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ISSN 2176-1396 PRINCÍPIOS BÁSICOS DE FONÉTICA E FONOLOGIA PARA A COMPREENSÃO DO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO EM CONTEXTO DE VARIEDADE LINGUÍSTICA Tamara Cardoso André 1 - UNIOESTE Grupo de Trabalho - Didática: Teorias, Metodologias e Práticas Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo O objetivo geral do presente trabalho é fornecer subsídios teóricos para a formação de professores aptos a trabalharem em contextos marcados por variedades linguísticas. Para isso, são apresentados princípios básicos de fonética, fonologia e alfabetização linguística. A alfabetização linguística é importante para a compreensão leitora e o desenvolvimento da escrita. Alunos em processo inicial de alfabetização podem cometer erros na escrita por transcreverem a fala. Além disso, alunos cujas falas são mais distanciadas das normas padronizadas da escrita, podem enfrentar dificuldades de compreensão na leitura de textos mais longos. A partir dos preceitos de Cagliari (2008) e Faraco (2003), defende-se que, no processo inicial de alfabetização, é preciso que o alfabetizador preste atenção aos modos como os alunos falam. Livros didáticos de alfabetização podem produzir a não aprendizagem por partirem do ensino das relações entre letras e sons sem levar em consideração que existem outras variedades linguísticas além da norma padrão. As relações que são biunívocas entre letras e sons segundo a norma padrão, podem não o ser para outras variedades linguísticas. Por exemplo, para um aluno que fala /p/ no lugar de /b/, as relações entre as letras P e B e seus sons não são biunívocas como na norma padrão. Cabe ao professor compreender a distância entre as variedades linguísticas de seus alunos e a escrita padronizada. Atividades de oralidade, como, por exemplo, narração de histórias e dramatizações, podem ser úteis para professores e alunos debaterem acerca das diferenças entre as variedades linguísticas e a escrita padrão. Tais atividades não devem reproduzir preconceito linguístico, mas sim ensinar alguns princípios da norma padrão da língua portuguesa falada, a fim de que a escrita não se torne totalmente arbitrária para alguns alunos. Palavras-chave: Alfabetização. Linguística. Ensino. 1 Pedagoga. Doutora em Educação pela UFPR. Professora adjunta da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Campus Foz do Iguaçu. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ensino, Nível Mestrado da UNIOESTE. 41745 Introdução O Brasil é um país marcado pela variedade linguística. Se o professor não prestar atenção ao modo como os alunos falam, poderá ter dificuldade de ensinar as relações entre letras e sons. A escrita, na língua portuguesa, tem representação gráfica e alfabética. Isso significa que unidades gráficas (letras ou certos encontros vocálicos e consonantais), representam unidades sonoras, e não palavras ou sílabas. A escrita alfabética é uma relativa representação dos sons da fala. Faraco (2003) afirma que a escrita é neutra em relação à fala. Ou seja, há apenas um modo de grafar uma palavra, mas várias formas de pronunciá-la. Além disso, o sistema de escrita tem memória etimológica, pois não toma apenas as unidades sonoras para fixar as normas gráficas das palavras, mas também a origem destas. Por exemplo, a palavra “Monge” se escreve com “G” e não com “J” porque é de origem grega. Para Faraco (2003), é importante que o professor saiba que o sistema gráfico da língua portuguesa tem três características que precisam ser consideradas no processo de alfabetização: 1) Representação gráfica alfabética: as letras representam basicamente unidades sonoras, e não palavras, como pode ocorrer na escrita chinesa, ou sílabas, como na escrita japonesa. 2) Memória etimológica: o sistema gráfico toma a origem da palavra como critério para fixar a forma gráfica de certas palavras, e não apenas as unidades sonoras que a compõem. Homem se escreve com H porque em latim a palavra Homo era grafada com H. O princípio da memória etimológica é uma das causas de a relação entre unidade sonora e letra não ser 100% regular. Nos casos em que a memória etimológica se faz presente é preciso memorizar a escrita correta da palavra ou consultar o dicionário. 3) Relativa neutralidade do sistema gráfico em relação à pronúncia. A neutralidade da escrita não é absoluta, pois, quando se criou o sistema gráfico da língua portuguesa, certa variedade da língua foi tomada como referência. Por esse motivo, existe certa proximidade entre a grafia e algumas pronúncias. Essa proximidade é relativa, de um lado devido à memória etimológica do sistema e, de outro, porque as formas de pronunciar se alteram ao longo do tempo, enquanto a grafia se mantém mais constante. Nas relações biunívocas entre letras e sons há 41746 uma correspondência entre unidade sonora e unidade gráfica. A unidade gráfica só representa uma unidade sonora e a unidade sonora só é representada por uma unidade gráfica. Trata-se do caso da relação entre a letra P e o som /p/. Nas relações cruzadas uma unidade sonora tem mais de uma representação gráfica possível, ou uma unidade gráfica representa mais de uma unidade sonora. Muitas das relações cruzadas são previsíveis, o que facilita o ensino e o uso do sistema gráfico, pois é possível estabelecer regras. A previsibilidade é determinada pelo contexto. Por exemplo, palavras podem ser escritas com a letra R ou com o encontro consonantal RR. No entanto, entre duas vogais, se o som da letra R na palavra falada for vibrante sonora dental, será sempre representado, na escrita, pelo encontro consonantal RR, caso das palavras “Carro”, “Correr”, “Varrer”. Além disso, não há palavras que sejam escritas com RR no início. Outras relações cruzadas são imprevisíveis. Por exemplo, há palavras com S e outras com Z entre vogais, pronunciadas na variante culta da língua portuguesa com /z/. É o caso das palavras “Casa” e “Azar”. De acordo com Faraco (2003), felizmente o que predomina no sistema de escrita não são as relações cruzadas imprevisíveis, mas sim as previsíveis e as relações biunívocas. Entretanto, quando se presta atenção no modo como ocorre a fala concreta das pessoas, certas relações podem não ser biunívocas. Ou seja, a relação entre letra e som é relativa ao modo como as pessoas falam. Por exemplo, para uma criança que, na fala, troca o som da letra B pelo som da letra P, pode não ser fácil ler e compreender palavras com P e B. O objetivo deste trabalho é apresentar alguns princípios da alfabetização linguística que poderão ajudar a formar professores aptos para a alfabetização em contextos de variedades linguísticas. A primeira parte do artigo retomará alguns preceitos da alfabetização linguística, da fonética e da fonologia. No segundo tópico, será feita breve reflexão sobre a variedade linguística e suas relações com a alfabetização. Alguns princípios da fonética, da fonologia e da alfabetização linguística Conhecer os princípios da fonética e da fonologia ajuda a perceber a complexidade da alfabetização devido às diferenças entre fala e escrita, que se acirram em um país continental como o Brasil, marcado por regionalismos e variedades linguísticas. Basta uma visita ao Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, para perceber que há variadas formas de falar no Brasil, de acordo com a região. Em comunidades onde há muitos descendentes de alemães, é comum, na fala, a troca do som /b/ pelo som /p/. Assim, para a criança que está em processo 41747 de alfabetização e faz parte de uma comunidade de origem germânica, pode ser tão difícil aprender a diferença entre o emprego da letra P e da letra B, quando da letra S e da letra Z. Na sala de aula, diferentes formas de falar podem coexistir, o que torna ainda mais complexo ao professoro ensino das relações entre letras e sons. Por exemplo, em uma mesma sala de aula podem haver alunos que, na fala, trocam o som /b/ pelo som /p/ e, outros, que trocam o /R/ pelo / ſ /, ou, ainda, pelo /l/. Para tais alunos, o ensino da ortografia do emprego do R e do RR pode não fazer sentido, pois se trata de uma regra que só pode ser compreendida quando o falante efetivamente pronuncia /R/ nas palavras. O professor pode prever as dificuldades dos alunos prestando atenção ao modo como falam e, para isso, é de suma importância conhecer alguns princípios de fonética e fonologia. Segundo Cagliari (2008), a fonologia se ocupa dos aspectos interpretativos dos sons, ou seja, da estrutura funcional na língua. Estuda os elementos fônicos que distinguem, em uma mesma língua, duas mensagens de sentido diferente. A fonética constata pronúncias diferentes, por exemplo, em [‘ti.a] e [‘tʃi.a]. A fonologia interpreta a diferença atribuindo valor único aos sons, por exemplo, o /t/ que pronunciamos na palavra TUDO, e o /tʃ/, que pronunciamos na palavra TIA. O som que varia, como /t/ e /tʃ/ é chamado de variante. Entretanto, há contextos em que ocorre uma alteração no significado, surgindo uma palavra nova. Por exemplo, se for feita a troca do E pelo I, produzindo VI, no lugar de VÊ, a palavra se torna outra. Na escrita, ao contrário do alfabeto fonético, nem todos os sons da fala são conservados. Por exemplo, usamos a letra ‘D’ para escrever ‘dia’ e ‘dedo’, sendo que a pronúncia do som da letra ‘D’ é diferente no início destas palavras em certas variantes linguísticas do português falado no Brasil. A escrita não reflete a pronúncia de todas as variantes linguísticas e também não corresponde exatamente à pronúncia de ninguém. Por essa razão, em todas as regiões ocorrem dificuldades ortográficas para quem escreve confiando no ouvido. Ou seja, o exame atento da língua mostra que ela não é homogênea. O alfabeto fonético serve justamente para transcrever os sons e, por isso, pode ajudar a entender como ocorrem as diferenças entre fala e escrita. Segundo Blanche-Benveniste (2004) o princípio fundamental do alfabeto fonético é que cada unidade sonora da língua corresponde a apenas um sinal gráfico. Dubôis et al (1973) afirma que a maioria dos alfabetos fonéticos são modificações do alfabeto tradicional. O mais conhecido é o “Alfabeto Fonético Internacional” (A.F.I), criado em 1888 pela “Associação Fonética Internacional”. Transcrições fonéticas são feitas usando barras oblíquas para a 41748 representação de um segmento fônico e colchetes para a representação de uma transcrição linguística. Na transcrição de uma palavra, a sílaba mais acentuada é precedida de um sinal. De acordo com Cagliari (2008), para a transcrição de uma fala na qual a última sílaba ou palavra se torna muda na pronúncia, usa-se o símbolo º abaixo dos sons que desaparecem na fala. Abaixo, segue quadro sinóptico sobre princípios da fonética e da fonologia, elaborado a partir dos trabalhos de Dubôis et al (1973) e Silva (2007). Cabe ressaltar que o quadro não apresenta todos as representações do Alfabeto Fonético Internacional, mas apenas algumas aqui selecionadas por serem consideradas mais básicas para professores compreenderem as principais dificuldades que podem surgir no processo de alfabetização. Tabela 1 – Quadro sinóptico de alguns princípios da fonética e da fonologia: sons consonantais2 MODOS DE ARTICUL AÇÃO DOS SONS → OCLUS IVAS SURDA S OCLUS IVAS SONOR AS NASAI S SONO RAS FRICAT IVAS SURDAS FRICAT IVAS SONOR AS RETROFLE XIVAS SONORAS VIBRA NTES SONOR AS LATE RAIS SONO RAS LUGARES DE ARTICUL AÇÃO DOS SONS ↓ Obstrução total da passagem do ar Bloquei o à corrente de ar na cavidad e oral. Abaixa mento do véu palatino , com saída da corrente de ar pelas narinas. Fricção com impedimento parcial da passagem do ar. Curvamento da ponta da língua em direção ao palato duro. Batidas sucessiv as de um articulad or no outro Escape lateral da corrente de ar, pelo bloquei o da passage m central da corrente de ar na cavidad e oral. BILABIAI S: Dois lábios /p/ Pato /b/ Bola /m/ Mato LABIODE NTAIS: Lábio inferior com dentes superiores. /f/ Faca /v/ Vaca DENTAIS: Ponta da língua contra a parte posterior /t/ Tempo /d/ Dama /n/ Não / ſ / Caro /l/ Lado 2 Quadro sinóptico elaborado pela autora, com base nos trabalhos de Dubôis et al (1973) e Silva (2007). 41749 dos dentes incisivos superiores. ALVEOLA RES: Parte da frente até dentes incisivos . /s/ Sapo /z/ Zebra PALATO- ALVEOLA RES: Ponta da língua com a área da região alveolar ao palato duro. /tʃ/ Tia /dʒ/ Dia /ʃ / Chato /ʒ/ Gente /ɹ/ Girl, R caipira PALATAIS: Corpo da língua até palato mole /ɲ / Nhoque /ʎ/ Olho VELARES: Dorso da língua e palato mole /k/ Casa /g/ Gula /x/ Mar (Carioca) /R/ Rato Fonte: Quadro sinóptico elaborado pela autora. Tabela 2 – Quadro sinóptico de alguns princípios da fonética e da fonologia: sons vocálicos3 VOGAIS: Sons musicais produzidos por meio de vibrações periódicas do ar laríngeo que se escoa livremente pelo canal bucal. Transcrição Letra que representa /i/ Vi /e/ Vê /Ɛ/ Pé /a/ Pato /Ͻ/ pó, avó /o/ avô, ovo. /u/ Uva /ã/ antigo, anjo /ē/ Entre /Ĩ/ índio, imperador 3 Quadro sinóptico elaborado pela autora, com base nos trabalhos de Dubôis et al (1973) e Silva (2007). 41750 /õ/ onde /û/ um, umbilical Fonte: Quadro sinóptico elaborado pela autora. Não existe transcrição fonética perfeita. No entanto, o professor que aprende a fazer transcrição fonética, pode entender os motivos das trocas e omissões de letras pelos alunos. Seguem abaixo alguns exemplos de transcrição fonética de variações linguísticas prováveis. Tabela 3 – Exemplos de transcrições fonéticas de variações linguísticas prováveis4 Transcrição Fonética de um suposto falante Palavra escrita ortograficamente Como pode escrever o suposto falante Explicação provável ['pϽ tʃ] ºº POTE POT O som do “E” quase não é pronunciado. ['Kſa ſu] CLARO CRARU Troca o L pelo R na fala. Incompreensão de que, em final de palavra, se escreve com O e que se diz como U. ['mƐu] MEL MÉU Incompreensão de que se escreve Mel com L, mas se diz com u. Hipótese de que sempre ocorre acento quando o E tem som de /Ɛ/ ['fi ta] VIDA FITA Pronúncia da palavra sussurrando para escrever, ou falante que usualmente faz trocas de /v/ por /f/ e /d/ por /t/ na fala. [bo 'la sa] BORRACHA BOLASA Troca do /R/ por /l/ e do /ʃ/ por /s/ na fala. Fonte: Quadro elaborado pela autora. É bastante comum a troca de letras para a produção de sons com o mesmo lugar de articulação. Geralmente o alfabetizando troca, na escrita, as letras que representam sons sonoros, por letras que representam sons surdos com o mesmo lugar de articulação. Podem fazer isso por dois motivos: 1) Por reproduzirem o modo como falam, o que é comum em comunidades de origem germânica. 2) Por pronunciarem a palavra em voz baixa antes de escrever. Em ambos os casos, será comum as seguintes trocas: V por F – escrevendo “FAI” no lugar de “VAI”. D por T – escrevendo “TUTO” no lugar de “TUDO”. B por P – escrevendo “POI” no lugar de “BOI”. G por C – escrevendo “CULA” no lugar de “GULA”. 4 Quadro elaborado pela autora, com base nos trabalhos de Dubôis et al (1973), Silva (2007), Cagliari (2008) e Faraco (2003).41751 Cada erro pode ser interpretado de acordo com o contexto e a comunidade linguística da qual o aluno faz parte. A leitura significativa pode ser um importante meio de levar o aluno a compreender as relações entre letras e sons. Entretanto, nem toda a leitura pode ser compreendida pelo contexto. Por exemplo, se a palavra “PEIXE” estiver escrita seguida do desenho do peixe, ou em um texto de fácil compreensão, o aluno que troca o /b/ pelo /p/ poderá inferir o sentido. No entanto, o aluno que faz muitas trocas, poderá ter dificuldade em ler textos maiores, o que poderá desestimulá-lo a ler. Se o aluno tornar-se demasiado dependente do contexto para compreender a leitura, poderá enfrentar sérias dificuldades quando estiver diante de um texto mais afastado da oralidade. De acordo com Marcuschi (2010), as relações entre fala e escrita devem ser entendidas no quadro das práticas comunicativas e dos gêneros textuais. Há casos, como, por exemplo, os textos na área jurídica, em que há uma grande distância entre fala e escrita, mas, em outros, a distância entre oralidade e escrita é menor. A fala apresenta características que diferenciam identidades, o que não ocorre com a escrita. Ou seja, a oralidade apresenta marcas de regionalismos. Superar a dicotomia entre fala e escrita significa observar suas diferentes na perspectiva do uso, e não do sistema. Desse modo, faz-se importante verificar se o aluno consegue transitar da fala para a escrita preservando as diferenças de gêneros. No entanto, para que isso ocorra, é importante que o aluno entenda o que lê. A diferença entre o modo como fala e a palavra escrita poderá dificultar a leitura. Como lidar com as diferenças entre fala e escrita no processo de alfabetização? Cagliari (2008) chama atenção para o fato de que não se deve ensinar para o aluno que a escrita é uma transcrição da fala, e sim que se escreve de um jeito, mas se fala de outro. A leitura contextual fará o aluno compreender o sentido do texto, razão pela qual o professor deve ensinar a ler, apontando os sons das letras e o modo como elas são unidas para formar as palavras. O ensino por meio da silabação é infrutífero, pois, quando o professor silaba, produz uma fala artificial que não corresponde ao modo real como os alunos falam. Os alunos, quando o professor faz silabação, captam a ideia de que duas letras representam um som, enquanto o que ocorre no sistema alfabético é que a cada som corresponde uma letra ou um encontro consonantal ou vocálico. Sílabas são mais numerosas para memorizar do que as letras do alfabeto. Além disso, se o aluno não tem uma fala pausada e for levado a silabar as palavras, vai perceber alguns sons em detrimento de outros, produzindo uma escrita na qual as letras são “suprimidas”, ou como se diz, “comidas”. Por exemplo, o professor ensina a silabar 41752 produzindo [bϽϽϽϽ.laaaaaaaaa]. O aluno escreve OA ao invés de BOLA, pois só percebe as vogais na fala do professor. Ao ler a palavra BOLA, não entende o que está escrito. André (2014) em uma pesquisa na qual observou a aula de duas professoras alfabetizadoras ao longo de um ano letivo, concluiu que quando o professor ensina a silabar focalizando nos nomes das letras, produz, em grande parte dos alunos, uma dificuldade de leitura. Por exemplo, o professor repete inúmeras vezes com a turma: Be com A fica Ba, Be com E, fica Be, ensinando todas as sílabas desta forma. Este modo de ensinar cria, em alguns alunos, um vício de leitura que produz a não aprendizagem. O aluno, ao ler a palavra BOLA, repete a mesma silabação, e não entende que está escrito BOLA. Ao terminar de soletrar a segunda sílaba, já esqueceu o que estava escrito na primeira. A problemática fica maior quando são utilizadas cartilhas nas quais toda a palavra é escrita acompanhada de uma legenda ou desenho ilustrativo. O aluno busca o significado no desenho, e não exercita a leitura, que se torna mais difícil quanto maior é a palavra e o texto a serem lidos. O contexto poderá ajudar o aluno a compreender o que lê quando o texto for significativo, curto ou acompanhado de figuras. Para ler textos mais distantes da oralidade, as diferenças entre fala e escrita poderão provocar algumas dificuldades ou, até mesmo, a incompreensão. Essa é a razão pela qual se torna importante compreender o contexto linguístico dos alunos em processo de alfabetização, ou seja, a variedade linguística. Variedades linguísticas na sala de aula Defende-se aqui que a leitura de textos mais afastados da oralidade só pode ser compreensível quando houver domínio de um sistema que é totalmente arbitrário: as relações entre letras e sons da escrita alfabética. Os sons das letras e as letras que representam cada som não têm a mesma relação que existe entre um som onomatopaico e aquilo que ele representa. Entretanto, após certo conhecimento das letras, a escrita torna-se mais contextual no que tange às regras de codificação e decodificação. Ou seja, ao saber que o som /p/ é representado pela letra P e vice-versa, o alfabetizando pode decodificar a relação entre o som e a letra P em qualquer palavra e em qualquer texto. Saussure, linguista e filósofo suíço que viveu entre 1857 e 1913 e teve sua obra “Curso de Linguística Geral” publicada após sua morte, criou um sistema teórico sem relação direta com o ensino, mas que pode ser transposto para a compreensão do processo de alfabetização. Saussure é considerado o fundador dos princípios do Estruturalismo, método de investigação que se estendeu da linguística para as ciências sociais. Saussure (1916/2006) 41753 estabeleceu a distinção entre significante e significado. O signo é formado por significante e significado. Significante é a coisa em si, seja ela a palavra escrita ou um objeto. Significado é o sentido que tem a coisa. O objeto “mesa” e a palavra “mesa” são significantes. O sentido da palavra “mesa” para os falantes, leitores e ouvintes, é o significado. O significado pode ser múltiplo, mas o significante é um só. Saussure estabeleceu essa distinção para elaborar um método que permitisse o estudo das línguas desconhecidas ou mortas, como o sânscrito, descoberto em sua época. O objeto de estudo do autor foi o significante, e não o significado. O significante é arbitrário ou parcialmente arbitrário. Cada coisa tem um nome que é instituído socialmente. O significante não evoca o seu nome e precisa ser aprendido e transmitido socialmente, pois é arbitrário. As onomatopeias podem ser consideradas menos arbitrárias. Por exemplo, a imitação do miado do gato é próxima ao som que o gato produz. Mesmo assim, em diferentes idiomas a representação desta onomatopeia é realizada de diferentes formas. Todo signo é arbitrário, mas existem aqueles que são um pouco menos arbitrários, ou, como postula Saussure, “mais motivados”. Um exemplo é a relação entre números e numerais. Os numerais de 0 a 10 são totalmente arbitrários, assim como os numerais 20, 30, etc. O reconhecimento de alguns numerais permite que os demais sejam facilmente inferidos e, consequentemente, permite a infinita contagem sem a aprendizagem social do nome de cada número. Assim, por exemplo, “vinte e um” é mais motivado, ou menos arbitrário, do que vinte. Ao ensinar a ler e a escrever, é necessário que os significantes arbitrários ensinados façam sentido para o aprendiz. Ou seja, é importante que a aprendizagem da leitura ocorra em contexto significativo, por meio de textos e práticas interessantes, agradáveis, úteis e que sejam compreendidas pelo aprendiz. Ensinar a traçar as letras isoladamente pode ser uma prática que tenha como foco apenas o significante sem significado. Por esta razão há linguistas, como Geraldi (2005), que criticam a transposição do estruturalismo para o ensino da língua. O estruturalismo é um método de investigação que permite o estudo dos significantes.Entretanto, ocorrem transposições do estruturalismo de Saussure para a prática de ensino. Práticas pedagógicas estruturalistas são marcadas pelo ensino de regras e normas gramaticais e morfológicas descontextualizadas das interações humanas, dos sentidos dos textos e das práticas comunicativas. Na leitura, a combinação entre letras e sons se torna mais motivada, ou seja, menos arbitrária, depois que são apreendidos os sons que cada letra representa. 41754 Ao saber os sons que podem ser representados por cada uma das 26 letras do alfabeto, é possível decodificar qualquer texto. Nem sempre a codificação de sons em letras e a decodificação de letras em sons provocam a aprendizagem da leitura e da escrita. Se o aluno for ensinado apenas a codificar e decodificar, sem entender os sentidos da leitura e da escrita, poderá vir a não compreender aquilo que lê. Entretanto, pode ocorrer de um aluno entender que a leitura serve para o prazer, para a aquisição de informações e para a interação em uma sociedade letrada e, ainda assim, não aprender a ler e escrever, devido a problemas relativos ao domínio do código. Após aprender os possíveis sons de cada uma das 26 letras do alfabeto, a norma de que antes das letras P e B emprega-se apenas M, torna-se contextual. Mas a regra das relações entre a letra P e seu som pode ser arbitrária para o alfabetizando que, na fala, emprega o som /p/ em palavras que são ditas na língua culta com o som /b/ e são escritas com a letra B. Existe uma única forma de escrever e várias formas de falar, o que pode tornar mais complexo o ensino das relações entre letras e sons. Segundo Bagno (2011), o modelo idealizado de língua correta é a norma padrão, que não corresponde a nenhuma variedade de fala autêntica, mas apenas às normas contidas nas gramáticas. A fala culta, por sua vez, é aquela do falante com mais prestígio sócio-econômico e que, embora não corresponda exatamente às normas gramaticais padronizadas, é aceita socialmente. As demais formas de falar são estigmatizadas, devido ao preconceito social em relação aos seus usuários. Bagno representa o ideário da sociolinguística, segundo o qual a não aceitação das formas linguísticas das classes menos abastadas ocorre devido ao preconceito social. Entretanto, não se pode esquecer que, na fala padrão, ou mesmo na fala culta, as relações entre certas letras e seus sons são biunívocas ou contextuais. Segundo Bresson (2009), nossa escrita se baseia no alfabeto e constitui uma codificação da linguagem oral. A aquisição de uma língua no curso dos primeiros meses de vida implica o contato com a palavra do outro, mas não precisa ser explicitamente organizada e dirigida. Em relação à leitura e à escrita não ocorre o mesmo. O simples contato com o escrito não é suficiente para transmitir a leitura e a escrita, que não podem ser adquiridas por procedimento instantâneo. O problema da escrita alfabética, que tem mais sons do que letras para representá-los, é diferente que o problema da escrita silábica, que comporta várias centenas de grafismos. A escrita alfabética codifica os sons da linguagem. Não são os grafismos que portam o sentido da escrita, mas a linguagem que eles codificam. A dificuldade do ensino e da aprendizagem da 41755 escrita alfabética é que há mais sons do que grafismos para representá-los. Mesmo assim, há sons que podem ser representados por mais de um grafismo, assim como há grafismos que representam mais de um som. O conhecimento inicial da língua materna por cada indivíduo é oral, de modo que o saber pode apoiar-se em som e sentido. Ao falarmos e compreendermos, operamos com som e sentido. Ao escrever operamos com grafismo, som e sentido. A escrita é pouco natural, de modo que sua aquisição requer um ensino sistemático. Por esta razão, defende-se, aqui, que quando o aluno tem uma fala demasiadamente distante da escrita, de modo que as relações biunívocas e contextuais se tornem arbitrárias, torna-se necessário o ensino da norma culta na fala, a fim de que a compreensão da leitura seja possível. O ensino da fala culta, na perspectiva que aqui se defende, deve ocorrer quando o aluno troca, na fala, sons cujas relações com as letras que os representam na escrita sejam biunívocas ou contextuais em relação à norma padrão. Nestes casos, o ensino da fala deve ocorrer simultaneamente ou mesmo preceder o ensino da leitura e da escrita. Assim, se é lícito ensinar ao aluno que se escreve GENTE, mas se diz ['ʒê tʃi], uma vez que a letra E representa os sons /e/, /Ɛ/ e /i/, o mesmo não se pode dizer, por exemplo, do P e do B. O que se escreve com a letra P se diz com o som /p/ e o que se escreve com a letra B se diz com o som /b/. A escola é o lugar privilegiado para o ensino da escrita e da norma padrão da língua. O não ensino da norma padrão na fala pode acarretar em não aprendizagem da leitura e da escrita, uma vez que a maior distância entre fala e escrita torna mais numerosa a ocorrência de arbitrariedades do sistema de escrita para o alfabetizando. Assim, é importante que o professor saiba as relações biunívocas, no que tange à norma padrão, entre letras e sons, a fim de que perceba a distância entre a variedade linguística de seus alunos e a escrita padronizada. Com isso, poderá trabalhar a fala do aluno a fim de dirimir as dificuldades da aprendizagem do sistema de escrita. Segue abaixo o quadro das relações biunívocas e contextuais entre letras e sons. Cabe ressaltar que não se está tratando do ensino da ortografia, mas sim da leitura e da escrita no processo inicial da alfabetização, no qual, defende-se aqui, deve ser priorizado o ensino da leitura, ou seja, dos sons que as letras representam. No que se refere ao ensino da ortografia ocorrem diversas arbitrariedades, como o emprego do H em início da palavra e o emprego do S ou do Z entre vogais. 41756 2.1 Tabela 4 – Quadro das relações biunívocas na alfabetização5 Relações biunívocas na alfabetização Letras B D F M N P T V Sons /b/ /d/ /dʒ/ /f/ /m/ /n/ /p/ /t/ /tʃ/ /v/ Fonte: Quadro sinóptico elaborado pela autora. 2.2 Tabela 5 – Quadro das relações contextuais na alfabetização6 Relações contextuais na alfabetização Letras A E I O U C G J L R S X Z Sons /a/ /â/ /e/ /Ɛ/ /i/ /ê/ /i/ /î/ /o/ /u/ /Ͻ/ /õ/ /u/ /û/ /k/ /s/ /g/ /ʒ/ /ʒ/ /l/ /u/ / ſ / /ɹ/ /x/ /R/ /s/ /z/ /ʃ/ /ks/ /z/ /s/ /z/ /s/ Fonte: Quadro sinóptico elaborado pela autora. Antes de ensinar os sons que as letras representam, cabe ao professor observar como o aluno fala. O professor poderá dizer para o aluno que se diz [´õ vu] mas se escreve OVO, pois tal variação está de acordo com a norma padrão. No entanto, se disser que se diz [´kſa ſu] mas se escreve CLARO, ou se diz [´p Ͻ la] mas se escreve BOLA, poderá criar arbitrariedades a mais no sistema de escrita, dificultando o processo de leitura. Por esta razão, defende-se aqui, é necessário, concomitante, ou mesmo anteriormente ao ensino da escrita, apresentar a norma padrão da fala. Considerações Finais Embora seja importante o ensino das relações entre letras e sons, é preciso que o professor alfabetizador não siga receitas prontas, como as encontradas nos livros didáticos. Ao prestar atenção ao modo como os alunos falam, regras que são contextuais para falantes da norma padrão da língua portuguesa, são totalmente arbitrárias para falantes de outras 5 Quadro sinóptico elaborado pela autora com embasamento em Cagliari (2008). 6 Quadro sinóptico elaborado pela autora com embasamento em Cagliari (2008). 41757 variedades. Ensinar a fala padrão é importante para que sejam reduzidas as arbitrariedades do sistema de escrita para o aluno. Esta é a razão pela qual é importante mostrar aos alunos como aspalavras devem ser ditas segundo a norma padrão. Isso não pode, entretanto, ser feito de modo a humilhar o aluno e a reproduzir preconceito linguístico. Faz-se necessário entender que a norma padrão é apenas aquela que mais se aproxima da escrita, é mais aceita em meios formais, bem como mais utilizada em linguagens científicas, razões pelas quais deve ser empregada pelos alunos. Atividades como apresentação de teatro e narração de histórias podem ser excelentes oportunidades para ensinar a norma padrão. Ao professor, saber fazer a transcrição da fala dos alunos pode ser bastante útil para a previsão das dificuldades que surgirão no processo de alfabetização. REFERÊNCIAS ANDRÉ, Tamara Cardoso. Os usos do livro didático de alfabetização em Foz do Iguaçu, 2010. Estudo Etnográfico. Curitiba, PR: CRV, 2014. 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