio técnico e científico, sendo pró-ativo, interessado e compromissado com a equipe e com os pacientes. 2.1.5 Impercia Imperícia é sinônimo de inaptidão, ignorância, falta de qualicação técnica, teórica ou prática, ou ausência de conhecimentos elementares e básicos da prossão. É a falta de habilidade para praticar determinados atos que exigem certo conhecimento na área. Um enfermeiro que, ao realizar o curativo em uma ferida no paciente, utilize produtos contraindicados a essa lesão, pode ser acusado de imperícia. Seria importante ressaltar que a falta de atualização por parte do prossional de enfermagem pode fazer com que ele faça procedimentos errados e cause danos ao paciente, o que é considerado imperícia. O que em um determinado momento pode ser considerado um procedimento adequado, pode passar a não sê-lo mais com a evolução da tecnologia e do conhecimento cientíco. Descobertas trarão novas recomendações e diretrizes, das quais o prossional tem a responsabilidade de se informar, aprimorando- se por meio da capacitação e atualização cientíca. Um exemplo pode ser visto na gura a seguir: a enfermeira aparece oferecendo ao recém-nascido uma mamadeira com leite. Atualmente, essa imagem já não condiz com as diretrizes de saúde mundial em relação ao cuidado com o recém-nascido, pois preconiza-se o aleitamento materno exclusivo e abomina-se o uso de bicos e intermediários. Um prossional de enfermagem que tenha recebido essas informações em sua graduação e depois não se atualize, visto que a tecnologia e os conhecimentos avançam dia a dia, poderá estar cometendo imperícia ao oferecer como primeira escolha a mamadeira ao recém-nascido. Figura 4 37 ÉTICA EM ENFERMAGEM E EXERCÍCIO PROFISSIONAL Saiba mais Leia o texto a seguir: FAKIH, F. T.; FREITAS, G. F.; SECOLI, S. R. Medicação: aspectos ético-legais no âmbito da enfermagem. Revista Brasileira de Enfermagem, Associação Brasileira de Enfermagem, v. 62, n. 1, p. 132-135, 2009. Disponível em: <http://www.scielo. br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672009000100020&lng=pt&n rm=iso>. Acesso em: 29 jun. 2016. 2.2 Lei do Exercício Profissional Depois de um processo de quase 10 anos de luta pela atualização do exercício prossional da enfermagem, da Lei n° 2.604, de 17 de setembro de 1955, no dia 8 de junho de 1987, o Presidente da República assinou o Decreto n° 94.406, que regulamenta a Lei n° 7.498, de 25 de junho de 1986, que dispõe sobre o exercício prossional da enfermagem. Mas o que isso signica para os prossionais da enfermagem, principalmente para o enfermeiro? Trata-se da lei mais importante de nossa categoria prossional, a Lei do Exercício Prossional (Lei nº 7.498/1986), que regulamenta o exercício da Enfermagem, reconhecendo o diploma do enfermeiro em todo o território nacional. Ela reconhece as categorias prossionais de enfermagem, como o enfermeiro, o técnico e o auxiliar de enfermagem, estabelecendo as principais atribuições para o exercício prossional de cada uma. Para o enfermeiro, essa lei dene e assegura especicamente suas atividades, inclusive considerando algumas privativas, ou seja, atividades que só podem ser exercidas pelo enfermeiro, garantindo e assegurando seu diploma e estabelecendo a nalidade de seu trabalho. Art. 11. O Enfermeiro exerce todas as atividades de Enfermagem, cabendo-lhe: I – privativamente: a) direção do órgão de enfermagem integrante da estrutura básica da instituição de saúde, pública ou privada, e chea de serviço e de unidade de Enfermagem; b) organização e direção dos serviços de enfermagem e de suas atividades técnicas e auxiliares nas empresas prestadoras desses serviços; c) planejamento, organização, coordenação, execução e avaliação dos serviços de assistência de enfermagem; 38 Unidade I [...] h) consultoria, auditoria e emissão de parecer sobre matéria de Enfermagem; i) consulta de Enfermagem; j) prescrição da assistência de enfermagem; l) cuidados diretos de enfermagem a pacientes graves com risco de vida; m) cuidados de Enfermagem de maior complexidade técnica e que exijam conhecimentos de base cientíca e capacidade de tomar decisões imediatas (BRASIL, 1986). Além disso, a Lei do Exercício Prossional dene também as atividades que o enfermeiro deverá exercer perante a equipe de saúde, estabelecendo que lhe cabe: II – Como integrante da equipe de saúde: a) participação no planejamento, execução e avaliação da programação de saúde; b) prescrição de medicamentos estabelecidos em programas de saúde pública e em rotina aprovada pela instituição de saúde; c) prescrição de medicamentos estabelecidos em programas de saúde pública e em rotina aprovada pela instituição de saúde; d) participação em projetos de construção ou reforma de unidades internação; e) prevenção e controle sistemático de infecção hospitalar e de doenças transmissíveis em geral; [...] g) assistência de enfermagem à gestante, parturiente e puérpera; h) acompanhamento da evolução e do trabalho de parto; i) execução do parto sem distocia (BRASIL, 1986); Embora essa legislação assegure as condições e as atividades de uma profissão, refletindo a situação objetiva das relações entre os profissionais de enfermagem que ela representa, e não do desejo de um grupo isolado de enfermeiros ou de seus dirigentes, atendendo as situações dadas, 39 ÉTICA EM ENFERMAGEM E EXERCÍCIO PROFISSIONAL