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1 O ENSINO DA LEITURA NUMA SOCIEDADE MIDIÁTICA E IMAGÉTICA: LIÇÕES DO DESIGN GRÁFICO Cristiane Seimetz RODRIGUES Faculdade da Associação Beneficente da Indústria Carbonífera de Santa Catarina cris.seimetz@gmail.com Resumo: Interessado nos aspectos metodológicos do ensino da leitura em uma sociedade midiática, este trabalho propõe uma reflexão sobre as consequências da evolução das mídias nas práticas de leitura dos estudantes brasileiros. Para tanto, traça brevemente o percurso evolutivo nos instrumentos de registro do pensamento humano, os quais acarretaram a ascensão da imagem e da visualidade como importantes mecanismos na construção de textos, ao lado do código verbal escrito. Por fim, ante tais circunstâncias e preconizando a formação de leitores competentes, discute alternativas de trabalho em leitura a partir de textos oriundos de mídias bidimensionais, enfatizando a necessidade de se compreender como as possibilidades de formatação visual de uma mensagem escrita afetam seu significado. Palavras-chave: mídias; visualidade; leitura; Design Gráfico; ensino. 0.Introdução A invenção da escrita alfabética ampliou os horizontes da comunicação entre os homens, impulsionando a disseminação de diferentes culturas para além dos muros do espaço e do tempo. Todavia, a (r)evolução no repasse de informações e na construção de culturas cujos conhecimentos são universalmente compartilhados, deve-se também ao desenvolvimento de tecnologias responsáveis por possibilitar o registro, a preservação e a reprodutibilidade em massa da escrita. Portanto, se, de um lado, o advento da escrita impulsionou o avanço dos materiais e sistemas para sua notação, de outro, o desenvolvimento destes levou à sofisticação daquela, que foi se adequando às novas possibilidades de materialização e cedendo espaço a signos não verbais. Como resultado disso, a humanidade assistiu à caminhada em direção à sociedade midiatizada em que vivemos, na qual o domínio da decodificação do código escrito – a leitura – é condição necessária para uma plena participação social. Inicialmente, o cenário acima retratado parece promissor, posto que aponta o favorecimento, possibilitado pelo surgimento e avanço das mais diferentes mídias, da democratização dos conhecimentos produzidos socialmente. Contudo, o que demonstram os resultados obtidos pelo Brasil em sistemas de avaliação em letramento – como o PISA 1 - é alarmante: a maioria de nossos estudantes que chegam ao final do ensino fundamental não são leitores proficientes. Isso significa que, embora os suportes materiais de acesso à produção cultural e científica tenham sido ampliados e barateados, o alcance ao que eles codificam é drasticamente reduzido pelo analfabetismo funcional. Situação ainda pior, segundo relatório 1 Sigla para Programme for International Student Assessment, traduzido usualmente como Programa Internacional de Avaliação de Estudantes. Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758 mailto:cris.seimetz@gmail.com 2 nacional sobre o PISA 2000, quando a atividade de leitura envolvia textos descontínuos (BRASIL, 2001; SOUZA, 2012). Esses se caracterizam pela união da escrita a elementos como imagens, ilustrações, gráficos etc., ou seja, signos não propriamente verbais que, como apontado anteriormente, foram ganhando espaço na organização de textos devido à plasticidade constitutiva das mais variadas mídias correntes em nossa sociedade. O fracasso no ensino da leitura – e consequentemente da escrita – não é exatamente uma novidade no Brasil, já que vem sendo posto em evidência, constituindo o cerne da discussão sobre a melhoria do ensino fundamental no país, desde 1980, conforme referenciam os PCNs 2 da área de Língua Portuguesa (BRASIL, 1997). Também é notório que, desde então, as reformas educacionais pelas quais a disciplina passou – tanto no âmbito escolar quanto nas instituições de formação de professores – não foram capazes de instrumentalizar adequadamente professores para lidar com o processo de letramento. Para finalizar a pintura desse quadro, não se pode deixar de observar que as trocas sociais mediadas pela comunicação escrita são, hoje, de natureza um tanto diversa daquelas efetuadas no início da década de 80. Resulta disso uma preocupação nem sempre verificada nas salas de aulas brasileiras: uma metodologia de ensino de leitura que considere as mudanças nos meios de comunicação e como elas têm afetado a experiência dos indivíduos em suas práticas de leitura. É desse retrato do ensino de leitura no Brasil que o presente trabalho se ocupa, visto que interessa à reflexão aqui proposta discutir como a consciência e o conhecimento de novos meios de estruturação da mensagem escrita afetam os aspectos instrucionais para o desenvolvimento do letramento de estudantes já alfabetizados, que se encontram nas séries finais do ensino fundamental. Convém esclarecer que subjaz essa reflexão a experiência da autora como professora de Comunicação e Expressão no curso de Design Gráfico da Faculdade Satc. Em contato com o universo da comunicação visual e tendo de propiciar atividades de leitura aos graduandos que contemplassem o código verbal escrito sem, no entanto, desconsiderar esse universo, a autora pôde refletir acerca das próprias práticas de ensino de leitura à época em que atuava no ensino fundamental. Assim, aliando aspectos cognitivos e instrucionais da leitura às lições aprendidas com a área de Design Gráfico, o que se oferta a seguir é uma análise, em nível exploratório, das implicações para o ensino da leitura desencadeadas pela formação de uma sociedade midiática e imagética. 1. O desenvolvimento das mídias e a ascensão da imagem como signo Atualmente, é impraticável pensar no exercício da comunicação sem pensar nos veículos que a midiatizam. Desde os desenhos pré-históricos encontrados nas cavernas até os hipertextos em mídias digitais, o que o ser humano tem feito é possibilitar a troca de informações entre pessoas em lugares e, também, em tempos diferentes. Afinal, a escrita é isto: o desejo/necessidade de tornar perene algo tão fugaz como a fala. Foi a escrita a primeira tecnologia responsável por garantir que os conhecimentos produzidos em uma determinada cultura pudessem chegar a outras culturas, a outros lugares, a outras gerações de maneira mais fiel, se comparada à oralidade. Ela impulsionou – pelo uso que fizeram dela cientistas, pensadores, literatos, inventores, tradutores – o progresso intelectual, científico e, por que não dizer, industrial das nações. Como o desenvolvimento de 2 Parâmetros Curriculares Nacionais. Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758 3 toda técnica, o registro do código verbal escrito 3 nasce dependente de suporte e de instrumentos adequados para sua notação. Das barras de argila às telas de iPads, os suportes foram sendo melhorados, de modo a cumprirem de maneira adequada a função de registrar, preservar e transportar a cultura produzida. De todo modo, como já indicado na introdução deste artigo, a verdadeira (r)evolução no compartilhamento dos conhecimentos produzidos por diferentes sociedades – que levou mais tarde à formação de uma cultura partilhada mundialmente – só foi possível graças à criação da imprensa 4 , uma vez que essa possibilitou a produção de livros, antes artesanal, em massa. Como consequência de tal evolução nos meios de disseminação do conhecimento, houve o incentivo à alfabetização universal. Evidentemente, essa é uma tarefa ainda incompleta ou mal-acabada em muitos países. Todavia, não se pode negligenciar que começa aí a caminhada em direção ao mundo globalizado de hoje. Caminhadaque se torna marcha quando, além de livros e jornais, catálogos, cartazes, embalagens e revistas ilustradas passam a colocar em iteração pessoas e informações de cantos variados do mundo. Seja nos livros, seja em jornais e revistas, a imagem se fazia presente, de modo muito marginal, nessa jornada rumo à construção de uma cultura passível de ser partilhada universalmente, posto que, do surgimento da imprensa até o advento da fotografia, “[e]m textos impressos, a palavra é o elemento fundamental, enquanto os fatores visuais, como o cenário físico, o formato e a ilustração, são secundários ou necessários apenas como apoio” (DONDIS, 2007, p.12). Entretanto, a possibilidade de captura automática de uma imagem por meio de um suporte sensível à luz, bem como a automatização da reprodução dessa imagem original através do negativo, levou as trocas comunicativas escritas midiatizadas a outro patamar. Isso porque a invenção da máquina fotográfica, e seus sucedâneos, permitiram não só apreender a realidade de forma mais objetiva e fiel do que a pintura, xilogravura, litografia ou gravura em metal, mas também facilitaram ainda mais a reprodução de imagens em massa: [...] o meio de transmissão mais legítimo para as fotografias não é o porta- retratos, mas os jornais, revistas, outdoors, etc. Tanto isso é verdade que não demorou muito para o cinema realizar o potencial massivo latente nas fotografias, que o processo de difusão da televisão levaria às últimas consequências. É o espaço da comunicação. (SANTAELLA & NÖTH, 2005, p. 173) A partir da fotografia, então, tornou-se possível o nascimento do cinema e, a partir deste, o da televisão. Não por acaso, Dondis (2007, p. 12) afirma que são poucas as dúvidas de que a fotografia teve um imenso impacto sobre o estilo de vida contemporâneo. Paralelamente ao desenvolvimento desses meios de comunicação de massa, as sociedades desenvolvidas e em desenvolvimento viam o mercado de consumo crescer, o que acarretou a formação de uma área específica para motivar a venda dos produtos e serviços produzidos: a publicidade. Todo esse percurso, do livro em série à televisão e publicidade, introduz elementos novos nas práticas de comunicação social com relação à reciprocidade e ao engajamento no ato comunicativo. Em primeiro lugar, o interlocutor se vê enredado em comunicações nas quais é sempre receptor, um receptor sem chance de estabelecer diálogo 3 Ele próprio, “ainda que apresente suas próprias variações” (SCLIAR-CABRAL; SOUZA, 2011, p. 177), um meio de registrar o código verbal oral. 4 Esta, por sua vez, dependente da invenção do papel, como bem observaram Delisle e Woodsworth (1995) ao tratarem da correlação da imprensa e da tradução na disseminação do conhecimento. Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758 4 com o emissor da mensagem. Em segundo lugar, o interlocutor se vê atingido por informações pelas quais não procurou. Tal processo de evolução no meios de comunicação, já rico e complexo em suas consequências para elaboração de mensagens escritas, chega a seu auge com a introdução dos computadores e da internet na vida cotidiana, uma vez que projeta possibilidades ilimitadas de sofisticação gráfica na imprensa, cinema, televisão e publicidade. De posse da fotografia digital, programas de ilustração digital, programas de manipulação e tratamento do texto e da imagem, cria-se o ambiente ideal para a ascensão da imagem na composição de comunicações verbais escritas. Tal mudança já é anunciada, inclusive, como o início de um novo paradigma na maneira de se conceber a mídia bidimensional, como se pode observar no relato de Santaella & Nöth (2005, p. 69, grifo meu): [...] já nos meios gráficos, impressos, também se assistia ao desabrochar de uma nova linguagem híbrida, entretecida nas misturas entre a palavra e a imagem diagramática e fotográfica. Agora, com a nova geração de designers gráficos que se deliciam na manipulação das letras, palavras, configurações e desenhos nas telas informatizadas movidas a luz e cores que se multiplicam ao infinito, esse código híbrido já preenche todas as condições para se tornar dominante. De acordo com os autores, se não fosse a presença da oralidade no cinema e na televisão 5 , a fala estaria restrita às situações de comunicação face a face, sendo ultrapassada pela abrangência da escrita e da imagem. Certamente, não se pode negar a onipresença da mídia bidimensional na sociedade contemporânea e, com ela, o bombardeio de imagens a que somos submetidos. Inicialmente, a importância da imagem nos meios de comunicação impressos – mídias que são o alvo de interesse neste trabalho - se fez sentir de maneira mais inequívoca nas mensagens elaboradas com fim publicitário. Como o objetivo do texto publicitário não é informar, mas sim persuadir, a combinação de texto e imagem serve bem ao propósito de divulgar produtos e serviços (HESKETT, 2008). A imagem prevalece sobre à palavra no que diz respeito à rapidez com que é percebida e processada cognitivamente. Uma vez avistada, uma imagem não pode ser ignorada. Isso não implica, no entanto, que o mero fato de vê-la leve à sua compreensão 6 . Ciente disso, o meio publicitário tem explorado ao máximo a capacidade de atração da imagem. Exemplo disso são os outdoors, cartazes, anúncios publicitários em revistas e jornais que nos chegam a todo momento. Na verdade, o fluxo desse tipo de material é tamanho, e nosso contato com ele tão efêmero – andando pelas ruas da cidade, sentado no metrô, folheando distraidamente uma revista ou jornal à espera de uma consulta –, que sai na frente quem consegue comunicar mais com menos. Nessa corrida pela condensação de informações, chegou-se a convergência entre o verbal e o imagético. Basta pensar na composição das mensagens veiculas pelas mídias citadas acima. Mais do que chamar a atenção do interlocutor, o uso de imagens permite transmitir informações de maneira rápida e inovadora, servindo não mais como apoio, mera ilustração representativa do codificado verbalmente, mas antes complementando a informação escrita, assumindo a posição de signo e, assim, delimitando os significados passíveis de serem interpretados numa determinada peça gráfica. Essa mesma corrida pela condensação da 5 Não mencionam o rádio porque a discussão se limita às mídias bidimensionais. 6 Razão pela qual, em muitos contextos comunicacionais, a imagem não prescinde da palavra, pois esta, usualmente, determina a leitura daquela. Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758 5 informação, além de explorar o potencial sígnico da imagem, tem buscado aproximar a materialização do código verbal escrito à simultaneidade da imagem, minimizando o aspecto linear da escrita, como bem aponta Dondis (2007, p. 12-13) ao observar que “[a] impressão ainda não morreu, e com certeza não morrerá jamais; não obstante, nossa cultura dominada pela linguagem já se deslocou sensivelmente para o nível icônico”. Esse deslocamento, sentido primeiramente em textos publicitários, já migrou para gêneros de outras esferas sociais que buscam coadunar sua expressão linguística às novas possibilidades de codificação das mídias modernas. Mais que isso, esses gêneros buscam atender as expectativas do interlocutor com relação à composição de mensagens escritas. Essa, com certeza, é uma dentre as muitas implicações que a convergência entre imagem e escrita traz para o ensino da leitura, pois se correlaciona à motivação do leitor para engajar-se ou não numa atividade de leitura. Ademais, o uso de imagens como recurso para condensar informações gera textos cujos significados precisam ser construídos a partir do processamentode figuras de linguagem como a metonímia e a metáfora no plano visual, o que também traz consequências para uma metodologia de ensino que visa o letramento pleno do estudante brasileiro. É sobre o letramento pleno e as implicações para o seu alcance numa sociedade midiática e imagética que as próximas seções se ocupam. 2. O acesso significativo aos textos: a questão do letramento Compreender a linguagem escrita é um processo complexo, no qual intervêm diferentes fatores, os quais envolvem desde as características do texto (forma, conteúdo, linguagem) até as características do leitor (conhecimento prévio, expectativas, objetivos da leitura, estado emocional e físico, motivação). O que se espera, como resultado desse processo, é a construção de uma interpretação sobre o que foi lido (SOLÉ, 1998; SCLIAR- CABRAL, SOUZA, 2011; SOUZA, 2012). Nesse sentido, a leitura requer a interação entre texto e leitor, pois compreender a linguagem verbal escrita não se trata de mera decodificação do código alfabético, tampouco de retirar do texto os significados nele incrustados pelo autor. Assumir a leitura como um processo de interação entre texto e leitor significa reconhecer que se trata de uma tarefa desempenhada ativamente pelo leitor, que deve mobilizar capacidades cognitivas variadas para sua consecução, conforme explicitam Scliar-Cabral e Souza (2011, p. 186): A leitura requer que se realizem operações sobre a superfície do texto, nas entrelinhas bem como na relação do texto com o entorno, seja quanto às condições e objetivos de sua produção, seja com relação à sua inserção no meio de circulação. Portanto, ainda que a leitura faça parte do domínio da recepção da linguagem, trata-se de tarefa complexa, ativa e multifacetada. Deve ficar bem claro que o reconhecimento das letras e os valores atribuídos aos grafemas para reconhecer a palavra escrita (decodificação) é apenas um passo, embora necessário, no processo de leitura, cujo objetivo é chegar à compreensão e interpretação do texto e consequente internalização dos conteúdos para ampliação e aprofundamento do conhecimento. Importa observar que o fato de a leitura ser um processo ativo de construção de significados não avaliza que o leitor construa qualquer interpretação para o texto que tem diante de si. É preciso considerar, no ato de leitura, as intenções discursivas do autor, que, ao Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758 6 tecer seu enunciado escrito, tem em mente certos sentidos a serem comunicados. Daí a assunção de que a leitura é um processo interativo, pois, como explicita Souza (2012), o texto orienta o leitor sobre que significados podem ser construídos. Evidentemente, a depender do conhecimento prévio, dos objetivos da leitura e da motivação, os sentidos construídos a partir do texto podem estar mais ou menos próximos dos pretendidos pelo autor, mas, sob hipótese alguma, podem distanciar-se a ponto de ignorar ou contrariar o cerne da mensagem formulada pelo autor. A preocupação com o respeito às intenções do autor - que se poderia imaginar óbvia – não tem sido trabalhada consistentemente nas escolas brasileiras. Ao menos é o que demonstra a análise das respostas dos estudantes brasileiros às questões do Pisa 2000. Em parecer sobre a atuação do Brasil nesse sistema de avaliação, Castro (2001) aponta que os estudantes brasileiros projetam sobre o texto suas expectativas, atribuindo significado ao que leem apenas com base em sua própria bagagem cultural, desconsiderando as pistas textuais de que a interpretação resultante não condiz com o conteúdo pretendido pelo autor. Tal comportamento, análogo à adivinhação, não caracteriza o que se considera como acesso significativo ao texto. Só é possível lidar de maneira eficaz com a linguagem verbal escrita se o indivíduo envolvido nessa tarefa for ensinado a produzir sentidos. Embora ler seja um processo individual – apenas o leitor pode acionar as capacidades de que necessita para decodificar, fazer previsões, checar a validade de suas previsões, confrontar seu conhecimento prévio com o proposto pelo material lido, monitorar o desempenho e nível de atenção etc. –, ele precisa ser formalmente ensinado, pois lhe é impossível desenvolver a leitura da mesma forma como desenvolveu a fala: apenas em contato informal com outros leitores (SOUZA, 2012). Dessa forma, para que a criança se torne uma leitora competente, a escola cumpre papel fundamental – ou deveria cumprir – no que concerne ao desenvolvimento das capacidades citadas no início deste parágrafo. Infelizmente, esse papel tem sido desempenhado desastrosamente nas redes de ensino brasileiras, que não conseguem garantir a nossos estudantes o letramento pleno, entendido como “[...] a capacidade de um indivíduo se apropriar da escrita [recepção e produção], sendo capaz de utilizá-la em diversas situações exigidas no cotidiano”(BRASIL, 2001, p.71). O desastre no alcance desse ideal – a formação de leitores competentes – não se deve à falta de uma teoria e metodologia sobre o ensino da leitura. Pesquisas nacionais e internacionais sobre alfabetização e letramento já apontaram o caminho. Tanto é assim que os documentos norteadores da educação brasileira (PCNs) assumem, para o trabalho com a disciplina de língua portuguesa, que, [c]omo se trata de uma prática social complexa, se a escola pretende converter a leitura em objeto de aprendizagem, deve preservar sua natureza e sua complexidade, sem descaracterizá-la. Isso significa trabalhar com a diversidade de textos e de combinações entre eles. Significa trabalhar com a diversidade de objetivos e modalidades que caracterizam a leitura, ou seja, os diferentes “para quês” — resolver um problema prático, informar-se, divertir-se, estudar, escrever ou revisar o próprio texto — e com as diferentes formas de leitura em função de diferentes objetivos e gêneros [...].É preciso, portanto,oferecer-lhes os textos do mundo: não se formam bons leitores solicitando aos alunos que leiam apenas durante as atividades na sala de aula, apenas no livro didático, apenas porque o professor pede. Eis a primeira e talvez a mais importante estratégia didática para a prática de leitura: o trabalho com a diversidade textual. Sem ela pode-se até ensinar a Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758 7 ler, mas certamente não se formarão leitores competentes. (BRASIL, 1997, p. 41- 42) Todavia, mais uma vez os resultados no Pisa denunciam que essa não tem sido a prática das salas de aula brasileiras, salvo raras exceções. Ainda se prioriza no ensino da língua portuguesa o conhecimento de regras gramaticais, de nomenclaturas vazias, rótulos para estruturas que não fazem parte do repertório linguístico do aluno, e não o fazem justamente pelo pouco trabalho com leitura ou, pior, pelo trabalho com leitura exclusivamente didático-literário 7 . São escassas as situações de leitura com textos que circulam cotidianamente fora dos muros da escola. Como resultado disso, mais e mais os estudantes brasileiros "são capazes de comportamentos escolares de letramento, mas são incapazes de lidar com os usos cotidianos da leitura e da escrita em contextos não escolares" (SOARES, 1999 8 apud BRASIL, 2001, p.72). É preciso que a escola, os educadores, façam seu trabalho de maneira mais autônoma no que diz respeito ao uso de livros didáticos. É preciso que os estudantes sejam postos em contato com textos que representem usos reais e cotidianos da linguagem, usos socialmente valorizados porque requeridos para a participação cônscia e efetiva na sociedade moderna, usos que não os deixem à margem da torrente de comunicações sobre as quais se falou na seção anterior. Entretanto, acima de tudo, é preciso que se deem aos professores alternativas de trabalho. Razãopela qual a próxima seção se dedica a apontar e discutir atividades de leitura pautadas em usos reais e cotidianos da linguagem escrita. 3. Pensando as práticas de leitura na e para a vida cotidiana: o uso das mídias Se a função do ensino fundamental quanto ao ensino de língua é propiciar que “os alunos adquiram progressivamente uma competência em relação à linguagem que lhes possibilite resolver problemas da vida cotidiana, ter acesso aos bens culturais e alcançar a participação plena no mundo letrado” (BRASIL, 1997, p. 33), há que se considerar, para o alcance de tal objetivo, que as formas de interação no mundo letrado do século XXI apresentam características multifacetadas. Uma dessas características diz respeito ao fato de que, atualmente, somos comunicados mais do que comunicamos. Exemplar é o caminho de casa para a escola. Nele a criança se depara com inúmeras mensagens verbais escritas, como cartazes; outdoors; adesivos em veículos, nos pertences do colega; placas de sinalização (de trânsito, de comércio); faixas comemorativas; entre tantas outras possibilidades. Outra característica é que os meios pelos quais as informações nos chegam se diversificaram, se especializaram, mantendo em comum, no entanto, o desejo de atingir o maior número possível de pessoas no menor tempo ou espaço possível. Para alcançar esse objetivo, as 7 São oferecidos aos estudantes os textos que compõem a obra didática, geralmente contos, crônicas, poemas e excertos de romances. Raramente, e equivocadamente, ofertam-se obras literárias completas para leitura, posto que “a leitura” dessas são verificadas por meio de resumos ou resenhas avaliativas. Gêneros a que os alunos comumente são expostos apenas na condição de produtores, ignorando-se a necessidade de leitura dos mesmos de forma que se conheçam os elementos formais e discursivos que caracterizam esses textos. 8 SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758 8 mídias bidimensionais, conforme já discutido, têm investido na produção de textos híbridos, que articulam signos verbais e não verbais na composição de suas mensagens. Nessa perspectiva, o esperado é que nossos estudantes sejam ensinados a produzir sentido para as comunicações com as quais travam contato por meio de diferentes mídias. Trata-se de uma necessidade para o devido traquejo na sociedade midiatizada, principalmente quando sabemos, de acordo com os resultados do PISA, que os alunos brasileiros apresentam competência em leitura ainda menor ao lidar com textos descontínuos, que se servem da escrita e de elementos não verbais (BRASIL, 2001). Assim, o que se propõe a partir daqui é discutir algumas atividades de leitura que priorizam textos descontínuos – híbridos quanto ao uso do verbal e não verbal – e como esses mesmos textos impactam a prática dos professores de língua portuguesa, minimizando algumas das dificuldades enfrentadas no trabalho com leitura. 3.1 Extensão textual e motivação para leitura Que educador já não viu suas excelentes intenções no trabalho com leitura ruírem por conta do tamanho do texto ofertado? Por mais interessante que a apresentação possa soar, aquela centelha de empolgação se esvai pelo mero vislumbre de “uma página cheia de frases”. Isso mesmo: uma página. Nossos alunos se assustam – como pude verificar pessoalmente no ensino fundamental e no superior – até mesmo com textos de apenas uma página. Seria isso preguiça? Não, ou não totalmente. Na verdade, essa reação pode ser considerada natural e esperada se considerarmos os tipos de mensagens escritas a que esses estudantes estão expostos cotidianamente 9 . Em sua maioria, são textos resultantes do deslocamento da linearidade do signo verbal para a simultaneidade da imagem (cf. seção 1). Como consequência, não apenas se percebe a mescla entre signo verbal e imagem, mas também a própria disposição gráfica de parágrafos em revistas, jornais e livros foi afetada. Publicações de renome, consolidadas no mercado editorial, apostam em textos visualmente mais leves para conquistar e fidelizar novos leitores. Vejamos alguns exemplos: 9 Convém lembrar que, nos meios eletrônicos, muitos de nossos estudantes recebem e emitem mensagens limitadas a 420 caracteres – número a partir do qual o Facebook aciona a ferramenta “ver mais”. Limite ainda menor oferece o Twitter: apenas 140 caracteres. Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758 9 Figura 1 - Matéria de capa Superinteressante, n. 8, 1989, p.20-21. Figura 2 - Matéria de capa Superinteressante, ed. 300, 2012, p. 40-41. A figura 1 retrata a disposição dos parágrafos, tipografia e espaço empregado na página da revista Superinteressante, na matéria de capa, em 1989. A figura 2 retrata os mesmos elementos, da mesma revista, também em matéria de capa, em 2012. Em ambos os exemplares, tomou-se o cuidado de captar as páginas subsequentes à página de abertura, pois essa tem como característica, na maior parte das revistas, empregar menos texto, dando destaque a imagens ou a pequenas porções textuais que convidam à leitura. Comparando o Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758 10 exemplar de 1989 ao de 2012, pode-se perceber que o espaço usado para texto é menor, o que se evidencia pelo número reduzido de colunas no exemplar de 2012. Embora a fonte do corpo do texto seja maior na versão de 1989, o que pode sugerir melhor legibilidade, o acúmulo de quadros e colunas e a tipografia dos títulos dão um aspecto pesado, carregado para as páginas. O mesmo não ocorre na versão de 2012, em que o número reduzido de colunas e de quadros – o que justifica a fonte menor, de forma a encaixar mais texto em menos espaço – , o emprego maior de imagens e a tipografia dos títulos, em cor suave e sugerindo movimento, atribuem um aspecto visualmente leve às páginas. Em algumas publicações, a página de abertura da matéria de capa é apresentada de forma considerada inconcebível para os padrões vigentes 20 anos atrás –, tamanho o espaço “desperdiçado”. Um exemplo disso é a revista Vida Simples (ver figura 3), que procura refletir no leiaute mais leve, descontraído, a temática abordada: uma vida sem complicações. Figura 3 - Abertura da matéria de capa Vida Simples, ed. 117, 2012, p.28-29. Além de diminuírem o espaço ocupado pelos elementos verbais e não verbais, muitas revistas investem na elaboração de infográficos que detalham, de forma dinâmica, informações tratadas superficialmente no texto-base, resumem suas informações fundamentais ou, ainda, se constituem na principal fonte de informações, como o empregado na seção Numeralha da revista Galileu para retratar a balança comercial brasileira: Figura 4 - Infográfico, Galileu, n.250, 2012. Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758 11 Por ser um fator já reconhecido como inovador e diferenciado na corrida mercadológica, a leveza e visualidade da página, bem como os infográficos, são aspectos que têm sido explorados tanto quanto possível. Até mesmo em sumários, como se pode observar na figura abaixo: Figura 5 - Sumário em forma de infográfico, Superinteressante, ed.300, 2012. A aposta nessa leveza visual – associada à extensão – e na dinamicidade dos infográficos vem, certamente, do reconhecimento de que os indivíduos letrados, saturadosde informação ao longo do dia, decidem dedicar sua atenção a composições gráficas que aparentam demandar menos tempo de leitura: a política do mais com menos inaugurada pela publicidade e consolidada no imaginário da população pela rapidez da comunicação em meios como a televisão e a internet. Como esperar, então, que o aluno se engaje alegremente em uma tarefa de tamanho esforço cognitivo (SOLÉ, 1998) quando essa toma como ponto de partida textos que contrariam o que ele vivencia no contato com a sociedade letrada de que participa? Não se trata aqui de justificar a atitude de nossos estudantes e dar-lhes, por isso, o aval para evitarem textos extensos. Contudo, é preciso conquistá-los a partir do que lhes é próximo, a partir do que seus olhos estão habituados a ver e, só depois, progressivamente, mostrar-lhes os benefícios de entregar-se a leituras de qualquer extensão apenas pelo prazer que podem proporcionar, já que até mesmo o gosto pode ser educado. É fundamental, entretanto, que os traços de personalidade dos leitores em formação sejam respeitados. Embora evidente, parece que nós, os professores, nos esquecemos de uma das primeiras lições de quem lida com comunicação: o interlocutor deve ser persuadido, nunca forçado (BLIKSTEIN, 2008). Lembrar dessa lição é importante porque, se as experiências com mensagens escritas não forem positivas, prazerosas, as chances de não se saber lidar com elas aumentam, desencadeando dificuldades de leitura, tal como alerta Souza (2012) ao explorar a relação entre as memórias do indivíduo em relação ao escrito e o aprendizado da leitura. Portanto, motivar os alunos a atividades de leitura passa, inicialmente, por compreender sua resistência à extensão, e mesmo à disposição gráfica, de determinados textos e propor-lhes alternativas visualmente mais atrativas. Não deriva daí, entretanto, que devamos, os educadores, abrir mão Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758 12 da complexidade e densidade textual adequadas ao nível de ensino de nossas crianças. Afinal, densidade textual não se mede pelo número de páginas ou frases de um texto. 3.2 Rasos só na aparência: o outdoor e o cartaz em sala de aula A necessidade de oferecer textos visualmente mais atrativos aos estudantes pode ser satisfatoriamente sanada com o uso de gêneros que circulam em mídias como o outdoor e o cartaz. Trata-se de alternativas interessantes não só por conta do tamanho da mensagem neles veiculada, característica visual com a qual os estudantes já estão habituados, mas também pela composição da mensagem, que mescla elementos verbais e não verbais, o que exige a construção do significado a partir da integração de “informações do texto e do material gráfico” - uma das principais dificuldades em leitura dos alunos brasileiros, a qual, segundo o Relatório Pisa 2000, “precisa ser mais trabalhada nas escolas” (BRASIL, 2001, p. 44). Para ser bem-sucedido, o trabalho com outdoors e cartazes deve respeitar pelo menos dois critérios na seleção das peças 10 que serão lidas: 1. A mensagem veiculada por eles deve manter relação com o contexto histórico, social, cultural e local vivenciado pelos estudantes; 2. A composição da mensagem deve apresentar uma relação de complementaridade entre imagem e texto. O respeito ao primeiro critério não se trata de uma novidade, visto que está relacionado ao conhecimento prévio do leitor. No entanto, é necessário salientar a observância dessa condição devido à natureza efêmera das mensagens comunicadas nesse tipo de mídia, que suportam situações de comunicação bastante específicas quanto à tema, finalidade, público-alvo, região/local em que é exposto. Razão pela qual um cartaz publicitário difere significativamente de um cartaz informativo, e esse de um cartaz de campanha – considerado aqui como toda peça cuja finalidade é motivar a população a desenvolver hábitos socialmente desejáveis. Para ilustrar tal problema, tomemos o seguinte cartaz, com características de uma peça informativa e de campanha: Fonte: Tomomich11 10 Neste trabalho, essa palavra é empregada como termo genérico para identificar qualquer mensagem veiculada por mídia bidimensional impressa. Nesse sentido, quando a mensagem muda, mas a mídia é a mesma, tem-se outra peça. Da mesma forma, quando a mensagem é a mesma, mas a mídia muda, tem-se também outra peça, posto que a natureza do suporte, muitas vezes, influencia a forma como a informação é expressa. Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758 13 Criada para a identificação dos ecopontos para coleta de lixo reciclável em Bertioga (SP), a leitura dessa peça pode resultar incompleta para indivíduos que não conheçam a cidade de Bertioga. Embora o tema da reciclagem e o campo semântico envolto por ele façam parte do conhecimento prévio de estudantes das séries finais do ensino fundamental, o desconhecimento da cidade pode impedir que a ilustração – o símbolo de reciclável construído pela união dos golfinhos vermelho, verde, amarelo – receba a devida atenção durante a (re)construção das intenções discursivas do cartaz. O objetivo da referida imagem não é apenas comunicar a existência de um ponto de reciclagem, mas lembrar aos moradores de Bertioga que, ao dar um destino correto ao lixo reciclável, eles estão protegendo a vida marinha e, por extensão, o mar, a praia. Ora, sem a informação de que Bertioga é uma cidade litorânea, a probabilidade de os estudantes tomarem a ilustração apenas em seu sentido denotativo é muito grande. Então, para lidar com essa dificuldade, o professor precisaria fazer o caminho inverso, levando os leitores a se questionarem sobre o porquê de o símbolo de reciclável ter sido construído pela união de “golfinhos coloridos”. Isso permitiria aos estudantes chegar a um dado do contexto em que a peça foi produzida e, a partir dele, construir o significado conotativo a que o símbolo de reciclável assim representado remete. Assim, cabe ao professor julgar se a falta de uma determinada informação sobre as condições de produção da peça com a qual pretende trabalhar pode, de fato, inviabilizar sua compreensão, bem como se a linguagem e tema são adequados ao conhecimento prévio dos estudantes. Vencida essa etapa, há que se considerar o segundo critério, cujo papel é garantir que os sentidos da mensagem veiculada sejam construídos pela junção do verbal ao não verbal. Sob essa perspectiva, a relação entre texto e imagem deve ser de natureza tal que uma dependa da outra para a transmissão da informação 12 , tal como no exemplo abaixo: Fonte: Associação para a Promoção da Segurança Infantil - APSI 13 11 Disponível em: <tomomichi.wordpress.com/2011/02/24/ecoponto-bertioga>. Acesso em: 28 mar. 2012. 12 Quanto à relação imagem-texto para a transmissão de informações, Santaella e Nöth (2005) trabalham com três escalas num contínuo que vai da redundância à informatividade. No extremo da redundância, a primeira escala indicada pelos autores, estão composições em que a imagem serve apenas de ilustração para o texto, sendo inferior a ele. No extremo da informatividade, a segunda escala, a imagem é superior ao texto, domina-o. Entre os extremos, estaria, segundo os autores, a terceira escala, chamada de complementaridade, na qual imagem e texto tem a mesma importância, visto que se complementam. 13 Disponível em: <www.apsi.org.pt/24/apsi_armacao_de_pera_outd1049.jpg.> Acesso em: 28 mar.2012. Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758 14 O outdoor, produzido em Portugal, é uma tentativa de diminuir o número de afogamentos no litoral português. Não se trata, contudo, de uma campanha para evitar qualquer tipo de afogamento, mas sim para evitar o afogamento infantil. A informação de que o tema da peça é o afogamento chega por intermédio verbal. A restrição ao afogamento infantil chega por meio da imagem do ursinho, que substitui a criança, caracterizando o emprego de duas figuras de linguagem: a metonímia e o eufemismo. Metonímia porque a substituição é possível graças a associação que fazemos entre a criança como dona e o ursinho como posse. Daí relacionarmos a presença da posse – o ursinho – como um efeito possível apenas mediante a presença anterior – ainda que não representada – da dona. Como a substituição da imagem da criança pela imagem do ursinho tem o objetivo de atenuar o impacto da mensagem, tem-se o eufemismo. Além do ursinho, há outros elementos visuais que remetem ao universo infantil: a tipografia utilizada na parte verbal, comum em livros infantis; os tons da fonte; e, menos evidente, na parte debaixo do outdoor, outros brinquedos. As duas peças consideradas até aqui são bons exemplos de atividades que levam os alunos a desenvolverem a capacidade de integrar elementos verbais e não verbais na construção de sentidos durante a leitura. Ademais, devido à natureza constitutiva dessas mídias, cuja finalidade é veicular mensagens unívocas, existe o direcionamento quanto aos significados que são passíveis de serem construídos. Tal característica permite também propor exercícios que levem à superação da dificuldade que nossos estudantes têm em manter-se fiel às pistas textuais. Como revela Castro (2001, p.84) em parecer sobre o desempenho do Brasil no Pisa 2000, os alunos brasileiros constroem interpretações que “(...) vêm de suas opiniões, preconceitos ou apreciações, quando a pergunta é explícita e remete ao que está escrito no texto. Tal forma primitiva de leitura não é compatível com a vida produtiva em uma sociedade moderna”. Ciente disso, o professor tem como responsabilidade proporcionar atividades de leitura em que o estudante seja levado a confrontar seu conhecimento prévio ao que está registrado no texto, sendo corrigido sempre que sua interpretação revelar projeção excessiva sobre o escrito. Uma boa alternativa para esse tipo de trabalho é ofertar peças em que a informação tenha sido codificada via metáfora (verbal ou não verbal), pois (...) o texto metafórico pode ser um ótimo exercício para desenvolver monitoria e estratégias de busca de coerência. A monitoria, observando os padrões textuais, deveria ser uma forma de desenvolver a consciência de que o próprio texto pode propor soluções aos problemas e ao mesmo tempo restringir a interpretação possível. (GRIMM-CABRAL, 2000, p.68) O processamento de metáforas, esclarece Grimm-Cabral (2000), exige do leitor realocar informações, uma vez que os referentes fornecidos textualmente precisam ser reinstalados de forma que ele integre seu conhecimento prévio ao novo conhecimento/significado introduzido pelo texto metafórico. Daí a complexidade desse tipo de tarefa, que também pode ser exercitada com o uso de peças como a fornecida abaixo: Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758 15 Fonte: Acervo da autora. Ao leitor proficiente pode não parecer, mas construir a interpretação para a imagem em destaque nesse cartaz demanda um alto esforço cognitivo para aprendizes nas séries finais do ensino fundamental. De um lado, exige-se a mobilização de conhecimento prévio sobre o ditado popular “mais apertado do que uma lata de sardinha”, sobre o qual a metáfora visual no cartaz é construída. De outro, exige-se que ele reconstrua esse significado a partir das pistas textuais e visuais fornecidas na peça. É necessária também a associação dessa imagem metafórica àquilo que se pretende conceituar por meio dela: roupas da marca Hering, conforme indica a assinatura visual na parte inferior do cartaz. A associação entre a marca e a imagem já se dá na própria configuração imagética da lata de sardinhas, a qual remete ao símbolo representativo da marca Hering. De posse de todos esses elementos, o aluno deve se perguntar qual a relação sígnica entre eles. Confrontando a imagem com o fato de que se trata de uma peça publicitária sobre uma marca de roupas e com a palavra “superconfortável”, o esperado é que o significado de “mais apertado do que uma latade sardinha” seja realocado, uma vez que não seria coerente anunciar roupas “mais apertadas do que uma lata de sardinha”. Tanto é assim que o cartaz dirige a interpretação desejada em dois planos: o visual, dando destaque ao espaço confortável dividido por apenas duas sardinhas na lata, e o verbal, com a palavra “superconfortável”. Não obstante, muitos aprendizes apresentam dificuldade em integrar essas informações e ficam perplexos sobre o porquê da lata de sardinhas na imagem, que é tomada apenas no sentido já conhecido. Frente a essa dificuldade, “cabe ao professor de leitura desenvolver em seus alunos a consciência de buscar as pistas linguísticas para os conceitos que às vezes são mais obscuros, acionando, ou até mesmo criando, os esquemas necessários para a compreensão do texto” (GRIMM-CABRAL, 2000, p.68). Disso, concluí-se que, tanto quanto ser ensinado a lidar com a escrita, o estudante necessita ser ensinado a lidar com a leitura do que não é verbal, uma vez que se assume que “a própria operação de ler ultrapassa os limites da decifração linguística, atingindo um campo semiótico amplo que não se esgota nas práticas escolares nem no ensino disciplinar da língua”(BRASIL, 2001, p.73). Conforme se pode depreender das peças analisadas, o trabalho com cartazes e outdoors, não só coloca os estudantes em contato com textos que lhes são familiares, mas também representam um desafio quanto à construção de seu significado, demonstrando que a densidade textual de uma mensagem não está atrelada ao seu tamanho. Evidentemente, o Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758 16 trabalho com leitura não se esgota aí. A meta do ensino de leitura é capacitar o aluno para lidar com quaisquer tipos de texto, veiculados nas mais diferentes mídias e de extensões variadas. Chama-se atenção aqui, todavia, para a necessidade premente de se considerar nos exercícios de interpretação textos que reflitam as transformações pelas quais as mídias passaram. Afinal, “[s]e a invenção do tipo móvel criou o imperativo de um alfabetismo verbal universal, sem dúvida a invenção da câmera [fotográfica] e de todas as suas formas paralelas, que não cessam de se desenvolver, criou, por sua vez, o imperativo do alfabetismo visual universal (...)” (DONDIS, 2007, p.1). 4. As lições do Design Gráfico: a visualidade das mensagens midiáticas As seções 3.1 e 3.2 abordam uma reflexão sobre uma metodologia de ensino de leitura que considere as mudanças nos meios de comunicação e como elas têm afetado a experiência dos indivíduos em suas práticas de leitura. O ensino da língua portuguesa no Brasil, por razões variadas, vem negligenciando tal carência. No entanto, mais e mais, outdoors, folders, jornais, anúncios publicitários, sites, embalagens, cinema, televisão sinalizam a convergência entre linguagem verbal e linguagem não verbal, enfatizando a importância da imagem e da visualidade nas práticas de registro do pensamento humano, as quais já não envolvem apenas o uso da escrita. Campos variados do saber, como a Semiótica e a Linguística Textual, tem apontado a importância de se considerar o papel da imagem na leiturade textos que circulam socialmente. Entretanto, não só a imagem entendida como representação de algo – a imagem figurativa – tem se mostrado crucial na codificação de mensagens verbais escritas nas mídias citadas. A imagem em seu aspecto mais abstrato, não figurativo, chamado aqui de visualidade, deixou de ser apenas forma para ser também função. Mais que organizar a informação no plano de expressão, o modo como a disposição gráfica dos elementos é explorada permite comunicar. Esse conhecimento tem sido evidenciado pelos designers gráficos, profissionais responsáveis por comunicar visualmente uma mensagem específica. Assim, nosso repertório visual relacionado à comunicação de massa vem sendo ampliado pelas criações desses profissionais que nos levam a perceber que o significado de algo pode estar “(...) tanto na forma de dizer, na maneira como as palavras se apresentam, quanto nas palavras em si”(HENDEL, 2006, p.4-5), conforme ilustra o anúncio publicitário a seguir, veiculado em uma revista: Figura 6 - Anúncio publicado na revista Saúde, n.316, 2009. Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758 17 O elemento que mais chama atenção nesse anúncio, assim que ele é visto, é a parte textual “Seja equilibrado”, centralizada entre as duas páginas que compõem a peça. Ao empregar essa afirmação, o anúncio manifesta um significado, uma intenção discursiva, que não é explícita: para ser equilibrado é preciso ler a Revista Veja. Por ser um significado indireto, ele precisa ser reconstruído pelo leitor a partir dos elementos que compõem essa peça. Para tanto, o leitor precisa se dar conta de que há uma organização intencional dos elementos verbais e não verbais de forma que esteticamente a mensagem resulte equilibrada, o que se observa na centralização do dizer “seja equilibrado” e no espaço restante no entorno dos elementos textuais. O espaço está distribuído proporcionalmente à esquerda e à direita das páginas e em cima e embaixo. Os tons de azul e o branco também remetem a noção de equilíbrio. No canto inferior direito do anúncio, há a assinatura da Revista Veja, com seu slogan “ler é indispensável”. Contudo, não apenas aí a presença da revista é perceptível. A associação entre a característica de equilíbrio e a Revista Veja já se dá na própria parte textual centralizada no anúncio na medida em que a palavra “seja”, além de ser próxima visualmente da palavra “veja” (só muda o v pelo s), é escrita com a mesma tipografia que caracteriza o logotipo da Revista Veja. Aproximando, então, visualmente o nome da revista “Veja” ao verbo “Seja”, complementado pelo predicativo “equilibrado”, a mensagem dirige a leitura para que se chegue à conclusão de que a Veja é equilibrada e que, portanto, se o leitor deseja ser equilibrado, deve lê-la. Cabe observar que um conteúdo complexo foi comunicado por meio dessa composição aparentemente simples que se serve de forma muito eficaz de expedientes visuais para transmitir informação e persuadir. Desse modo, após a análise dela, não há como ignorar que as palavras podem ser visualmente manipuladas “para influenciar a maneira como o leitor as vê e reage a elas” (HENDEL, 2006, p.5). Tal manipulação pode servir a muitos propósitos: ideológicos, maquiando a real intenção de um dizer; atrair a atenção do leitor, ao propor algo visualmente inovador; fazer com que o leitor se identifique com o texto, a tipografia em livros infantis é um exemplo disso; criar uma atmosfera visual em consonância com o conteúdo do texto, empregando uma tipografia que remeta ao tema tratado. Sob tal perspectiva, as escolhas feitas pelo designer gráfico podem influir de maneira sutil ou radical nas expectativas que o leitor cria quanto ao material a ser lido, bem como na motivação para engajar-se em tal tarefa (HENDEL, 2006). O mesmo vale para a composição de livros, em que a tipografia empregada, o formato físico do volume e a diagramação dos elementos gráficos levam o leitor a esperar por um determinado tipo de assunto. Frente a isso, nós, os professores, não podemos deixar de propiciar aos alunos experiências de leitura em que o visual comunica tanto quanto o verbal. Se desde que passam a participar da vida em sociedade as crianças necessitam ser levadas a desenvolver a capacidade de escutar ativamente, além do processo natural de ouvir (BRASIL, 1997, p.70); da mesma forma, necessitam ser levadas a desenvolver a capacidade de enxergar ativamente, além do processo natural de ver. O problema nisso é que ainda são escassas as pesquisas que se preocupam em avaliar os impactos da visualidade e da imagem no processamento de mensagens veiculadas pelos modernos meios de comunicação. Aliás, muito do que se sabe a respeito disso está voltado para os meios de produção dessas mensagens e não de sua recepção/processamento. E mesmo no que concerne à produção desse tipo de mensagem o que se sabe ainda é pouco. Daí Dondis (2007, p.27), preocupada em formular uma sintaxe da linguagem visual por meio da qual comunicadores visuais possam orientar seus trabalhos, alertar que Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758 18 [a] natureza dos meios de comunicação enfatiza a necessidade de compreensão de seus componentes visuais. A capacidade intelectual decorrente de um treinamento para criar e compreender as mensagens visuais está se tornando uma necessidade vital para quem pretenda engajar- se nas atividades ligadas à comunicação. É bastante provável que o alfabetismo visual venha a tornar-se, no último terço de nosso século, um dos paradigmas fundamentais da educação. Por fim, importa dizer que temos em mãos um aparato amplamente rico com o qual propor as mais variadas experiências de leitura. Leitura que não tem por que marginalizar a escrita; não é isso o que se propõe aqui. Enfatizar a ascensão da visualidade e da imagem como instrumentos de codificação que convergem com o verbal não significa desvalorizar mensagens que não se valem desses expedientes. Cada ato comunicacional, seja ele verbal, seja não verbal, seja híbrido, serve a intenções discursivas diferentes. Portanto, se desejamos formar cidadãos mais bem preparados para a vida participativa e crítica em sociedade, devemos garantir que eles saibam reconhecer a que intenções discursivas uma dada comunicação serve e que, assim, possam fazer uso da que melhor corresponde a suas intenções discursivas, atendendo o que preconizam os PCNs sobre o letramento pleno. Referências BLIKSTEIN, Izidoro. Técnicas de comunicação escrita. 22. ed. São Paulo: Ática, 2008. BRASIL. Ministério da Educação. Pisa 2000: Relatório Nacional. Brasília, 2001. ______ . Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. Brasília, 1997. CASTRO, C. M. A penosa evolução do ensino e seu encontro com o Pisa. In: BRASIL. Ministério da Educação. Pisa 2000: Relatório Nacional. Brasília, 2001, p. 77-88. DELISLE, Jean. WOODSWORHT, Judith. Os tradutores e a disseminação do conhecimento. In: ______. Os tradutores na história. Tradução de Sérgio Bath. São Paulo: Ática, 1995, p. 113-139. 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