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ISBN 978-65-5821-058-0 9 7 8 6 5 5 8 2 1 0 5 8 0 Código Logístico I000214 Sandro Teixeira Sandro Teixeira Filosofia da Educação Filosofia da Educação Sandro Teixeira IESDE BRASIL 2021 © 2021 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito do autor e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Flaticon Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ T269f Teixeira, Sandro Filosofia da educação / Sandro Teixeira. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2021. 154 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-65-5821-058-0 1. Educação - Filosofia. I. Título. 21-72062 CDD: 370.1 CDU: 370.1 Sandro Teixeira Doutor e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Literatura Brasileira pela mesma instituição. Bacharel em Filosofia e licenciado em Letras – Português pela UFPR. Professor no ensino superior há 16 anos, com atuação nas seguintes áreas: filosofia da ciência, filosofia geral, democracia e ciência. SUMÁRIO Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! 1 Filosofia, Educação e Ciência 9 1.1 O que é filosofia? A definição dos filósofos 9 1.2 Filosofia e filosofia da educação 23 2 Educação e dispositivos de poder 35 2.1 Jean-Jacques Rousseau: o primeiro passo para a educação moderna 36 2.2 Michel Foucault: sobre os dispositivos de poder 47 2.3 Maria Bujes: dispositivos de poder na educação infantil 53 3 Educação e democracia 62 3.1 Uma educação liberal renovada 63 3.2 Jürgen Habermas: esfera pública expandida e educação 77 3.3 Limitações do modelo habermasiano 85 4 Educação e descentramento 90 4.1 Descentramento, reflexividade e educação 91 4.2 Limitações da reflexividade sob a análise da pedagogia histórico-crítica 106 4.3 Martha Nussbaum e as humanidades em risco de extinção 115 5 Educação e currículo 120 5.1 Michael Apple: currículo e demandas educacionais 120 5.2 Currículo e demandas educacionais no Brasil 136 5.3 Reflexão filosófica e o papel do educador na contemporaneidade 142 6 Resolução das atividades 150 Esta obra foi elaborada para iniciar você nas discussões que têm se desenvolvido no campo da educação ao longo da história. A Filosofia é a mais tradicional disciplina em todo o campo do saber. Por essa razão, ela tem a capacidade de nos lançar nos mais importantes caminhos do pensamento em diversas áreas. Sabendo disso, direcionamos a potente lupa filosófica para compreender ideias e teorias que têm orientado a prática de educadores ao redor do mundo. Sendo o filósofo da educação aquele que se interessa pelas teorias, buscando analisá-las com cuidado e pretendendo apontar suas falhas e suas virtudes, esta obra não poderia fazer diferente. Desse modo, apresentamos filósofos de períodos históricos diferentes, para que possamos observar que as teorias sobre o ato de ensinar sempre estiveram presentes na história do desenvolvimento da civilização. O primeiro capítulo busca nos ensinar que a melhor definição para a pergunta “o que é filosofia?” deve ser pesquisada na obra de cada um dos filósofos estudados. Em Platão, por exemplo, a ideia de filosofia está intrinsecamente ligada à ideia de metafísica. Já Nietzsche procura desenvolver uma filosofia antimetafísica (e antiplatônica) – por isso, veremos que sua resposta para a nossa pergunta inicial diverge frontalmente da resposta platônica. Ainda, buscamos construir neste capítulo uma resposta geral, ainda que insuficiente, para estabelecer uma distinção entre filosofia e filosofia da educação. O segundo capítulo nos remete diretamente ao início da modernidade. Rousseau é apresentado como o primeiro grande filósofo da educação do período. Seu livro Emílio, ou Da Educação é até hoje considerado uma das grandes obras sobre educação de todos os tempos. Rousseau foi um dos maiores críticos da sociedade moderna nascente; sua filosofia aponta para uma sociedade futura muito problemática. Nessa mesma postura crítica, lançamo-nos ao século XX com a filosofia de Foucault e da APRESENTAÇÃO Vídeo educadora brasileira Maria Edelweiss Bujes, ambos críticos dos sistemas de controle das sociedades modernas e seus impactos na educação. O terceiro capítulo procura pensar a relação entre educação e política – mais precisamente entre educação e democracia. Para isso, buscamos as ideias de dois filósofos vindos de tradições diferentes, mas ambos preocupados com os desafios que os sistemas democráticos precisam enfrentar para evitar que se tornem injustos e parciais. A educação para esses dois autores, John Dewey e Jürgen Habermas, tem papel preponderante nesse desafio. O quarto capítulo dialoga diretamente com o conceito de pós-modernidade. Para alguns autores, vivemos em sociedades que já não refletem as características da sociedade moderna. As novas formas de socialização refletem um novo tipo de sujeito: o descentrado. Este não pode mais ser definido por características fixas de identidade, o que pode representar a libertação para alguns e o aprisionamento para outros. Ainda, o capítulo procura compreender como a pós-modernidade impacta a sala de aula. Se as teorias que propõem o descentramento pós-moderno estiverem corretas, o que significa ensinar para sujeitos descentrados? Essa é a pergunta que percorre o capítulo todo. O quinto capítulo estabelece um diálogo entre teorias representativas de dois momentos: modernidade e pós-modernidade. A teoria do educador norte-americano Michael Apple aparece como devedora de conceitos e categorias ligados à modernidade, teoria essa que tem sido o flanco para estudiosos pós-modernos e pós-estruturalistas da educação lançarem suas principais críticas a Apple. Entretanto, não se pode deixar de observar que a obra desse pensador tem reconhecidos méritos. São dele, por exemplo, os conceitos de currículo oculto e reprodução contestada – a qual diz respeito à força de resistência que sempre se produz contra toda a educação que procura impor, tacitamente, valores de grupos dominantes em uma sociedade. Pelas contribuições inequívocas de Michael Apple, o capítulo se encerra questionando alguns aspectos do tipo de crítica pós-moderna que se faz ao educador estadunidense. Por fim, esta obra foi elaborada com base em momentos históricos e diferentes filósofos e pensadores da educação. Nela, não se pretende apresentar algum tipo de fórmula para o bem educar; isso pode ser feito por via de outros caminhos pedagógicos. O que queremos é que você possa encontrar ideias importantes de alguns pensadores fundamentais para a educação e, com isso, sentir-se motivado a conhecer mais profundamente as obras desses pensadores, a fim de orientar sua prática pedagógica futura com a ajuda da filosofia da educação. Filosofia, Educação e Ciência 9 1 Filosofia, Educação e Ciência Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • comprender que a definiçãodo que é filosofia depende da definição de cada filósofo e seu tempo; • acompanhar as definições de filosofia de alguns filósofos de épocas históricas distintas: Platão, Kant, Nietzsche, positivis- tas lógicos; • analisar as relações entre filosofia e filosofia da educação. Objetivos de aprendizagem Este capítulo procura inicialmente apresentar dois modos distintos de definir o que é a filosofia. O primeiro deles entende que a resposta mais completa a essa pergunta deve ser encontrada no próprio pensamento dos filósofos mais importantes. A dificuldade aqui se dá em função de que cada um desses filósofos apresenta uma visão diferente sobre o que é a filosofia. O segundo modo oferece uma definição bastante objetiva; ele procura compreender o que é filosofia apontando características que podem estar presentes no pensamento de todos, ou quase todos, os filósofos. Para isso, buscamos analisar alguns aspectos de três filósofos importantes na história da filosofia: Sócrates, Platão e Nietzsche. O capítulo apresenta, ainda, uma segunda seção que explica a relação entre filosofia e educação e o significado da filosofia da educação. Há uma pergunta de fundo que percorre todo o texto: qual é a importância da filo- sofia da educação para a educação? Esperamos que ao fim deste capítulo o interesse pelo processo de educação seja despertado e que também seja possível encontrar uma resposta satisfatória a essa última questão. 10 Filosofia da Educação 1.1 O que é filosofia? A definição dos filósofos Vídeo É comum que diante de perguntas do tipo “o que é...” recorramos a uma busca ao dicionário ou, mais modernamente, a uma “googlada” na internet. De certa forma, ao fazermos isso, esperamos quase sempre respostas sintetizadas e objetivas, capazes de nos oferecer significados satisfatórios para o que procuramos. Mas, no caso da pergunta que nos interessa, “o que é filosofia?”, um verbete no dicionário pode não ser tão satisfatório. Aliás, o filósofo norte-americano Douglas Hofstadter (1945-), procurando entender um pouco melhor a importância que as analogias têm para o pensamento, sem deixar de reconhecer a utilida- de dos dicionários, alerta para a limitação que eles impõem ao signifi- cado das palavras. Segundo Hofstadter e Sander (2013), “embora dicionários deem a impressão de analisar as palavras esmiuçadamente, de fato apenas ar- ranham suas superfícies”. Isso porque, ao organizarem os vocábulos em entradas e subentradas, com definições bem precisas, podem dar a impressão errada de que cada subentrada é estanque, ou seja, cada significado do vocábulo está totalmente delimitado pela definição dada e não se confunde com os outros significados do mesmo vocábulo. Claro que, para os propósitos de um dicionário, essa é a forma mais sensata, organizada e eficiente de captura e definição das palavras que uma língua possui e incorpora ao longo de sua história. Mas claro tam- bém é o fato de que a língua viva – fora dos dicionários, cotidiana – é bem mais fluída e menos delimitada do que isso. Por essa razão, podemos concordar com o filósofo e dizer que dicionários tocam apenas a superfí- cie das palavras e, podemos acrescentar, da própria ideia de língua. Se nos dicionários isso ocorre para significados de substantivos con- cretos como banda, por exemplo, imagine a redução de significado que incide sobre a definição do termo filosofia, que por sua própria nature- za contém significações mais abstratas, além de possuir um histórico muito extenso, remontando há, pelo menos, vinte e quatro séculos! Seria, portanto, bastante redutor inserir aqui uma definição de filo- sofia como a que encontramos nos dicionários. Isso não significa que não podemos ou não devemos consultá-los. Um caminho mais adequado, no entanto, para encontrarmos uma melhor compreensão do que é filosofia, é investigar como os próprios Hofstadter e Sander (2013) apresentam as possibilidades e as vari- ções de sentido que uma palavra pode ter, usando o exemplo do vocábulo banda, que pode aparecer em um bom dicionário com os seguintes signifi- cados: 1. pedaço de pano; 2. pequeno grupo de músicos; 3. faixa de fre- quências de certo alcance; entre outros exemplos que a você mesmo pode ter ocorrido enquanto lia essas definições. Saiba mais Pode nos ser de maior ajuda a consulta a um dicionário temático; eles costumam abordar uma área específica do conhecimento: filosofia, psicanálise, psicologia, filosofia da educação etc. Todos ou os principais temas de cada área são elencados em ordem alfa- bética e com a vantagem de poderem apresentar as definições de cada tema de maneira mais ampla. Em português, o dicionário temático mais completo de filosofia é o Dicionário de Filosofia. ABBAGNANO, N. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. Livro Filosofia, Educação e Ciência 11 filósofos procuraram defini-la. Vamos, por enquanto, optar por essa última alternativa. 1.1.1 O que é a filosofia na visão de Sócrates e Platão Dois filósofos gregos nos servem bem nesse início de investigação: Sócrates e Platão. O que vamos buscar saber é o que eles nos respon- deriam diante da pergunta: O que é filosofia? Para isso, porém, precisamos conhecer alguns aspectos da filosofia de cada um deles. Sócrates (470-399 a.C.) usou apenas a retórica como ferramenta para a exposição de sua filosofia; já Platão (427-347 a.C.) deixou muitos textos escritos, alguns deles, inclusive, conhecidos como diálogos socrá- ticos. Socráticos porque neles o personagem principal é Sócrates, tal a admiração que Platão 1 nutria por seu mestre filosófico maior. Essa diferença entre a filosofia falada (Sócrates) e a escrita (Platão) já nos ajuda a compreender aspectos importantes da filosofia nesse seu período inicial. Muito provavelmente, Sócrates optou pela retórica porque a palavra oral ganhava especial valor no momento histórico em que o filósofo viveu. A sociedade grega do século IV a.C. passava por uma ruptura no seu modo de compreender a participação de seus cidadãos na pólis (cidade), entendendo que seus membros deveriam ser formados visan- do a uma participação efetiva na vida pública da cidade. A ruptura se deu porque a cultura dos antepassados da sociedade em que Sócrates viveu não pensava assim. Nessa última, que remontava à formação do povo grego, muitos séculos antes, desenvolvera-se uma concepção cul- tural aristocrática distanciada do povo, voltada para os mais nobres. Werner Jaeger (1888-1961), um dos maiores especialistas em Gré- cia antiga, observou que o ideal de educação dessa época era definido pelo conceito de areté, que, não tendo um exato equivalente em língua portuguesa, encontra-se próximo ao sentido do que entendemos por Segundo autores neopla- tônicos do século VI d.C., na entrada da Academia, escola filosófica cujo dono era Platão, havia uma inscrição com os dizeres: Quem não é geômetra não entre! 1 No que diz respeito à re- tórica, Sócrates foi inimigo dos sofistas, pois eles eram céticos quanto à ca- pacidade de a filosofia le- var a algum conhecimento verdadeiro. Enquanto Sócrates usava a retórica como instrumento filosó- fico, acreditando ensinar o autoconhecimento e a verdade, os sofistas a usavam com um sentido bem mais pragmático: ensinar, a quem pagasse bem, a arte do bem falar para vencer adversários nos debates públicos. Saiba mais Figura 1 Escultura de Sócrates Filósofo ateniense do período clássico da Grécia Antiga. St in g/ W ik im ed ia C om m on s 12 Filosofia da Educação virtude, mas em um sentido amplo, nas características que, imagina- -se, possam dotar alguém com qualidades excepcionais, no nível da excelência: “a areté é o atributo próprio de nobreza. Os gregos sem- pre consideraram destreza e força incomuns como base indiscutível de qualquer posição dominante. Senhorio e areté estavam inseparavel- mente unidos” (JAEGER, 2013, p. 24). O melhor exemplo para compreender essa primeira cultura do povo estápresente na literatura, nas histórias contadas por Homero, poeta e rapsodo grego, em A Ilíada. Os personagens mais destacados por Homero são todos pertencen- tes ao grupo de gregos mais poderosos econômica e socialmente. Nas muitas batalhas sangrentas que o texto descreve e no próprio discurso dos personagens, revela-se o ideal do homem virtuoso, o ideal daquele que busca a excelência em suas principais características: há, portanto, o mais sagaz (Ulisses); o guerreiro imbatível (Aquiles); o comandante mais poderoso (Agamenon) etc. É como se a exibição dessas virtudes manifestadas em seu nível ex- tremo franqueasse a seus portadores o direito de liderar e exercer o senhorio das decisões e ações da sociedade que representavam. Das virtudes, talvez a coragem seja a que se exibe mais coletivamente, isso porque o sentido maior da areté grega é o de formar homens capazes de morrer por seus concidadãos. Vemos aí, nessa primeira cultura grega, um objetivo pedagógico claro: formar guerreiros capazes de dar a vida em defesa do território, dos valores e dos tesouros de suas cidades. No entanto, é dessa primeira cultura, que remonta pelo menos ao século X a.C., que a sociedade grega do tempo de Sócrates, Platão (Fi- gura 2) e, mais tarde, Aristóteles vai se distanciando. Esses filósofos pertencem a uma cultura grega mais moderna e integrada comercial- mente a outros povos. O ideal do homem virtuoso não deixa de existir, inclusive é possível o identificarmos nos diálogos escritos por Platão, mas é suplantado por um ideal mais abrangente. Diante da moderni- zação das cidades gregas, cidades-Estado ou pólis, e do comércio que muitas delas estabelecem com outros povos, o povo grego busca dotar seus cidadãos de capacidade de participação na vida política. Quando ficamos sabendo, então, que Sócrates não escreveu um texto sequer e optou pela exposição oral de seus ensinamentos filo- sóficos, precisamos relacionar esse aspecto ao fato de que a palavra rapsodo: na Grécia anti- ga, recitador profissional de poesias épicas. Glossário Figura 2 Escultura de Platão Filósofo do período clássico da Grécia antiga. Ra fa el M ac ha do d a Si lva /W ik im ed ia C om m on s Filosofia, Educação e Ciência 13 oral, naquele momento, era de suma importância; os oradores conse- guiam se destacar socialmente e influenciar as decisões da pólis. Sa- ber expor ideias, argumentar e influenciar tornaram-se as habilidades mais valorizadas. Se Sócrates estivesse comprometido com a antiga cultura, dificil- mente teria sido esse personagem consagrado nos textos de Platão e na cultura filosófica do Ocidente, pois, diferente da areté dos tem- pos homéricos, o filósofo, armado apenas de sua retórica e método, ensinava em praça pública, a quem estivesse disposto a ouvi-lo. Com Sócrates, então, surge um senso de universalidade, que parte do pres- suposto de que todos possuem a faculdade da razão. O papel do filó- sofo é ajudar os dispostos a trilhar o caminho da filosofia, para que cheguem ao conhecimento da verdade por meio do exercício da razão. Temos aqui elementos para a compreensão de uma primeira defini- ção ou entendimento do que é filosofia por parte de um filósofo. Para Sócrates, a filosofia é um contínuo exercício de busca pelo conhecimento de si. Sim, “de si”, pois, para ele, a razão pode se revelar por meio do apro- fundamento no conhecimento que temos de nós mesmos. Esse apro- fundamento é necessário porque os homens, imersos na exterioridade de seus interesses cotidianos, estão afastados do conhecimento que a razão, pulsante, mas resguardada em nosso interior, pode oferecer. O caminho desse aprofundamento pode ser orientado pelo filósofo, por isso é que nos diálogos socráticos, escritos por Platão, Sócrates sur- ge como a figura central, mas sem desconsiderar seus interlocutores, que vão sendo questionados e direcionados a buscar respostas cada vez mais substantivas com relação aos temas abordados. Sócrates acreditava que os conceitos morais em sua integralidade só poderiam ser conhecidos por meio de conceitos e não pela experiência. Por isso, também recaiu a ênfase de seu método no diálogo. Entender o que é o justo, o belo etc. só era acessível pela via conceitual, da definição. A cada novo questionamento, a cada novo olhar para dentro de si, o ho- mem conhece um pouco melhor a definição e, por isso, compreende o significado do que deve reger nossa vida individual e social: o que é o justo, o que é o bom etc. A filosofia, portanto, é esse exercício dialético que orienta o contínuo questionamento acerca do que somos e do que devemos ser e, princi- palmente, a atividade que nos ensina a prudência por meio do raciocínio. No cinema, a utilização de temas filosóficos não fica somente restrita aos filmes intelectualizados. A filosofia platônica e a co- nhecida alegoria do Mito da Caverna – homens vivem presos em uma caverna escura e só veem sombras, formas indefi- nidas e enganosas (que representam o mundo sensível); um dia um de- les se liberta e descobre que fora da caverna há um mundo iluminado, com formas claras e ob- jetivas (que representam o mundo inteligível) – são representadas nos filmes: O show de Truman, Matrix, e, mais recentemente, O quarto de Jack. Saiba mais 14 Filosofia da Educação As paixões, os rompantes de emoção e a intemperança, por exemplo, são produtos do mundo exterior sobre nós que vão sendo neutraliza- dos pelo exercício filosófico da razão. Também por esse motivo, Sócra- tes tornou-se uma figura indigesta para os poderosos de seu tempo. Os comportamentos, valores e opiniões circulantes na sociedade acabavam sendo questionados e, muitas vezes, desmoralizados, pois eram enten- didos como uma falsa verdade – a verdade, como vimos anteriormente, só pode ser acessada pela razão no interior de cada um de nós. Para Sócrates, a aplicação correta da razão resulta na compreensão da maneira mais adequada de se viver. Ao encontro dessa premissa, temos a voz de Vicente (2014, p. 216): o primeiro a fazer uso do método da discussão e da inquirição racional de modo despreconceituoso e não dogmático, Sócrates apresentava-se como um homem cuja vocação era levar seus concidadãos atenienses a pensar em sua própria vida de acordo com procedimentos que eles do contrário não empregariam, a fim de convencê-los de que uma vida não examinada não vale a pena ser vivida. Isso era feito com intensidade quase religiosa, a fim de perturbar a complacência mental das pessoas, fossem quais fossem as consequências, razão pela qual não surpreende que, num período de turbulência política, ele viesse a ser o foco de uma hostilidade que acabou por levá-lo à morte. Não podemos esquecer que nosso objetivo é acompanhar como al- guns filósofos responderam à difícil pergunta “o que é filosofia?”. Vimos, ainda que brevemente, como Sócrates respondia a essa pergunta, mas é muito complicado dissociar o seu modo de pensar do filósofo que mais foi influenciado por ele, Platão, e que de certa forma potencializou o que Sócrates propôs. No caso desses dois filósofos, o pensamento de um é o desdobramento do pensamento do outro. Por isso, vale a pena buscar- mos compreender em que reside esse desdobramento em Platão. Para nós, a importância da filosofia de Platão reside no desenvol- vimento de sua ideia de metafísica. Uma vez que nossa pergunta é “o que é filosofia?”, vamos encontrar na metafísica platônica provavel- mente a ideia mais bem-acabada do que esse filósofo grego entende por filosofia. Platão esteve, como Sócrates, muito preocupado com o problema da justiça, com uma realidade que pudesse comportar so- ciedades capazes de oferecer uma vida justa. Para o filósofo, porém, a justiça estaria distante de poder se manifestar em um mundo como o nosso. No entanto, a educação, se bem conduzida, poderia tornar os Filosofia, Educação e Ciência 15 homens mais propensos à ação justa. O pensamento filosófico preci- saria estar presentesobretudo naqueles que governam a cidade. Em A República, Platão nos apresenta à ideia do Rei-Filósofo: a fi- losofia é entendida como tão fundamental para o funcionamento da pólis que o principal atributo que um rei deve ter é a formação filo- sófica. Só esta poderá dar-lhe a sabedoria necessária para tomar as decisões corretas com relação à vida política e à moral de seu povo. Isso porque, seguindo as trilhas abertas por Sócrates, Platão entende que a filosofia pode levar ao conhecimento das virtudes em si e da justiça como ideia, não apenas a justiça que se manifesta nos vários exemplos de que dispomos em nossa realidade mais perceptível. Todas as manifestações de justiça que conseguimos observar são fragmentos de uma ideia cuja integralidade não pode ser compos- ta por tais fragmentos. É apenas o exercício do raciocínio, orientado pelo filósofo, que pode nos oferecer uma compreensão muito mais satisfatória do que os fragmentos de justiça que nos rodeiam. Confor- me vemos na afirmação de Strauss (2013, p. 52): se a justiça significa menos dar ou conceder a cada um o que a lei atribui a ele do que dar ou conceder a cada um o que é bom para sua alma, mas o que é bom para sua alma são as virtudes, segue-se que não pode ser verdadeiramente justo quem não conhece “as virtudes em si”, ou, em geral, as ideias, ou quem não é filósofo. As leis que os homens criam são também imperfeitas, pois são frutos do conhecimento imperfeito que temos de nossa realidade. Por isso, a filosofia platônica apresenta a dicotomia entre mundo sensível e mundo intelectivo. A nossa realidade sensível, aquela que nos chega por meio dos sentidos (tudo o que podemos tocar, ver etc.), é tomada por Platão como uma realidade imperfeita. Mas, com a sua teoria das ideias, Platão defende a existência de uma realidade diferente da descrita. Em um de seus diálogos, Timeu 52a, ele define essa outra realidade como estável, fixa, diferente da que normalmente temos diante de nós, em que tudo parece estar sob o signo do perecível e do mutável – nós frequentemente nos enganamos, nossas leis precisam ser revisadas, nossos corpos envelhecem etc. Já nessa realidade imutável, permanen- te, as coisas possuem uma natureza estável e imperecível. Dessa for- ma, o que temos é: O livro Édipo Rei – Antígona trata-se de um texto de teatro escrito por um dos três maiores nomes da tragédia grega. A personagem princi- pal é Antígona, filha de Édipo. Na defesa pelo sepultamento de seu irmão, Polinice, Antígona enfrenta Creonte, seu tio. Na peça, vemos as leis divinas sendo defendidas por Antígona, enquanto Creonte defende as leis humanas. Impor- tante perceber que no momento histórico em que a peça foi escrita, na sociedade grega já se en- contrava um certo espaço para a contestação das leis divinas. Creonte é o personagem que encarna esse espírito crítico. SÓFOCLES. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. Livro 16 Filosofia da Educação DS ta rk y/ aS ha til ov /S hu tte rs to ck MUNDO SENSÍVEL MUNDO INTELIGÍVEL • Os nossos sentidos e a nossa sensibilidade. • Perecível e mutável. • Intelecto e a sua capacidade de raciocínio lógico e abstrato. • O conhecimento verdadeiro se contrapõe às impressões sensíveis. A distinção entre realidades vem sendo motivo de intensas discus- sões ao longo da história. Houve uma tradição filosófica que associou a teoria das ideias (ou das essências) de Platão ao pensamento religio- so. Esse tipo de leitura da filosofia grega gerou a interpretação de que Platão estaria se referindo a um mundo do tipo espiritual, no sentido religioso. Mas a leitura mais filosófica e correta entende que o filósofo nos fala do mundo do intelecto e da capacidade de raciocinar e de or- ganizar os conteúdos do nosso mundo de maneira sistemática e mais geral possível. Conforme aponta Nodari (2004, p. 363): as ideias não são simples conceitos ou representações puramen- te mentais. Não são simples pensamentos, mas aquilo que o pensamento pensa quando liberto do sensível. Quando fala das ideias, Platão refere-se aos conteúdos objetivos de nossos con- ceitos universais. São o verdadeiro ser. São as essências objeti- vas. Aquilo que faz com que cada coisa seja aquilo que é. O que pode nos ajudar a compreender a citação de Nodari é pensar- mos sobre a definição de justiça, por exemplo. Se consultarmos cinco pessoas diferentes e pedirmos a cada uma delas a opinião sobre o que é justiça, é bem provável que cada uma dê uma definição diferente. A esse tipo de conhecimento Platão dá o nome de doxa, que se refere à opinião, ao conhecimento individual e parcial de algum conteúdo; con- traposta à doxa, o filósofo apresenta a noção de nous, conhecimento verdadeiro e também a parte racional e imortal do que o filósofo en- tende por alma. Filosofia, Educação e Ciência 17 Com tudo isso, é fundamental que percebamos o centro da argu- mentação platônica: o filósofo está apontando para a necessidade de apreender os limites da abstração e da objetividade, que, se conheci- dos, possibilitariam uma ação muito mais efetiva sobre a nossa realida- de. Um conceito conhecido em sua forma mais geral nos possibilitaria aplicá-lo a qualquer caso particular de nossa realidade contingente. É óbvio que, para conceitos que geram tantas opiniões e inúmeras inter- pretações, como é o caso de justiça, é muito mais complexo imaginar- mos a possibilidade de encontrarmos uma ideia tão ampla capaz de dar conta de todos os casos particulares. Por isso é que os exemplos mais interessantes vêm da matemática, da geometria. De modo muito simples, pensemos na definição de um quadrado ou de um círculo: após serem definidos, percebemos que tais definições podem se referir a quaisquer representações dessas figuras; o que pode diferenciar cada caso particular são apenas as medidas, mas a generalização da definição está lá. Mas Platão sabe que a geometria é insuficiente para todas as necessidades de uma realidade imperfeita como a nossa. Para esse filósofo, a passagem do mundo sensível ao mundo inteligível se dá em saltos de compreensão, saltos que podem ser entendidos como uma ascensão em níveis cada vez mais elevados de compreensão, sendo o último desses níveis o da sabedoria. Em nossa realidade, o filósofo seria aquele que nos apresenta o ca- minho dessa ascensão e nos ajuda em alguns de seus níveis iniciais. Porém, aquele que quer alcançar níveis elevados precisa afastar-se das questões da vida cotidiana. É preciso se sacrificar e renunciar ao que o mundo sensível e perecível oferece. Esse compromisso com a austeri- dade para consigo mesmo, com a renúncia dos desejos e a busca pelo autocontrole cada vez maior do corpo e do espírito ficou conhecido como ascese. A filosofia platônica é uma filosofia ascética, talvez por isso, ao lon- go da história, muitas leituras religiosas tenham tentado se apropriar dela. Por essas leituras, Platão seria mais um ser iluminado com uma mensagem capaz de modificar a história. Mas, ao que parece, Platão nos fala mesmo é da importância do exercício da razão e da busca do conhecimento em sua forma mais abrangente e geral possível, que são os limites de nossa própria racionalidade. Sugerimos àqueles que querem se aprofundar no conhecimento acerca do tema da ascensão e da ascese em Platão lerem o Capítulo VII de A República, além de Teeteto, um dos mais belos e importantes textos do filósofo. Saiba mais 18 Filosofia da Educação Há, no entanto, uma explicação bem menos elevada para entender essa separação em duas realidades muito distintas que Platão propõe em sua filosofia. Vimos, lá no início desta seção, que a primeira cultura grega cultivava a ideia de virtude. Mas no momento histórico em que Platão viveu, essa cultura estava sendo substituída por uma cultura me- nos aristocrática e mais aberta à participação geral dos cidadãos da pólis. Como a época dos grandes e míticos heróis gregos, Aquiles, Ajax, Ulisses etc., já havia acabado,não somente Platão, mas muitos outros artistas e filósofos que viveram na mesma época sentiam que seu tem- po era um tempo decadente, de graves problemas com a corrupção e de descontrole de toda sorte por parte da população. É possível, por isso, imaginar que o pensamento de Platão, legado a nós com os seus diálogos, reflita e potencialize esse sentimento. O mundo inteligível platônico é o mundo das virtudes perdidas e que precisa ser reconquistado. Mas o filósofo sabe que não é possível mais essa recuperação, pois sua sociedade e ele, filósofo, também são muito mais críticos do que eram seus antepassados com relação aos heróis que compõem a mitologia vigorosa que dá identidade ao povo grego em sua primeira cultura. Os heróis que foram cantados na obra de Homero agora não mais servem como modelos, mas como figuras que precisam ser analisadas em suas virtudes e defeitos. Sigamos uma análise da presença da epopeia homérica no interior da estrutura da tragédia grega – fica claro como a presença dos heróis nas tragédias já não desempenha a mesma função que nos clássicos de Homero: A epopeia 2 , que fornece ao drama os seus temas, suas persona- gens, o quadro de suas intrigas, apresentava as grandes figuras dos heróis de outrora como modelos; ela exaltava os valores, as virtudes, os grandes feitos heroicos. Por meio do jogo dos diálo- gos, do confronto dos protagonistas com o coro, das inversões da situação durante o drama, o herói lendário, cuja glória era cantada pela epopeia, torna-se, no palco do teatro, o objeto de um debate. Quando o herói é questionado diante do público, é o homem grego que, nesse século V ateniense, no e por meio do espetáculo trágico, descobre-se ele próprio problemático. (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2008, p. 161) Como não é mais possível recorrer ao exemplo mítico dos heróis do passado (o mito já não tem a mesma força sobre as mentalidades Na Ilíada estão presentes todos os heróis gregos que participaram da guerra contra Tróia. Já na Odisseia a história se concentra em um desses heróis retornando para casa após a guerra contra Tróia: Ulisses (em latim) ou Odisseu (em grego). 2 Filosofia, Educação e Ciência 19 muito mais críticas dos tempos de Sócrates e Platão), o filósofo propõe uma realidade fora ou para além do tempo, que é o mundo inteligível. Ser virtuoso não mais significa combater inimigos sem medo da mor- te, como na primeira cultura grega; é necessário agora, no tempo da democracia ateniense, renunciar cada vez mais ao atual mundo deca- dente, perecível e pouco confiável, parece nos dizer o filósofo. O auto- controle, a renúncia, a ascese e a razão podem nos fazer reencontrar a virtude dos nossos antepassados. A boa vida, que é a vida com justiça, só pode ser alcançada por meio do exercício contínuo de sacrifício e autocontrole. Há muitos outros aspectos da filosofia platônica que são fundamen- tais para a história do pensamento mundial e da cultura, mas o que foi dito até aqui é suficiente para nossos objetivos. A filosofia platônica, é importante observar, é a filosofia socrática adicionada de preocupa- ções acerca da origem do conhecimento. Assim, uma possível resposta de Platão à nossa pergunta inicial, “o que é filosofia?”, poderia ser: é pensar sobre o processo da origem do conhecimento, como ela funda- menta a realidade em duas partes, a sensível e a intelectiva, e, principal- mente, que efeitos morais ela pode ter sobre os homens em sociedade, como esse mundo intelectivo se coloca como uma dimensão para além do mundo sensível, físico – daí o termo metafísica (do grego metaphysis): além da física ou além da natureza. 1.1.2 Nietzsche: a resposta de um rebelde Vamos pensar juntos: se nos guiarmos pela resposta de Sócrates e Platão, é possível dizer que a concepção desses filósofos pode ser to- mada como uma resposta definitiva e única para a nossa pergunta? Ainda que esses filósofos tenham se preocupado com os limites e as possibilidades de generalização do conhecimento humano, a resposta deles à nossa pergunta não nos satisfaz. Isso porque vamos encontrar em outros filósofos outras preocupações e definições – algumas, inclu- sive, opostas ao que disseram nossos dois filósofos gregos. O caso mais emblemático, nesse sentido, é o de Friedrich Nietzsche (1844-1900), cuja filosofia tornou-se célebre por, entre outros importantes motivos, ser antiplatônica. Por meio da ascensão do poderio romano sobre os gregos, a me- tafísica platônica é aproximada da religião cristã, com base no desen- Figura 3 Retrato de Friedrich Nietzsche Filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor prussiano do século XIX. Fr ie dr ic h Ha rtm an n/ W ik im ed ia C om m on s Não vamos nos aprofun- dar neste aspecto, mas re- comendamos fortemente àqueles que se interessam pelo tema a leitura das tra- gédias gregas, compostas para serem encenadas. Ésquilo, Sófocles e Eurí- pedes, que viveram em uma época histórica muito próxima à de Platão, são os três maiores escritores gregos de tragédias. Em praticamente todas elas, os heróis gregos de um passado muito distante são colocados diante de situações dramáticas muito humanas. O aspecto antes mítico desses heróis fica em segundo plano e, diante de situações extremamente complexas, agora nas peças dos três dramaturgos citados pas- sam a mostrar ao público suas ações e decisões de uma forma muito humana, recheadas de boas e más escolhas, bons e péssimos comportamentos. Saiba mais 20 Filosofia da Educação volvimento da própria Igreja Católica. A filosofia desse período ficou conhecida como patrística, em função da ativa participação dos padres da Igreja Católica na vida cultural e educacional das sociedades desse período. Assim, no fim da Idade Média, o platonismo estava já embe- bido da religião cristã. Na verdade, é mais exato dizer que a metafísica do fim desse período histórico era a metafísica cristã, que usara alguns preceitos presentes no platonismo. É possível dizer que na modernidade esse combo de religião e filoso- fia tornou-se incômodo para muitos dos filósofos do período, uma vez que a filosofia precisava compreender os novos tempos, que se organi- zavam em torno da racionalidade que impulsionava a ciência, cada vez mais matemática e empírica: isso quer dizer que era necessário concen- trar-se no que experiências e demonstrações procuravam provar. Propor mundos ideais, como a ideia de paraíso no cristianismo ou de mundo das ideias em Platão, passa a não ser mais o centro das preocupações filosóficas. Immanuel Kant (1724-1804) já havia proposto uma distinção importante, em sua obra maior A Crítica da Razão Pura (1781), entre mundo numênico, o mundo das coisas em si, que, se exis- tisse, estaria desde sempre vedado aos humanos, uma vez que nossa capacidade racional limitada não conseguiria perceber essa realidade, e o mundo fenomênico, o mundo dos fenômenos, que se refere à rea- lidade como ela se apresenta comumente a nós, por meio da nossa razão e dos nossos sentidos. O mundo da ciência e os interesses da filo- sofia se voltam quase que completamente para essa última realidade. Mas foi em Nietzsche que a metafísica cristã-platônica encontrou seu maior crítico. Segundo o filósofo, “a raiz profunda, a base comple- tamente desenvolvida do pensar metafísico, encontra-se sistematizada no idealismo platônico, com a doutrina das ideias e a consequente opo- sição entre os mundos sensível e inteligível” (GIACOIA JÚNIOR, 2007, p. 13). As investidas de Kant, procurando separar a metafísica dos inte- resses da filosofia, não foram suficientes. Nietzsche consegue identifi- car, em seu tempo, o século XIX, a presença de uma metafísica pulsante e vigorosa e ainda muito próxima da filosofia. Nietzsche entende que Platão usou a filosofia para imprimir nela os aspectos da personalidade de um legislador moralista. Platão, por essa interpretação, teria verdadeiro desprezo pelo mundo sensível e, por conseguinte, pelossentidos, nutrindo, principalmente, grande “indis- Filosofia, Educação e Ciência 21 posição contra a realidade mais próxima, que pesa como um fardo so- bre o pensamento: corpo, carne, sangue, paixão, volúpia, ódio” (GIACOIA JÚNIOR, 2007, p. 19). É por isso então que Nietzsche, desde os primei- ros escritos, planejava o chamado platonismo revertido como seu proje- to principal, que, em outras palavras, seria construir uma filosofia que fosse o exato oposto da filosofia platônica. Para Nietzsche, a influência da metafísica platônica, ao longo dos séculos, havia sido devastadora, principalmente quando se uniu ao cristianismo, produzindo uma metafísica ainda mais poderosa, pois formou a ideia de que o mundo sensível e tudo que pertence a ele pre- cisam ser continuamente desprezados. A filosofia nietzschiana preten- de revalorizar todos os aspectos condenados pela metafísica cristã-platônica. Para Nietzsche, nenhum ser humano devia moldar seu caráter com base em promessas de realizações futuras em alguma rea- lidade que não seja a que tem diante de si. Assim, contra o essencialis- mo da filosofia platônica, Nietzsche procura apontar a riqueza e a necessidade de valorizar o mundo que se apresenta para nós em sua aparência atual. A filosofia de Nietzsche não obteve grande êxito enquanto ele esteve vivo, mas não podemos deixar de observar que hoje ela é extremamente influente. Nas discussões sobre a pós-modernidade, é difícil não encontrar referências ao seu pensamento. Mas o que nos importa verdadeiramente é perceber como o seu entendimento acerca da filosofia é profundamente diferente da visão de Platão. Se, para Platão, a filosofia é sobretudo metafísica, como Niet- zsche responderia a essa questão? Nietzsche sempre gostou de usar a imagem do martelo, que pode ser visto como um elemento de desmonte, destruição. Ele dizia que filosofava com o martelo, ou seja, sua filosofia buscava a destrui- ção de outras filosofias, ou das ilusões que elas propunham, prin- cipalmente a cristã-platônica. Assim, se fizéssemos a pergunta que nos interessa desde o início para Nietzsche, “o que é filosofia?”, a resposta provavelmente seria: é uma antimetafísica; é a valoriza- ção, pela via do conhecimento, das aparências, e não das essências. Por essa razão é que não podemos buscar uma definição profun- da do que seja a filosofia com base na definição de dicionários, pois vemos que a resposta a essa pergunta depende mesmo é do que Figura 4 Sculpture agenouillé (escultura ajoelhada), de Charles Henry Niehaus Kilom 691/W ikim edia Com m ons O martelo, para Nietzsche, era um elemento de desmonte, demolição. Filosofar com o martelo é buscar a destruição de outras filosofias, ou das ilusões que elas propunham. O livro Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural apresenta as mudanças sociais, culturais, artísti- cas, filosóficas, científicas e estéticas que surgiram após a Segunda Guerra Mundial, as quais foram responsáveis por grandes transformações nas relações travadas entre as crescentes práticas capitalistas, a arte e a cultura. HARVEY, D. São Paulo: Edições Loyola, 2005. Livro https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Kilom691 https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Kilom691 https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Kilom691 https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Kilom691 https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Kilom691 https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Kilom691 https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Kilom691 https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Kilom691 22 Filosofia da Educação pensa cada um dos filósofos. Vimos, com Nietzsche e Platão, que essas respostas podem, inclusive, ser diametralmente opostas. Uma das per- guntas mais difíceis de serem respondidas é aquela cuja resposta deva ser capaz de delimitar o(s) campo(s) de investigação da filosofia. Houve, no século XX, por exemplo, o movimento filosófico conhecido como positivismo lógico, cujos principais filósofos, organizados em um grupo chamado de Círculo de Viena, muito atentos ao desenvolvimento da ciência, sobretudo da física, entenderam que caberia à filosofia ape- nas o papel de auxiliar das ciências, buscando interpretar e compreen- der as relações lógicas das proposições científicas. Todas as discussões consideradas filosóficas que não se encaixassem nessa função auxiliar, não servindo para melhorar a compreensão lógica das teorias científicas, foram consideradas por esses filósofos como metafísicas. Então, nesse caso, a metafísica era entendida segundo um sentido bastante pejorativo, como uma espécie de lixo filosófico, frases e con- ceitos que não podem ser provados e, por isso, são inúteis. É claro que essa é uma posição radical, inclusive alguns dos filósofos pertencentes ao Círculo de Viena mais tarde a revisaram, mas vemos aí mais uma definição de filosofia – esta, inclusive, elenca boa parte do que é consi- derado filosofia como inutilidade sem fundamento – bastante diferente daquelas que acompanhamos até aqui. De qualquer forma, nesta seção conseguimos aprender que uma resposta com maior exatidão à pergunta “o que é filosofia?” depende muito da filosofia em questão. Mas não vamos terminar sem uma defi- nição mais objetiva para a nossa pergunta inicial. Sim, a construção de uma resposta com certa objetividade é possível – desde que saibamos que essa resposta é objetiva para satisfazer nossos fins didáticos, afinal o mundo em que vivemos exige de nós uma certa objetividade, não? Quando levamos em consideração não apenas os filósofos, mas também os acadêmicos e estudiosos da filosofia, uma resposta que pa- rece ser razoavelmente satisfatória a todos seria: a filosofia é uma ativi- dade intelectual que procura colocar sob investigação nossas crenças a fim de validá-las ou não, investigação essa que procura se orientar por métodos racionais propostos pelos filósofos. Validar uma crença signi- fica oferecer provas ou argumentos, em seu favor, que sejam capazes de justificar a veracidade dessa crença. A filosofia platônica e a filosofia nietzschiana são antagônicas na maior par- te de seus princípios. No entanto, parece que, no mundo contemporâneo, a filosofia de Nietzsche tem sido mais valorizada. Procure refletir sobre as razões a respeito dessa preferência dos nossos tempos. No link a seguir, você encontra um texto que pode auxiliá-lo nessa reflexão. Disponível em: https://educacao. uol.com.br/disciplinas/filosofia/ filosofia-pos-moderna---nietzsche- a-relativizacao-dos-valores.htm. Acesso em: 16 jul. 2021. Desafio https://educacao.uol.com.br/disciplinas/filosofia/filosofia-pos-moderna---nietzsche-a-relativizacao-dos-valores.htm https://educacao.uol.com.br/disciplinas/filosofia/filosofia-pos-moderna---nietzsche-a-relativizacao-dos-valores.htm https://educacao.uol.com.br/disciplinas/filosofia/filosofia-pos-moderna---nietzsche-a-relativizacao-dos-valores.htm https://educacao.uol.com.br/disciplinas/filosofia/filosofia-pos-moderna---nietzsche-a-relativizacao-dos-valores.htm Filosofia, Educação e Ciência 23 Conforme mencionado, eis uma boa resposta, mas agora sabemos também que as respostas tendem a se complexificar se resolvermos mergulhar nos conhecimentos de cada um dos grandes filósofos, certo? 1.2 Filosofia e filosofia da educação Vídeo Você já deve ter percebido que a filosofia gosta de discutir com uma certa profundidade cada assunto que lhe cabe. Na verdade, essa é a própria natureza da filosofia: discutir com precisão e profundidade, procurando concentrar-se nos pontos que não são percebidos ou não são valorizados por pessoas, entidades ou instituições que se debru- çam sobre um certo assunto. O filósofo é aquele tipo de pessoa que não pode se contentar com respostas prontas. Você lembra que na definição objetiva para a pergunta “o que é filo- sofia?” falávamos em análise das crenças, para validá-las ou não? Pois então, a filosofia sabe que, quando uma crença funciona plenamente em nós, ela apareceem nosso discurso da maneira mais espontânea possível. Isso ocorre porque nós acreditamos tão profundamente nes- sa crença que dificilmente paramos para analisá-la. 1.2.1 O olhar divergente da filosofia Quando falamos em crença, associamos esse nome imediatamente à religião. Crença, no entanto, é apenas uma maneira de nos referir- mos a alguma coisa ou ideia que acreditamos ser verdadeira. Vejamos um exemplo. Talvez você more em um prédio que utiliza a divisão entre elevadores sociais e elevadores de serviço. De modo geral, a maioria de nós respeita essa divisão sem problema algum. Mas, quando ocorre algum caso que repercute na mídia, por exemplo, a potencial discrimi- nação que existe nessa divisão, alguns começam a pensar melhor nos problemas sociais envoltos nessa prática e possivelmente todos, após algum tempo, voltam ao mesmo hábito antigo sem mais pensar nos aspectos problemáticos existentes ali. Esse é um exemplo simples de crença embutida em nossos hábitos; tendemos a repetir e repetir esses hábitos cotidianamente sem problematizá-los. Em um certo sentido, é importante que seja assim, uma vez que isso facilita a dinâmica social do nosso cotidiano. Já imaginou se passássemos a problematizar cada crença? Certamente nossa dinâmica diária estaria 24 Filosofia da Educação completamente comprometida; ficaríamos apenas pensando e não agi- lizaríamos mais a nossa vida. Por outro lado, teríamos sociedades mais maduras e esclarecidas se nos esforçássemos um pouco mais no ques- tionamento de nossas crenças e das crenças sociais que mantêm certos arranjos da ordem social que incomodam a muitos, mas nunca foram analisados de maneira aguda, profunda e com argumentos fortes. Voltando ao exemplo do elevador e suas divisões sociais, vemos que poucas pessoas interrompem suas preocupações cotidianas para pensar sobre os aspectos problemáticos em torno de coisas e ações tão rotinei- ras em suas vidas: respeitar as divisões sociais estabelecidas enquanto utilizam um aparelho mecânico para subirem ou descerem até os seus destinos de trabalho e lazer. O filósofo não faz isso. Ele vai se preocupar com aquilo que deixamos de perceber. Mas somente o filósofo deve ter essa postura? Não, claro que não! Aliás, ele não age dessa maneira para manter-se fiel à sua tradicional imagem de “avoado”, “excêntrico”. Como já foi dito, ele age dessa maneira porque está treinado para olhar aspectos do real que geralmente ignoramos; mas nós dificilmente adotamos a mesma postura do filósofo. Claro, podemos alegar que não temos treinamento para isso. No entanto, esse não é um argumento tão convincente. Vamos tentar aqui enriquecer esse argumento para melho- rar a defesa de quem acha que não pode tomar uma atitude parecida com a do filósofo. Para isso, será de grande utilidade a excelente explicação de dois sociólogos muito influenciados por uma escola filosófica importante do século XX chamada Fenomenologia, cujos maiores representantes são os filósofos Edmund Husserl (1859-1938) e Martin Heidegger (1889-1986). Os sociólogos em questão, Peter Berger (1929-2007) e Thomas Luckmann (1927-2016), nos ensinam que existem vários níveis de rea- lidade, os quais diferem quanto à nossa capacidade de consciência em relação a cada um deles. A consciência da realidade de estarmos es- crevendo este texto agora ou de você estar lendo este texto agora é muito mais apreensível ao sujeito do que os aspectos dessa mesma realidade quando ela nos aparece nos sonhos, por exemplo. A essa realidade mais apreensível, Berger e Luckmann chamam de realidade da vida cotidiana. É da realidade da vida cotidiana que falamos no caso do exemplo do elevador. Vejamos, em mais detalhes, como Berger e Luckmann (1991, p. 35, grifo do original) a caracterizam: Filosofia, Educação e Ciência 25 Eu apreendo a realidade da vida cotidiana como uma realidade ordenada. Seus fenômenos estão pré-arranjados em padrões que parecem ser independentes da apreensão que tenho deles e que se impõem sobre ela. A realidade da vida cotidiana pare- ce já objetificada, isto é, constituída por uma ordem de objetos que têm sido designados enquanto objetos antes do meu apare- cimento na cena. Em outras palavras, o que os autores estão sugerindo é que a nossa realidade é a maneira como comumente entendemos como os obje- tos estão relacionados entre si, e que eles já estão prontos e definidos antes de nossa presença. Mas não apenas de nossa presença em uma cena qualquer da vida cotidiana, mas nossa presença na própria vida. Quando nascemos, já encontramos um mundo pronto, com objetos nele, cada um tendo uma ou várias funções e significados. Nós não construímos esses significados; nós os aprendemos nos processos de socialização ao longo de nosso crescimento (na escola, na família, com amigos, no trabalho) e, sem ao menos perceber, logo esta- mos com esses significados internalizados, repetindo as mesmas ações e os compreendendo da mesma maneira que as outras pessoas que vi- veram na mesma sociedade antes de nós. Segundo Berger e Luckmann (1991, p. 35-36): A linguagem usada na vida cotidiana continuamente me for- nece as objetificações necessárias e postula a ordem dentro da qual estas fazem sentido e dentro da qual a vida cotidiana tem um significado para mim. Vivo em um lugar que é geo- graficamente designado; emprego ferramentas, de abridores de lata a carros esportivos, que são especificadas pelo voca- bulário técnico da minha sociedade. Vivo dentro de uma rede de relações humanas, do meu clube de xadrez aos Estados Unidos da América, que também são ordenados por meio do vocabulário. Dessa forma, a linguagem marca as coordenadas da minha vida em sociedade e preenche a minha vida de ob- jetos com sentido. Nesse processo, a linguagem não só falada, mas também pensada, produzida socialmente, é internalizada por nós. Por essa razão, tende- mos a pensar e perceber a realidade de maneira muito parecida com as pessoas que pertencem à mesma sociedade. Assim, se essa sociedade não pensa muito sobre a discriminação sobre elevadores, é bem possí- vel que nós também não pensemos. 26 Filosofia da Educação Até porque, além de herdarmos uma linguagem comum, social, que nos faz perceber e pensar o mundo sob uma perspectiva, as pessoas ao nosso redor confirmam a veracidade das nossas ações e pensamen- tos toda vez que essas ações e pensamentos expressam um conteúdo referendado pela sociedade: “eu sei que a minha atitude natural nesse mundo corresponde à atitude natural dos outros, que eles também en- tendem as objetificações por meio das quais esse mundo é organizado” (BERGER; LUCKMANN, 1991, p. 37). Isso quer dizer que o conhecimento do mundo pressupõe, em grande parte, a intersubjetividade do meu conhecimento, ou seja, eu preciso encontrar confirmação do que pen- so, sinto e expresso nas outras pessoas também. Perceba que, se levarmos essas considerações a sério, concluiremos que boa parte de como entendemos o mundo, pensamos e agimos so- bre ele se deve a um grupo maior de pessoas, e não somente a nós. E aí chegamos ao ponto essencial: por todas essas razões, enquanto o mundo estiver funcionando da maneira como o conhecemos, ou seja, enquanto as pessoas ao nosso redor acharem corretas nossas ações e pensamentos, tendemos a não questioná-lo. Se, então, quase ninguém vê o problema discriminatório na divisão de elevadores, dificilmente nós enxergaremos. Se, no Brasil, quase até metade do século XIX, ape- nas uma parcela ínfima da população livre via como errada a explora- ção da escravidão, então a chance desse tipo de exploração existir sem contestação até aquele momento era enorme. Mas temos que tomar cuidado para não confundirmos o que foi dito até aqui com uma visão determinista, ou seja, não devemos ima- ginar que estamos completamente determinados a sermos meros re- produtores de tudo o que nos ensinam. Nós efetivamente tendemos a essa repetição, mas existem idiossincrasias em nós como sujeitos, que nãovão se conformar com o que aprendemos e apreendemos do mundo social. Há pessoas que percebem que há problemas profundos no mundo que herdamos e passam a questionar a realidade. Também há pessoas que se especializam em perceber alguns desses problemas; é o caso do filósofo. Com relação a esse último, Berger e Luckmann chamam sua atitude de atitude teórica. Já que o filósofo está sempre buscando perceber os “furos” da rea- lidade por meio do conhecimento e da teoria, assim ele, muitas vezes, idiossincrasia: constitui- ção individual, em virtude da qual cada indivíduo reage diferentemente à ação de agentes externos. Glossário consegue passar da atitude natural, que é a simples aceitação e a re- produção dos conteúdos sociais, inclusive os discriminatórios, sem questionamento algum, para a atitude teórica, que é conseguir não somente perceber alguns dos problemas mais graves em nossa reali- dade, mas também questioná-los com base no conhecimento bem fun- damentado. De modo geral, as pessoas mais acomodadas em relação ao mundo que herdam dificilmente buscam sair da atitude natural e dar um salto para a teórica. 1.2.2 A filosofia da educação O filósofo, muitas vezes, é visto como alguém excêntrico, distraído ou descuidado. Na verdade, ele não está distraído, mas está pensando sobre aspectos da nossa realidade por ângulos que não são muito cos- tumeiros. Platão nos conta no Teeteto, 174a, que na Grécia antiga Ta- les de Mileto (623-558 a.C.), considerado por muitos o primeiro filósofo, certa vez, observando o céu, caiu em um buraco e, nesse instante, foi zombado por uma moça espirituosa que disse que o filósofo procurava entender o que se passava no céu, mas não via o que estava junto aos próprios pés. Essa imagem sobre os filósofos parece ter ainda muita força em nossos dias, não? De qualquer forma, não podemos ignorar que Tales inventou a matemática dedutiva e é também autor de teoremas que usamos ainda hoje na geometria. Será que alguém tão distraído assim seria capaz de produzir façanhas do intelecto como ele produziu? Até agora, acompanhamos referências à filosofia de maneira geral, mas é preciso saber que a filosofia tem áreas especí- ficas de interesse. Assim como o mundo contemporâneo é altamente especializado, a filosofia, como uma forma importante de conhecimento que busca estar atenta a cada uma dessas especializações, possui também suas divisões. Há, por exemplo, a filosofia da química, a filosofia da física, a filosofia política, a filosofia da mente, a filosofia da ciência, a filosofia da psicologia e, entre muitas outras, a filosofia da educação. Essa última é a que nos interessa nesta obra. Já conhecemos bem o espírito filosófico geral, que está presente em todas as filosofias citadas. Mas, na prática, o Filosofia, Educação e CiênciaFilosofia, Educação e Ciência 27 Triff/Shutterstock 28 Filosofia da Educação que é e como funciona a filosofia em uma de suas especializações, nes- se caso, a educação? O que é, portanto, a filosofia da educação? Podemos dizer que o sistema escolar funciona sobre uma base teó- rica que orienta os professores em todas as disciplinas. Além da ma- téria específica de cada um deles, há sempre um ou alguns métodos adotados pelos professores que são pensados para ajudar a fluência do aprendizado: a comunicação entre professores e alunos, a com- preensão mais fácil dos conteúdos, as questões disciplinares etc. Geralmente quem define os métodos e as linhas teóricas a serem adotadas são os profissionais da área da pedagogia. A pedagogia, por- tanto, está muito preocupada com a definição desses métodos, da apli- cação deles em sala de aula e dos resultados gerais que eles produzem. A aplicação de uma pedagogia, portanto, diz respeito à aplicação de normas bem estabelecidas que buscam reger um sistema de ensino como um todo. Muitas vezes, a filosofia da educação é confundida com a pedago- gia, mas precisamos estabelecer a diferença aqui. Enquanto a pedago- gia está preocupada com as normas e com o bom funcionamento da aplicação de métodos previamente escolhidos, a filosofia da educação está preocupada em analisar todo esse universo de funcionamento re- gido pela pedagogia. Uma boa filosofia da educação se preocupa em analisar tanto os aspectos das teorias pedagógicas vigentes na escola ou no sistema es- colar quanto os aspectos humanos e sociais relacionados a tais teorias. É possível dizer que a pedagogia precisa dar respostas institucionais muito mais objetivamente do que a filosofia da educação. Antes de iniciar o ano letivo, todo um projeto pedagógico precisa estar pronto, bem definido, bem fundamentado e, ao longo do ano, precisa dar resultados. Resultados, inclusive, que podem ser medidos: as notas médias dos alunos de cada série, o grau de alfabetização, a ca- pacidade de resolver problemas matemáticos, o desempenho de cada professor etc. Assim, a medição dos resultados gera números, gráficos e perfis pedagógicos muito claros e precisos, o que, por sua vez, gera muita cobrança e pressão quando os resultados não se mostram os melhores O documentário A Educa- ção Proibida procura fazer uma crítica ao modelo pedagógico atual e sugere um novo modelo edu- cativo. As críticas feitas entendem que o modelo de ensino atual está enrijecido e dirigido mais a uma espécie de condi- cionamento para que o ci- dadão sirva aos interesses do sistema social do que propriamente à educação em sentido lato. Disponível em: https:// www.youtube.com/ watch?v=OTerSwwxR9Y Acesso em: 16 jul. 2021. Documentário Filosofia, Educação e Ciência 29 possíveis. Podemos perceber, então, o papel central que a pedagogia possui nesse cenário. É claro que a pedagogia também está em contato direto com as várias teorias pedagógicas; não se trata de um campo exclusivamente técnico em que somente números, dados e resultados estão presen- tes. Mas mesmo que essas teorias sejam estudadas e exaustivamente discutidas, ao fim do processo, é sempre a aplicação delas que vai ser medida e gerar cobranças. Portanto, a responsabilidade institucional está continuamente presente no horizonte da pedagogia. Já a filosofia da educação não tem sobre ela o peso de precisar ofe- recer respostas institucionais imediatas. Ela, podemos dizer, fica na re- taguarda do processo de ensino, procurando analisar o que tem sido adotado pedagogicamente, os resultados da pedagogia vigente, mas não somente isso: ela procura analisar os aspectos filosóficos, humanos e sociais que também habitam aquele sistema educacional e que não são motivo de reflexão nem da pedagogia nem de outras disciplinas. Você se lembra da atitude filosófica de Tales de Mileto, preocupado com o que ocorria nos céus enquanto todas as outras pessoas estavam preocupadas com os assuntos mais cotidianos, mais, digamos assim, terrenos? De certa forma, o filósofo da educação tem o mesmo papel, mas agora o seu céu é a educação. O filósofo da educação pode permitir-se perguntar sobre a efeti- vidade do que está sendo ensinado, por exemplo. Você se lembra de uma cena clássica do filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989) em que o admirado professor de literatura de um colégio de ensino muito rí- gido pede aos alunos que rasguem as folhas do manual de literatura? O manual explicava como é possível medir matematicamente a beleza de um poema. O professor percebe que aquele método não é nenhum pouco efe- tivo e, mais, percebe que ele não contribui para que os alunos se inte- ressem pela poesia. Ou seja, na cabeça do professor está claro que o método adotado que visa ensinar e criar uma certa sensibilidade poéti- ca nos alunos faz justamente o contrário. Os alunos relutam em rasgar as folhas, mas logo que o fazem se sentem felizes e como que se liber- tando de um fardo. A partir daquele momento, os alunos começam a se interessar pelo assunto. 30 Filosofia da Educação Pois bem, o nosso professor em questão teve uma atitude filosófi- ca. Ele conseguiuenxergar vários dos elementos que estavam em jogo naquele contexto: ele percebeu a insatisfação dos alunos, a ineficácia do método, o tipo de aluno que estava sendo formado pela instituição – onde eles aprendiam a anotar tudo e estudar demasiado, mas ne- nhum se mostrava apaixonado pelo estudo e pelo conhecimento – etc. Enxergando aquilo e vendo sua ineficácia, ele propôs e implantou um novo método. No filme, que obviamente romantiza esse processo, o método do professor dá certo em, pelo menos, um aspecto: os alunos passam a gostar daquela matéria e ter um novo olhar sobre o conhecimento, e uma transformação profunda se inicia em cada um deles. Não se pode esperar que o filósofo da educação vá ser tão bem-su- cedido em todas as suas ações e sugestões quanto o professor do fil- me, mas sua tarefa na educação é bem parecida. Claro, ele não precisa pedir para que os alunos rasguem seus livros, mas ele pode analisar a pedagogia que está sendo praticada e propor reformulações. Mas ele não fará isso sem argumentos: vai certamente oferecer inúmeros argu- mentos para mostrar as falhas do sistema atual e alternativas que ele julga serem muito melhores. Ele fará isso não porque é inimigo da pedagogia que está sendo adotada pelo sistema educacional ou porque quer criar uma rixa com a pedagoga responsável. Ele fará isso porque provavelmente toda a pedagogia ali está regendo a vida educacional há tanto tempo que ninguém mais a contesta, já foi incorporada como uma crença. Todos automatizaram o que precisa ser feito e o fazem ano após ano da mes- ma maneira. Mas agora já sabemos como um filósofo trata as crenças; ele está treinado para perceber ao menos algumas delas, operando na educação, e dizer quando elas são boas para o ensino ou quando elas são perniciosas e atrapalham o processo de aprender. O filósofo da educação pode também interessar-se por certos temas que ele considera que precisam ser mais bem discutidos por aqueles profissionais que estão na linha de frente da educação. Um exemplo bem presente em nosso tempo é a disputa entre o ensino mais hu- manístico e o de viés tecnicista. De modo geral, as propostas de ensino tecnicista são bem empolgantes. Pais e alunos ficam satisfeitos quando Um dos temas que tem preocupado filósofos da educação no mundo inteiro é a relação que jovens estudantes esta- belecem com as redes sociais. O livro A Sociedade de Controle – Manipulação e modulação nas redes digitais faz uma reflexão importante dos perigos quanto à captação dos dados que informamos às redes (mesmo que isso pareça inofensivo), e em como os governos não estão estabelecendo restrições suficientes para limitarem essa captação por parte das empresas. O livro é composto de ensaios de pesquisadores que se apoiam em teorias de filósofos contemporâ- neos importantes, como Maurizio Lazzarato, Michel Foucault, entre outros. SOUZA, J.; AVELINO, R.; SILVEIRA, S. A. da. São Paulo: Hedra, 2019. Livro Filosofia, Educação e Ciência 31 ouvem suas ofertas. Em um país, como o nosso, que está na semiperi- feria do capitalismo, parece haver só vantagens quando a proposta é ensinar ao jovem alguma habilidade técnica, seja ela aprender a operar máquinas modernas, consertar aparelhos elétricos ou eletrônicos etc. Os pais imaginam independência financeira para o futuro dos fi- lhos e os filhos ficam empolgados porque, imaginam, vão trocar toda aquela “chatice” de filosofia, história e sociologia por ferramentas e aparelhos eletrônicos. É óbvio que não há mal algum no aprendizado de tais atividades. Porém, se isso resultar na perda do contato dos alunos com disciplinas que os farão pensar em sua própria humanidade e na relação deles com outros seres humanos em sociedade, pode haver aí um prejuízo. Porém, esse é um prejuízo difícil de mensurar. Como eu posso medir o quanto da capacidade de reflexão e humanização um aluno perdeu? É aí que entra o filósofo, que busca compreender o problema e, quando possível, visualizar soluções. Vejamos o que pode ser dito sobre o pro- blema do tecnicismo na educação: Amparado pela capitalização do conhecimento incorporado pelo sujeito, o tecnicismo continua validando suas verdades sobre o mundo vivido no espaço escolar, conduzido pelas esteiras atuais da nova fase de modernização da sociedade informacional e global. Por esses meios, os desdobramentos que assumiu no terreno fecundo da educação brasileira fizeram prosperar, jus- tamente, os germes que se propunha a reforma do ensino: o preparo para a produção industrial. A razão “encantada” pelos artifícios da reprodução do capital e, com ele, da reprodução da cultura é conduzida a uma identidade particularmente fortuita, incisivamente inclinada a imperar somente seu lado desviante, como razão instrumental. (BRENNAND; MEDEIROS, 2018, p. 12) O problema maior apontado pelos autores anteriores é o fato de que a educação tecnicista, do modo como normalmente é proposta, acaba por focar apenas os conteúdos que apenas têm a razão instrumental como base. Esta é um conceito desenvolvido por um filósofo alemão contemporâneo chamado Jürgen Habermas. Em poucas palavras, a ra- zão instrumental estabelece como único critério a utilidade. Historica- mente esse tipo de racionalidade foi utilizada pelo homem para dominar a natureza, conhecendo seu funcionamento por meio da ciência. 32 Filosofia da Educação O problema é que as relações humanas e os problemas sociais não são apenas coisas e precisam de um outro tipo de racionali- dade que não tenha como critério único a utilidade. Relacionar-se com coisas e com artefatos tecnológicos permite relações regidas pela utilidade, mas com pessoas é o contrário. Um dos problemas da educação tecnicista seria não problematizar as consequências no comportamento e na sensibilidade de pessoas formadas apenas para valorizarem o útil. Pensando na relação que os jovens, e boa parte dos adultos também, esta- belecem com as redes sociais, que tipo de considerações você imagina que um filósofo da educação poderia fazer? Elenque algumas dessas considera- ções observando as informações a seguir: • Compreender, com elementos da análise da economia, análise da infor- mação e da sociologia, como empresas lucram com a nossa ignorância acerca dos métodos de coleta de informação nas redes sociais. • Elencar efeitos negativos que a relação exagerada com as redes pode causar: efeitos psicológicos, sociais etc. • Buscar entender como a relação disfuncional com a internet pode com- prometer os relacionamentos afetivos. • Apresentar o perfil do consumista compulsivo, que muitas empresas tentam impor como padrão aos internautas. Desafio Mas o que nos interessa é apenas perceber até onde se estende o olhar filosófico na educação. O filósofo da educação precisa estar aten- to a questões que nem sempre são conhecidas, mas que ele percebe que incidem sobre a educação de maneira fundamental. Como eco- nomistas, sociólogos, administradores e políticos oferecem sua contri- buição tomando decisões com base em índices, gráficos e relatórios, o filósofo da educação é aquele que vai debruçar-se sobre temas como o da razão instrumental, por exemplo, que é mais abstrato e não se mede em números. E por serem temas já mais abstratos por natureza, muito especializados e que despertam pouco interesse na maioria das pessoas, a contribuição da filosofia da educação para o desenvolvimen- to humano acaba, muitas vezes, passando despercebida. O livro A obra em Negro conta a história de um homem da Idade Média que foi médico, filósofo e alquimista. À medida que esse personagem vai se aprofundando no conhe- cimento de si, por meio de suas ricas experiências com o conhecimento, o conflito entre suas ideias e as imposições de uma sociedade marcada pela intolerância religiosa vai aumentando. Um romance de difícil leitura, mas que compensa por ser considerado um dos cem maiores romances do século XX. Zenon, o personagem principal, encarnamuito do que foi discutido neste capítulo em torno da ideia de atitude teórica. YOURCENAR, M. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. Livro Filosofia, Educação e Ciência 33 CONSIDERAÇÕES FINAIS Se chegamos até aqui com uma compreensão melhor do que é filoso- fia e do que é filosofia da educação, boa parte de nossos objetivos foram atingidos. Precisamos entender que a filosofia é essencialmente uma for- ma de conhecimento muito preocupada com a fundamentação. Ela não pode ter medo de aprofundar-se na análise dos conceitos que embasam a educação. Instrumentalizada como filosofia da educação, sua tarefa é justamente mergulhar no estudo das teorias e dos conceitos que formam a base das pedagogias adotadas e buscar extrair dali razões para dizer que aquela pedagogia é adequada ou para dizer que aquela pedagogia não serve aos propósitos da educação. Nesse sentido, é preciso compreender que a filosofia da educação não é necessariamente um trabalho que visa à legitimação fácil de qualquer pedagogia. Ela pode muito bem encontrar problemas graves na pedago- gia adotada e não a recomendar como adequada para o processo de en- sino. Sendo assim, ainda que preocupada em fundamentar seu objeto de análise, ela pode também rechaçá-lo. A pedagogia sabe disso; a boa pedagogia respeita a natureza filosófica, aliás, o que ela mais deve esperar é que a filosofia da educação se empenhe no rigor de suas análises. Com Sócrates, Platão e Nietzsche, observamos que os filósofos dificil- mente repetem uns aos outros; quase sempre estão nos desvelando as- pectos inéditos da realidade. Depois, vimos o quanto a natureza filosófica é importante para a filosofia da educação: espera-se dela que, se for necessá- rio, se contraponha a crenças e costumes enraizados e valorizados pela co- munidade. O filósofo precisa ter reconhecido o seu direito de se contrapor. Ele, inclusive, pode recomendar aspectos irrealizáveis em uma pedagogia; faz parte da atividade filosófica trabalhar com horizontes utópicos. Por fim, o que se deve esperar da análise filosófica no campo da educação é que ela contribua na fundamentação dos saberes que por ali circulam. ATIVIDADES 1. Como podemos responder à seguinte pergunta: o que é filosofia? 2. O que é filosofia da educação? Qual é a sua importância nas escolas? 3. Por que a areté da cultura primitiva grega não encontrou a mesma aceitação nos tempos de Sócrates e Platão? Vídeo 34 Filosofia da Educação 4. Como Nietzsche entendeu a presença da metafísica na história da civilização ocidental? 5. Por que é possível dizer que percebemos a realidade de uma maneira muito parecida que as outras pessoas pertencentes à mesma sociedade? REFERÊNCIAS BERGER, P.; LUCKMANN, T. The Social Construction of Reality. A treatise in the sociology of knowledge. London: Penguin Books, 1991. BRENNAND, E. G.; MEDEIROS, J. W. M. A razão invertida: o tecnicismo na educação como veículo de colonização do mundo vivido. Revista P2P & Inovação, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, mar./ago. 2018. GIACOIA JÚNIOR, O. Nietzsche: fim da metafísica e os pós-modernos. In: IMAGUIRE G.; ALMEIDA C. L. S.; OLIVEIRA M. A. (orgs.). Metafísica Contemporânea. Rio de Janeiro: Vozes, 2007. HOFSTADTER, D.; SANDER, E. Surfaces and Essences: analogy as the fuel and fire of thinking. New York: Basic Books, 2013. JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. 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Educação e dispositivos de poder 35 2 Educação e dispositivos de poder Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • entender as ideias pedagógicas de Jean-Jacques Rousseau, que não podem ser desvinculadas de seu olhar crítico sobre a sociedade moderna em seus primeiros passos; • compreender que, embora Foucault não tenha sido um filósofo da educação, alguns de seus conceitos são muito usados na pedagogia e na filosofia da educação; • aprender o conceito de dispositivo, o qual permite a Foucault pensar que há uma pedagogia social típica da modernidade que não se resume às escolas, mas está vinculada a todas as instituições modernas; • conhecer uma pensadora brasileira da área da educação com contribuições pedagógicas originais e que dialogam com as ideias de Foucault. Objetivos de aprendizagem Neste capítulo, propomos abordar três momentos históricos distintos, mas relacionados: o início da Idade Moderna, o momen- to em que ela já está bem consolidada e o momento atual, que al- guns autores preferem chamar de pós-modernidade. Veremos que cada momento desses exige um tipo de sujeito. Em seguida, vamos acompanhar a luta humana pela emancipação por meio da edu- cação e observar que o trabalho das instituições modernas quase sempre ocorreu para impedir essa emancipação. Para cada um des- ses momentos, escolhemos o trabalho de um filósofo (Jean-Jacques Rousseau, Michel Foucault e Maria Edelweiss Bujes) para entender melhor como a educação resolve ou procura resolver as tensões en- tre sujeitos e instituições. 36 Filosofia da Educação 2.1 Jean-Jacques Rousseau: o primeiro passo para a educação moderna Vídeo Jean-Jacques Rousseau (1712–1778) é um dos grandes pensadores do período moderno. É inevitável associar seu nome à filosofia políti- ca, em função de sua principal obra, O contrato social. Parte importan- te dos líderes revolucionários envolvidos no evento mais contundente do período, a Revolução Francesa (1789–1799), tinham em Rousseau o seu grande inspirador intelectual. No entanto, o pensamento desse filósofo se espraia para muitas outras áreas, como as artes, a educa- ção e, até mesmo, para o que hoje conhecemos como antropologia. A educação, escopo deste capítulo, apresenta-se de maneira evi- dente em Emílio, ou da Educação, considerado por muitos um livro tão importante quanto O contrato social. E não por coincidência, Rousseau decidiu publicar os dois livros no mesmo ano, 1762. Observamos que a leitura de Emílio nos remete a as- pectos desenvolvidos em O contrato social e a outros tex- tos de sua autoria, que procuram pensar a capacidade de sociabilidade do indivíduo moderno e, por conseguinte, a capacidade de garantir uma vida política saudável para as sociedades modernas. Rousseau foi um pensador inquieto e insubmisso; toda a sua obra revela uma postura bastan- te crítica com relação à sociedade de seu tempo. Por isso, quando o filósofo se põe a pensar a capacidade de socia- bilidade humana, as questões que levanta aparecem como críticas duras. Emílio é uma tentativa de evitar uma análise apoiada na imagem de homens adultos e integrados ao sistema social vigente. Nesse sentido, ele se torna um livro inusitado, mas de importância ímpar no projeto filosófico de Rousseau, uma vez que está centrado na figura de uma criança. Essa criança, Emílio, é acompanhada por seu preceptor desde o nascimento até os 25 anos de idade. espraiar: espalhar(-se) por todas as direções; propagar(-se) (MICHAELIS, 2021). Glossário Figura 1 Primeira edição da obra Emílio, ou da Educação (1762) Je an -J ac qu es R ou ss ea u (1 71 2– 17 78 )/ W ik im ed ia Co m m on s Na obra Emílio, ou da Educação, Rousseau criticou os métodos educativos de seu tempo. Educação e dispositivos de poder 37 Figura 2 Preceptor ensinando crianças. Vo l d e nu it/ W ik im ed ia C om m on s Os preceptores eram encarregados da educação de crianças ou jovens em famílias mais abastadas. Essa função, bastante antiga, era muito comum no século XVIII. O filósofo, na voz do preceptor, nos apresenta – em primeira
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