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Introdução: O livro “Acesso à justiça” de Mauro Cappelletti, retrata o modo como os sistemas jurídicos de diversos países foram criados, em sua grande maioria, para privilegiar os interesses de indivíduos pertencentes a classes de alto poder aquisitivo. Com isso, tornou-se cada vez maior a busca por profissionais do âmbito jurídico e de outras ciências humanas, por um sistema que permitisse o acesso efetivo de todas as pessoas à justiça. Esse acesso permitiria que todos os indivíduos pudessem reivindicar seus direitos e resolver seus litígios sob os cuidados do Estado. Para isso, seria necessário que o sistema fosse igualmente acessível à toda população, garantindo que os resultados fossem justos aos indivíduos e à toda coletividade. 1- Evolução do Acesso à Justiça: Nas sociedades liberais dos séculos XVIII e XIX, o acesso à justiça era visto como um direito natural, ou seja, inerente aos indivíduos, não necessitando de uma ação estatal para a sua proteção. Sendo assim, o Estado permanecia inerte, sem se preocupar com a garantia e defesa dos direitos individuais. Do mesmo modo, havia uma igualdade apenas formal dentro do sistema jurídico, tendo em vista que apenas poderiam arcar com as custas processuais aqueles que tivessem condições econômicas para tanto, ou seja, as classes sociais mais abastadas. Tal fato pode ser facilmente observado, uma vez que pessoas comuns precisavam trabalhar incansavelmente apenas para garantir o sustento dentro de casa, não podendo se dar ao luxo de ingressar em uma relação processual, mesmo tendo total legitimidade para isto. Essa hierarquização dos sistemas jurídicos ocorria justamente pela falta de preocupação dos próprios estudiosos do Direito com relação à realidade da maior parte da população, uma vez que os direitos eram vistos de modo mais individualista. No entanto, com a publicação das “declarações de direitos” promovidas pelas revoluções burguesas da época, houve uma ressignificação dos relacionamentos, os quais passaram a ser vistos de modo mais coletivo. Sendo assim, os governos passaram a reconhecer a importância de garantir os direitos e deveres sociais das comunidades e dos indivíduos a fim de se alcançar os direitos materiais. Dentre os direitos garantidos havia o direito ao trabalho, à saúde, à segurança material e à educação, os quais não eram nem sequer considerados anteriormente para as camadas mais pobres. Com isso, a visão de um Estado intervencionista e garantidor passou a ser construída, visto que apenas ele seria capaz de estabelecer o acesso efetivo à justiça para todos. Este panorama pode ser observado por uma frase do livro, a qual diz que “a titularidade dos direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para a sua efetiva reivindicação”, isto é, não adianta ter o direito formal se não há instrumentos necessários para a sua concretização material. 2- Obstáculos do acesso efetivo à justiça: A igualdade formal entre as partes de um litígio é um dos principais mecanismos para que haja o acesso ao sistema jurídico de modo justo, porém acreditar que essa igualdade ocorresse de fato naquele período seria viver em uma realidade completamente utópica, considerando que ainda existem certos obstáculos a serem transpostos. ➢ Custas judiciais: A resolução dos conflitos entre os litigantes nos tribunais é muito dispendiosa, uma vez que o Estado já oferece uma estrutura cara de forma gratuita e as partes precisam, no mínimo, suportar os outros custos, como os honorários advocatícios e as custas judiciais. Sendo assim, é inegável que a falta de aptidão financeira contribui e muito para que grande parte das comunidades não busquem reivindicar seus direitos na justiça, pois sabem que não poderão arcar com os preços exorbitantes para se chegar ao sistema judiciário. Ademais, causas que envolvem valores pequenos a serem ressarcidos são ainda mais prejudiciais, visto que os custos processuais podem exceder o conteúdo do pedido, tornando a ação inútil. Tal fato ocorre por serem inversamente proporcionais, já que quanto menor o valor da causa, maior o valor das custas do processo. Há também o perigo na demora do processo, uma vez que uma solução judicial demanda no mínimo dois anos para ser proferida, tendo as partes que lidar com o valor e possível aumento das custas e acabar abandonando a causa, tendo sido mais vantajoso se nem tivessem começado a relação processual. ➢ Possibilidade das partes: É certo afirmar que pessoas e organizações que possuam recursos financeiros consideráveis tem uma maior possibilidade de propor demandas a seu favor; tendo em vista que terão recursos para arcar com a demora do processo e apresentar seus argumentos de modo mais eficiente, uma vez que possuem uma maior capacidade de gerar provas. Além disso, indivíduos que pertencem a um meio social diferenciado e tiveram acesso a métodos de ensino mais avançados detém uma maior capacidade para identificar e reconhecer a existência de um direito juridicamente exigível. Com isso, conseguem entender melhor as situações em que podem pleitear determinado direito e ajuizar uma demanda, que certamente lhes será concedida. Há também vantagens consideráveis entre os chamados litigantes habituais e litigantes eventuais. Os primeiros, em sua maioria, são compostos por grandes empresas que já estão acostumadas a lidar com processos na posição de rés e que por isso, possuem maior experiência com o Direito e maior planejamento para resolver o litígio; além de maiores quantias para investir no processo. Enquanto isso, o segundo termo refere-se a pessoas comuns como consumidores ou autores de demandas consumeristas, os quais possuem até certo receio de ajuizar uma demanda pelo alto custo que precisarão investir e por não confiarem em advogados ou não saberem como se dão os procedimentos formais nos órgãos jurisdicionais. Esse medo provém justamente da desinformação acerca do funcionamento do poder judiciário e de como identificar situações em que podem ingressar com uma ação para defender seus interesses. ➢ Problemas especiais dos interesses difusos: Os interesses difusos possuem como titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato, sendo pertencentes a toda coletividade, como o direito a um meio ambiente saudável ou à proteção do consumidor. Por sua natureza difusa, estes direitos não eram vistos como dignos de tutela estatal, sendo os autores colocados em posição semelhante ao autor de uma pequena causa, para quem ajuizar uma demanda é muito difícil. Ademais, um indivíduo pode conseguir apenas indenização para os prejuízos causados apenas para si e não para todos os afetados, assim como também pode ser complicada a organização de todas as partes por serem, em certos pontos, incapazes de combinar uma estratégia coletiva. Com isso, esses indivíduos desistem de entrar com uma ação e apenas confiam na máquina governamental, sendo prejudicados pela inércia do Estado. 3- Soluções para garantir o acesso à justiça: O Direito Processual foi, durante muito tempo, visto como uma mera parcela do Direito Material, sendo sua existência atrelada a ele. Porém, com a fase instrumentalista, o Direito Processual passou a ser considerado um ramo autônomo, sendo o meio para a concretização do Direito Material. E, juntamente com essa fase, houve também o desenvolvimento de soluções para garantir o acesso à justiça por meio de três ondas renovatórias. ➢ Primeira Onda- Tutela dos Hipossuficientes: Durante essa onda, houve a criação de estruturas que possibilitaram o acesso gratuito à justiça para as pessoas de baixo poder aquisitivo, uma vez que foi observada a importância de proporcionar assistência judiciária aos pobres, a fim de conseguirem ajuizar suas ações de forma mais justa. Entretanto, até pouco tempo atrás muitos indivíduos podiam entrar com a ação, por ser um direito, mas não conseguiam por esta ainda ser muito custosa, permanecendo injustiçados e sendo impossibilitados de recorrer à justiça de modo eficaz. É possível analisar que o sistema permaneceuinadequado para atender a todos de forma igualitária, mesmo com os incentivos do governo para tentar equalizar a situação. Muitos advogados, em especial os mais experientes no ramo, disponibilizam um limite pré- fixado para atender pessoas de baixa renda, por meio de programas pró bono, de modo a evitar excessos de caridade. Nesta onda foram desenvolvidos certos programas para estimular o acesso efetivo de todos os indivíduos, destacando-se o Sistema Judicare. Esse sistema tinha como objetivo permitir que pessoas de baixo poder aquisitivo tivessem o mesmo tipo de representação perante o judiciário de pessoas mais abastadas. Sendo assim, os advogados particulares seriam pagos pelo governo como incentivo para serem representantes desses litigantes. No entanto, essa tentativa de tentar tratar as pessoas pobres como clientes comuns mostrou-se falha, visto que muitas delas não possuem informações necessárias sequer para reconhecer uma causa e procurar por ajuda de um profissional. Vale ressaltar que são muitas as barreiras culturais entre ricos e pobres nas sociedades, sendo esses últimos vítimas da insegurança que sentem por não saberem como proceder e ter que frequentar advogados particulares sem que possam pagar, ainda que esse direito seja garantido pelo Estado. Outro programa de destaque foi a tentativa de recorrer a serviços prestados por advogados da vizinhança, ou seja, profissionais do Estado que seriam responsáveis por auxiliar os litigantes de baixa renda a ajuizarem suas ações e ao mesmo tempo informando-os de modo efetivo sobre tudo que precisam saber antes de ingressar com uma ação. Porém, não haveria advogados suficientes para lidar com a grande demanda de todos esses indivíduos, além de ser inviável o oferecimento desse programa para pessoas de classe média pelo mesmo motivo. Em suma, o ideal seria a combinação desses dois sistemas em um único programa, como foi a ideia dos Sistemas Combinados, a fim de possibilitar que os próprios litigantes escolham entre advogados públicos e privados, além de um investimento econômico eficiente por parte do Estado, para que hajam muitos profissionais de diferentes ramos disponíveis para lidar com a grande demanda de serviços e bem remunerados, de modo que os litigantes sejam bem representados. ➢ Segunda Onda- Tutela dos Direitos Metaindividuais: Essa onda buscou a proteção de interesses que antes não eram sequer vistos como dignos de tutela por parte do Estado, os direitos da coletividade. Esses direitos são indivisíveis, pois pertencem a muitos indivíduos, em muitos casos, não podendo mensurar todos eles; como o caso de pessoas afetadas por uma empresa que polui determinada região, são inúmeras pessoas e diferentes danos causados a cada uma delas. Com isso, esses direitos passaram a ser protegidos por Ações Governamentais, as quais não eram tão eficientes, uma vez que ficavam sujeitas à pressão política por parte de grandes empresas e corporações, além da lentidão da máquina burocrática do Estado. Por esse motivo, um passo tomado para a reforma processual foi a criação da “class action”, a qual permitia que um único litigante representasse os demais, a fim de evitar os gastos com a criação de uma organização permanente. Portanto, seria possível que essa classe de litigantes obtivesse os mesmos privilégios dos litigantes habituais nos tribunais, embora pudessem também não dispor de recursos suficientes para tanto. Ademais, outra instituição foi criada pelo governo para atender ao interesse público, a Assessoria Pública. Por meio dela, grupos particulares de advogados passaram a utilizar seu esforço e energia para representar os indivíduos de classe média e baixa em suas causas, utilizando de recursos provenientes dos cofres públicos. Assim, tornou-se possível a reivindicação eficiente dos interesses difusos. ➢ Terceira Onda- Efetividade: Essa onda busca tratar as ondas anteriores como parte de várias outras possibilidades para melhorar o acesso à justiça, de modo a trazer resultados concretos, ou seja, para garantir que o Direito Material seja de fato alcançado e garantido a todos. Sendo assim, novas reformas passaram a ser necessárias para lidar com o surgimento de novas demandas, tornando necessário adaptar o processo civil ao tipo de litígio do caso concreto; tendo em vista que os remédios jurídicos tendem a servir a apenas algumas funções, não abordando todas de modo eficaz. 4- Tendências no uso do enfoque do acesso à justiça: Os tribunais regulares, utilizados para a resolução dos litígios, apresentam uma grande complexidade; tendo em vista o formalismo necessário para que advogados e juízes interpretem e apliquem a letra da lei de modo correto. Em contrapartida, observou-se que certos conflitos não precisavam ser necessariamente resolvidos em juízo, principalmente caso as partes preferissem algo mais célere e menos custoso. Para atender a essas necessidades e tornar o processo mais simples e acessível, foram criados os métodos alternativos para a resolução de litígios, os quais trabalham de modo paralelo ao Poder Judiciário. ➢ Arbitragem: O juízo arbitral consiste na utilização de procedimentos informais e julgadores com formação técnica/jurídica, os quais proferem decisões com limitada possibilidade de recurso. Esse árbitro é escolhido pelos próprios litigantes por uma convenção de arbitragem e possui o poder de decidir o que é melhor para as partes, colocando fim ao litígio. Embora seja um processo mais rápido e menos dispendioso, tornava-se um pouco caro para as partes, pois estas precisavam arcar com o ônus dos honorários do árbitro. Por isso, em muitos lugares estava sendo proposto que o Estado pagasse os árbitros ou que os próprios juízes atuassem nesse tipo de resolução de conflitos. ➢ Conciliação: Este método pode ser resolvido sem a necessidade de um julgamento, tendo em vista que é fundado em um acordo já estabelecido pelas partes. Com isso, um terceiro imparcial, geralmente um membro respeitado de uma comunidade, irá auxiliar as partes, sem nenhum tipo de imposição, a chegarem a um acordo mútuo. Ademais, permite que as causas do litígio sejam discutidas a fundo, de forma a permitir que as partes resolvam o conflito e mantenham um relacionamento longo e duradouro. Mas, é preciso que a conciliação reduza mesmo o congestionamento do judiciário de forma efetiva, resolvendo os litígios com verdadeiro êxito. ➢ Incentivos Econômicos: Outro método é encorajar acordos pelo uso seletivo de incentivos econômicos, pois os fatores econômicos influenciam a disposição das partes para com a conciliação, além de reduzir o congestionamento do sistema judiciário. 5- Conclusão: O Direito vem evoluindo há várias décadas no sentido de se tornar um instrumento para a efetivação do acesso à justiça para todos de modo igualitário, porém apesar das adequações já realizadas em diversos sistemas jurídicos de diferentes países, há ainda muitas reformas a serem feitas. As três ondas renovatórias foram essenciais para realizar todas as mudanças existentes nos dias atuais, permitindo o conhecimento das populações mais pobres acerca de seus direitos e deveres em sociedade; fazendo com que o Estado passasse a reconhecer a relação processual entre mais de dois indivíduos, tutelando os interesses de toda coletividade; e mostrando o quão importante é a preocupação com a entrega dos resultados de modo concreto. No entanto, essas ondas precisam ser vistas como tópicos de uma grande lista de mudanças que precisam ser feitas para que o Estado realmente exerça a tutela sobre os direitos de todos. Obviamente, tais reformas sofrem com a oposição de indivíduos de alto poder aquisitivo e grandes corporações, tendo em vista que estes são os que mais se beneficiam com esse sistema e acabam até mesmo realizando pressão política no Estado a fim de continuar gozando de seus privilégios. Deste modo, inúmeros indivíduos continuam sofrendo pela negligência do Governo em lidar com suas necessidades, isso sem falar naqueles que sequer conseguem ajuizar umademanda para defender seu direito de ação. Em suma, é importante salientar que essas melhorias precisam ser feitas de modo rigoroso, não alterando a essência do processo civil, respeitando os limites e potencialidades dos tribunais regulares e dos procedimentos necessários para a resolução dos litígios, como o contraditório e a ampla defesa. Somente assim, será possível que todos tenham o acesso à justiça e a igualdade material pelo gozo de seu direito como previsto nas constituições dos países ao redor do mundo, em especial a Constituição Federal Brasileira.
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