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1 ANTROPOLOGIA ensino, pesquisa e etnografia hoje Kleyton Rattes Marcelo Moura Mello Simone Silva organizadores UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE REITOR Antonio Claudio Lucas da Nóbrega VICE-REITOR Fabio Barboza Passos EDUFF – EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CONSELHO EDITORIAL Renato Junio Franco (2018-2022) Ana Paula Mendes de Miranda Celso José da Costa Gladys Viviana Gelado Johannes Kretschmer Leonardo Marques Luiz Mors Cabral Marco Antônio Roxo da Silva Marco Moriconi Marcos Otavio Bezerra Ronaldo Altenburg Odebrecht Curi Gismondi Silvia Patuzzi Vagner Camilo Alves CONSELHO CONSULTIVO Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva (UFRJ) Ângela Vaz Leão (PUC-Minas) Célia Marques Telles (Ufba) Evanildo Cavalcante Bechara (Uerj/UFF/ABL) Gladis Massini-Cagliari (Unesp) Hilário Franco Júnior (USP) José Rivair de Macedo (UFRGS) Leila Rodrigues da Silva (UFRJ) Lênia Márcia de Medeiros Mongelli (USP) Luís Alberto de Boni (PUC-RS) Mário Jorge da Motta Bastos (UFF) Vânia Leite Fróes (UFF) Yara Frateschi Vieira (Unicamp) 1 ANTROPOLOGIA ensino, pesquisa e etnografia hoje Kleyton Rattes Marcelo Moura Mello Simone Silva organizadores Copyright © 2023 Kleyton Rattes, Marcelo Moura Mello e Simone Silva (orgs.) É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da editora. EQUIPE DE REALIZAÇÃO Editor responsável: Luciano Dias Losekann Coordenador de produção: Ricardo Borges Revisão: Icléia Freixinho Normalização: Camilla Almeida Projeto gráfico, capa e diagramação: Natália Brunnet Direitos desta edição reservados à Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9, anexo/sobreloja - Icaraí - Niterói - RJ CEP 24220-008 - Brasil Tel.: +55 21 2629-5287 www.eduff.uff.br - faleconosco@eduff.uff.br Publicado no Brasil, 2023. Foi feito o depósito legal. Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação - CIP A636 Antropologia [recurso eletrônico] : ensino, pesquisa e etnografia hoje : volume 1 / Kleyton Rattes, Marcelo Moura Mello, Simone Silva (organizadores). – Niterói : Eduff, 2023. – 2.385 kb. ; ePUB. – (Coleção Biblioteca Básica). Inclui bibliografia. ISBN 978-65-5831-172-0 BISAC SOC002000 SOCIAL SCIENCE / Anthropology / General 1. Antropologia. 2. Etnografia. I. Rattes, Kleyton. II. Mello, Marcelo Moura. III. Silva, Simone. IV. Título. V. Série. CDD 301 Ficha catalográfica elaborada por Camilla Castro de Almeida CRB7/0041/21 Sumário Apresentação 7 Kleyton Rattes, Marcelo Moura Mello e Simone Silva Tim Ingold 19 Graziele Ramos Schweig Johannes Fabian 39 Paulo Ricardo Müller Thomas Csordas 67 Aidan Seale-Feldman e Luis Felipe R. Murillo Richard Price 101 Rogério Brittes W. Pires Veena Das 143 Paula Lacerda Michael Taussig 163 Martinho Tota Roy Wagner 191 Luiz Felipe Benites Marilyn Strathern 225 Orlando Calheiros e Fabiana Maizza Alfred Gell 255 Levindo Pereira Janet Carsten 287 Alline Torres Dias da Cruz Sobre as autoras e os autores 311 Apresentação Este volume reúne balanços críticos sobre as obras de um conjunto de profissionais do campo da Antropologia con-temporânea, cujas reflexões têm influenciado os modos conexos de ensinar, pensar e praticar Antropologia no Brasil do tempo presente. Constitui-se, também, em material de ensino – em especial para estudantes de graduação e pós-graduação em Ciências Sociais, Antropologia e outras áreas das humanidades – em um sentido amplo, pois serve de amparo, a um só tempo, para discentes e docentes. Um importante critério que seguimos é o de ofertar um conjunto de textos capaz de apresentar o estado da arte de diferentes contribuições do campo antropológico do pós-guerras, passando por diferentes intelectuais, indo além de abordagens que, meramente, decodificam as ideias de outrem. Antes, o caminho foi aquele em direção a perspectivas que, via a difícil arte de equacionar elementos didáticos e profundidade empírica e teórica, também estimulam análises. Nesse senti- do, o livro visa fornecer e despertar o contato com dimensões experimentais e criativas da obra das autoras e dos autores em revista, complementando e enriquecendo as leituras de livros e artigos normalmente indicados em disciplinas de graduação e pós-graduação. Outrossim, projetamos com essa construção coletiva a elaboração de um material cujos perfil e características sejam afins a um modelo de estudo que seja, simultaneamente, 8 autônomo e criativo, evitando-se estabelecer o aprendizado do método como o seu fim exclusivo e/ou preferencial.1 O critério acima referido é, em certa medida, resultado das transformações que ocorreram no campo acadêmico do Brasil dos últimos anos. A expansão de cursos de graduação e pós-graduação em Antropologia no país nas últimas décadas, o aumento considerável de egressos de mestrados e doutorados na área, a internacionalização da disciplina e a intensificação da produção antropológica em escala global constituem, todos, marcos importantes que promoveram novas possibilidades de acesso a ideias antropológicas e, simultaneamente, leituras fragmentárias, e fragmentadas, da produção de certos autores e autoras. A efetiva atenção a essa nova situacionalidade do campo acadêmico é cara a esta coletânea, porquanto sustentamos que a formação sólida em teoria antropológica é requisito indispensável para o ensino e a prática da disciplina, bem como para a crítica ao seu arcabouço conceitual e metodológico, pois como sugeriu um dos antropólogos mais críticos à disciplina, “para que a crítica seja responsável, é preciso que seja sempre endereçada a alguém que possa contestá-la” (ASAD, 2016, p. 226). Assim, este projeto é, em certa medida, uma expressão das transformações que impulsionaram, nas últimas duas décadas, o campo da educação superior brasileira. Presenciamos, em dois tempos, um processo de consolidação de políticas de democrati- zação, expansão, interiorização e diversificação das universidades públicas brasileiras, e, na contramão, um movimento orquestrado de ataques ao ensino público e à pesquisa. Enquanto docentes de 1 Em Antropologia e/como educação (2020), Ingold faz uma necessária e instigante distinção entre participação educacional e “mero treinamento”, a partir da premissa de que o processo de formação tem como condição essencial o compartilhamento de interesse por parte do corpo docente e discente de modo contínuo e transformador. Esse envolvimento criativo e autônomo, segundo ele, é a base para um estudo transfor- macional, que, antes de “facilitar as coisas”, gera um interesse em comum. Assim, tomar o processo a partir da criação e experimentação, e não mais do consumo, é, segundo Ingold, uma das condições para se conter a chamada “aprendização” – um tipo de educação submetida às forças do mercado, encerrada em si, gestada para “satisfação de desejos individuais”. 9 instituições públicas de ensino superior provenientes de universidades públicas, consideramos adequada a publicação desta coletânea em formato de acesso aberto, o que vai ao encontro do caráter coletivo dessa empreitada. De modo similar, entendemos que uma parte importante da defesa da liberdade, autonomia e preservação das condições criativas esteja centrada na impossibilidade de se dis- sociar o ensino da pesquisa. No caso específico da Antropologia, o trabalho de campo não pode ser visto em oposição à manutenção/ perpetuação da sala de aula. Antes, ele é a garantia das condições produtivas de um processo de formação amplo, plural, dialógico e vivo. A sala de aula coloca-se, assim, em continuidade e diálogo com a dimensão exploratória e imaginativa do exercício da pesquisa de campo, e, tal qual a empreitada etnográfica, sedimenta caminhos comunitários essenciais a processos de cunho transformador. Preservar e garantir as condições básicas de pesquisa ao corpo docente e à comunidade científica como um todo é condição sine qua non para a promoção de um espaço de formação criativo, democrático e libertador e, nolimite, transformador, de fato, das condições sociais que estruturam a nossa sociedade. Esta coletânea visa oferecer, portanto, um horizonte de caráter formativo, que mescla dimensões didáticas e analíticas, tendo por fim precípuo a circulação de ideias produzidas por profissionais da área, cujas obras têm sido apropriadas, de modos diferenciais, pelas Antropologias feitas a partir do Brasil. Com efeito, sabemos que os modos de divulgação, recepção, circulação e transmissão de ideias produzidas no Atlântico Norte (TROUILLOT, 2011) são desiguais. Contudo, embora este volume esteja amparado em estudos sobre as obras de pessoas canônicas, por outro lado, ele não se limita a pensar com as ideias de um número mais restrito de intelectuais, seja pela opção acadêmica e política a respeito da pluralidade e das características de cada contribuição aqui presente, seja pelas diferenças geracionais e regionais que pautam este livro. De modo similar, é importante destacar que o acesso às obras de intelectuais estrangeiros depende sobremaneira da existência de traduções para o português. Desde o novo milênio, 10 diversos livros e artigos – em sua maioria, redigidos em língua inglesa – foram traduzidos e publicados por editoras brasileiras e em periódicos científicos nacionais, ampliando consideravelmente o material disponível para o ensino da Antropologia.2 Contudo, mesmo aqueles autores e aquelas autoras que se tornaram objetos privilegiados de traduções nos últimos anos – como Marilyn Strathern, Roy Wagner e Tim Ingold – ainda não contam com análises e apresentações como as presentes aqui. De certo, é importante salientar e reconhecer que o pú- blico brasileiro já tem a seu dispor excelentes balanços críticos, produzidos em território nacional ou alhures, sobre tendências da teoria antropológica contemporânea, bem como obras, capí- tulos de livros e artigos dedicados a autores particulares, tanto “clássicos” como contemporâneos. Para citar alguns exemplos de trabalhos que abordam problemas antropológicos mais amplos – e aqui estamos incorrendo em inúmeras omissões e lacunas – por meio da análise das obras, e das trajetórias, de autores e autoras particulares (AZZAN JR., 1993; OLIVEIRA, 2003; CORRÊA, 2003; DULLEY, 2015; GOLDMAN, 1999; 2016; 2019), há um número expressivo de compilações que reúnem textos básicos da Antropologia como um todo (CASTRO, 2005; 2015; 2016), balan- ços sobre antropólogos e antropólogas de renome internacional e de “escolas de pensamento” em particular (CAVALCANTI, 2014; CASTRO, 2004; 2005; 2015; FELDMAN-BIANCO, 1987; ROCHA; FRID, 2015), além de balanços críticos sobre “Antropo- logias Nacionais” (CORRÊA, 2013; BRUMANA, 2011; GROSSI; MOTTA; CAVIGNAC, 2006) e a matriz conceitual da discipli- na como um todo (OLIVEIRA, 1988). Destaquem-se também os diálogos com autores de monta na Antropologia mundial, como Lévi-Strauss (QUEIROZ; NOBRE, 2013), e produções que 2 Cumpre lembrar que a maior parte dos artigos que são traduzidos e publicados em perió- dicos brasileiros (em sua maior parte de acesso livre) resulta do trabalho, não remunera- do, de docentes, pesquisadores e estudantes de pós-graduação. Um compilado de artigos de interesse para a Antropologia e traduzidos para o português pode ser encontrado em: https://docs.google.com/document/d/1tnNrebGO7P_PXsZMvo4yrW_vcS3ODV5W. 11 recuperam as contribuições de pensadores que normalmente não são identificados como antropólogos, a exemplo de Bataille e Leiris (GOYATÁ, 2016). Por fim, lembramos os investimentos de fôlego expressos em textos de apresentação como aquele es- crito por Sigaud à edição nacional de Sistemas políticos da Alta Birmânia (LEACH, 1996), ou ainda, a leitura da obra de Bateson compartilhada por Geiger na tradução de Naven (BATESON, 2008), a apresentação de Raymond Firth feita por Lanna na oca- sião da publicação de Nós, os Tikopias (FIRTH, 1998) e o ensaio de Vargas apresentando a obra editada no país, Monadologia e Sociologia (TARDE, 2007). Entretanto, ainda é um público carente de obras como esta que apresentamos. A Antropologia feita no Brasil é, desde sua gênese, internacionalizada. Sustentamos que sua riqueza e diversidade provêm em larga medida do fato de o ensino da disciplina no Brasil ter se amparado em distintas matrizes disciplinares, atra- vessando fronteiras nacionais e, de certo modo, “provincializando” (CHAKRABARTY, 2000) teorias, conceitos e saberes produzidos alhures. É bem verdade que as tradições francesa, americana e britânica – e mesmo alemã – ganharam proeminência por aqui, muito embora os diálogos e trocas com pensadores latino-ameri- canos tenham sido uma constante ao longo das décadas, inclusive pela formação de doutores provenientes de países vizinhos em programas de pós-graduação sediados em instituições de ensino brasileiras. Desse rico e diversificado repertório – que nem de longe é redutível às fronteiras nacionais – emergiram, nos últimos anos, paradigmas e teorias heterogêneas de “vozes subalternas” e “silenciadas”, muitas das quais críticas à Antropologia. A partir de tais direcionamentos, esta coletânea é dedicada a antropólogas e antropólogos, cujas obras foram produzidas na segunda metade do século XX e passaram a circular, com maior centralidade, no campo acadêmico brasileiro, nas últimas três décadas. Este primeiro volume aborda dez importantes intelec- tuais da seara antropológica, a partir do olhar de um conjunto de jovens docentes e pesquisadores. Como toda seleção, as escolhas 12 que realizamos carregam em si inevitáveis lacunas, ausências, assim como refletem recortes político-pedagógicos estratégicos. Parte destas lacunas é contornada com o segundo volume, ainda por vir, desta coletânea, no qual outra importante leva de inte- lectuais terá suas obras apresentadas e escrutinadas, seguindo as mesmas diretrizes gerais deste projeto. Cada autora e cada autor que contribuiu com o livro teve autonomia na construção de seu texto.3 No entanto, algumas orientações gerais foram sugeridas, entre as quais gostaríamos de destacar: a necessária referência às reverberações das obras na Antropologia feita no Brasil; o incentivo à não emissão de juízos de valores ou de categorizações substantivas de autores, escolas de pensamento e correntes teóricas, guardando um compromisso com a política acadêmico-pedagógica aqui presente; a situaciona- lidade das ideias nas obras abordadas, contemplando, de modo concomitante, suas apresentações e seus potenciais analíticos. Em relação à composição do grupo de docentes aqui reunidos, vale reiterar que, a partir da seleção, buscamos simultaneamente apontar para as transformações ocorridas no campo acadêmico brasileiro, por meio do processo de expansão do ensino superior, e realçar as agendas de pesquisa de jovens docentes e/ou pesqui- sadores que trazem em seus trabalhos marcas e/ou diálogos mais diretos com o grupo de intelectuais aqui analisados. Assim, em consonância com a situacionalidade atual das várias Antropologias ensinadas e experimentadas no Brasil, essas agendas, indireta- mente indicadas neste volume, dão vida ao complexo processo de circulação de ideias, teorias e vivências etnográficas, ao qual este projeto editorial busca aludir. 3 Gostaríamos de agradecer sobremaneira às/aos colegas que aceitaram participar deste projeto tão desafiador, dadas as imprecisões quanto às condições básicas de ensino e de pesquisa e a instabilidade política e social que vivenciamos nos últimos quatro anos no Brasil. Nesse ínterim, foi fundamental, para o fechamento deste primeiro volume, a compreensão de cada um dos e das colegas, que generosamente não só redigiu o seu respectivo capítulo, mas, sobretudo, travou um profícuo diálogo com o corpo editorial. 13 As contribuições deste primeiro volume foram ordenadas por afinidades eletivas. No primeiro capítulo, Graziele Ramos Schweig, professora da Faculdade de Educação da UFMG, escreve sobre o antropólogoTim Ingold (1948-). Em seguida, a obra do antropólogo Johannes Fabian (1937-) é abordada por Paulo Mül- ler, professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Aidan Seale-Feldman e Luis Felipe R. Murillo, ambos professores assistentes do Departamento de Antropologia da Universidade de Notre Dame, fazem um balanço da obra do antropólogo Thomas Csordas (1952-). No quarto capítulo, Rogério Brittes Wanderley Pires, professor da UFMG, explora as minúcias da obra de Ri- chard Price (1941-). Seguido, por sua vez, pela contribuição de Paula Lacerda, professora do Departamento de Antropologia da Uerj, que em seu ensaio escreve sobre a antropóloga Veena Das (1945-). Já Michael Taussig (1940-) é apresentado por Martinho Tota, professor do Departamento de Ciências Sociais da UFC. No sétimo capítulo, Luiz Felipe Benites, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), apresenta e explora o trabalho de Roy Wagner (1938-2018). Em seguida, contemplando outra melanesista, Fabiana Maizza, da Universidade Federal de Pernambuco, e Orlando Calheiros, doutor em Antropologia pelo Museu Nacional (UFRJ), escrevem a respeito da obra de Marilyn Strathern (1941-). No penúltimo capítulo, Alfred Gell (1945-1997) é objeto do texto de Levindo Pereira, doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFMG. E, por fim, no décimo e último capítulo, Alline Torres Dias da Cruz, que é atualmente professora do Departamento de Antro- pologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia, apresenta e faz um balanço da obra antropológica de Janet Carsten (1955-). Os percursos etnográficos e as grandes questões teóricas enfrentadas por esses autores e essas autoras tornam problemáticas quaisquer tentativas de redução de suas obras a uma escola de pensamento, a uma corrente teórica específica ou a um número limitado de interesses. Certamente, cada autor e autora “fala” de uma posição específica, em nada redutível a algum atributo 14 essencial e fixo – algo de resto já demonstrado por autores como Michel Foucault e Pierre Bourdieu, salientado pela Antropologia denominada pós-modernista, com suas discussões a respeito da situacionalidade das ideias, falas e teorias (CLIFFORD; MAR- CUS, 2016), e debatido pelas standpoint theories desenvolvidas pelas intelectuais feministas do Atlântico Norte (HARAWAY, 1988; HARDING, 1987; 1993). Do mesmo modo, as marcas (e as reverberações) das filiações teóricas desses autores e autoras, engendradas sobretudo em seus períodos formativos (ou seja, o aprendizado da teoria e etnografia em bancos escolares e na prática da pesquisa de campo), tampouco estão dadas de antemão. Formados e formadas em instituições de ensino de prestígio do Atlântico Norte, esses autores e essas autoras têm origens hetero- gêneas, estudaram em universidades diferentes, lecionaram em diversas instituições, realizaram pesquisas de campo em mais de um lugar, viveram em metrópoles globais e trabalharam, de diversas formas, com cientistas de várias partes do mundo. Não obstante as dificuldades de alocar, em uma classificação simplificada, a diversidade de Antropologias aqui em jogo, o nosso intento foi de forjar diálogos entre as obras abordadas – alguns explí- citos, outros nem tanto – cruzando horizontes teóricos e empíricos, heurísticos e etnográficos, de modo a incentivar abordagens didá- ticas e, a um só tempo, leituras que despertem autonomias críticas (INGOLD, 2020). Poder-se-ia dizer que, embora as apresentações e discussões aqui presentes, das antropólogas e antropólogos, sejam individualizadas em seções específicas, a coletânea tem a ambição de explorar, sobretudo, as relações entre tais autorias, inspirada, em alguma medida, no já canônico texto de Ortner (2011), que enquanto princípio ocupa-se não apenas de “escolas de pensamento” proeminentes no Atlântico Norte, mas também das relações entre elas (em especial entre as décadas de 1960 e 1980). E ainda para nossos interesses, destacam-se, neste livro, as relações das obras abordadas com as Antropologias feitas a partir do Brasil. Para aludir com exemplos, os diferentes capítulos que com- põem este livro cruzam, em diálogos, grandes temas do campo 15 antropológico, alguns dos quais, diga-se de passagem, de ordem meta-antropológica. A saber: as relações entre “colonialismo” e “colonialidade” em suas interseccionalidades com as noções de “gênero”, “raça” e “poder”; as propostas revisionistas dos cânones da disciplina, por meio de diálogos com grandes tradições do pensamento ocidental, tais como a Fenomenologia, a Semiologia e os feminismos; os movimentos de simetrizações que apostam na desconversão massiva das variadas formas de conhecimento à Epistemologia Modernista ou, ainda, nas chamadas “viradas ontológicas”; as releituras sobre o campo do parentesco e a noção de pessoa; as dimensões heurísticas e retóricas da escritura e suas relações com a produção e validação de autoridade científica; as revisões de searas centrais na História da Antropologia tais como “corpo”, “religião”, “cura”, “narrativas”; os cruzamentos entre os campos da Antropologia da Política, Antropologia da Economia e Antropologia da Técnica; os temas meta-antropológicos da tradução, do estatuto dos signos e da descrição etnográfica; os loci ocupados pelos denominados movimentos da “teoria prática” e “performance” na Antropologia do Pós-guerras; entre outros. Nosso desejo é que o público leitor consiga, com este pri- meiro volume, se beneficiar com as importantes e indeléveis contribuições que antropólogas e antropólogos têm oferecido ao campo acadêmico – e não só antropológico – nas últimas décadas; e, também que este livro sirva de apoio a estudantes, pesquisadores e outras pessoas ligadas às humanidades, de modo a permitir que extraiam horizontes teóricos e práticos potentes, tanto na produção e circulação de conhecimentos, quanto na promoção e formação acadêmico-pedagógica em Antropologia. No mais, esperamos que com este livro leitores encontrem-se na e desfrutem da boa companhia de intelectuais responsáveis por esta Antropologia Contemporânea, que é, para dizer o mínimo, bastante plural e vigorosa. Kleyton Rattes, Marcelo Moura Mello e Simone Silva 16 Referências ASAD, Talal. O conceito de tradução cultural na antropologia britânica. In: CLIFFORD, James; MARCUS, George (orgs.). A escrita da cultura: poética e política da etnografia. 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Recorda ter testemunhado a dedicação de seu pai biólogo ao estudo dos fungos. Sua especia- lidade – a Micologia – é considerada por Ingold como um ramo subversivo da Biologia, já que os fungos escapam às definições do que seria um organismo, comumente concebido como uma entidade com um interior e exterior claramente demarcados. Os fungos, do contrário, vazam, possuem fronteiras indefiníveis; enchem o ar com seus esporos e infiltram-se no solo com suas fibras sinuosas (INGOLD, 2016a, p. 8). Nesse resgate, Ingold faz uma aproximação da área de pesquisa do pai com a Antropologia, a qual seria também uma disciplina subversiva. Tanto o estudo dos fungos como a ciência antropológica conceberiam um mundo de relações intrinsecamente enredadas em vez de um universo já dividido em entidades discretas e autônomas. Especialmente, o fazer antropológico proposto por Ingold envolve questionar fronteiras bem definidas – seja entre tradições disciplinares, entre natureza e cultura ou entre pessoas e materiais. Em seu percurso de 40 anos de uma profícua produção acadêmica, guiado pela necessidade de romper invólucros, Ingold estabeleceu diálogos 20 com diferentes campos do conhecimento, desde a Psicologia e a Biologia Evolutiva até a Arte, o Design e a Educação, em seus trabalhos mais recentes. Ao dedicar esforço à tentativa de supe- ração das divisões forjadas na tradição do pensamento ocidental, o modo de fazer Antropologia que vai sendo proposto pelo autor envolve enredar-se em emaranhados de linhas, seguir fluxos, estar em correspondência com o mundo e trazer coisas de volta à vida. Com o intento de realizar uma primeira aproximação com as ideias do autor, não temos por objetivo passar por todas as obras e temas abordados por ele. Até o momento, foram mais de 50 artigos e 20 livros publicados desde 1976, data da edição de sua pesquisa de doutorado. Como percebe Otávio Velho (2012), Tim Ingold é um autor que vê suas ideias em constante desenvolvimento, não se aprisionando a certezas anteriores. Como forma de oferecer um guia introdutório de leitura desse percurso, são selecionados alguns momentos-chave da produção do autor, nos quais ele sintetiza avanços, abre campos de diálogo e reúne resultados de projetos de pesquisa de longa duração. Para isso, figuram como centrais as obras: Perception of the environ- ment: essays on livelihood, dwelling and skill (2000); Being alive (2011) – traduzida para o português como Estar vivo (2015a) −; e Anthropology and/as education, de 2018, também recentemente traduzida (INGOLD, 2020). Para cada momento será mencionado ao menos um artigo central a ele relacionado e que esteja publicado em português. Paralelamente, consideramos a recepção de suas ideias na América Latina e especialmente no Brasil e finalizamos com as implicações de suas proposições teóricas relacionadas à sua atuação na University of Aberdeen, onde lecionou entre 1999 e 2018, tendo fundado o Departamento de Antropologia. Nascido na Inglaterra em 1948, Tim Ingold iniciou seus estudos universitários na área das Ciências Naturais, tendo logo desistido e se orientado para a Antropologia, na busca por uma disciplina em fase de formação e, na sua ótica, com maior espaço para novos avanços. Em seus estudos de doutorado, realizou pes- quisa etnográfica junto ao grupo étnico Stolk Sami, no nordeste da 21 Finlândia, investigando questões relacionadas à adaptação ecológica e organização social. Ampliando suas pesquisas em direção a outros grupos de caçadores e coletores próximos ao círculo polar ártico, ele passa a enfocar o pastoreio e a criação de renas, desenvolvendo preocupações em torno da relação humano e animal. Em 1986, lança o livro Evolution and social life – recentemente traduzido em português (INGOLD, 2019a) – propondo um debate entre Antropologia e Biologia Evolutiva a respeito da evolução. Buscando superar limitações de ambas as tradições disciplinares, em um de seus primeiros textos traduzido no Brasil, o autor problematiza a distinção animalidade e humanidade (INGOLD, 1995). Enquanto biólogos evolucionistas compreendem uma linha gradual de conti- nuidade entre animais e humanos, antropólogos pressupõem uma visão dualista da humanidade – uma parte natureza e outra parte cultura. Para Ingold, ambas as abordagens são limitadoras e vão do etnocentrismo (na afirmação de uma escala de progresso entre animais e humanos) ao antropocentrismo (na afirmação de uma singularidade humana que beira a uma essência). Ao problema- tizar essas duas visões, Ingold abre caminho para pensar relações mais complexas, já buscando superar abordagens dicotômicas. Como professor na Universidade de Manchester, a partir de 1990, na continuidade do diálogo com a Biologia Evolutiva e também com a Ecologia, questiona a separação entre organismo e pessoa, problematizando a distinção cientificamente estabelecida entre evolução biológica do organismo e desenvolvimento social da pessoa (INGOLD, 1991). Partimos, então, dessa primeira problemática examinada por Ingold ao longo dos anos 1990 e sintetizada no livro Perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill, no qual ele desenvolve alguns conceitos-chave a partir da perspectiva do habitar (dwelling). Enskillment, educação da atenção e seus antecedentes Um ano após a publicação de Perception of the environment, Otávio Velho escreve um dos primeiros textos sobre o antropólogo britânico no Brasil, traçando uma relação entre as ideias de Ingold 22 e as de Gregory Bateson (VELHO, 2001). De fato, Bateson é um dos precursoresna tradição antropológica a questionar o pensamento baseado em dicotomias, tendo sido uma inspiração para Ingold. Na busca por entender a mente, Bateson chega à conclusão de uma inseparabilidade entre ela e o mundo exterior. Com isso, a unidade da sobrevivência da espécie não seria o organismo isolado – já que sua existência está diretamente enredada no entorno –, mas o organismo-em-seu-ambiente. Ao pensar essa indissociabilidade, Bateson se aproxima da ideia de sistema da Cibernética. Temos, então, circuitos totais, sendo a mente considerada imanente a todo o sistema de relações organismo-ambiente, em vez de estar confinada dentro de corpos individuais (INGOLD, 2000, p. 16). Em sua análise relacional, Bateson considera as diferenças como propriedades das relações e não das coisas em si. Em decorrência disso, acaba por questionar uma separação rígida entre as Ciên- cias da Natureza, que dariam conta de um mundo natural não humano e mais ou menos estático, e as Ciências Humanas, que se debruçariam sobre o humano e a subjetividade. Dessa forma, ele provoca a pensar o quão cara uma abordagem ecológica pode ser à análise antropológica, trazendo elementos para entender a natureza não apenas em oposição àquilo que é construído pelo ser humano, mas em uma situação relacional de interações. Enquanto Bateson desenvolve uma ecologia da mente, Ingold, pretendendo ir além, propõe uma ecologia da vida. Ele toma como questão a reflexão sobre a percepção, aproximando-se da ideia de ser-no-mundo da fenomenologia de Merleau-Ponty e, especialmente, da abordagem da Psicologia Ecológica de James Gibson. Na obra citada por Ingold como de maior influência para suas pesquisas, Gibson (1979) desafia a Psicologia e a Ciência Cognitiva de sua época, as quais tendiam a compreender a percepção como um processamento de informações que chegam por meio dos sentidos e são organizadas pela mente na forma de representações sobre o mundo. Tratava-se de uma analogia da mente como um computa- dor: ambos processariam inputs do exterior e produziriam outputs como resultados. Diferentemente, Gibson rejeita o fundamento 23 cartesiano deste modelo e deixa de conceber a mente como um órgão distinto, localizado em um corpo. Para ele, a percepção não é uma realização da mente num corpo, mas de todo o organismo no seu ambiente. A mente, dessa forma, não estaria dentro da cabeça, mas seria “imanente a uma rede de caminhos sensórios, que são organizados em virtude da imersão daquele que percebe, no seu ambiente” (INGOLD, 2000, p. 3). Assim, longe de ser uma reação passiva de um organismo que recebe estímulos externos, a percepção envolve um engajamento ativo no mundo. Com essas inspirações teóricas, Ingold leva adiante a ideia de que a percepção é uma forma de prática e não algo que precede a ação dos sujeitos. Ou seja, os modos de agir no ambiente são também modos de o perceber. Dessa maneira, aprender a per- ceber depende não da aquisição de um esquema para construir representações mentais sobre a realidade, mas de um processo de enskillment (habilitação), por meio do engajamento perceptivo direto com o mundo. Assim, ação e percepção são conectadas à ideia de skill – habilidade – a qual dá conta do processo pelo qual as pessoas desenvolvem suas consciências, capacidades e sensibilidades por meio de um envolvimento contínuo com constituintes humanos e não humanos de seus ambientes. Nesse sentido, entender o desenvolvimento de skills exige uma perspectiva que – seguindo Bateson, Gibson e Merleau-Ponty – compreenda agentes ambientalmente situados. Ingold nomeia essa abordagem como dwelling perspective, ou a perspectiva do habitar. Sob essa ótica, Ingold apresenta uma crítica ao culturalismo e ao interpretativismo, ou ao que nomeia de building perspective – a perspectiva da construção. Ou seja, ele rompe com a ideia de que a cultura é transmitida por meio de representações mentais, pela encodificação de significados, os quais seriam lidos pelos sujeitos após estes aprenderem o código de comunicação (INGOLD, 2000, p. 22). Diferentemente, para Ingold a aprendizagem se daria por meio de um processo de educação da atenção – termo que ele toma emprestado de James Gibson e que permanece até seus escritos mais recentes. Nesse processo, ao serem colocados em 24 determinada situação, os novatos desenvolveriam uma educação sensorial, isto é, aprenderiam a sentir, provar, assistir – em vez de serem meros receptores de significados mentais. Ingold chama a atenção para uma aprendizagem que se dá por meio dos rastros e pistas deixados pelos trajetos das gerações anteriores; por meio de canções, histórias etc. – e não pela via de uma apreensão de cifras ou códigos para decifração. Esse ponto, bastante central para desdobramentos posterio- res, é desenvolvido em artigo originalmente escrito em 2001, mas publicado em português em 2010: Da transmissão de representa- ções à educação da atenção. Nesse texto, em debate com a Ciência Cognitiva, Ingold procura superar a dicotomia inato e adquirido, argumentando no sentido de que capacidades não são internamente predefinidas nem externamente inculcadas. Não existindo nem dentro do corpo ou cérebro do praticante nem fora no ambiente, as capacidades são “propriedades de sistemas ambientalmente esten- didos que entrecortam as fronteiras de corpo e cérebro” (INGOLD, 2010, p. 16). As múltiplas habilidades dos serem humanos, portanto, emergem dos trabalhos de maturação no interior de campos de prática constituídos pelas atividades de seus antepassados. Assim, em vez de ter suas capacidades evolutivas “recheadas de estruturas que representam aspectos do mundo, os seres humanos emergem como um centro de atenção e agência cujos processos ressoam com os de seu ambiente” (INGOLD, 2010, p. 21). Desse modo, o que entendemos como aumento de conhe- cimento de uma pessoa não se dá pela transmissão de informa- ções, mas por um processo que Ingold chama de redescoberta orientada, na qual sujeitos mais experientes criam situações a partir das quais mostram algo ao iniciante, ou seja, tornam algo presente para ele, enfatizando um aspecto ou outro do que pode ser visto, de modo que o novato possa apreendê-lo diretamen- te, seja olhando, ouvindo ou sentindo (INGOLD, 2010, p. 20). O aprendizado, portanto, implica em uma afinação do sistema perceptivo. Consequentemente, quanto mais habilidoso é um praticante, mais ele consulta o próprio mundo e não esquemas 25 prévios: o que diferencia o especialista do relativamente iniciante não é a complexidade ou a escala de elaboração de seus planos ou representações, mas até onde ele pode prescindir disso (INGOLD, 2010, p. 18). Ou seja, contrariamente ao nosso senso comum, o conhecimento não seria precondição da prática habilidosa, mas o resultado emergente do praticar, já que ele não se encontra en- quanto um corpus de conteúdos ou regras independentes da ação. Nessa primeira fase de elaboração teórica, as ideias de Ingold envolveram a afirmação da relação indissociável entre organismo e ambiente; a ruptura com perspectivas culturalistas; e a ênfase nas habilidades (skills) emergentes por meio do engajamento prático. Essas elaborações encontraram ressonâncias em discussões realiza- das no Brasil e na América Latina, referentes a distintos contextos etnográficos. Em outubro de 2011, Tim Ingold fez uma visita ao continente, tendo estado presente em universidades brasileiras – UFRGS, UFMG e UnB – e na Universidad de la República del Uruguay, em Montevidéu. Nesta ocasião, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, participou de um seminário que visava pensar sua contribuição para uma mudança de paradigma, organizado por Carlos Steil e Isabel Carvalho. No evento, pesquisadores brasilei- ros, uruguaios e argentinos apresentaram suas pesquisas, as quais dialogavam com a perspectiva do antropólogo. Os temas desenvol- vidos incluíram a relação entre humanos e animais, darwinismo e,especialmente, religiosidade e questões ambientais. Durante o evento, Ingold teve a oportunidade de comentar as pesquisas apresentadas, tendo o debate resultado no livro Cultura, percepção e ambiente: diálogos com Tim Ingold (STEIL; CARVALHO, 2012). É interessante atentar que este seminário ocorria em um momento de mudança de rumo dos pensamentos do autor, o que se fez notar pelos comentários feitos por ele às aproximações que os pesquisa- dores do seminário realizaram a conceitos e preocupações teóricas que ele próprio estava deixando de lado. Era o ano de lançamento de Being alive (2011), o qual não havia sido incorporado totalmente pelos pesquisadores latino-americanos e representava outra fase no desenvolvimento teórico do autor. 26 Fluxos, linhas e emaranhados: encontro com Deleuze e Guattari A visita de Ingold ao Brasil, portanto, evidenciou o caráter inacabado de seu pensamento, que segue em direção a outras preocupações e novos parceiros de interlocução. Being alive (2011), que sintetiza os escritos do antropólogo referentes à primeira década do século XXI, faz uma revisão de ideias apresentadas em Perception of the environment (2000). Sua mudança de pers- pectiva se evidenciou também na palestra proferida na UFMG, em sua mesma visita ao país, intitulada Making, Growing, Lear- ning (2013a). Ingold deixa de enfatizar a interação organismo e ambiente – a qual parece ainda reificar polos separados de uma relação – e passa a atentar ao movimento da vida no qual tudo se enreda. O praticante passa a ser mais bem entendido como um viajante; ele não se situa em um lugar, mas se movimenta ao longo de caminhos. Não por acaso, Ingold se interessa pelo caminhar como uma forma de conhecimento (INGOLD; VER- GUNST, 2008). O autor vê sua perspectiva anterior do habitar (dwelling) como limitada para abarcar a primazia do fluxo da vida. Ele então considera a passagem (wayfaring) como o modo fundamental pelo qual os seres vivos habitam o mundo: “cada ser deve ser imaginado como a linha de seu próprio movimento ou – mais realisticamente – como um feixe de linhas” (INGOLD, 2011, p. 12). A tarefa da pesquisa antropológica, portanto, seria estudar os devires humanos na medida em que se desdobram na malha do mundo – o que ele chama de uma Antropologia imersa na vida. Ao assumir esse ponto de vista, o antropólogo estabelece aproximações com as ideias de Gilles Deleuze e Felix Guattari desenvolvidas em Mil platôs (DELEUZE; GUATTARI, 1995). Ingold (2011, p. 14) admite um contato tardio com esses autores e a surpresa ao perceber que eles já enunciavam, nos anos 1980, as conclusões a que ele estava chegando naquele momento. Em decorrência da ênfase no movimento, no artigo “Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de 27 materiais”, traduzido para o português em 2012, Ingold desenvolve uma crítica ao chamado modelo hilemórfico para pensar a criação. Tal modelo remete à concepção aristotélica de que a produção ocorre por meio da junção de forma (morphé) e matéria (hyle) – esquema que fundamenta o conhecimento ocidental em diversas áreas. Ao contrário, com Deleuze e Guattari, Ingold propõe que se desloque o foco da forma e da matéria e se atente para as forças e os materiais. Ele propõe uma “ontologia que dê primazia aos processos de formação ao invés do produto final, e aos fluxos e transformações dos materiais ao invés dos estados da matéria” (INGOLD, 2012, p. 26). Ao sugerir trazer as coisas à vida, Ingold as opõe ao conceito de objeto – o qual é entendido como algo acabado, fechado ao exterior. Sob outra ótica, ele entende que coisas vazam, transbordam superfícies temporárias. Uma árvore ou uma casa são coisas que estão a todo momento sendo feitas e, assim como o fungo que seu pai estudava, não é possível dizer onde começam e onde acabam. Dessa maneira, em diálogo com as Artes, Ingold concebe a criatividade como um movimento para frente, e não como uma busca de sentido que parte do objeto acabado e caminha para trás, até a mente do agente que o teria concebido. Neste ponto, o autor se coloca em oposição à noção de abdução da agência, de Alfred Gell (2018), o qual situa o agente e sua intencionalidade como causa dos eventos. Para Gell, a obra de arte é compreendida a partir do estabelecimento de uma cadeia de conexões causais que vai do objeto até o agente. Ingold se opõe a esta perspectiva, pois em sua ótica o mundo e as coisas nunca estão prontos. Dessa forma, o sentido da criação não reside em um conceito mental anterior, mas está no movimento de seguir os processos, improvisando e juntando-se a eles: “Improvisar é seguir os modos do mundo à medida que eles se desenrolam, não conectar, em retrospecto, a uma série de pontos já percorridos” (INGOLD, 2012, p. 38). Aqui novamente Ingold se liga a Deleuze e Guattari, na medida em que estes apresentam a ideia de itineração, em contraposi- ção à iteração. O praticante seria um itinerante; sua produção 28 comunga com seu próprio percurso de vida. Ainda sobre isso, Ingold desenvolve a noção de correspondência (INGOLD, 2011), que aparecerá com maior aprofundamento em escritos mais recentes (INGOLD, 2016b), referindo-se ao processo de alinhar os próprios movimentos às trajetórias das coisas que crescem. Nessa lógica, o antropólogo passa a defender que se considere o habitar um ambiente sem objetos, em contraposição ao ocupar um mundo cheio de objetos, como se estes estivessem trancados em suas formas finais. Na primeira perspectiva, habitar refere-se a juntar-se ao mundo em seu processo de formação, misturando-se a ele. O ambiente sem objetos – que depois ele nomeia mundo sem objetos (INGOLD, 2012) – é um mundo de matéria em fluxo, de materiais. Estar no mundo é seguir esses materiais, ou seja, os praticantes no ambiente sem objetos não imprimem forma à matéria, mas sua tarefa é “reunir materiais diversos e combinar e redirecionar seu fluxo tentando antecipar aquilo que irá emer- gir” (INGOLD, 2012, p. 36). Assim, ao questionar invólucros e fronteiras, Ingold se opõe a teorias da agência dos objetos. Além da perspectiva de Alfred Gell, sua crítica também se direciona à Teoria Ator-Rede, de Bruno Latour. Na perspectiva de Ingold não faz sentido pensar em humanos e não humanos que se conectam em rede, já que esta delimitaria pontos de contato. Ingold prefere pensar em termos de uma malha, de um emaranhado de linhas. É nos fluxos e contrafluxos e não como entidades conectadas, com limites exteriores, que as coisas entram em movimento. Levar os materiais a sério significa situá-los neste fluxo vital de formação e não lhes conferir agência ou “tratar os objetos como pessoas”, como defende Gell (2018). Ao pensar em termos de linhas de fluxo e não linhas de conexão, Ingold aproxima-se da ideia de linhas de fuga e linhas de devir. Estas não conectam, mas passam entre pontos; atravessam pelo meio deles (INGOLD, 2012, p. 38). Sua tese de que a vida se desenvolve ao longo de linhas, não sendo fechada em pontos ou lugares, deu origem a dois livros sobre o tema – Lines: a brief history (2007) e The life of lines (2015b). Ao propor uma Antropologia Comparativa da Linha 29 (2007), Ingold (2015b) se intitula um linealogista – um estudioso das linhas. No primeiro livro, o antropólogo analisa diferentes práticas que, segundo ele, apresentam esse desenrolar por meio de linhas – caminhar, tecer, observar, cantar, contar histórias, desenhar e escrever figuram como exemplos. Em sua argumen- tação, há uma crítica à tentativa da modernidade de impor linhas retas, relacionadas à estipulação de regras impessoais, que não dão conta da sinuosidade dos caminhos. Em nosso modo de vida ocidental, noções de ética e moral são relacionadas à retidão ou ao não sair da linha – como se houvesse um tracejo (trajeto) inscrito previamente. Do contrário, as linhas que Ingold põe em evidência dão conta do movimento, relacionam-se às singularidades dos processosda vida que cresce. Nesse sentido, Ingold mostra-se um defensor da caligrafia e do desenho como práticas que têm menos a ver com a imposição de imagens e mais com o percorrer trajetos (INGOLD, 2007). Assim, é junto da investigação sobre as linhas que Ingold vai se aproximando cada vez mais da Arte e do Design e de seus processos de fazer. Nesse proceder, acaba propondo um repensar da própria Antropologia, descentrando o foco da etnografia como definidora das práticas da disciplina. O ensino como campo de investigação: aprender pelo fazer Entre 2002 e 2005, Ingold participou do projeto de pesquisa “Aprender é compreender na prática: explorando as inter-rela- ções entre percepção, criatividade e skill”,1 em uma parceria do Departamento de Antropologia da University of Aberdeen com a Escola de Belas Artes da University of Dundee. O projeto envolveu pesquisa etnográfica junto a estudantes de Dundee e, em Aberdeen, um estudo da aplicabilidade de abordagens práticas, inspiradas nos estudos de projetos, para o ensino e aprendizagem de Antropologia (INGOLD, 2007, p. x). De modo 1 No original: “Learning is understanding in practice: exploring the interrelations between perception, creativity and skill”. 30 a “dar um contexto” à segunda parte do projeto, Ingold criou e ministrou o curso “The 4 As: Anthropology, Archaeology, Art and Architecture”, de 2004 a 2006. Nesse curso, pretendeu desenvolver uma proposta de ensino que estivesse em consonância com suas proposições teóricas sobre aprendizagem: partindo da premissa de que o conhecimento não é transmitido como um conjunto de conteúdos e regras, ensinar apenas por meio de palestras e seminários parece estar em contradição com essa perspectiva. Dessa forma, a proposta do curso previa a realização de oficinas práticas envolvendo o contato direto com materiais e seu estudo em diferentes perspectivas e aprofundamentos. Tratava-se não de uma Antropologia da Arte, da Arquitetura etc., mas uma Antro- pologia com essas outras tradições disciplinares. Essa experiência deu origem a reflexões contidas em diferentes artigos e livros do autor, sendo detalhada na obra Making (2013b). Segundo Ingold, Antropologia, Arqueologia, Arte e Arquite- tura são reunidas a partir de seus potenciais modos de pensar por meio do fazer, como alternativa ao fazer por meio do pensar, o qual tende a criar uma divisão entre teóricos e práticos (INGOLD, 2013b, p. xi). Dito de outro modo, as quatro disciplinas propiciam o que ele chama de conhecer desde dentro: a observação participante, a escavação arqueológica, as produções artísticas e arquitetônicas possuem em comum o fato de ocorrerem mediante correspondência com o mundo. Conhecer pelo fazer, para Ingold, tem sempre um caráter processual, envolve uma jornada, um acompanhar desdo- bramentos, não é adquirido, mas cresce, já que as propriedades dos materiais não são fixas, mas são continuamente emergentes. Na ótica do autor, propriedades não são atributos, mas são histórias – os praticantes conhecem os materiais ao conhecerem as histórias “daquilo que eles fazem e do que acontece a eles quando tratados de modos particulares” (INGOLD, 2013b, p. 31). Ao atentar à fluidez, Ingold questiona a lógica científica, que tende a tratar os materiais como objetos – como se eles já fossem e não como subs- tâncias que estão sempre se tornando. As histórias resistiriam aos projetos de classificação. Para o antropólogo, o ato de descrever 31 algo não pressupõe uma diferenciação em categorias, mas implica colocar uma questão, a qual só pode ser respondida por meio da observação e de um engajamento com este algo. No livro Making, analisando casos específicos das quatro disciplinas que contempla em seu projeto, Ingold vai desmanchando a noção de objetos acabados, demonstrando que são fruto de uma modernidade que busca ordem e segmentação. Do mesmo modo em que o surgimento da ciência distinguiu teoria especulativa e prática experimental, a Arquitetura Moderna, ao profissionalizar o ofício da construção, criou a ideia de que uma forma é julgada como a realização de um design preexistente. Ao argumentar o contrário, Ingold resgata o caráter inacabado das catedrais da Idade Média. Para os construtores medievais, desenhar não era uma projeção visual de uma ideia já formada no intelecto, mas uma “arte de tecer com linhas” (INGOLD, 2013b, p. 55). O desenho era propriamente um processo de trabalho e não um projeto da mente. Nesse sentido, os desenhos eram mais descritivos do que prescritivos, eles iam acompanhando o próprio movimento de construção das catedrais. Ou seja, um conhecimento que vai se construindo por meio de um movimento de correspondência e não pelo distanciamento intelectual: “Corresponder ao mundo não é descrevê-lo ou representá-lo, mas responder a ele” (INGOLD, 2013b, p. 108). Ou seja, compor com as diferentes resistências que os materiais vão impondo, fluir com eles, encontrar um ritmo. As reflexões desenvolvidas a partir de um projeto de ensino interdisciplinar fizeram com que Ingold trouxesse implicações para a prática educacional, aproximando-se de autores do campo da Educação. No artigo “O dédalo e o labirinto: caminhar, imaginar e educar a atenção”, Ingold (2015c) desenvolve duas formas de compreender a Educação. A primeira delas, que fundamenta o modelo escolar baseado na sala de aula, tem seu sentido ligado ao verbo latino educare, que significa cultivar, inculcar um padrão de conduta. Para uma compreensão alternativa, Ingold busca uma variante etimológica que liga a educação ao verbo educere – como ex (fora) + ducere (levar). Nesta última acepção, educar 32 pode ser entendido como levar os alunos para o mundo lá fora, em vez de inculcar conhecimentos dentro de suas mentes. Para melhor compreender as diferenças entre esses dois sentidos, In- gold usa as metáforas do dédalo (maze) e do labirinto (labyrinth). No primeiro deles, há uma ênfase na intencionalidade do sujeito, o qual delibera previamente o caminho que irá seguir; a intenção é a causa e a ação é o efeito. Por outro lado, no labirinto o sujeito não faz escolhas prévias, mas segue os sinais que o caminho mostra ao ser percorrido. O aprendiz, ou caminhante, consulta a realidade e não um plano mental anterior – ou seja, o labirinto se liga também à ideia de correspondência. Com isso, Ingold (2015c, p. 32) faz uma crítica à tradição escolar ocidental que, segundo ele, tem imposto a primazia do dédalo em detrimento da lógica do labirinto, da tentativa de controle ante a submissão ao mundo, convertendo a imaginação em uma capacidade de representar fins antes de sua consecução. Ao desenvolver essa crítica, Ingold admite forte influência do filósofo Jan Masschelein e sua ideia de “pedagogia pobre”, na qual o sujeito se expõe à experiência; ao risco e à vulnerabilidade que isto implica. Assim como Ingold leva as consequências de sua teoria para a própria prática educacional, sua busca por dar primazia a pro- cessos e não a produtos acabados faz com que passe a desenvolver uma crítica à centralidade da etnografia no fazer antropológico. Ao vê-la como uma prática de descrição, Ingold afirma que a escrita etnográfica provocaria uma “distorção temporal que faz com que o resultado dos encontros com as pessoas apareça como sua condi- ção prévia” (INGOLD, 2016c, p. 406), já que o caráter etnográfico não seria intrínseco aos encontros, mas um julgamento posterior lançado a eles. O dilema entre vivenciar a observação participante e narrar o que aconteceu, na ótica do autor, promove um apartar entre o estar no mundo e o conhecer sobre ele. Mais do que uma prática de escrever sobre pessoas, Ingold defende que o foco da Antropologia seja propriamente a educação da atenção, o proces- so de corresponder com o mundo por meio de uma participação atenta. Ou seja, a disciplina teria menos a ver com a representação 33 ou descrição da realidade e mais com um movimento que acoplaa própria percepção ao movimento dos outros – respondendo aos acontecimentos com intervenções, questões e respostas, isto é, vivendo atencionalmente com os outros (INGOLD, 2016c, p. 408). Este seria o compromisso ontológico da Antropologia, ou seja, ela seria propriamente uma prática de educação no sentido contido na palavra educere, relacionando-se ao processo de exposição ao mundo. Para apresentar um exemplo desse jeito não apenas descritivo de fazer Antropologia, mas em tempo real (GATT; INGOLD, 2013), Ingold e a antropóloga Caroline Gatt analisam a pesquisa que ela realizou com ambientalistas no Brasil. O objetivo de Gatt era com- preender como uma organização não governamental internacional funcionava e se mantinha. Ao longo do trabalho de campo, ela identificou que seus interlocutores de pesquisa tinham questões muito semelhantes às dela, já que a manutenção da organização, via projetos e financiamentos, era uma preocupação constante. Dessa forma, no desenrolar da pesquisa, os próprios interlocu- tores demandaram que Gatt, por estar realizando observações e entrevistas, construísse um diagrama organizacional, de modo que eles pudessem utilizá-lo nos planejamentos de suas atividades. A autora considera este diagrama um artefato antropológico pro- jetado dialogicamente (GATT; INGOLD, 2013, p. 152), o qual teve consequências tanto para as práticas dos ativistas da ONG quanto para as análises de sua tese de doutorado. O modo colaborativo com que a pesquisadora participa nas práticas de seus interlocu- tores, produzindo algo in situ e não apenas uma escrita posterior, se relaciona ao que Ingold teoriza como estar em correspondência. A crítica de Ingold à dimensão apenas descritiva da An- tropologia também inclui uma reflexão sobre seus espaços de produção. Ao mesmo tempo que percebe uma banalização do termo etnografia – utilizado para qualquer trabalho que um antropólogo realize – Ingold nota que ele sempre se refere a atividades que ocorrem em outro lugar. Não são qualificadas como etnográficas as práticas dos antropólogos na própria aca- demia, nas aulas ou nos eventos científicos. Nesse sentido, Ingold 34 dá destaque à relação estabelecida com estudantes na própria produção do saber antropológico. Da mesma maneira como ele entende a Antropologia como um modo de educação; ele percebe as práticas educativas como espaços onde o saber antropológico é coproduzido. Essa aproximação com a Educação é explorada mais detalhadamente no livro Antropologia e/como Educação (2020), no qual Ingold estabelece diálogo com o filósofo John Dewey, a partir de sua crítica à Educação como transmissão de conteúdos. Dewey chama a atenção para a importância da inte- gração da Educação às relações sociais dos alunos, explorando o problema do hábito e a conexão entre Educação e democracia. Ainda estendendo suas reflexões teóricas para a prática na Universidade, em outubro de 2015, Ingold iniciou uma campanha na Universidade de Aberdeen chamada Reclaiming our University com objetivo de reivindicar aquele espaço para as pessoas e resgatar o senso de comunidade da Universidade. O movimento visou fazer frente a um “regime de gestão que parecia se dobrar aos interesses corporativos em detrimento da responsabilidade democrática” (INGOLD, 2017, p. xi). Nesse movimento foi realizado um conjunto de seminários envolvendo professores e estudantes, culminando na elaboração de um manifesto que apresenta quatro pilares para reconstruir a Universidade: liberdade acadêmica, confiança, educação e comunidade.2 O livro Antropologia e/como Educação (2020) é bastante afetado por este movimento, tendo um dos capítulos dedicado a discutir as questões que o suscitaram. Além do impacto na gestão universitária, Ingold identifica a influência neoliberal na crescente tendência de medição da produção cien- tífica por meio de fatores de impacto e sob uma lógica utilitarista, o que, segundo ele, tem afastado a ciência do compromisso com a verdade. À serviço da inovação, a curiosidade teria se apartado da liberdade e responsabilidade (INGOLD, 2020). 2 O manifesto e mais informações sobre o movimento podem ser encontrados em: http:// reclaimingouruniversity.wordpress.com. 35 Para fazer frente a esse movimento, Ingold defende uma reaproximação do fazer científico com a Arte. Quando evoca as pesquisas realizadas por seu pai no campo da Micologia, Ingold enfatiza o caráter artesanal que elas possuíam. O biólogo observava os fungos e cuidadosamente os desenhava, tornando seu trabalho científico bastante próximo a um fazer artístico (INGOLD, 2016a). Nesse resgate, Ingold percebe que ao longo de sua própria trajetória foi cada vez identificando mais seu fazer antropológico com o fazer da Arte. Ela propiciaria um campo maior de experimenta- ção e colaboração com o fluxo dos materiais, abrindo-se a uma prática atencional – algo do qual os protocolos científicos estão cada vez mais se distanciando. Quando reivindica a dimensão experimental e especulativa da Antropologia (INGOLD, 2015b), o autor advoga que se estude com outros praticantes e saberes e não que se faça estudos sobre eles – juntar-se às pessoas em busca de respostas e não apenas coletar dados para reflexão posterior. Ao definir uma interdisciplinaridade antidisciplinar (INGOLD, 2017), propõe não uma interação entre disciplinas, mas que elas compartilhem e se engajem em questionamentos comuns, que correspondam. Desse modo, fruto da correspondência com o fazer das disciplinas parceiras de seus projetos, outra impor- tante contribuição do autor é o desafio lançado de se construir conhecimento antropológico a partir do fazer. Em sua mais recente pesquisa, chamada “Knowing from the inside: Anthropology, Art, Architecture and Design”, realizada entre 2013 e 2018, além de aprofundar a produção conjunta entre as quatro disciplinas, Ingold teve por objetivo experimentar um fazer antropológico que resultasse não apenas em produções escritas, mas em obras, performances e instalações artísticas. Suas reflexões contribuem para o debate que tem tomado corpo recentemente acerca dos usos do desenho na formação de antro- pólogos e na pesquisa antropológica.3 Além disso, o trabalho de Ingold não somente abre possibilidade a outros modos de fazer 3 Ver, por exemplo, Kushnir (2016), ao apresentar dossiê publicado sobre o tema. 36 Antropologia – por meios artísticos ou do Design –, mas também impacta o fazer das disciplinas com que se dispõe a trabalhar em conjunto. Suas ideias, junto com as dos pesquisadores parceiros nos projetos de ensino e pesquisa, influenciam a emergência do campo de investigação que tem sido chamado “Design Anthro- pology” (GUNN; OTTO; SMITH, 2013). Essa tendência aparece no Brasil com a criação de espaços como o Laboratório de Design e Antropologia da ESDI/Uerj (ANASTASSAKIS, 2013). Vemos, portanto, potenciais ainda a serem descobertos a partir da vasta produção de Tim Ingold, e de seu convite a ultrapassar fronteiras na busca por corresponder a uma vida que flui. Ainda em 2018, ano de sua aposentadoria da University of Aberdeen, Ingold lança o livro Anthropology: why it matters – lançado no Brasil como Antropologia: para que serve (INGOLD, 2019b) –, como um legado às novas gerações de antropólogos. Divergindo de debates clássicos da disciplina, Tim Ingold não define o relato etnográfico, produto da pesquisa de campo, como sendo a principal contribuição da Antropologia. Retomando argumentos anteriores, reafirma que o diferencial do fazer antro- pológico é justamente seu processo de produção – a observação participante – com seu potencial de educação da atenção, isto é, de desenvolver habilidades de percepção a partir do engajamento sensível com o entorno. Desse modo, o principal resultado da pesquisa antropológica não residiria na escrita, mas no ensino – justamente na educação de novas gerações. Nesse sentido, ao atentar para a dimensão educacional (ou transformacional)da Antropologia, Ingold (2013b) dá visibilidade para aspectos do fazer antropológico até então pouco levados à reflexão. Ao olhar para a Universidade como campo de prática de antropólogas e antropólogos, Ingold trata de considerar o ensino não apenas como espaço de reprodução de saberes, mas como locus de produção de conhecimento. Além disso, na medida em que situa o Ensino e a Educação como aspectos centrais em sua teoria, Ingold apresenta importante contribuição para o diálogo entre Antropologia e 37 Educação – campo ainda pouco explorado, especialmente no Brasil, e ainda bastante permeado por concepções culturalistas. Referências ANASTASSAKIS, Zoy. Laboratório de Design e Antropologia: preâmbulos teóricos e práticos. Arcos Design, v. 7, n. 1, p. 178-193, jul. 2013. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. GATT, Carolina; INGOLD, Tim. From description to correspondence: anthropology in real time. In: GUNN, Wendy; OTTO, Ton; SMITH, Rachel Charlotte (eds.). Design anthropology: theory and practice. A&C Black, 2013. GELL, Alfred. Arte e agência. São Paulo: Ubu, 2018. GIBSON, James. The ecological approach to visual perception. Boston: Houghton Mifflin, 1979. GUNN, Wendy; OTTO, Ton; SMITH, Rachel Charlotte (eds.). 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Johannes Fabian Paulo Ricardo Müller Johannes Fabian é mais conhecido por sua crítica ao modo como a Antropologia tende a enquadrar o “outro” em cate-gorias temporais que promovem a negação do que chama de coetaneidade entre as sociedades estudadas por antropólogos e as sociedades dos próprios antropólogos. No lugar de represen- tações que considera “presentistas”, ou seja, que reificam as formas culturais pelas quais interlocutores de pesquisa se apresentam ao pesquisador, Fabian sugere que a descrição etnográfica deve ex- plicitar os acordos e convenções estabelecidos intersubjetivamente entre o etnógrafo e seus interlocutores, que conferem eficácia, fidedignidade ou verossimilhança a seus textos. Essa crítica é a espinha dorsal de seu livro O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto, publicado pela primeira vez em 1983 e apenas mais recentemente, em 2013, foi traduzido e publicado no Brasil. Evidentemente os argumentos que sustentam tal crítica resul- tam de um acúmulo de debates a respeito de como antropólogas e antropólogos devem abordar interlocutores de pesquisa em campo e se referir a eles em suas monografias, bem como de aprendizados com interlocutores em campo a partir de seus questionamentos a respeito dos propósitos e da repercussão do que revelam aos etnógrafos. O aprendizado etnográfico a que me refiro traduz-se em uma série de mudanças na perspectiva de Fabian ao incorporar 40 como categorias antropológicas as noções e concepções de seus in- terlocutores sobre si mesmos e seu contexto sociocultural. Procuro, com isso, evidenciar a dimensão programática de sua abordagem na busca não apenas por validação de suas interpretações, mas sobretudo por mudanças progressivas na disciplina antropológica rumo a uma postura mais engajada no reconhecimento e valorização das formas de pensar não hegemônicas do mundo contemporâneo. Fabian nasceu em 1937 na cidade alemã de Glogau, na região da baixa Silésia, território historicamente marcado pela divisão geopolítica regional. No período feudal a maior parte do território pertenceu à Polônia. Tomado pela Prússia no final do século XIX, foi incorporado à Alemanha no processo de unificação do país no início do século XX. Após a Segunda Guerra Mundial, a baixa Silésia foi devolvida à Polônia como parte de indenizações devidas pela Alemanha. Ao longo de sua infância e juventude, Fabian viveu em diferentes cidades silesianas, alternando períodos de residência na Alemanha e Polônia e adquirindo tanto o alemão quanto o polonês como primeiras línguas. Como sugere o próprio Fabian (2010), tais experiências operaram como fontes de questionamento pessoal sobre temas como a linguagem e a comunicação humanas que mais tarde se converteram em tópicos de investigação etnográfica durante sua formação e atuação como antropólogo. Nos anos 1950, Fabian mudou-se para Bonn e depois para Viena, onde teve um primeiro contato com a Antropologia como aluno de seu conterrâneo Paul Schebesta, etnólogo missionário especialista nos povos Pigmeu da África Central. Obteve o dou- torado em 1966 pela University of Chicago, onde atuou como pesquisador da equipe de Lloyd Fallers em uma linha de pesquisa sobre conflitos entre Estados e grupos étnicos no continente africano, com uma tese sobre o Jamaa, movimento religioso carismático do sudeste do Zaire1 (FABIAN, 1971a). Foi professor 1 Zaire foi o nome oficial da atual República Democrática do Congo adotado pela ditadura de Joseph-Desiré Mobutu (1971-1997) como parte de uma política de africanização da identidade nacional. Para além dos topônimos do país, também todos os cidadãos zairenses que tivessem nomes ocidentais deveriam modificá-los 41 de Antropologia em diferentes universidades norte-americanase no Zaire, até se estabelecer, em 1980, como catedrático de An- tropologia Social e Cultural na University of Amsterdam. Para melhor compreendermos a relevância das contribuições de Fabian para o campo antropológico é necessário analisarmos como seu aprendizado etnográfico repercute em seu posiciona- mento crítico em relação às bases da Antropologia Moderna e em sua proposta de etnografia como “exercício de compartilha- mento do tempo” (FABIAN, 2006). Para tanto, na primeira parte do capítulo, apresento brevemente a etnografia do Jamaa, que serve de fonte de inquietações do autor a respeito da construção teórica do objeto de pesquisa na Antropologia; na segunda parte, reconstituo o posicionamento de Fabian em debates acerca das dimensões éticas e epistemológicas do trabalho de campo etno- gráfico, momento em que esboça as críticas que vieram a marcar sua carreira e redireciona sua produção intelectual para os temas da comunicação, linguagem e intersubjetividade; na terceira e na quarta partes, apresento as principais obras de Fabian a respeito da cultura popular do Zaire, nas quais o autor não apenas desen- volve temas de pesquisa diversos como também operacionaliza sua concepção de etnografia; o capítulo termina com um balanço entre críticas e apropriações da proposta conceitual de Fabian. Etnografia de um “movimento” carismático na África Central Johannes Fabian realizou seus primeiros trabalhos de campo no sudeste do Zaire ao longo das décadas de 1960 e 1970 com adeptos do Jamaa, um movimento religioso carismático2 para nomes africanos. O próprio ditador passou a chamar-se Mobutu Sese Seko. Sempre que me referir à etnografia de Fabian utilizarei o nome Zaire pois também é como o autor se refere ao contexto de sua etnografia na região, que se desenvolveu predominantemente nesse período e abordou os efeitos dessa política de africanização sobre as vidas de seus interlocutores de pesquisa. 2 Como veremos ao longo do capítulo, em seus trabalhos Fabian seguidamente proble- matiza o rótulo “movimento carismático” para se referir a determinadas atividades sociais religiosas. Entretanto, como conceito operacional e recurso heurístico, carisma remonta aos estudos de Weber sobre o papel dos profetas em diferentes religiões teístas 42 baseado na doutrina católica romana fundado por seguidores do missionário franciscano belga Placide Tempels. O missionário fundou e coordenou uma escola católica na província de Shaba (hoje Katanga) onde viveu entre as décadas de 1930 e 1960. No campo dos estudos africanos, Tempels é mais conhecido como autor do compêndio Filosofia Bantu, no qual apresenta a tese de que as populações da África subsaariana formadas a partir do tronco etnolinguístico Bantu são portadoras de uma ontologia própria revelada pelo modo como estas populações explicam a origem de forças vitais que movem o mundo. Para compreendermos a análise do Jamaa por Fabian é necessário entendermos o modo como a obra de Tempels se consolidou como fonte historiográfica, etnográfica, teológica e política para se pensarem as relações coloniais na África Central. Publicada nos anos 1940, Filosofia Bantu foi muito criti- cada na Europa, inicialmente por atribuir categorias filosóficas ocidentais (ontologia, ética, lógica) às sociedades africanas, concedendo racionalidade às sociedades consideradas primi- tivas. A partir dos anos 1960 novas críticas surgiram oriundas do pan-africanismo, que apontavam mais para o eurocentrismo e a implicação da perspectiva de Tempels no projeto de con- versão e, portanto, de colonização das populações do Congo (ÉBOUSSI-BOULAGA, 1977; HOUNTONDJI, 1976). A despeito das reservas com que a obra de Tempels fora recepcionada nos meios acadêmico e literário pelos quais circulou, Filosofia Bantu contribuiu para a consolidação do reconhecimento de sistemas africanos de pensamento lógico e a produção de aproximações e traduções entre ideias e conceitos expressos em línguas na- tivas e coloniais na África Central. No campo missionário, a abordagem de Tempels representou a confirmação da eficácia das estratégias de inserção prolongada tanto de ordens cató- e suas estratégias de racionalização e rotinização das propriedades pessoais que os alçam a postos de liderança, institucionalizando-se como modelos de conduta e, assim, perpetuando-se em posições de poder (FABIAN, 1969a). 43 licas quanto protestantes em diversas partes do mundo, da qual resultou um vasto arcabouço de estudos etnográficos3 e linguísticos utilizados não apenas para conhecimento dos mis- sionários europeus, mas também para a instrução e formação de quadros nativos estrategicamente recrutados para replicar seus processos de conversão no interior das colônias. Missionários baseavam-se nesse reconhecimento de uma certa tradutibilidade entre categorias nativas e ocidentais para postular a existência de uma afinidade inata entre valores morais expressos em línguas africanas e conceitos cristãos ensinados nas línguas europeias (DULLEY, 2010). Difundiu-se, assim, a concepção de que as sociedades africanas, especialmente as da África Central, seriam portadoras de um cristianismo natural, e que cabia aos missionários educar e dirigir esta disposição, elevando-a a uma forma edificada e civilizada de religiosidade. Seguindo essa lógica, a evangelização cristã não se apresentava propriamente como um processo de inculcação de valores ex- ternos, mas como revelação ou tomada de consciência de valores preexistentes nas sociedades africanas. Uma das táticas de inserção e legitimação das missões eu- ropeias na África consistia em formar missionários nativos para serem apresentados como exemplos de conversão em diferentes comunidades e aldeias. Na medida em que difundiam seus tes- temunhos, alguns desses missionários nativos passaram a ter seguidores e discípulos que reivindicavam sua liderança à parte das igrejas europeias, o que em alguns casos resultou na fundação de novas igrejas. Originaram-se daí os movimentos ou religiões proféticas, messiânicas e carismáticas, assim chamadas por se estruturarem em torno de líderes ou guias espirituais reconhecidos como autoridades sobre a interpretação de escrituras e cujas tra- jetórias de vida passaram a ser tomadas como modelo e referência 3 Esse arcabouço, especialmente as chamadas etnografias missionárias, vem sendo ana- lisado por diversos estudos antropológicos de arquivos coloniais. Ver, por exemplo, Montero (2006) e Araújo (2014). 44 de conduta pessoal por parte de seus seguidores (MacGAFFEY, 1983; SARRÓ; MELICE, 2010; BLANES, 2009; 2011). Os primeiros movimentos cristãos proféticos da África subsaariana surgiram na região do baixo Congo, onde hoje se localizam as fronteiras da República Democrática do Congo com a República do Congo (antigo Congo Francês, doravante Congo-Brazzaville) e com Angola, processo que foi analisado por Balandier (2014) em sua clássica formulação do conceito de situação colonial. Segundo Balandier, para se compreender a situação colonial das sociedades africanas era necessário analisar o acúmulo de condições a partir das quais a divisão da sociedade colonial – o território e o conjunto de populações sob um determinado governo colonial – em sociedade colonizadora e sociedade colonizada era colocada em evidência e questionada publicamente, gerando crises de legitimidade dos regimes co- lonialistas. Os movimentos proféticos eram considerados em- blemáticos deste processo, tanto por sua autonomia em relação às igrejas europeias quanto por reivindicarem um cristianismo “autenticamente africano”. Esse discurso de “autenticidade” emulava a retórica de movimentos nacionalistas anticoloniais e independentistas, razão pela qual os movimentos proféticos eram considerados potencialmente subversivos e, por isso, reprimidos e perseguidos pelos regimes coloniais. Fabian argumenta que o Jamaa, embora oficialmente fos- se enquadrado como um desses movimentos, tinha algumas
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