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469 ÓPERA FRANCESA: A TRAGÉDIA LÍRICA, A DANÇA, “QUERELLE DES BOUFFONS” E ILUMINISMO Rodrigo Lopes lopes_monteverdi@yahoo.com.br Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP PPGM – Mestrado em Musicologia Musicologia/Estética Musical Bolsista CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Resumo: Este trabalho tem como objetivo apresentar, refletir e discutir a ópera francesa no período Iluminista. Até aproximadamente à metade do século, prevaleciam nos escritos sobre música comparações, paralelos, polêmicas e querelas em torno de assuntos de caráter preferencialmente geral, como questões de harmonia e melodia, de música francesa e italiana. A música, de um processo imitativo da natureza, passa a ser concebida como uma arte distinta no Século das Luzes, tanto em sua autonomia como em sua especificidade; progressivamente seu valor próprio passa a ser reconhecido, e, com as mudanças da sociedade, ela também sofre alterações. Daí a importância do que foi a tragédia lírica, a dança, as querelas dos bufões em contrapartida à ópera séria francesa, as polêmicas entre músicos e filósofos. A ópera, além de divertimento para as classes superiores, foi também cenário de uma luta entre diversas ideias filosóficas e estéticas, entre diversos gostos, além de solicitar o trabalho de pintores, dançarinos, coreógrafos, ocupando assim um espaço maior dentre as discussões da época. Palavras-chave: ópera; música francesa; século XVIII. INTRODUÇÃO O Iluminismo foi fértil em relação à filosofia estética. Surgiram muitas obras no meio acadêmico deste período, superando outras anteriores na história deste pensamento. A efervescência causada pelo Iluminismo dá fôlego à filosofia da arte e à crítica estética, e surge nesta época a história da arte como a conhecemos hoje; uma história da arte como um meio de pensar a própria arte como manifestação cultural. Nos séculos XVII e XVIII a ópera, a dança e o teatro caminhavam juntos, e mutuamente compunham um estilo próprio na França. Devido aos estilos próprios de cada país, os chamados estilos nacionais, eles se compunham do caráter, da mentalidade e temperamento de um povo. O aspecto teatral teve como consequência uma manifestação peculiar na personalidade, como a de um indivíduo com todas as suas características, mas transposto na imagem expressiva e particular de um povo. Os franceses eram tidos normalmente como frios, formalistas, perspicazes e controlados, ao passo que, comparados com os italianos, tinha-se a ideia de que estes eram espontâneos, informais e sentimentalistas demais. E esta forma francesa de ser foi incorporada em seus espetáculos, fosse na ópera ou mesmo no teatro e na dança. 470 Segundo Nikolaus Harnoncourt, “As características essenciais do estilo francês eram: a forma clara e concisa, peças instrumentais de expressão condensada, movimentos curtos e muito simples e também a ópera, mas esta, de um gênero totalmente diverso da italiana. Era sobretudo uma música voltada para a dança, cujas formas racionais e lineares lembravam as da arquitetura dos jardins e palácios franceses. Era como se a forma clara e rígida das danças tivesse sido criada especialmente para que se pusesse em música o estilo desta nação”. (HARNONCOURT, 1988, p. 186). Ocorre que uma crítica estética e literária por meio da filosofia se manifestará neste período, ocupando discussões em torno da beleza da arte e de sua constituição, desdobradas em duas correntes, segundo Cassirer (CASSIRER, 1997, p. 367): uma, intelectualista, unindo poética, estética e literatura como domínio racional; outra, sensualista, que questiona o conteúdo do pensamento por meio das regras da arte, do gosto e do belo, concebida por meio do raciocínio ou pelo sentimento. A corrente intelectualista orientava a arte do mesmo modo que orientava as ciências, como matemática, física e outros saberes, sem levar em consideração os sentimentos tidos perante a obra de arte, apenas alicerçado sobre as regras e críticas artísticas descobertas pela razão. Como as regras universais regem a natureza, as mesmas dirigem as artes, estas, mimeses da natureza, fundamentam o iluminismo ou classicismo francês. É introduzida nesse período a busca de um método dedutivo para as artes, que se resume ao “princípio da imitação em geral”, como um axioma, dado por Charles Batteux (BATTEUX, 2009, p. 17), em As Belas Artes Reduzidas a Um Mesmo Princípio. Esse axioma já estava presente no Renascimento, na ordem da pintura, como dizia Alberti, que “tão grande força tem o que é apanhado na natureza. Por essa razão devemos tirar da natureza o que podemos pintar, e sempre escolher as coisas mais belas” (ALBERTI, 1992, p. 133), onde os preceitos da mimese acompanhavam os artistas desde sempre. No século XVIII, diferentemente do Renascimento, a unidade das artes pela mimese eleva as artes à categoria de ciência. Música, esculturas, pinturas, poemas, tudo envolve a imitação da natureza, no sentido racional, intelectual. A contrapartida sensualista surge na Inglaterra, na figura de David Hume, cuja corrente foi levada para a França por Diderot, em que as artes eram analisadas a partir do gosto, contra os métodos dedutivos sobre a obra de arte; seus partidários subordinavam a razão aos fenômenos. Ao invés de analisar a arte pelo viés da matemática ou da física, analisava-se pela lente de uma espécie de “psicologia”, em que os fundamentos do belo estão sedimentados na natureza humana. 471 Surge, assim, a autonomia da obra de arte, em que Diderot trata do desmerecimento da obra de arte que desrespeita as regras estabelecidas, mas, que suscita os mais belos sentimentos. No Paradoxo Sobre o Comediante, Diderot diz que o “artista de gênio não busca imitar a natureza comum das coisas, mas sim entender e reproduzir os sentimentos dos homens” (DIDEROT, 1981, p. 23). Esse pensamento suscitará posteriormente a ideia que se tem atualmente do artista, como que produz suas próprias obras segundo seus sentimentos e sua maneira de ser, concepção esta que até então era diferente, pois os artistas seguiam os preceitos das artes imitativas, que, segundo um gosto estabelecido, tinham na mimese sua fundamentação. A razão não deveria ditar os parâmetros de gosto ou valor, mas explicar os efeitos do porque esses determinados parâmetros são valorizados, pois, apesar das preferências, as pessoas julgam através da aprovação ou desaprovação, dentro do que é e o que não é opinião comum. A mimese ou imitação era tão importante que mesmo as peças musicais instrumentais eram interpretadas como representações, por exemplo, de uma cena pastoral. Ela se subordinava a conteúdos específicos em sua representação, guardando em si mensagens didáticas. Na segunda metade do século XVIII temos então na história da estética musical a legitimação da música instrumental, que começa a se descolar da arte representativa, adquirindo “formas puras” de uma arte profunda. Quanto à ópera, a França viveu diversas modificações políticas e sociais no século XVIII, eclodindo na Revolução Francesa em 1789, o que se refletiu na ópera e nas artes como um todo. Os gostos do rei e da corte neste gênero musical eram uma maneira de se demonstrar os costumes, comportamentos e regras morais daquele momento. Pela educação pensava-se corrigir e moralizar no sentido de demonstrar os costumes corretos, o que era um traço do Iluminismo. Quando a corte passa a ser afetada pela burguesia em ascensão, essas prerrogativas sofrem modificações pelas transformações das regras de gosto, e as artes e a música sofrem consequências e reflexos desse momento histórico. A burguesia, ao mesmo tempo em que possui poder econômico, passa a ser agradada e “educada” para as regras de conduta do ambiente da corte em que deseja fazer parte, porém, em contrapartida, influencia a corte com seus modos e condutas. A ascensão da burguesia, para a música,traduziu-se na constituição de um novo público, maior e anônimo, que sob uma comercialização crescente, teve de adaptar-se e do qual se viu obrigada, não a receber ordens como as que lhe vinham de príncipes, mas a adivinhar seus desejos, expressos ou não. A luta da burguesia contra a aristocracia e o absolutismo manifestou-se também no plano cultural, e um desses sinais foi a expansão da música para lugares por ela antes pouco frequentados. Assistiu-se a um grande 472 desenvolvimento de concertos privados e execuções amadorísticas; e bem posteriormente ao período das grandes óperas e suas querelas, viu-se o nascimento das salas de concertos, de um lugar onde, na condição de quem pode pagar, podia-se ouvir música que não se havia expressamente encomendado. AS “PAIXÕES” HUMANAS NAS SOCIEDADES DOS SÉCULOS XVII E XVIII As paixões humanas deveriam ser educadas e usadas adequadamente pelo homem bem-educado. Deveriam ser condicionadas, tornadas servas da razão, e a virtude está em não reprimi-las, mas em controlá-las. Seu controle estava no poder pelo bom gosto, no saber equilibrá-las mediante as circunstâncias. As paixões poderiam existir e se manifestarem, mas controladas, não se saberia o que se passava de verdade na alma de uma pessoa, e neste caso, o que importava era a imagem que se via. As paixões eram condenadas segundo o grau de manifestação perante os outros. Segundo Lebrun: A “paixão” de que se trata não é um impulso que nos leva, malgrado nosso, a praticar uma ação. Ela é o que dá estilo a uma personalidade, uma unidade a todas as suas condutas. Trata-se da tonalidade específica de suas condutas, da tensão que unifica seus atos – sem importar que situação esteja enfrentando. Em suma, a “paixão” é então constitutiva de uma personagem (...) como da tragédia grega: sua paixão e seu caráter são indissociáveis. Essa vibração afetiva, que caracteriza os grandes personagens trágicos, pode levar um indivíduo à perda e também à glória; seja como for, ela escapa à nossa categorização “moral” (LEBRUN, 2006, p. 23). Dentre as paixões existentes nas sociedades do século XVII e XVIII, a glória, a honra e a reputação estavam entre elas. A honra tinha maior destaque, e dela, construía-se a imagem de reputação diante dos outros. Não importava o que se sentia dentro de si se o que valia era a aparência visível. O que interessava ao nobre da sociedade desta época era o que se aparentava ser. A vida íntima não significava nada sem as aparências. Após momentos políticos delicados na França até o estabelecimento do rei Luís XIV, a alta nobreza é concentrada à volta da figura do rei, e este transforma a realeza e a monarquia num espetáculo. Como espetáculo, imaginam-se elementos teatrais, cênicos, representações de papéis que terão importância na aparência em sociedade. A vida se teatraliza, embora isso não signifique uma falsificação da vida. Nasce uma psicologia da corte, calcada na aparência, marca da condição humana da corte real. Dominada pelas ilusões, a vida social se desenvolverá mediantes essas condições, pelo espetáculo do que se aparenta ser. 473 Essa psicologia valoriza a vivência de opiniões, o de ser amado e apreciado mediante o que se aparenta ser. Lidar com os fracassos será como um sonho, pois a vida é um sonho, é ele quem monta no dia-a-dia os prazeres da vida. Os nobres tornam-se técnicos dos prazeres, cultores de uma vida doce que não precisa ser modificada, pois sua vida o contenta. E diz Ribeiro: Antes da Revolução Francesa não havia muita diferença entre a vida pública e a vida cênica: o social, o político, concebiam-se partindo de máscaras, de imagens, de representações, que os próprios atores podiam sabê-las mais ou menos falsas; porém, que importância tinha a falsidade? Não é que a vida pública fosse mentira; é, simplesmente, que seria pequena a distância entre ela e a ficção (RIBEIRO, 2006, p. 114). SOBRE A ÓPERA E SUAS POLÊMICAS 1. Segundo Enrico Fubini (FUBINI, 1983, pp. 81-85), nos primeiros anos do século XVII, a ópera se impõe como um novo gênero musical capaz de focalizar a atenção do público e dos filósofos. Durante o século XVII e boa parte do XVIII, filósofos, críticos, homens de letras e teóricos dedicaram escritos sobre essa música. O raciocínio comum era o de considerar a ópera como um espetáculo artificial, absurdo, e privado de lógica e inverossimilhança por parte do cantor, que representava, sem se importar, qualquer acontecimento da vida. Depois dos primeiros decênios do século XVII, a ópera tornou-se um fato artístico e social marcantes, surgindo, entretanto, um conflito entre a prática e a teoria. A nova linguagem musical será a harmonia tonal; a razão antiga considerava a música como uma segunda ordem. As letras contribuiriam para evidenciar a poesia. A ópera, como gênero novo, expressaria o humanismo do Renascimento, da contrarreforma, mas, culturalmente, a expressão é literária e racional; hierarquicamente está sobre os outros tipos de expressão não reduzidos aos modelos linguísticos. Compreende-se assim que os esforços efetuados para racionalizar a linguagem musical, conferem, através da sintaxe da harmonia, uma lógica capaz de elevar-se e adaptar-se à linguagem literária, como toda a insatisfação que não consegue dissipar este esforço e que surge da seguinte observação: apesar do fato de que a música continuava a manter um grande número de elementos não racionalizáveis, sob conceitos e gostos intraduzíveis, ela é capaz de, no entanto, influenciar a alma humana, naquilo a que o músico se recusa a desistir, e que a nova linguagem pode torná-la mais potente. De fato, a melodia encarna o poder irracional que o racionalismo barroco preferiu eliminar de seus horizontes. Seja porque as óperas se revelam rapidamente como um gênero híbrido, seja porque elas perfazem um jogo essencialmente teatral, e nesta dimensão logo se torna um gênero em que a 474 música prevalece significativamente evidente. A música e a poesia são artes que, na formulação hierárquica da mentalidade racionalista, devem ser diametralmente opostas uma a outra, uma vez que a primeira se endereça aos sentidos e a segunda, à razão, e elas se encontram unidas para ser um espetáculo, o que para a mentalidade de um filósofo ou um escritor do século XVII, era um absurdo, algo confuso, inverossimilhante, um espetáculo onde as personagens que se desenvolviam no palco de forma ridícula e antinatural chegavam ao ponto de morrerem cantando. É um absurdo a sensibilidade se apresentar em primeiro plano e a racionalidade em segundo, de acordo com a concepção de gosto do século XVII. O julgamento de escritores franceses do fim do século XVII, como Boileau, Bossuet, La Motte, e início do XVIII, como Cahusac, é a de que a ópera é em substância uma tragédia degenerada ou corrompida, como um ajuntamento extrínseco, onde sua função é a de manter o espectador entretido com uma estética do prazer, como num teatro, baseado num conteúdo intelectual e moral. Mas a ópera triunfa num sucesso crescente, atraindo um círculo de ouvintes cada vez maior. As personagens ali retratadas não fazem os espectadores saírem cheios de gravidade e sentimentos nobres, mas marcam uma ternura totalmente feminina, indigna das almas viris ou das pessoas fortes e sábias. Para aquele momento, quanto aos costumes, não havia dúvidas de que a música moderna dos teatros era prejudicial e estava entre os pontos mais altos quanto a perturbar os costumes e a moral do povo que entrava em contato com ela, inclinando-o a uma vida vil e plena de lascívia, segundo sua concepção. Diferente da ópera italiana, a França valorizou a dança em seu gênero musical dramático, e esta era o ballet de cour. O elemento formal da ópera francesa é marcante, cujas árias possuem a rigidez da dança; a ópera francesa combina vários materiais dramático-musicais, em que envolvem a dança, a música instrumental e o canto. O que eraa “ópera séria” francesa foi a tragédie lyrique [tragédia lírica], cujo conteúdo envolvia uma ação mitológica conduzida pelos deuses sempre interrompida por um divertissement [divertimento] no final de cada um de seus cinco atos; o divertissement era um interlúdio dançado, que poderia ser cantado ou não, era um número como uma masque teatral, e normalmente não tinha relação com a ação principal. Era comum nesse momento existir o uso de maquinarias teatrais, como máquinas voadoras, fogos de artifícios, que geravam maior interesse ao espetáculo, e aqui as diversas danças francesas se faziam presentes, até terminar com uma tempestade desencadeada pelos deuses no último ato. Todos por natureza rejeitavam a ideia de uma boa ópera; ideia esta apoiada por teóricos dos séculos XVII e XVIII, o que é ausente do ponto de vista do racionalismo clássico. A música deveria ser expulsa da ópera, condenada na medida em que são reconhecidos seu poder negativo e seu fascínio secreto e 475 irresistível; o pior julgamento que se poderia fazer de um poeta é dizer que sua poesia se adaptava bem à música. A desconfiança se voltava para o elemento emotivo e passional, e o reconhecimento implícito de uma afinidade eletiva e secreta da música com base na negação, revela um medo para com a arte do som. A música desperta em nós uma disposição inquieta e vaga para o prazer, que não tende a nada e que tende a tudo. Num primeiro momento, a tragédia lírica parece ter causado um efeito devastador. A ópera havia se transformado num teatro verdadeiro, possuindo uma dimensão dramática de um mundo que se constitui com regularidade, se revelando como um desafio à ópera italiana, mas também erguendo a cena lírica à altura da cena dramática: ela se apoiou na comparação com sua rival, tornando- se assim seu homólogo. Perto dela, a ópera italiana não pareceria mais que um conjunto desprovido de verossimilhança irregular, longo e confuso. Encarnação por excelência da ópera, ao ponto dos termos “tragédia em música” e “ópera” serem sinônimos, ela eclipsa e esteriliza os outros gêneros que pretendiam uma ocupação parcial no domínio lírico. A teoria da tragédia lírica e de seu esplendor possui basicamente quatro axiomas: o primeiro trata do axioma intelectual do conhecimento, em que supõe uma verdade da natureza como abstrata e que repousa em relações formalizáveis; o segundo axioma faz a ilusão cumprir a função de artífice revelador da verdade; este é o axioma sensualista da ficção teatral; o terceiro, chamado de axioma do “teatro dos encantamentos”, anuncia a tragédia lírica como o inverso da tragédia dramática. O quarto estipula a constância da relação material entre a música e a linguagem articulada, os significantes da língua e os sons da música; este é o axioma da necessidade do recitativo e da articulação da música. Esses axiomas envolvem um conjunto de sistemas que abraça uma concepção de mundo, do homem e da arte que remonta à ideia dos números a partir da filosofia de Descartes. A tragédia lírica ganhou partidários e também inimigos. Seus partidários pensavam ser ela um reviver dos preceitos da antiga tragédia grega, devido a seus temas mitológicos, e outros preferiam o riso, o burlesco, como ocorria na ópera italiana, até mesmo com personagens trágicas e cômicas atuando no palco ao mesmo tempo. A antiga pastoral foi absorvida; as transformações que fizeram dela a tornaram um laboratório poético da cena lírica e foram incorporadas pela tragédia. A introdução da dimensão heroica e da violência nas primeiras pastorais trouxe à ópera um novo colorido e novas nuances. Embora a história da ópera francesa comece com as pastorais, somente a tragédia lírica se fará entrar nas lendas e delícias das querelas literárias. 476 A música, com seus encantos íntimos e secretos, fornece uma disposição que suaviza a alma e abre o coração para o sensível, sem saber exatamente o que se quer. 2. O balé à francesa, o balé de cour, chamado de “grande balé”, se fará presente em qualquer tragédia. A dança será responsável pela verdadeira dramatização que inaugura a tragédia, além de realçar sua dignidade como representação dramática e confessa sua estranheza com o teatro clássico. Não seria eliminando a dança que a tragédia eliminaria o balé de corte, pelo contrário. Partindo disso, a ópera italiana revelou aos franceses certa distância considerável entre a ordem do espetáculo musical e do verdadeiro teatro lírico: a tragédia lírica, revelando as possibilidades dramáticas da dança, as diferenças entre o espetáculo coreográfico e a coreografia teatral, conquista e assume uma função poética plena. Por ser um dos componentes essenciais do teatro lírico, a dança tinha que ir além da simples propriedade, da simples pintura de caracteres. Ela tinha que se inserir não somente na economia geral dramática da obra, mas encontrar um lugar na unidade poética utilizada tanto no seu acolhimento como na sua utilização, mas possuir ela mesma um movimento capaz de fazer progredir a ação: o balé não deveria ser “inserido” na obra, ele deveria ser “introduzido”. É feita uma combinação das diversas Entrées do grande balé, de maneira que elas concorram ao objeto principal proposto, permitindo aos bailarinos desenvolverem, cada um em sua ocasião, as graças e belezas da dança simples; mas a dança deve compor, exprimir as paixões e por consequência ser digna do teatro. Cahusac (1706-1759), libretista que compôs obras para Rameau, considerava que, ao mesmo tempo em que a dança passava a viver uma situação estranha, por causa de um novo gênero de balé advindo entre 1673 e 1697 por La Motte, criticava o caráter episódico na economia geral da peça; a dinâmica poética deveria satisfazer a dimensão da obra, coisa que não acontecia, e para isso, deveria de ser bem construída. Nesse sentido, a tragédia lírica reporta à dança uma dimensão dramática que o balé é incapaz de possuir. O paradoxo da situação se explica pela natureza da representação teatral que inaugura a ópera: ele passa de um simples espetáculo a um mundo verdadeiro, da pintura de caracteres para uma função poética dramática. O paradoxo se acentua ainda mais se se examinar a realidade da tragédia lírica, sua execução e não mais somente sua concepção. Ela revela a função dramática da dança como se vê em autores como Lully e Quinault, seja como leitor ou ainda como espectador ideal, que Cahusac revela e aprecia no acontecimento dramático. Mas esta revelação não conhece a verdade efetivamente empírica, que continua latente como performance cênica; ela permanece como um acontecimento mais poético do que real. A admiração sem limites que Cahusac admite quanto ao texto poético propriamente dito das 477 tragédias líricas de Quinault e Lully se sucede um apontamento lamentável quanto à pobreza da realização cênica, em que diz que “o lugar das grandes e nobres ideias de Quinault é substituído por uma execução magra, de pequenas figuras mal desenhadas e de um colorido mal desenhado” (CAHUSAC, 2004, p. 81-82). Deve-se levar em conta que os espectadores reais devem ser satisfeitos; o acontecimento poético foi certamente um acontecimento histórico, mas não foi uma verdadeira efetivação artística real. A dança dramática fez ressurgir o balé como gênero; o balé moderno inventado por La Motte que, rico em aquisições dramáticas, revela uma poética trágica. Esse balé possui interesse por colocar a questão da dominação do gênero trágico em termos poéticos e por corresponder a uma realidade, a de que o balé sofre um eclipse, assim como se eclipsou a pastoral. A cena lírica francesa se caracteriza por sua grande diversidade: junto com a tragédia lírica disputam outros gêneros como pastoral heroica, a ópera-balé, a comédia, que disputam o mesmo sucesso daquela. 3. Dentre as polêmicas existentes nesse período, está a Querelle des Bouffons [Querela dos Bufões], que interessa em igual medida à história da músicae à história das ideias. Ela possui dupla qualidade capital, e participaram dela Diderot, Rousseau e os enciclopedistas. Isso se deu devido à instalação de uma companhia itinerante italiana na Ópera de Paris em 1752, para dar espetáculos de intermezzi e de óperas bufas, o que fez a França dividir-se entre os adeptos dos italianos de um lado e os representantes da música francesa do outro. Antes já havia discussões em torno da música francesa e italiana, com Lecerf e Raguenet, em 1704. À primeira vista os italianos triunfaram de forma inexplicável; porém, ocorre que a ópera francesa não se renovava desde a morte de Lully em 1687. Rameau, que tomou seu lugar, foi contestado; e nisso o público sofria as investidas de autores secundários. Nesse marasmo, o público já estava cansado da ópera séria, que não emocionava mais, e as óperas bufas, trazidas pelos italianos, tornaram-se um grande sucesso dentre o público. O enredo padrão de uma ópera bufa (ou intermezzi) consistia de uma série de peripécias cômicas sem qualquer episódio estranho à ação, e para o que bastavam poucas personagens. O enredo tirava toda a sua força de sua rapidez, da expressão realista de sentimentos cotidianos, de sua linguagem musical. Exemplo disso é a Serva Padrona (Criada Patroa), de Pergolesi, que depois de um fracasso na França foi posteriormente de um sucesso muito grande. Contra isso estavam os partidários da música francesa que, adeptos da tragédia lírica, não toleravam o riso, e a queriam aos moldes do que para eles teria sido a tragédia grega. A tragédia grega, de acordo com a Poética, de Aristóteles, apresentava, como personagens, figuras elevadas da aristocracia: reis, príncipes, grandes heróis, ou figuras de deuses mitológicos, em que a 478 personagem principal sofre mudança de sorte, passando de um momento feliz para um infeliz. A personagem, por exemplo, como a de Édipo Rex, de Sófocles, comete um erro [neste caso o de ter assassinado o pai e se casado com a própria mãe, mas sem saber que eram seu pai e sua mãe], que ignora saber ter errado, porém, ele deve ser punido por sua falta, o que causa terror pelo tipo de erro cometido, mas, ao mesmo tempo, causa piedade, pois ignorava que tivesse feito tais coisas a pessoas do próprio sangue; a esses sentimentos contrários sentidos ao mesmo tempo, dá-se o nome de Catarse. Neste tipo de ação consiste a tragédia. É o prazer através do contato com experiências dolorosas. Com esse modelo, a música está vinculada muitas vezes aos modelos das tragédias de Racine e Corneille, que neste caso o tipo de tragédia é chamado de clássica, marcante no teatro francês do século XVII, que pensa reproduzir a tragédia antiga, ou seja, a tragédia grega de Sófocles, Eurípides, e outros, onde não se admitiam personagens cômicas em simultaneidade com personagens trágicas. Por este viés estão exemplos como os do compositor Lully, com Acis et Galatea [Acis e Galateia] e Campra, com Alphée et Aretusa [Alfeu e Aretusa]. Corneille, (...) ao lado de Racine, é considerado um dos grandes dramaturgos franceses, que também se dedicou à teoria, marcada por releituras de Aristóteles, reorganizando preceitos da composição da tragédia em favor dos deslocamentos que operava em suas obras e que, não raro, como foi o caso de El Cid, polemizaram com críticos de sua época. Questionou a regra das três unidades (de ação, de tempo e de lugar) pela qual o teatro clássico francês se pautava e que seus defensores supunham ser legitimamente derivadas de Aristóteles por atenderem a critérios rígidos da verossimilhança da ilusão teatral (FERREIRA, 2011, p. 139). Rousseau escreveu a Carta à Música Francesa, que atacava de frente a música francesa versus música italiana. Para ele a música francesa abusava de uma mitologia mais que batida, utilizava-se de libretos pomposos, imperava a ausência de ação dramática, as montagens eram exageradas e aparatosas, as árias eram à base de trinados, gesticulações e brilharecos vocais, e tudo isso sem relação com os sentimentos que o texto expressava. Fora os comentários quanto à prosódia entre a língua italiana e francesa, que para Rousseau, a italiana possuía mais musicalidade e sempre estaria além de qualquer música de Rameau. Rousseau e os enciclopedistas foram os inimigos mais acirrados de Rameau, fazendo com que o compositor saísse de sua reserva que fora mantida por muito tempo. Este simbolizava a totalidade das forças aristocráticas conservadoras, e só foi visado enquanto sua ópera refletia os modelos estabelecidos por Luis XIV. Nem por isso Rameau deixou de ser atacado por suas 479 ousadias harmônicas consideradas “bárbaras”. Para ele, a música era sumamente racional, igual em todas as épocas, ou seja, a música é um fenômeno universal. Para Rousseau, a música expressa infinitas variedades do coração humano, e não saberia de modo algum ser universal em sua forma. O caráter da melodia não tem como não variar de um povo para outro, de um momento para outro da história: a compreensão da música é um fato histórico e cultural. Para Rousseau, a música é a expressão dos sentimentos como a matemática é para Rameau. CONSIDERAÇÕES FINAIS A ópera, num primeiro momento, é recebida com desconfiança e como perigo para a educação de seu público, insuflando as paixões e maus costumes; em pouco tempo, passa a ter prestígio e muito sucesso, refletindo os gostos e modismos do rei e da nobreza da corte na tragédia lírica, a ponto de ganhar a atenção de filósofos e homens de letras. A dança era a marca principal desta nobreza, sendo seu reflexo por excelência. Com as querelas dos bufões, a ópera cômica começa a ganhar prestígio, principalmente dentro da classe burguesa que começa a ganhar ascensão e triunfo, constituindo um novo público para as artes. Um dos problemas capitais da estética musical nos séculos XVII e XVIII é a relação entre verbo e som, entre poesia e música. A arte como imitação da natureza, é um dos vetores desse debate, a ponto de uma história da estética musical poder coincidir, de forma geral, com a história desse conceito: todas as querelas entre França e Itália nos dois séculos estão presas nessa relação. Em 1704, Lecerf de la Viéville respondeu a Raguenet com sua Comparaison de la musique italienne et de la musique française [Comparação entre a música italiana e a música francesa], fazendo crítica aos italianos quanto a seus excessos e extremos, enaltecendo o comedimento e a naturalidade da música francesa; em 1753, Rousseau condenava nos franceses os excessos e a falta de naturalidade, encontrando somente elogios para os italianos. Em meio século, o conceito modificou-se radicalmente: a natureza já não era sinônima apenas de razão e equilíbrio, mas também de sentimento. Desta forma, pode-se ver nisso, o despontar do Romantismo. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ALBERTI, Leon Battista. Da pintura. Campinas, Ed. Unicamp, 1992. BATTEUX, Charles. As belas artes reduzidas a um mesmo princípio. São Paulo, Humanitas & Imprensa Oficial, 2009. CAHUSAC, Louis de. La danse ancienne et moderne, ou Traité historique de la danse. 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