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Medida Normalização e Qualidade Aspectos da história da metrologia no Brasil Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo _ MICT Ministro José Botafogo Gonçalves Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial _ Inmetro Presidente Julio Cesar Carmo Bueno Centro de Informação e Difusão Tecnológica _ Cidit Chefe Paulo Roberto Braga e Mello José Luciano de Mattos Dias Medida Normalização e Qualidade Aspectos da história da metrologia no Brasil Inmetro _ Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial Rio de Janeiro, 1998 © Inmetro _ Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial, 1998 Printed in Brazil / Impresso no Brasil ISBN 85-86920-02-9 Inmetro _ Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial Cidit _ Centro de Informação e Difusão Tecnológica rua Santa Alexandrina 416, 8º andar 20261-232 Rio de Janeiro RJ tel: (021) 563-2850 e-mail: cidit@inmetro.gov.br Ficha catalográfica DIAS, José Luciano de Mattos. Medida, normalização e qualidade; aspectos da história da metrologia no Brasil. Rio de Janeiro: Ilustrações, 1998. 292 p. 1. Metrologia _ História _ Brasil. 2. Normalização. 3. Qualidade. 4. Tecnologia _ história. I. Autor. I. Título. CDU 389.1:001.12(81) Sumário Apresentação 7 Introdução 9 1 Ciência e política: a formação dos sistemas de pesos e medidas 11 2 Metrologia no Império do Brasil 33 3 Medida, ciência e indústria 71 4 A legislação metrológica do Estado Novo 93 5 Do Instituto Nacional de Pesos e Medidas ao Inmetro 129 6 Metrologia, normalização e qualidade industrial 165 Notas 209 Bibliografia 229 Anexos 235 Apresentação O Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial _ Inmetro _ quer acompanhar a sociedade brasileira em seu movimento de transformação. A continuidade do processo democrático e a abertura econômica no Brasil nos anos 1990 exigem um Estado cada vez mais eficiente e atento às demandas do cidadão, e o Inmetro pretende ser hoje um elemento dinâmico na modernização da administração pública brasileira. Suas tarefas _ a pesquisa científica, o apoio ao desenvolvimento tecnológico, a defesa do cidadão e do meio ambiente _ não serão, contudo, cumpridas sem a devida compreensão de sua dimensão histórica. O trabalho que hoje apresentamos representa o reconhecimento desta dimensão. Ele é fruto de um projeto do Inmetro para a preservação da história da metrologia e das políticas governamentais de normalização e qualidade no Brasil, realizado pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getulio Vargas. O livro Medida, normalização e qualidade; aspectos da história da metrologia no Brasil traz à luz os rumos de uma história iniciada em 1830, com a primeira proposta de adoção do sistema métrico decimal. Essa história sempre se identificou, em seus sucessos e fracassos, com os esforços governamentais em defesa do consumidor e com os projetos de desenvolvimento científico e industrial do país, seja na legislação imperial de 1862, seja no decreto do Estado Novo, em 1938, ou nas iniciativas que levaram à criação do Inmetro, em 1973. Além do livro, o projeto desenvolvido pelo CPDOC nos anos de 1996 e 1997 buscou preservar a memória institucional da metrologia no Brasil, tendo construído um acervo de depoimentos orais de políticos, gerentes e técnicos que testemunharam os desafios enfrentados, ao longo de mais de cinqüenta anos, para colocar a Ciência e o Estado a serviço da sociedade. Uma missão que o Inmetro assume com orgulho. Julio Cesar Carmo Bueno Presidente do Inmetro Introdução O livro Medida, normalização e qualidade; aspectos da história da metrologia no Brasil, uma co-edição do Inmetro e da Editora da Fundação Getulio Vargas, tem como propósito expor a história das ações do governo do Brasil no campo da metrologia desde as primeiras décadas do século XIX e, no campo da normalização e certificação da qualidade, a partir do momento em que foram associadas à metrologia, no ano de 1973. Trata-se, assim, a rigor, da história de uma política pública. É nesse contexto que são tratados temas como a incorporação de idéias científicas à ação governamental, a articulação entre ciência e desenvolvimento industrial, as transformações da administração pública e a defesa do cidadão e do consumidor, que, de fato, constituem os elementos fundamentais da evolução da metrologia no Brasil. As origens intelectuais e políticas do sistema métrico decimal e os mecanismos que permitiram sua difusão internacional ao longo do século XIX são examinados no primeiro capítulo. O segundo capítulo registra a resposta brasileira a esse movimento, com destaque para a decisão de adotar o sistema, em 1862, e para a sua recepção pela sociedade. Uma perspectiva internacional, descrevendo o crescente relacionamento entre a metrologia, a ciência e a indústria no mundo desenvolvido, é retomada no terceiro capítulo. O esforço do Brasil para reproduzir, nas condições locais, essa associação é assunto do quarto capítulo, que se estende dos anos 1930 aos anos 1950, e do quinto capítulo, dedicado aos anos 1960. Por fim, o último capítulo registra a ampliação e sofisticação desseesforço, com a incorporação da normalização e da certificação de qualidade ao âmbito das políticas governamentais, marco da criação do Inmetro. São também examinados os problemas e desafios enfrentados desde os primeiros anos da década de 1970. Um trabalho desta natureza exige uma extensa lista de agradecimentos. No Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro), gostaríamos de agradecer o apoio do presidente do órgão, Julio Cesar Carmo Bueno, que acompanhou de perto a execução de todo o projeto. As responsabilidades gerenciais do dia-a-dia estiveram a cargo de Paulo Roberto Braga e Mello, chefe do Cidit, e Tomás Chlebnicek González, assessor do Cidit. A colaboração de ambos nunca foi menos que excepcional. O diretor de Metrologia Científica e Industrial, Maurício Nogueira Frota, o diretor de Metrologia Legal, Roberto Luiz de Lima Guimarães, e o coordenador de Planejamento, Ricardo de Oliveira, foram também interlocutores importantes no curso da execução de todo o trabalho. Na Fundação Getulio Vargas, recebemos o apoio do presidente Jorge Oscar de Mello Flôres, e da coordenadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Lúcia Lippi Oliveira. O estímulo da coordenadora do Programa de História Oral, Marieta de Moraes Ferreira, foi fundamental ao longo de todo o projeto. Menção especial deve ser feita ao pesquisador Carlos Eduardo Sarmento, cujo desempenho sempre esteve muito além, em qualidade e quantidade, das funções de assistente. Agradecimentos também são devidos à equipe da Biblioteca Nacional, nas pessoas de Georgina Staneck, coordenadora de Acervo Especializado, Carmen Tereza Coelho Morano, chefe da Divisão de Manuscritos, e Rejanne Benning Briglia, chefe da Divisão de Obras Raras, que ofereceram amplo acesso às coleções da Biblioteca, fonte de grande parte do material iconográfico utilizado. Nesse campo, também desejamos agradecer a colaboração preciosa das equipes do museu da Casa da Moeda do Brasil e do Instituto de Pesos e Medidas do Estado do Rio de Janeiro, que facultaram a reprodução de peças e instrumentos de seu acervo. Também é importante mencionar o apoio do Bureau Internacional de Pesos e Medidas, oferecido durante as pesquisas realizadas em Paris. O projeto contou com a inestimável colaboração de seu diretor, o dr. Terry J. Quinn, e com o suporte de sua secretária, Sra. Fraçoise Joly, e da responsável pela Biblioteca do Bureau, Sra. Danielle Le Coz. Por fim, em lugar de maior importância, vêm os agradecimentos especiais aos entrevistados, administradores públicos, cientistas, técnicos e gerentes que construíram esta história e tiveram tempo e paciência para dela falar. 1 Ciência e política: a formação dos sistemas de pesos e medidas A idéia de um sistema coerente e universal de medidas, baseado em grandezas físicas invariantes, é relativamente recente do ponto de vista da história das ciências. Sua difusão no mundo industrial moderno representa uma radical transformação nas relações entre o homem e o mundo.1 De fato, para o mundo econômico pré-moderno marcado pela preponderância das atividades agrícolas e pelo comércio local, a virtude de um sistema de medidas residia em sua compreensão imediata, garantida pelo caráter antropomórfico e consuetudinário, e em suas divisões computacionais simples. Não é exagerado afirmar que, sob o impressionante número de pesos e medidas em uso até o início do século XIX, vemos a existência de sistemas de medidas específicos para cada tipo de atividade econômica e mesmo para cada região geográfica.2 A autoridade política, em suas diversas modalidades, sempre procurou, sobretudo por motivações de índole fiscal, garantir e manter padrões oficiais de medidas, mas sua capacidade de uniformização dificilmente ultrapassava as fronteiras da cidade em que estava sediada ou da região econômica em que predominava. No contexto cultural do Ocidente europeu, não é de se admirar que, dada tal profusão de medidas, passadas e presentes, agrícolas, mineiras ou comerciais, moedas de vários pesos e distâncias incertas, o primeiro esforço de compreensão se tenha voltado para o problema da conversão das medidas e para o estabelecimento de suas equivalências. A partir do Renascimento, podem ser registradas duas direções distintas. A primeira é a discussão relativa aos pesos, medidas e valores monetários empregados nos textos da antiguidade clássica e nas Sagradas Escrituras, conduzida pelos círculos intelectuais e humanistas. Como, pelo menos em termos vocabulares, as medidas empregadas à época eram semelhantes às registradas nos textos antigos _ onças, libras, marcos, siclos, minas, etc. _ o problema a ser investigado era sua correlação precisa, fundamental para a compreensão do passado e para a interpretação da Bíblia. Este tratamento das questões metrológicas pode ser examinado em inúmeros tratados publicados ao longo do século XVI. Entre eles, Dos pesos e medidas romanos e gregos (1550), escrito por George Agrícola (1494-1555), médico e metalurgista a serviço da corte do duque da Saxônia e autor do importante De re metallica (1556), talvez o mais completo tratado sobre metalurgia publicado durante o Renascimento.3 Ele examina, nesta pequena coletânea de cinco livros, a mesma temática: o problema da equivalência dos pesos e medidas dos textos clássicos (inclusive persas e egípcios) e da Bíblia com as medidas em uso no seu tempo. A técnica empregada variava muito, sendo utilizados indicadores como o peso, em metal, das moedas antigas, comparações antropomórficas ou a medição de construções ainda existentes das quais havia registro nos textos antigos. A mesma linha segue o texto do jurista espanhol Juan de Mariana, em seu De pesos e medidas. O texto, publicado em 1599 e oferecido ao rei como parte de uma obra sobre as instituições políticas do reino, é bem completo e sistemático: examina as medidas antigas caso a caso e no final oferece tábuas completas para a conversão de medidas hebraicas para as gregas e para as correntemente usadas na Espanha. Outro exemplar bastante curioso desta literatura é o tratado do prelado francês Robert Cenau, Dos verdadeiros pesos e medidas, publicado em Paris no ano de 1547. As quinze primeiras páginas são dedicadas a um detalhado panegírico de Francisco I, mas, em seguida, somos introduzidos numa espécie de dicionário de questões práticas, envolvendo a equivalência dos pesos e medidas da antiguidade ou da sagrada escritura com as medidas contemporâneas. Na página 98b, por exemplo, Ceneau abre a polêmica com outro ilustre intelectual da Renascença francesa, Guillaume Budé, acerca do valor, em libras tornesas, dos 30 dinheiros de prata4 que Judas recebeu. Segundo Ceneu, tal valor equivaleria a 60 libras tornesas, uma soma razoável, em sua opinião. O problema da equivalência de pesos e medidas, contudo, não se restringia a disputas eruditas. Com a expansão do comércio internacional, além da questão do câmbio, vinha também à cena a dificuldade em lidar com as inúmeras unidades de medida em que eram expressas as mercadorias comercializadas em dezenas de portos no Mediterrâneo, no Oceano Índico e na América. Uma das formas mais interessantes de dar conta deste problema prático pode ser contemplada no pequeno volume de Bartholomeo di Pasi, Valores dos pesos e medidas correspondentes do Levante ao Poente, publicado em Veneza no ano de 1540, em formato prático, apropriado para uso em viagem,5 contendo dezenas de tabelas de conversão de medidas correntemente usadas. Com o tempo, mesmo esta distinção entre temas clássicos e assuntos comerciais foi desaparecendo, como atesta o Diccionário universal das moedas assim metallicas, imaginarias ou de conta que se conhecem na Europa, Ásia, África e América. Ao que seajunta uma notícia das moedas dos judeus, gregos e romanos, dois mapas dos pesos das principais cidades de commercio, das medidas de extensão reduzidas a palmos, guados e varas, publicado em Lisboa, no ano de 1793. O debate intelectual nos círculos humanistas ou as necessidades comerciais mais imediatas não constituiriam, entretanto, o substrato de onde viriam a surgir a primeira formulação de um sistema universal de medidas e a possibilidade de seu emprego generalizado pela sociedade. Tal substrato seria formado, na verdade, pela associação entre os projetos de uniformização do uso de pesos e medidas, formulados pelas monarquias européias, e as formas nascentes da comunidade científica. As monarquias absolutistas já haviam sentido, em termos bastante práticos, os efeitos positivos da simples conversão de medidas, com padrões fixos e constantes, na construção de armamentos e de navios de guerra. Contudo, o esforço que obtinha rápido resultado na padronização da dimensão das armas e outros equipamentos bélicos,6 esgotava-se em vão na padronização das medidas de uso agrícola e comercial, com as mais desagradáveis conseqüências para o tesouro real. Por outra parte, o progresso da ciência experimental já exigia o estabelecimento de uma linguagem comum como condição básica para o intercâmbio de resultados e descobertas. No contexto específico da história francesa, esta associação daria origem às técnicas científicas que tornariam realidade o sistema métrico decimal e mostraria o caminho político para seu estabelecimento e difusão. As tentativas de uniformização e a idéia de um sistema de medidas Na história das monarquias francesa e inglesa, as tentativas de uniformização dos pesos e medidas foram registradas de forma recorrente, como parte do esforço de centralização administrativa e fiscal. Na Inglaterra, ao longo do século XVII, o Exchequer manteve o procedimento inaugurado no reino de Elizabeth I para a melhoria da qualidade dos padrões de medida usados na calibração dos instrumentos de medição comerciais em Londres e nas regiões próximas. Assim, foram confeccionadas a jarda e o galão de 1634, o wine pottle e o grain quart de 1641.7 Contudo, as medidas legais destinadas a regular o emprego dos padrões, a fiscalizar as atividades dos aferidores e a combater fraudes, tentadas em 1607, 1617, 1640, 1661, 1681 e 1715 jamais tiveram a precisão adequada ou foram efetivamente cumpridas pelas autoridades reais.8 Na França, desde 1614, os Estados Gerais pediam a unificação dos pesos e medidas e, em 1668, Colbert patrocinou a fundição de novos padrões para a cidade de Paris. Por duas vezes, em 1754 e 1764, foram realizadas consultas junto aos intendentes de finanças sobre a conveniência ou a viabilidade de uma unificação das medidas, com resultados desanimadores. Não se tratava, evidentemente, de fixar uma constante física como base do sistema ou uma relação numérica entre suas unidades, mas apenas de aplicar um padrão único, convencional, em todo o reino. As resistências de senhores feudais, comerciantes e da população em geral em alterar regras e costumes seculares fizeram-se sentir e, a partir de 1766, a burocracia real finalmente desistiu de uma unificação completa, passando à elaboração de tabelas de conversão e equivalência.9 Contudo, ao mesmo tempo em que os governos absolutistas fracassavam em suas tentativas de uniformizar o uso de pesos e medidas, criavam também as condições para o envolvimento da comunidade científica no assunto. As primeiras formulações de um sistema universal de medidas são típicos produtos das formas incipientes de organização do trabalho científico constituídas pelas academias e sociedades de sábios da segunda metade do século XVII, contemporâneas da descoberta da pressão atmosférica e da eletricidade natural.10 A Royal Society, de Londres, cujo regimento foi estabelecido em 1662, e a Académie des Sciences, cujo patrocínio real permitiu o início de sessões formais em 1666, congregavam os cientistas de maior prestígio em cada país e proviam um ambiente propício ao debate de idéias e à realização de programas experimentais.11 Foi neste contexto específico que se publicou a primeira exposição sistemática de um sistema de medidas composto por uma base numérica decimal, pela fixação do inter-relacionamento das unidades de massa e comprimento e pelo estabelecimento de seus valores em acordo com constantes físicas. Em suas Observações sobre o diâmetro do sol e da lua seguidas por breve dissertação sobre a idéia de novas medidas geométricas, publicada em Lyon, em 1670, o abade Gabriel Mouton, vigário da igreja de São Paulo, criou um sistema cuja unidade básica seria constituída por uma fração da circunferência da Terra.12 A partir desta unidade básica, Mouton deduziu um conjunto de medidas lineares, sujeitas a relações decimais. No sistema criado por Mouton, a unidade básica seria o milliare, equivalente ao comprimento de um arco de 1 minuto da circunferência máxima da Terra. As demais unidades seriam a centuria, a decuria, a virga, a virgula, a decima , a centesima e a milesima . A virga e a virgula corresponderiam às frações 1/1.000 e 1/10.000 do milliare respectivamente, e seriam equivalentes à toesa e ao pé. A fração do meridiano terrestre, porém, não foi a única opção considerada. A utilização do pêndulo foi proposta como unidade fundamental, em 1671, pelo matemático Jean Picard, que, ao examinar as antigas toesas em uso na França, propôs associar seu valor à medida da extensão do pêndulo que bate 1 segundo em Paris. A escolha da oscilação do pêndulo foi entusiasticamente endossada pelo físico Christian Huygens, em 1673.13 Retomado o exame da questão no início do século XVIII, o matemático Cassini, chefe do Observatório de Paris, voltaria a propor, em 1720, um padrão de medidas constituído pela fração do meridiano terrestre. Sua unidade, o pé geométrico, seria equivalente a 1/100 do arco de 1 segundo do meridiano terrestre; a toesa de 6 pés seria contida 1.000 vezes no arco de 1 minuto e o grau teria 60.000 toesas. Entretanto, àquela altura, tanto o problema prático da medição dos meridianos terrestres, como a variação na oscilação do pêndulo provocada pelas variações na gravidade terrestre14 já haviam se tornado obstáculos concretos na configuração do sistema de medidas, uma vez que as sociedades científicas estavam longe de dispor dos meios para a condução das rigorosas medições. Assim, a primeira ligação concreta entre as discussões científicas e os recursos governamentais seria constituída quando, em seus esforços de unificação dos padrões de medidas, o governo francês resolveu patrocinar o trabalho de definição da equivalência das medidas tradicionais com constantes físicas, no caso específico, a toesa de Paris. Encarregada oficialmente do problema, a Academia de Ciências de Paris organizou então duas expedições para a medição de dois arcos do meridiano, um próximo à linha do equador e outro na região polar. A comissão do equador partiu para o Peru em 16 de maio de 1735, estendendo seus trabalhos até 1744. A comissão da região polar dirigiu- se à Lapônia, no verão de 1736. A medida de 1 grau da primeira expedição resultou em 57.074,5 toesas e a medida da expedição polar para o grau foi de 57.438 toesas. Ao fim, as medições realizadas no Peru dariam origem ao padrão de ferro da toesa de Paris, chamada então toesa do Peru , que deveria ser utilizada, a partir de maio de 1766, por determinação de Luís XV, como padrão a ser reproduzido e enviado às províncias francesas. Como já se discutiu anteriormente, mais este esforço de uniformização foi inviabilizado pelaresistência de comerciantes e senhores feudais, que temiam a interferência real na determinação de suas rendas e contavam com o conservadorismo da própria população. Entretanto, um passo adicional havia sido dado tanto na experiência concreta das medições, como no relacionamento entre governo e cientistas. Uma nova oportunidade para a associação entre ciência e a reforma das instituições governamentais só surgiria quando a concepção do sistema universal de medidas fosse associada às transformações políticas e sociais deflagradas pela Revolução Francesa. O sistema métrico e a Revolução Francesa Em 4 de agosto de 1789, os privilégios e rendas feudais, assim como os sistemas de pesos e medidas a eles associados, foram suprimidos de um só golpe.15 Em maio de 1790, para preencher o vazio legal criado, o bispo de Autun e delegado do clero aos Estados Gerais, príncipe de Talleyrand-Périgord, entre outras propostas liberais,16 encaminharia à Assembléia Nacional uma nova legislação metrológica estabelecendo como base do sistema universal de medidas o comprimento do pêndulo que bate à latitude de 45º. A nova lei determinava ainda o envio de mensagem ao Parlamento Britânico para que a Sociedade Real de Londres colaborasse com a Academia de Ciências de Paris na elaboração deste novo sistema de medidas.17 A Assembléia Nacional Francesa aprovaria a proposta de Talleyrand e encarregaria o Comitê de Agricultura e Comércio de apresentar um relatório sobre tal proposição. Transformado em projeto de lei, seria levado à sanção real em 8 de maio de 1790. Pelo decreto então firmado, os administradores dos diversos departamentos franceses enviariam a Paris modelos exatos das unidades de pesos e medidas utilizadas em suas comarcas. Caberia à Academia de Ciências de Paris estabelecer o quadro de relações das antigas medidas, ficando a abolição destas últimas prevista para o prazo de seis meses após a substituição legal pelo novo sistema.18 A Academia Francesa nomeou uma comissão composta, entre outros, pelos matemáticos Borda19 e Louis Joseph Lagrange, o químico Antoine Laurent de Lavoisier e o marquês de Condorcet. Ficaram eles incumbidos de estudar os problemas e estabelecer os passos concretos a tomar. O marquês de Condorcet,20 também eleito para a Assembléia, cumpriria o papel chave, junto com Talleyrand, na associação entre as transformações políticas da Revolução e a adoção do sistema métrico. Um primeiro relatório foi apresentado em 27 de outubro de 1790. Apesar de recomendar a relação decimal para todas as unidades, reconhecia as vantagens de cálculo no sistema duodecimal, sugeria a oscilação do pêndulo como medida fundamental e expressava mais dúvidas que medidas concretas. Na prática, voltava à estaca zero. Julgado insatisfatório pela Assembléia Nacional, foi então convocada uma segunda comissão. O novo relatório foi apresentado pelo marquês de Condorcet em 26 de março de 1791, e a fração do meridiano terrestre voltou a ocupar sua posição de medida fundamental.21 Decidiu-se então tomar por base o meridiano de Dunquerque até Barcelona, cuja medição já havia sido anteriormente realizada, necessitando apenas de verificação. A comissão sugeriu os seguintes procedimentos para uma proposta completa de sistema de medidas: determinação da diferença de latitude entre Dunquerque e Barcelona; fixação da extensão do pêndulo que bate o segundo; observação do peso de um volume conhecido de água destilada a 0º e o estabelecimento das relações entre antigas e novas medidas. Aprovado o relatório, a Academia de Ciências foi autorizada pela Assembléia Nacional a nomear novas comissões para dar prosseguimento ao projeto. O diretor do Observatório de Paris, Cassini,22 o astrônomo Pierre Méchain23 e Legendre24 foram encarregados da triangulação e determinação de latitudes; Gaspar Monge e De Meusnier pelas medidas das bases; e Borda e Coulomb pelo estabelecimento do comprimento do pêndulo. A determinação do peso de um volume de água foi atribuída a Lavoisier e Haüy. A coordenação dos trabalhos cabia a Borda, Condorcet, Lagrange e Lavoisier. As realidades práticas, contudo, não podiam aguardar a conclusão dos trabalhos científicos e, com a subida dos girondinos ao poder, em março de 1792, o ministério pediria providências para uma rápida conclusão dos trabalhos ou que se providenciasse uma tábua provisória de medidas, tendo em vista a necessidade de facilitar a livre circulação de mercadorias no reino e para evitar os distúrbios e jacqueries que já se registravam em função do vácuo metrológico gerado pela supressão dos privilégios feudais em 1789. Em 25 de novembro de 1792, uma comissão da Academia compareceu à Convenção Nacional, que substituíra a Assembléia em setembro, para prestar conta dos trabalhos. Borda e Lalande25 apresentaram o relatório e entregaram a íntegra dos trabalhos preparados e publicados pelas comissões, considerado satisfatório pela Convenção. Como desdobramento do relatório, a Academia fixaria o metro provisório de 36 polegadas e 11,44 linhas em 29 de maio de 1793, estabelecendo também a escala decimal para múltiplos e submúltiplos. O valor do metro foi atingido a partir do cálculo da décima milionésima parte do quarto do meridiano. Quanto à nomenclatura definitiva hesitou- se ainda entre uma que se denominou metódica _ incorporando os atuais nomes das medidas métricas _ e outra simplificada, incluindo os nomes das antigas medidas. O agravamento das condições políticas, com a ascensão dos jacobinos em abril de 1793, entretanto, não permitiu que os trabalhos científicos tivessem curso tranqüilo. Após a tomada das decisões básicas, várias comissões nomeadas pela Academia de Ciências tiveram sua composição alterada por demissões, perseguições ou, como no caso de Lavoisier, por condenação à guilhotina. Apesar de tudo, o trabalho, afinal completo, seria aprovado pela Convenção Nacional, em 1o de agosto de 1793, dando-se preferência à nomenclatura metódica e estabelecendo o prazo de um ano para o uso obrigatório de todo o sistema.26 Autorizava também a construção de padrões e cópias a serem remetidas às municipalidades, recomendando a publicação de livros e folhetos com o fim de disseminar o novo sistema. Logo a seguir, contudo, a própria Academia de Ciências seria envolvida no processo de destruição do Antigo Regime, sendo considerada, assim como outros institutos, em agosto de 1793, como parasitária, sendo suprimida por decreto. Os membros da Academia que estudavam a implantação do novo sistema métrico viram-se forçados a continuar seus trabalhos como comissão temporária, mas o Comitê de Salvação Pública promoveria, a seguir, novo expurgo nesta comissão, afastando, entre outros, Borda, Laplace27 e Coulomb. Após o expurgo da Comissão, os trabalhos permaneceram suspensos por mais de um ano. Com o golpe do Thermidor e a execução dos líderes jacobinos, após meados de 1794, a situação política foi se estabilizando e os trabalhos de definição dos padrões foram retomados, assumindo o sistema métrico seus contornos definitivos. Em março de 1795, Pierre Louis Prieur apresentaria um relatório à Convenção, votado em 7 de abril, tornando obrigatório o uso do sistema métrico. Após a aprovação da lei, uma anistia também seria votada para os antigos membros da Academia que haviam trabalhado na elaboração do novo sistema. Em 17 de abril de 1795, seria nomeada uma nova comissão, agora denominada Agência Nacional de Pesos e Medidas, para dar continuidade aos trabalhos interrompidos. Borda e Brisson estabeleceram o metro provisório de acordo com a medida anteriormente definida de 3 pés e 11,44 linhas de toesas, a uma temperatura de 13º R. Apresentado ao Comitê de Instrução Pública, o padrão foi depositado nos Arquivos de França. A definição da unidade de massa, inicialmente concebida como a massa dodecímetro cúbico de água destilada, pesada no vazio e tomada em seu máximo de densidade, não seria tão simples. As dificuldades em se estabelecer as medidas das dimensões interiores de um vaso foram contornadas pela definição da pesagem de um sólido de volume conhecido, no ar e na água. De acordo com os cálculos anteriores de Lavoisier, o peso do quilograma provisório foi de 18.841 grãos do marco médio da pile de Carlos Magno. Após a condenação de Lavoisier, caberia a Lefevre- Gineau28 a confecção do cilindro padrão para o peso do quilograma de água, também depositado no Observatório de Paris. A medição dos meridianos foi retomada. Coube a Pierre Méchain a medição de Barcelona a Rodez, e a Delambre29 a medição de Rodez a Dunquerque. Em 20 de maio de 1799, Méchain apresentou relatório de seu estudo da comparação das réguas utilizadas como padrões, afirmando que a medida da toesa do Peru permanecia sem variações. Com as novas medições, os padrões provisórios foram sendo aperfeiçoados. Em 25 de maio de 1799, foi apresentado o relatório final sobre as medições do meridiano. O quarto do meridiano medido foi calculado em 5.130.740 toesas, sendo o metro definido em 3 pés, 11 linhas 296/1.000 _ diferentemente da definição inicial de 3 pés, 11 linhas, 442/1.000. Em 30 de maio de 1799, o trabalho de Lefevre-Gineau terminava por definir o quilograma com o valor de 18.827,15 grãos. Sistematizados, os três relatórios estabeleciam os novos valores para as unidades do sistema.30 Caberia a Borda a constituição dos protótipos definitivos do metro e do quilograma. Após a morte de Borda em fevereiro de 1799, seu substituto, Lenoir, construiu um comparador, cuja precisão atingia o milésimo de linha e com este instrumento foram construídos 12 metros de ferro e dois de platina. Com as devidas certificações, o metro de ferro n. 2 foi considerado ideal e escolhido como comparador dos demais, sendo depositado nos Arquivos de França a 22 de julho de 1799. Completada a organização do sistema métrico decimal, após quase uma década de turbulência política, seu futuro na França, do ponto de vista prático, passou a depender das resistências da população e da persistência governamental. Em 10 de dezembro de 1799, seria sancionado o sistema métrico e o reconhecimento legal dos novos padrões, mas as primeiras reações não foram favoráveis. Apenas 12 departamentos franceses acolheram sem relutância as novas unidades e a população em geral reclamava do emprego de nomes em outras línguas. Estes pontos se tornariam tão problemáticos que, em 1812, o próprio Napoleão Bonaparte reconheceria, em dois decretos, as resistências. Em 2 de fevereiro, decretou o ensino obrigatório do sistema métrico nas escolas e autorizou a construção de novos exemplares dos pesos e medidas do novo sistema, embora trazendo gravadas as relações com o antigo sistema. Em 28 de março, estabelecia um compromisso pragmático, autorizando o uso de medidas não métricas no comércio, tais como a toesa (2 metros, subdividida em 6 pés), o aune (valendo 12 centímetros, dividindo-se em 16 partes), o boisseau para a venda de cereais (1/8 do hectolitro) e a libra (500g).31 Após ultrapassar variados compromissos legislativos e suplantar a oposição de vários setores da economia, o uso compulsório e exclusivo do sistema métrico seria consolidado apenas pela lei de 4 de julho de 1837.32 Inglaterra e Portugal A consolidação do sistema métrico decimal na França, vista desta perspectiva, não apresentava qualquer sinal de inevitabilidade técnica ou científica e, mesmo tornado compulsório após 1837, sua difusão em todos os setores da vida cotidiana tomaria ainda várias décadas. Por sua vez, alguns países que adotaram o sistema durante a ocupação napoleônica, dele logo se desembaraçaram após 1815, tão clara era sua associação com as transformações políticas da França revolucionária. De fato, a uniformização do uso dos pesos e medidas e a confecção de padrões de medida confiáveis não exigiam a sofisticação do sistema métrico francês. Garantido o empenho governamental em vencer resistências às novas leis e mobilizado o conhecimento técnico-científico que assegurasse a reprodutibilidade dos padrões, podiam ter sucesso alternativas como a expressão em constantes físicas das medidas tradicionais ou a adoção da base numérica decimal, mantendo-se a nomenclatura antiga. O primeiro caso é o das medidas ainda hoje em uso na Inglaterra e nos Estados Unidos e com importante presença, garantida pelas relações econômicas, mesmo em países que adotaram o sistema métrico. A base do sistema de medidas lineares anglo-saxãs é a jarda, cuja origem remonta ao século XII, tendo sido seu primeiro padrão confeccionado em 1500. Um segundo padrão seria construído em 1760, sendo sancionado pelo Parlamento em 1824. Nesta ocasião, passou a ser definido através da relação com o comprimento do pêndulo que bate o segundo, no vácuo, na latitude de Londres, ao nível do mar, na proporção de 1 para 39,1393. Após o incêndio do Parlamento em 1834, quando os padrões foram destruídos, uma comissão encarregou-se de sua reconstituição. Devido à inexatidão da relação com o pêndulo, a medida padrão foi completamente refeita e o Imperial Standard Yard _ confeccionado em bronze a partir de uma amostra de padrões existentes _ seria sancionado por um ato de 30 de junho de 1855. A unidade de massa teve curso semelhante. O exemplar mais antigo da libra troy foi tornado legal em 1498, mas por ter sido também destruído no incêndio do Parlamento, foi reconstruído a partir da média das cópias existentes. A libra troy foi, então, abandonada como unidade principal, sendo adotado, em 1853, o padrão de platina da libra avoir du pois, construído em 1844. Com a definição de sua equivalência com constantes físicas, a reprodutibilidade dos padrões foi garantida, sendo mantidos seus múltiplos e submúltiplos em acordo com as práticas tradicionais. A Revolução Industrial e a expansão colonial, ao contrário da Revolução Francesa, parecia não demandar sistemas decimais de medidas. O segundo caso foi o das medidas em uso no reino de Portugal, de maior interesse por suas repercussões no Brasil colônia e pela trajetória da adesão ao sistema métrico. Os primeiros esforços de unificação dos pesos e medidas diferem pouco do caso da monarquia francesa. A primeira tentativa é consagrada em 1488, nas Ordenações Manuelinas. O Livro I, Título 15, determinava que todas as medidas, varas e côvados do reino obedecessem aos padrões existentes em Lisboa, mantidos pelo Almotacé-Mor. Os pesos e medidas deveriam ser aferidos duas vezes por ano para aquelles que per necessidade de seus officios ham de teer pesos, ou medidas. A intenção de fraude, se confirmada por duas testemunhas, deveria pagar multa de 280 reaes, além de ser punida com cadeia. As Ordenações Filipinas eram bem mais detalhistas. O Livro I, Título 18, fixava multas proporcionais à fraude incorrida e determinava os tipos de padrões que cada cidade deveria manter em função de sua população. Independentemente, porém, do número de habitantes, todas as cidades e vilas deveriam possuir padrões da Vara , do Côvado , do Alqueire, do Almude, da Canada e do Quartilho. Os padrões deveriam ser mantidos na Câmara, em uma arca com duas fechaduras, cujas chaves seriam guardadas pelo Procurador do Conselho e pelo Escrivão da Câmara. Os calibradores (affiladores) deveriam ter seus padrões próprios, conferidos com os do Conselho. Todo este extenso ordenamento jamais chegou a ser cumprido muito além de Lisboa e, em 1755, o grande terremoto reduziria ainda mais o grau de realidade do sistema de medidas. No incêndio que se seguiu, foram destruídos os padrões de pesos e medidas usados na própria sede do reino. Como no caso francês, foi uma situação de excepcional transformação política que criou as condições para a reforma do sistema de pesos e medidas. Com o monarca ainda no Brasil e parte do paísocupado, é organizada em Portugal uma Comissão Central de Pesos e Medidas, encarregada de examinar os forais. Em seu relatório de 17 de outubro de 1812, a Comissão apontaria os defeitos do sistema de medidas em uso, sugerindo três possibilidades para a sua reforma: reintegrar o sistema estabelecido pelas ordenações de D. Manoel; aperfeiçoar o sistema em uso ou adotar integralmente o sistema métrico francês. No dia 2 de fevereiro de 1813, a Comissão apresentou o seu parecer para o plano de reformas do sistema de pesos e medidas, decidindo adotar o sistema decimal francês, mas conservando a nomenclatura das antigas unidades de medida portuguesas. Assim, a unidade de comprimento continuaria a ser a vara , mas agora definida como a décima milionésima parte do quarto meridiano terrestre, ou seja, como um metro. Nesse sistema, 10 varas equivaleriam a uma aguilhada , 1.000 varas a uma milha e assim por diante, mantendo apenas as relações decimais. A unidade de capacidade seria a canada, equivalente ao cubo do décimo da vara, e, do mesmo modo, 10 canadas constituiriam um alqueire (para gêneros secos) e a um almude (para líquidos), e assim por diante. A principal unidade de massa continuaria sendo a libra , definida agora como o peso de uma canada de água destilada, no máximo de sua densidade. No ano seguinte, a Comissão Central de Pesos e Medidas determinou o fabrico dos padrões, tendo estes obrigatoriamente de apresentar gravadas as insígnias e armas reais e as datas de fabricação. Tendo por base os padrões recebidos de Paris em 1802, o Arsenal do Exército executaria cerca de 300 jogos de padrões de medida. A Memória sobre a reforma dos pesos e medidas em Portugal, segundo o sistema métrico decimal, de autoria do deputado João Baptista da Silva Lopes, datada de 1849, informa que os jogos de padrões então confeccionados foram remetidos ao Brasil.33 Em 5 de novembro de 1816, D. João expediu um Aviso, através do qual manifestava à Comissão Central de Pesos e Medidas a sua satisfação com os resultados dos trabalhos por ela encetados, participando também o recebimento, na Corte do Rio de Janeiro, de duas caixas com padrões, semelhantes às que deveriam ser distribuídas aos Conselhos. O processo de independência do Brasil veio, contudo, interromper sua distribuição. Em Portugal, a adoção definitiva do sistema métrico decimal, com suas unidades e nomenclatura, viria a ocorrer apenas em 1852, como prosseguimento dos trabalhos da Comissão Central de Pesos e Medidas. O caráter compulsório de seu uso seria decretado apenas em 1872. O caráter internacional do sistema A difusão internacional do sistema métrico decimal, como se vê, não poderia depender das circunstâncias revolucionárias que conduziram sua adoção na França. Os argumentos científicos e técnicos em seu favor, cessado o ciclo de guerras e revoluções, teriam de assumir este papel, mas dependeriam de novos atores para prover a sustentação político-institucional necessária ao seu sucesso. A forma assumida pela estabilização política na Europa e na América após 1848 viria a oferecer estas condições favoráveis. A paz permitiria um novo desenvolvimento da comunidade científica internacional, agora estruturada em instituições de ensino universitário e em plena construção de seus laços com as atividades industriais. Além disso, a independência das colônias americanas e a gradual decadência política e militar dos impérios europeus foram dando nascimento a um sistema de Estados Nacionais, preocupados com a consolidação institucional e com a centralização administrativa. A formação do Estado alemão e italiano e a afirmação de independência das nacionalidades submetidas aos impérios austríaco, turco ou russo são apenas exemplos deste processo em que se mesclavam esforço mínimo de industrialização ou de inserção no comércio internacional e geração de identidade política própria.34 Neste contexto, sem dúvida, o sistema métrico decimal veio a responder tanto às demandas iluministas da comunidade científica em construção nestes países35 quanto à necessidade dos Estados nacionais em cortar laços com seu passado feudal e sua economia agrícola. Não é por acaso que um dos principais veículos de propaganda do sistema métrico foram as exposições e congressos internacionais que floresceram na Europa após 1850. A exposição internacional de Paris, em 1855, crucial, como veremos adiante, para a adoção do sistema métrico pelo Brasil, contou, entre suas atrações, com padrões do metro e do quilograma confeccionados em cristal de rocha, comparadores e instrumentos de calibração das medidas métricas. Também em 1855, durante o Congresso Internacional de Estatística, seria proposta a formação de uma associação internacional com o fim de propagar a adoção do sistema métrico. Na exposição internacional de Paris, em 1867, foi organizado um comitê específico, para a análise do sistema métrico. O relatório final, apresentado pelo matemático Jacobi, presidente da Academia de Ciências de São Petersburgo, aprovado em 15 de junho de 1867, declarava o sistema métrico o mais apropriado pela expressão dos múltiplos e dos submúltiplos das unidades e pela homogeneidade que caracteriza as suas partes e relações, mencionava a perfeição dos comparadores e instrumentos de precisão desenvolvidos para o sistema métrico e concluía: como a toda economia de trabalho, tanto material como intelectual, equivale um verdadeiro aumento de riqueza, a adoção do sistema métrico, que a comissão julgava colocar na mesma ordem de idéias, como as máquinas, os instrumentos, as vias férreas, telégrafos, tábuas de logaritmos, se recomenda sob o ponto de vista econômico.36 Nesta altura, a discussão já havia evoluído para o exame do marco institucional que presidiria a difusão internacional do sistema métrico e, em Berlim, a Associação Geodésica iniciou os trabalhos visando o estabelecimento de um Bureau Internacional de Pesos e Medidas, logo seguida pela Academia de Ciências de Paris e pelo Bureau de Longitudes. Em abril de 1869, um parecer da Academia de São Petersburgo foi encaminhado à academia francesa, onde os cientistas russos, com o propósito original de discutir a definição do metro _ uma vez que a cada progresso nas técnicas de medição das dimensões da Terra corresponderia uma alteração no valor da décima milionésima parte do quarto do meridiano _ propunham à academia francesa a organização de uma conferência internacional. Uma comissão foi finalmente organizada pela Academia de Paris para discutir a viabilidade da proposta e o relatório final, apresentado pelo ministro francês Dumas em 23 de agosto de 1869, não deixa de reafirmar a tradição francesa na elaboração do sistema, mas reconhece as imprecisões já registradas. A comissão propunha ao governo francês a formação de uma comissão internacional para presidir à construção dos padrões definitivos das medidas.37 Convocada por Napoleão III, a primeira Comissão Internacional do Metro contou com a participação de delegados de 24 países. Uma vez instalada, a Comissão adotou a posição de referendar o sistema métrico tal como ele estava estabelecido, não se lançando a uma nova definição do metro, mas discutindo apenas itens, como o material apropriado para sua confecção, formato e temperatura de conservação. Com respeito ao padrão do quilograma foi decidida uma completa revisão. A eclosão da guerra franco-prussiana, entretanto, suspendeu a discussão científica. Só em 1872 foi possível iniciar uma avaliação dos padrões dos arquivos franceses, chegando-se à constatação de que o padrão do metro tinha sido seriamente degradado pelo uso constante e pela pressão imprimida pelos rudimentares comparadores. Suas dimensões, porém, não haviam sido alteradas, e a adoção internacional do sistema métrico poderia se sustentar nos valores entãoestabelecidos. O material do novo padrão deveria ser uma liga de 90% de platina e 10% de irídio, conhecida por sua homogeneidade, inalterabilidade, dureza e rigidez e o lingote para a fabricação seria obtido em uma única fusão. As barras padrão teriam 102cm e seção transversal em forma de X. Foram também definidos os tipos de instrumento para a comparação e para o traçado das marcas no padrão. Em relação ao quilograma, foi definido que o padrão dos Arquivos teria de ser conferido e ajustado, devido à sua irregularidade, em cerca de 300 miligramas. Para a confecção do novo padrão também se adotou a liga de platina iridiada do metro e sua forma respeitaria a do quilograma dos Arquivos, com altura igual ao diâmetro. O método para a definição de volumes foi o hidrostático, ficando proibida a utilização do padrão dos Arquivos para estas experimentações. A Comissão Internacional do Metro assumiu a responsabilidade de confeccionar quantas cópias fossem necessárias dos padrões dos arquivos para a distribuição entre os países. A decisão de maior alcance, contudo, foi a proposta de criação de um Bureau Internacional de Pesos e Medidas, com sede em Paris, mantido pelos países interessados. À sua disposição ficaria um comitê permanente para a comparação de medidas, encarregado da conservação dos protótipos internacionais, de comparações periódicas, e da confecção e verificação dos novos padrões que fossem solicitados pelos países. As sessões da Comissão foram encerradas em 12 de outubro de 1872, tendo sido escolhido o comitê permanente, cujo presidente seria o representante espanhol, general Ibáñez. Compareceram às sessões da Comissão 51 delegados de trinta países, sendo onze do continente americano. Como parte dos trabalhos previstos pela Comissão, coube a Saint-Claire Deville a preparação e a fusão do lingote de 250 quilogramas de platina iridiada para uso nos padrões. O presidente da República francesa, Thiers, compareceu à cerimônia de fusão da platina realizada em 6 de maio de 1873. A cunhagem definitiva do lingote foi terminada no dia 13 de maio e, em junho, confeccionadas as barras para os padrões. O Comitê reuniu-se de novo em outubro de 1873 para analisar os trabalhos da seção francesa. Nesta reunião, resolveu solicitar ao governo francês a convocação de uma conferência diplomática para discutir a questão da adoção do sistema métrico universalmente, e também fazer a distribuição de encargos e despesas _ até então a cargo exclusivamente do governo francês.38 Aceita a sugestão e conduzidas as negociações internacionais, instalou-se em 1o de março de 1875, em Paris, a Conferência Diplomática do Metro, presidida pelo duque de Decazes, ministro dos negócios estrangeiros da França. Nesta ocasião, o Brasil enviou um representante oficial, o visconde de Itajubá, que contava, no desempenho de sua missão, com o auxílio de um antigo amigo do Imperador D. Pedro II, o general Morin, diretor do Conservatoire des Arts et Métiers, membro do Comitê Permanente do Metro escolhido em 1872, e que também assessorava os governos de Portugal, França e Argentina nas sessões da Conferência. Ao todo, 21 países estavam representados e 15 aprovaram a criação do Bureau Internacional de Pesos e Medidas: Alemanha, Áustria-Hungria, Bélgica, Brasil, Argentina, Espanha, EUA, França, Itália, Peru, Rússia, Suécia, Noruega, Suíça e Venezuela. Manifestaram-se contrariamente à criação da organização apenas os representantes da Grã-Bretanha e dos Países-Baixos. Os representantes da Dinamarca, Grécia, Portugal e Turquia se abstiveram de votar. Ficou definido que o organismo teria caráter científico e permanente, com sede estabelecida, inicialmente, em Paris, devendo funcionar sob supervisão de um Comitê Internacional, subordinado à Convenção do Metro. O prazo estipulado para qualquer nação denunciar o contrato e retirar-se da Convenção foi fixado em 12 anos, perdendo, neste caso, o direito de ser co-proprietária dos protótipos internacionais. O Comitê Internacional de Pesos e Medidas foi composto por 14 membros, cada um pertencente a um país distinto, sendo estabelecido o prazo máximo de seis anos para as convocações posteriores da Convenção, sob a forma de Conferências Gerais. A Convenção do Metro foi firmada, então, em 20 de maio de 1875. (Ver Anexo 3.) A primeira presidência do Comitê Internacional coube novamente ao general Ibáñez, secretariado pelo representante suíço, dr. Hirsch. O Comitê voltou a se reunir em abril e maio de 1876 e setembro de 1877, ocupando- se então das bases para o estabelecimento do Bureau Internacional de Pesos e Medidas, cuja inauguração estava prevista para a primavera de 1877. Uma vez instalado o Bureau, iniciaram-se os estudos para o aperfeiçoamento dos padrões provisórios internacionais do metro e do quilograma, tendo por base os padrões dos Arquivos. Em outra decisão importante, tomada em outubro de 1887, o Comitê Internacional resolveu fixar como escala termométrica normal para o serviço internacional de pesos e medidas, a escala centígrada do termômetro de hidrogênio, tendo como pontos fixos o gelo fundente (0º C) e o vapor d'água (100º C). Completado o processo de retificação dos padrões elaborados originalmente, a Conferência Geral de Pesos e Medidas de 1889 finalmente aprovou o seguinte texto: Considerando o compte rendu do presidente do Comitê Internacional de Pesos e Medidas, de onde resulta que, pelos cuidados comuns da seção francesa da Comissão Internacional do Metro e do Comitê Internacional de Pesos e Medidas, as determinações metrológicas fundamentais dos protótipos internacionais e nacionais do metro e do quilograma terem sido executadas em todas as condições de garantia e de precisão que comporta o estado atual da Ciência. Considerando que os protótipos internacionais e nacionais do metro e do quilograma são formados de platina iridiada a 1 por 10 de iridium, a 0,0001 aproximadamente. Considerando a identidade do comprimento do metro e a identidade da massa do quilograma internacional, com o comprimento do metro e a massa do quilograma depositados nos Arquivos de França. Considerando que as equações dos metros nacionais, em relação ao metro internacional estão compreendidas no limite de 0,01 milímetro (com um erro provável não excedendo a ± 0,0002 do milímetro), e que estas equações repousam numa escala termométrica a hidrogênio, que é sempre possível reproduzir por causa da permanência do estado deste corpo, quando colocado em condições idênticas. Considerando que as equações dos quilogramas nacionais, em relação ao quilograma internacional estão compreendidas no limite de 1 miligrama (com um erro provável não excedendo a ± 0,0005 miligramas). Considerando que o metro e o quilograma internacionais e os metros e quilogramas nacionais preenchem as condições exigidas pela Convenção do Metro. Sanciona: A) No que concerne aos protótipos internacionais: 1º O protótipo do metro escolhido pelo Comitê Internacional. Este protótipo representará, de agora em diante, na temperatura do gelo fundente, a unidade métrica do comprimento. 2º O protótipo do quilograma adotado pelo Comitê Internacional. Este protótipo será considerado, de agora em diante, como unidade de massa. 3º A escala termométrica centígrada a hidrogênio, em relação à qual as equações dos metros protótipos foram estabelecidas. B) No que concerne aos protótipos nacionais: 1º Os metros de platina iridiada, cujas equações, em relação ao protótipo internacional, estão compreendidas no limite de 0,01 milímetro (com um erro provável não excedente a ± 0,0002 do milímetro). 2º Os quilogramas de platina iridiada, cujas equações estão compreendidas no limite de 1 miligrama (com um erro provável não excedendo ± 0,005 do miligrama). C) No que concerne às equações dos protótipos nacionais: As equações dos protótipos nacionais, tais como foram determinadas pelo Bureau Internacional, sob a direção doComitê Internacional, e inscritas no relatório deste Comitê e sobre os certificados que acompanharam estes protótipos.39 Providenciou-se, então, a repartição dos protótipos de acordo com os pedidos anteriormente feitos. Assinaram o documento os representantes de 18 países: Alemanha, Áustria-Hungria, Bélgica, Espanha, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Itália, Japão, Portugal, Argentina, Romênia, Rússia, Suécia, Noruega, Suíça, Países-Baixos e Chile. Da proposta original de Talleyrand, em 1790, até a assinatura da Convenção do Metro, em 1875, um amplo ciclo de transformações havia se cumprido. No campo político, com o estabelecimento do controle governamental sobre o uso de pesos e medidas através de legislação própria e com sua difusão internacional. No campo científico, com a prevalência gradual da simplicidade e coerência do sistema métrico decimal e com a constituição de um campo de conhecimento específico, a metrologia. É neste quadro de transformações políticas e científicas que o capítulo seguinte posiciona a história da metrologia no Brasil do século XIX. Fotografia: Reunidos na sede do BIPM, em Sèvres, membros do Comitê Internacional de Pesos e Medidas e delegados dos países representados na II Conferência Geral de Pesos e Medidas (CGPM), em 1895. De pé, da esquerda para a direita: J.-R Benoît (diretor do BIPM); K. Prytz (Dinamarca); F. Garibay (México); L de Bodola (Hungria); Sone Arasuke (Japão); G. Ferraris (Itália); St. C. Hépites (Romênia); Markovitch (Sérvia); E. Rouseau (Bélgica); M de Schoen (Alemanha); P. Chappuis (pesquisador do BIPM); M. Duplan (Suíça); G. Tresca (Conservatório Nacional de Artes e Ofícios); Ch.-Ed. Guillaume (pesquisador do BIPM) e M. Cobo de Guzmán (Espanha). Sentados, da direita para a esquerda: F. de P. Arrillaga (Espanha); H. de Macedo (Portugal); A. Hirsch (secretário do BIPM); W. Foerster (presidente do Comitê Internacional de Pesos e Medidas); M. Marey (presidente de Conferência Geral); J. Bertrand (França); V. von Lang (Áustria); R. Thalen (Suécia) e A. Arndtsen (Noruega). (foto BIPM) Membros do Comitê Internacional de Pesos e Medidas diante da grande sala de reuniões do Pavilhão de Breteuil, em Sèvres, setembro de 1894. Da esquerda para a direita: B.-A Gould; H.-J. Chaney; A. Arndtsen; R. Thalén; H. Wild (na frente); W. Foerster (presidente do Comitê Internacional de Pesos e Medidas); A. Hirsch (secretário do Comitê); J.-R. Benoît; J. Bertrand; L de Bodola; H. de Macedo e St.-C. Hepites. (foto BIPM) 2 Metrologia no Império do Brasil Feiras e impostos na Colônia No que se refere às unidades de medidas adotadas ao longo do período colonial, o quadro não difere, como é natural, daquele oferecido por Portugal. A vara , a canada e o almude constituíam as medidas de uso mais comum, ainda que seu valor pudesse variar de região para região. Os produtos importados traziam consigo suas próprias medidas e, quanto mais geograficamente restrita uma atividade econômica, mais específico era o sistema de medidas utilizado. Neste cenário, já descrito como babel de medidas, é de pouca utilidade a busca de coerência ou a equivalência precisa. Ainda assim, na experiência colonial, dois aspectos referentes aos padrões de pesos e medidas merecem registro. O primeiro refere-se ao envolvimento original da administração municipal com a fiscalização dos instrumentos utilizados nas transações comerciais. O segundo envolve a diversificação dos ofícios metrológicos, ditada pela expansão do controle da Coroa sobre algumas atividades econômicas. Assim, a primeira menção expressa à atividade metrológica, em documentos coloniais, refere-se precisamente à fiscalização do funcionamento de mercados locais. Como em Portugal, o funcionário colonial mais diretamente envolvido com a fiscalização de pesos e medidas era o almotacé, mencionado pelas Ordenações Manuelinas e Filipinas e previsto pela organização do município de São Vicente, em 1532. Em número de dois, eleitos mensalmente pela Câmara Municipal, os almotacés tinham como atribuição básica manter o bom funcionamento dos mercados e do abastecimento de gêneros, além de fiscalizar obras e manter a limpeza da cidade. Como parte de suas responsabilidades, deveriam verificar mensalmente, com o escrivão da almotaçaria, os pesos e as medidas. Tal disposição estimulava, dada a dispersão e a diversidade dos municípios, a multiplicação dos padrões de medidas. No caso dos gêneros estancados ou submetidos a controles mais rígidos, a Coroa cuidava da melhor organização das atividades metrológicas. O estabelecimento do monopólio do tabaco, por exemplo, levou à criação, em 1702, do Juiz da Balança do Tabaco, nas alfândegas de Salvador e Recife. No caso das minas, o regimento do Intendente do Ouro, de 26 de setembro de 1735, mencionava expressamente sua obrigação de manter as balanças e marcos da Intendência aferidos, pesando o ouro corretamente, sem prejuízo das partes nem da Fazenda Real,1 atribuição expressamente mantida no regimento de 1751. A ampliação dos ofícios metrológicos na administração colonial ganharia seu último impulso com a vinda da família real em 1808 e o aumento das atividades comerciais no Brasil. Em 28 de janeiro de 1811, por exemplo, um decreto real criava o lugar de medidor na Alfândega da Capitania da Bahia, sendo o mesmo posto criado em 29 de agosto de 1816 na Alfândega da Capitania de Pernambuco. Como já discutido no primeiro capítulo, os problemas com a operação deste sistema são de fácil compreensão: multiplicidade dos padrões utilizados e corrupção em sua aplicação. Os abusos cometidos na vigência dos regulamentos coloniais eram antigos e recorrentes. Um manuscrito, preservado na Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, reporta uma destas situações típicas. A Proposta apresentada ao Senado da Câmara da Bahia para o estabelecimento de um regimento de aferição de pesos e medidas é uma memória redigida, possivelmente nas últimas décadas do século XVIII, por um grupo de comerciantes (em que se destacam três administradores de trapiches), enviada ao Senado da Câmara da Bahia. Nela estão expressas as preocupações dos comerciantes com os abusos possibilitados pela ausência de um regimento específico para a calibração2 de pesos e medidas. Começam os signatários recordando que sendo permitido a qualquer do povo lembrar ao nobre Senado as providencias adequadas (...) ocorre a alguns moradores desta cidade a falta de regimento, ou pessoa, para as aferiçoens do Conselho, pelo trabalho de aferiçõens a que estão obrigados os que tem pezos e medidas e sugerem a tomada de medidas contra tais abusos, através da fixação precisa das unidades de medida e dos preços dos serviços de calibração na cidade. Chegam mesmo a preparar uma proposta de tabelas das taxas, procurando estabelecer um regime a ser cumprido na localidade. Na verdade, os abusos começavam pela fixação das taxas de calibração, uma vez que entre nós se acha estabelecido por ley que os pezos, e medidas, de todo o reino serão iguaes às da cidade de Lisboa, e no Brasil, são no Rio de Janeiro o triplo, em Pernambuco o sextuplo e nesta Bahia quasi o quadruplo das de Lisboa . O trabalho de calibração, entretanto, era o ponto focal da memória. Primeiramente, pela ausência de controle legal sobre sua atuação: O afferidor he official publico, não pode exercer o seu officio sem regimento (...) Paga se ao afferidor o trabalho de afferir ou concordar o pezo do particular com o padrão do Conselho, acrecentando ou diminuindo o pezo, quando necessita, e marcando este mesmo pezo com signal de sua certeza. Em segundo lugar, pelas altas tarifas cobradas pelo afferidor, considerando que o trabalho de acertar hum solido de meia arroba he o mesmo, ou vezes menor, que o de acertar o solido de meia quarta, elevando este aferidor a vintem (...) Em Lisboa pagas-se 4 reis por marca, que seja o pezo de uma quarta, quer de huma ou mais arrobas, porque pagamosao afferidor a marca, isto he o trabalho de afferir (...) Nesta cidade porém o afferidor, quando o pezo he de maior de meia arroba, quer 10r por libra, fundando se em huma misteriosa certidão (...) e quando o pezo he menos, quer 20r por marca, e não ha mais ley, pos de outra forma não affere, então ou vae condenal-los (os comerciantes) por vender sem afferição conforme a ley, ou estamos sem commercio por falta de pezos. E iam ainda mais além, chamando a atenção para o desvios dos afferidores na condução de suas funções públicas: Os officiaes publicos não se estabelessem para patrimoneo dos particulares, administração exige fiscaes, e desses se assigna ordens para suprir do desvio da sua atividade, que em proveito da republica fazem dos seus negocios particulares. Insistem no prejuízo causado às populações mais pobres, que só podem comprar a retalho, pelos abusos no processo de calibração dos pesos e medidas e lembram que o povo miudo e pobre são o primeiro desvelo dos importantes, porque elles são as mãos uteis, que mantem a occiozidade dos grandes, e que defendem o throno dos monarchas, e os nossos reys amabilicissimos os protegerão sempre contra (ilegível) dos potentados. Sugerem, assim, a adoção de medidas de vintém para o azeite doce, vinagres e de aguardente da terra. Oferecem à apreciação do Senado da Câmara a sugestão de formulários que definam os tipos de medida e os preços a serem pagos pela aferição dos mesmos e pedem que o regimento dos afferidores fique pendurado nas portas, expostos à visão do público. Os problemas abordados nesta Proposta e suas implicações podem ser também examinados no requerimento, impresso em 1814, registrando o pedido de um certo Luís Antunes para que o Senado da Câmara do Rio de Janeiro lhe fornecesse o regimento de afferidor, para que pudesse desempenhar estas funções (ver Anexo 1). O maior controle sobre a atividade de calibração, patente neste documento, teve início justamente a partir de um processo aberto em 1794 contra um afferidor, denunciado por mau desempenho de suas atribuições e por cobrança indevida de taxas. Primeira legislação metrológica do Brasil independente Após a Independência, a Constituição imperial de 1824 seguiria, quanto a este aspecto, a tradição de suas congêneres americana e francesa, incluindo o estabelecimento de padrões de pesos e medidas entre as atribuições do Poder Legislativo. De fato, em seu artigo 14, alínea 17, a Constituição imperial torna atribuição da Assembléia Geral determinar o peso, valor, inscrição, tipo e denominação das moedas, assim como o padrão dos pesos e medidas. Também a Lei de 1o de outubro de 1828, que criava câmaras municipais em cada cidade e vila do Império, tratava do tema. No título II, referente às posturas policiais, o artigo 66 incluía, no item 10, nas atribuições da Câmara Municipal, prover igualmente sobre a comodidade das feiras e mercados, abastança e salubridade de todos os mantimentos e outros objetos expostos à venda pública, tendo balança de ver o peso e padrões de todos os pesos e medidas para se regularem as aferições. Entretanto, o status de nação independente, com as atribuições administrativas decorrentes, elevaria, por si só, o nível do tratamento dos assuntos ligados à metrologia. Ainda sob o reinado de D. Pedro I, foi determinada a elaboração da pauta geral das alfândegas, a cargo de uma comissão especial, nomeada por decreto de 2 de maio de 1828. A 2 de março do ano seguinte, novo decreto manda cumprir a pauta geral das avaliações para o despacho dos gêneros e mercadorias pela Alfândega da Corte. Contínuas decisões do Ministério da Fazenda foram firmando critérios específicos para medição de produtos e para a equiparação entre os sistemas de medidas dos países estrangeiros, até que o novo regulamento das alfândegas fosse publicado em 25 de abril de 1832. Nesse ano de 1832, já se registrava também a preocupação com a uniformização dos sistemas de pesos e medidas em uso no país. A Província do Maranhão, por exemplo, é obrigada a utilizar os padrões usados em sua capital (decreto de 16 de junho) e a Província de Pernambuco recebe a determinação de usar os padrões empregados na Corte (decreto de 7 de agosto). Nenhuma iniciativa, porém, é mais sintomática do novo patamar assumido pelos problemas metrológicos na nova nação do que a proposta apresentada por Cândido Baptista de Oliveira3 na sessão da Câmara dos Deputados de 12 de julho de 1830.4 Sete anos antes da definitiva aplicação compulsória do sistema métrico na França, quase quinze anos antes da consolidação dos padrões imperiais ingleses, o deputado gaúcho e professor da Academia Militar propunha a adoção imediata do systema metrico adoptado por lei e presentemente usado em França. Reproduzindo, em seu discurso, a descrição das vantagens do sistema métrico apresentadas por Laplace, Cândido Baptista de Oliveira pedia, em seu projeto, a compra dos padrões na França e medidas legais imediatas para seu emprego. Não há registros do andamento deste projeto na Câmara dos Deputados, mas sua apresentação já indicava o caráter global que a discussão sobre pesos e medidas assumia no país e iniciava-se o envolvimento de Cândido com o tema, que se estenderia pelas próximas três décadas. Sem conseguir a tramitação de seu projeto na Câmara, Cândido voltaria ao assunto por ocasião da elaboração do relatório sobre o aperfeiçoamento dos sistemas de pesos e medidas e monetário. Requisitado pelo ministro da Fazenda, Cândido José de Araújo Vianna,5 o texto seria preparado por uma comissão nomeada para este fim por decreto de 8 de janeiro de 1833, composta pelo próprio Cândido Baptista de Oliveira, por Francisco Cordeiro da Silva Torres e por Ignacio Ratton. O subsídio mais importante para os trabalhos da Comissão foi trazido, porém, por Francisco Cordeiro da Silva Torres:6 uma tradução parcial do relatório sobre o mesmo tema, de autoria do futuro presidente norte-americano John Quincy Adams, apresentado ao Congresso americano em 22 de fevereiro de 1821, quando então desempenhava as funções de secretário de Estado. O relatório de Adams definia dois princípios de organização para os sistemas de medidas: uniformidade de identidade e uniformidade de proporção. O primeiro seria pautado na adoção de uma única unidade de pesos para todos os artigos ponderáveis e de uma unidade de medida de capacidade para todas as substâncias. O segundo princípio, concretiza-se em um sistema onde admite-se mais de uma unidade de peso ou capacidade, mas em que todas encontram-se em nítida e estabelecida proporção. O sistema francês seria o exemplo mais evidente da uniformidade de identidade e o sistema norte-americano fundou-se sobre o princípio da uniformidade de proporção. Adams reconhecia a facilidade de operação de um sistema de base decimal, mas chama a atenção para o caráter "não-natural" de sistemas de medir pautados sobre esta base e, para comprovar sua afirmação, fornece o exemplo da relação do palmo com o côvado, da mão com o palmo, do dedo com a mão, sendo, desta forma, compreensível e lógico que o côvado se encontre subdividido em 24 partes iguais. A existência de distintas formas sociais possibilitaria, na verdade, a existência de distintos sistemas de pesar e medir, bastando, para a boa convivência, o conhecimento de suas proporções. Adams não defendia, assim, a adoção de um único sistema, mas a uniformidade no interior de cada um dos vários sistemas, de modo que uma libra tivesse sempre um mesmo valor e um quilograma tivesse também seu valor uniformemente aplicado. Seu conservadorismo sustentava-se em considerações bastante realistas sobre a relevância dos costumes em uso e a magnitude da empreitada.7 O espírito do trabalho de Adams manifestou-se claramente no trabalho da comissão brasileira. A perspectiva oferecida pelo relatório estava longe de sugerir mudanças significativas nos sistemas de medidas empregados até então, como era o teordo projeto apresentado por Cândido Baptista de Oliveira em 1830. Textualmente, pretendia respeitar os usos estabelecidos, quanto seja compatível com a exactidão e uniformidade indispensáveis em semelhante matéria.8 O aspecto central do trabalho, na verdade, estava na tentativa de definição de padrões nacionais unificados, que, então, servissem para o estabelecimento de tábuas de conversão adequadas às realidades do comércio internacional. De fato, estando em uso, no Brasil, o sistema português de medidas e mantendo estreitas relações comerciais com a Inglaterra, a prática comercial e fiscal lidava diariamente com problemas de conversão.9 Respeitando estes princípios e buscando não se distanciar dos usos estabelecidos, a comissão escolheu como unidade fundamental de medida linear a vara do commercio, cuja extensão, segundo o célebre astronomo Pedro Nunes, e conforme alguns padrões antigos, e comparações mui exactas entre o metro e aquelles padrões, feitos por Verdier, e outros sábios distinctos, he perfeitamente igual a onze décimos do metro francez.10 Desta forma, acreditavam estabelecer uma definição mais precisa para o padrão da vara , medida adotada usualmente em todo o Império e relacioná-la às medidas empregadas por outros países, através do metro. Este seria o meio mais propício de estabelecer reduções e correlações, apresentando-se aos membros da comissão naturalmente como o meio termo, por via do qual se podem facilmente estabelecer e fixar as relações da vara com quaesquer outras medidas de comprimento, em razão definida com o mesmo metro.11 O marco é sugerido como o padrão de massa no Império, sendo estabelecida a relação com a arroba _ 1 arroba seria igual a 64 marcos _ e com a libra troy inglesa _ 1 libra seria igual a 2 marcos. As medidas de capacidade também foram examinadas, sendo medidos os padrões da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Determinou-se que a canada (ou medida para líquidos) equivalia a 128 polegadas cúbicas e o alqueire (medida para seccos), a 1.744 polegadas cúbicas.12 No que se refere à definição e confecção dos padrões, o Relatório da Comissão pretendia estabelecer um padrão de massa ao qual se tivesse fácil acesso, que pudesse ser tomado como um padrão de pezo constante existente na natureza . Para tanto, a comissão desenvolveu diversas experiências para determinar o peso de um décimo cubo da vara padrão, ou seja, 64 polegadas cúbicas, em água pura. Inicialmente a Comissão do Ministério da Fazenda achou por bem efetuar pesagens de amostras de água de chuva e da Fonte da Carioca, valendo-se das balanças e dos padrões de marco da Casa da Moeda, e tentar definir, através de alguns cálculos, um padrão à base de água pura, a uma temperatura de 28º C (considerada a temperatura média da cidade do Rio de Janeiro) e sob a pressão barométrica de 30,1 polegadas inglesas. Com base nos resultados, foi estabelecido que 1 décimo cúbico da vara preenchido por água (64 polegadas) seria igual a 5,8007 marcos ou 26.729 grãos.13 Além dos padrões de pesos e medidas, outra preocupação da Comissão foi estudar a estruturação do sistema monetário, tendo como maior preocupação a definição dos valores intrínsecos dos metais preciosos. Estabeleceu uma relação entre os metais monetários na forma de cobre:prata:ouro::1:32:500. O valor de uma oitava de ouro foi fixado em 2$500, uma oitava de prata em $60 e uma de cobre em $005. Com esta relação seria possível fixar o valor das moedas circulantes no Império, tendo como exemplo a moeda de ouro de 10$000 cunhada com 4 oitavas de ouro, e a moeda de 1$000 de prata cunhada com 6 oitavas e 18 grãos de prata.14 A perspectiva conservadora dos trabalhos da Comissão definia-se perfeitamente em seu encerramento. Encaminhado à Regência, representando sua majestade o Imperador, reitera que seu objetivo não foi propor um novo sistema de medidas, julgado fora da alçada da Comissão e inviável em termos práticos, mas sim uma forma de uniformizar o sistema vigente, relacionando-o ao sistema métrico. O texto final do projeto foi lido pelo próprio ministro da Fazenda, em sessão da Câmara dos Deputados, a 31 de maio de 1834. Fixava as medidas fundamentais, sua equivalência com as unidades do sistema métrico e seus múltiplos. Assim, a vara era definida como 1/36363636 do meridiano terrestre e tinha como múltiplos e submúltiplos a braça (2 varas), o palmo (1/5 da vara) e a polegada (1/8 do palmo). Em seguida, vinham as medidas de itinerário (milhas e léguas),15 agrárias (a geira),16 capacidade (a canada)17 para líquidos, capacidade para sólidos (o alqueire)18 e de peso (o marco).19 A sessão foi conturbada por conta da discussão relativa à demissão do tutor do príncipe, José Bonifácio de Andrada e Silva, mas o projeto foi aprovado rapidamente em primeira discussão. A Câmara dos Deputados só voltaria ao tema quase um ano depois, com a apresentação de emenda ao projeto governamental, pelo deputado alagoano Fernandes de Barros, em 19 de maio de 1835. A emenda, que desfigurava completamente o texto original, fixando outra relação entre a vara e o meridiano terrestre,20 foi analisada durante a segunda discussão do projeto, em sessão de 19 de maio. As discussões entre os deputados não foram registradas pelos Anais da Câmara dos Deputados, mas, ao fim, o projeto do governo, defendido em plenário pelo seu relator _ o deputado Cândido Baptista de Oliveira _ foi aprovado em segunda discussão. Em 5 de junho, colocado em terceira discussão, foi finalmente aprovado, nos termos originais. Apesar de sua moderação, o relatório de 1834 e o texto apresentado na Câmara dos Deputados despertaram reações quase de forma imediata. Ele consagrava o afastamento definitivo com respeito aos padrões portugueses de pesos e medidas, fato que não passaria sem registro. Em 1836, Francisco Vieira Goulart publicava uma memória sobre o texto da Comissão, destacando suas incorreções científicas. Em seu entender, a primeira falha do relatório da Comissão, e origem das demais incorreções, consistia em não reconhecer que a vara portugueza, que he a mesma brasileira, consta de 40 polegadas.21 Segundo Vieira Goulart, D. Rodrigo de Souza Coutinho, conde de Linhares, quando ministro da Fazenda de Portugal, antes da vinda da Família Real para o Brasil, já havia estabelecido uma comissão para estudo do sistema métrico francês, tendo então importado, para Portugal, padrões do metro e do quilograma. Nesta ocasião, verificou- se que nenhuma vara media realmente 11 decímetros, apresentando muitas variações nas medições: O caso he que procedendo-se deste modo na comparação das differentes varas, mais ou menos desiguaes, o resultado só poderia ser huma vara meio proporcional entre as que se examinárão; mas nunca hum prototypo que se pudesse considerar como verdadeiro padrão.22 Após a saída de D. Rodrigo do ministério, os estudos sobre os padrões de pesos e medidas tiveram continuidade em Portugal, sendo promovidos novos experimentos para a fixação da igualdade entre a vara e os 11 decímetros, mas sem sucesso. A conclusão final dos trabalhos, segundo Vieira Goulart, determinava ser a vara igual a 10 decimetros e 88 millesimos. Assim, a Comissão, reunida no Brasil pelo decreto de 1833, teria incorrido no mesmo erro de tentar encontrar diferenças entre as varas brasileira e portuguesa: O certo he que por mais comparações, que se fação da vara com o metro; ella que não cresce com o tempo, a não ser de metal oxidavel, ha de sempre ser igual a 486 linhas do pé regio de Pariz, e os 11 decimetros a 487.625 linhas do mesmo pé, no qual se dá a differença de 1.625 linhas.23 Na verdade, para Goulart, a questão era um pouco mais ampla. Considerava que a adoção do princípio de diferença entre as varas brasileiras e portuguesas foi uma medida de caráter eminentemente político, que desejava estabelecer mais um ponto de separação entre as duas nações: Talvez que tambem para abrasileirarem
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