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Freud e a interpretação Psicanalítica

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Prévia do material em texto

© Copyright 1991 Joel Birman
DUMARA DISTRIBUIDORA DE PUBLICAÇÕES LTDA.
Av. N. S. de Copacabana, 435 - s/207 22020 - Rio de Janeiro - RJ
Tel: (021) 257-5391
Coordenação Editorial:
Alberto Schprejer
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros
Birman, Joel, 1946-
B521f Freud e a interpretação psicanalTtica / Joel Bi£ man. — Rio de
Janeiro : Rei ume-Duna rã, 1991.
(A constituição da psicanãlise ; 2)
Relacionada com: Freud e a experiência psicana-
Htíca. — Rio de Janeiro : Taurus-Timbre, 1989.
Bibliografia.
ISBN 85-85427-02-7
1. Freud, Signund, 1856-1939. 2. Psicanãlise. I. Título. II. Série.
CDD - 150.1952 91-0800 CDU - 159.964.2
Copidesque:
César de Queiroz Benjamin
Composição e Arte:
Lilian Mota/Traço Gráfico
Fotolitos:
Projeta Estúdio Gráfico Ltda.
Capa:
Victor Burton
A reprodução não autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja ela
total ou parcial, constitui violação da lei 5.988. *
SUMÁRIO
Para Salinas, Patrícia, Renata, Daniela e Pedro
"... Se um médico perde o senso da medida, então está fracassado como
médico. Saúde é o que se deve ter; e saúde é medida; de modo que, quando
um homem nos entra no consultório e diz que é Cristo (uma ilusão comum)
e que tem uma mensagem, como a maioria deles, e ameaça, como
geralmente fazem, com o suicídio, tem-se de invocar a medida... Medida,
divina medida...”
Virgínia Woolf, Mrs. Dolloway. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980, p. 97.
Agradecimentos
Este ensaio corresponde às duas partes finais de minha tese de
doutoramento em filosofia, que foi defendida em julho de 1984 na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e se
intitula “Pensamento freudiano e a constituição do saber psicanalítico”. A
primeira e a segunda partes desta tese foram publicadas sob a forma de livro
em 1989 (J. Birman, Freud e a experiência psicanalítica. A constituição da
psicanálise I. Rio de Janeiro, Taurus-Timbre, 1989).
Agradeço às pessoas que, de diferentes maneiras, possibilitaram a realiz ção
deste trabalho:
O professor Luís Roberto Salinas Fortes, que me acolheu gentilmente no
curso de doutorado em filosofia e me acompanhou neste percurso.
A professora Marilena Chauí e o professor Paulo Arantes, pelas sugestões
estimulantes para esta investigação, no exame de qualificação.
Os componentes da banca examinadora, pelas críticas e sugestões: a
professora Marilena Chauí e os professores Bento Prado, Renato Mezan e
Paulo Arantes.
Patrícia Birman, com quem compartilhei todos os momentos da feitura
deste trabalho e os melhores momentos da minha vida.
Carlos Augusto Nicéas, interlocutor amigo em vários momentos desta
pesquisa.
Nylde Macedo Ribeiro, presença carinhosa nos meus momentos de
esperança e de horror.
Renata, Daniela e Pedro, por terem suportado amorosamente as minhas
ausências quando da elaboração deste trabalho.
Fátima Pequeno, pela paciência carinhosa no deciframento dos meus
garranchos e a impecável datilografia dos manuscritos.
Para esta publicação, mantivemos o texto original da tese —evidentemente,
todo revisado e corrigido —, com inclusão apenas da introdução^ que
escrevemos para este livro.
Nota introdutória sobre as edições
da obra de S. Freud
Nesta pesquisa foram consultadas inicialmente quatro edições das obras
psicológicas de Freud: a inglesa, a francesa, a brasileira e a espanhola. A
isso fomos levados pelo desconhecimento do alemão e a consequente
impossibilidade de utilizarmos os textos feudianos em sua versão original.
Porém, ao longo deste trabalho, utilizamos apenas as obras completas em
inglês e algumas publicações em francês. Descartei as edições em português
e em espanhol por diversas razões:
1. A edição espanhola,1,2 que se difundiu jio Brasil durante longo
período e foi muito utilizada até o fim da década de 1960, é de péssima
qualidade e não apresenta parâmetros mínimos de confiabilidade.
Apesar do mérito de ter sido traduzida diretamente do alemão,
apresenta nítidos e grosseiros erros de tradução. Além disso — mais
grave ainda —, o seu texto contém grande número de rasuras, sendo
interrompido em diversos pontos e deixando longos espaços vazios.
2. A edição brasileira,3 publicada a partir do fim da década de 1960 e
ao longo da de 1970, é uma tradução da edição inglesa. Também
apresenta erros grosseiros de tradução, invertendo frequentemente o
sentido dos enunciados em inglês e modificando inteiramente o
significado do texto. Além disso, é uma obra carente de boa
coordenação editorial. Os seus vários volumes foram traduzidos por
diferentes pessoas, que não receberam razoável uniformização de
termos e conceitos. Enfim, essa edição não apresenta a devida
homogeneidade terminológica das diversas noções do pensamento
freudiano, o que compromete sua confiabilidade.
Por isso, as referências que aparecem ao longo desta investigação dizem
respeito apenas às edições inglesa e francesa, por serem as únicas com
parâmetros seguros de confiabilidade. Conferimos uma relativa
principalidade à edição inglesa,4 considerando os seguintes pontos: >
1. Ela é completa no que se refere aos trabalhos “psicológicos” de
Freud, como indica o seu título. Alguns dos textos freudianos do
chamado período neurológico estão publicados em inglês, mas não
foram incluídos nessas suas obras “psicológicas” completas. Apesar
das críticas que essa tradução possa merecer a partir de uma
perspectiva epistemológica — como a de Bettelheim5 —, é, até aqui, a
única edição que inclui todos os textos psicanalíticos de Freud. Além
disso, apresenta um cuidado de uniformização terminológica que
merece ser destacado.
2. A edição francesa é incompleta. Em função da longa oposição da
cultura francesa à introdução da psicanálise, a tradução de Freud para
o francês foi tardia e lenta. Ainda não há uma edição completa de suas
obras psicanalíticas em francês, apesar de terem sido traduzidas as suas
obras fundamentais. Após a renovação da psicanálise francesa, com o
pensamento de Jacques Lacan e o seu projeto de “retomo a Freud”, as
traduções de Freud para o francês se incrementaram, com revisão de
traduções anteriores e realização de novas, da mais alta qualidade.
Face à incompletude da edição francesa, a edição inglesa se impôs como
fonte básica para esta investigação. As obras que compõem a tradução
francesa serão citadas na bibliografia geral que se encontra no final deste
trabalho, na medida em que foram utilizadas. Preferimos, no entanto, a
referência inglesa, para manter certa unidade das fontes básicas da pesquisa.
Não obstante isso, ao longo de nossa exposição daremos preferência ao uso
das edições francesas recentes, face à edição inglesa. São traduções
excelentes, realizadas com o empenho de constituir uma uniformidade
terminológica, que se origina de uma preocupação com a precisão e o rigor
epistemológico do pensamento freudiano. Assim, no que se refere às
traduções realizadas, revistas e coordenadas por J. Laplanche e J. B.
Pontalis, daremos preferência à edição francesa, pelo seu nível superior de
qualidade.6
Afora estas considerações, utilizaremos da edição francesa os textos de
Freud que se referem ao seu diálogo com Fliess, porque na edição inglesa
eles estão incompletos. Assim, para manter a homogeneidade da referência
a estes textos, utilizaremos este material na edição francesa, que inclui: a
correspondência de Freud com Fliess, diversos manuscritos de Freud e o
Projeto de uma psicologia científica, de 1895.7
Finalmente, quanto à uniformidade terminológica, problema que suscita
importantes discussões teóricas, usaremos como referência fundamental o
Vocabulário de psicanálise* de J. Laplanche e J. B. Pontalis, para fixar a
orientação desta obra como a mais adequada, considerando o trabalho de
precisão epistemológica que orienta sua leitura dos conceitos psicanalíticos.
1. S. Freud, Obras completas. Volumes I e II. Madrid, Editorial
Biblioteca Nueva, 1948. Traduçío de Luis Lopez-Ballesteros y de
Torres.
2. S. Freud,Obras completas. Volume III. Madrid, Editorial
Biblioteca Nueva, 1968. Tradução de Ramon Rey Ardid.
3. S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Vinte e quatro volumes. Rio de Janeiro,
Imago, 1969-1980.
4. S. Freud, The Standard Edition of the complete psychological works
of Sigmund Freud. Vinte e quatro volumes. Londres, Hogarth Press,
1978.
5. B. Bettelheim, Freud and man’s soul. Nova York, Alfred A. Knopf,
1983.
6. Trata-se das seguintes obras de S. Freud: La vie sexuelle. Paris,
Presses Universitaires de France, 1973; Névrose, psychose et
perversion. Paris, Presses Univcrsitaires de France, 1973;
Métapsychologie. Paris, Gallimard, 1968; Essais de psychanalyse.
Paris, Payot, 1981; Inhibition, symptome et angoisse. Paris, Presses
Universitaires de France, 1972.
7. S. Freud, La naissance de la psychanalyse. Paris, Presses
Universitaires de France, 1973.
8. J. Laplanche e J. B. Pontalis, Vocabulaire de la psychanalyse. Paris,
Presses Universitaires de France, 1973, quarta edição.
Introdução
I
A interpretação psicanalítica é a problemática que pretendemos desenvolver
neste livro. Não queremos apresentar aqui o conceito de interpretação, tal
como apareceu ao longo da história da psicanálise, mas apenas estudar este
conceito no discurso freudiano. Estes limites teórico e histórico se
justificam por uma série de razões.
Antes de mais nada, eles remetem a uma questão da ordem do rigor, pois o
alargamento excessivo do campo histórico e a multiplicação dos discursos
em exame podem transformar a pesquisa num campo conceitualmente
inconsistente e com contornos imprecisos. Além disso, esse limite teórico
ao discurso freudiano se deve ao reconhecimento de que, no período pós-
freu-diano, se constituíram diferentes concepções de interpretação, que nem
sempre se coadunam com o conceito freudiano e até mesmo,
freqüentemente, se opõem a ele.
Apesar da existência de pontos de superposição — evidentemente
diferentes, de acordo com a tendência considerada —, as concepções de
interpretação defendidas pelas tendências da psicanálise contemporânea têm
muito pouco em comum com o conceito freudiano. Esta diversidade se
funda em diferentes concepções do ato de psicanalisar, forjadas pelas
diversas vertentes do pensamento psicanalítico pós-freudiano. São
diferenças tão marcantes que as diversas tendências do discurso
psicanalítico parecem originar-se historicamente de fontes teóricas
diferenciadas. Com efeito, que existe em comum entre as concepções
psicanalíticas de M. Klein, Winnicott, Lowenstein e Lacan? Muito pouco.
Portanto, é preciso que comecemos por reconheder a existência de uma
verdadeira Babel na psicanálise.
Restaurar o significado primordial da concepção freudiana da interpretação,
destacando as suas transformações e inflexões cruciais ao longo do percurso
freudiano, é uma maneira de intervir nas coordenadas constitutivas, nas
linhas de força, desta Babel psicanalítica. Nela, podemos registrar a
existência de linhas isoladas de leitura do conceito de interpretação, que se
inserem num conjunto sistemático no discurso freudiano. É a ruptura deste
sistema teórico que se destaca nessa diversidade de concepções da
interpretação e dos modelos do ato de psicanalisar.
Esta segmentação teórica do discurso freudiano tem uma série de razões
epistemológicas que se inscrevem na história da psicanálise. No primeiro
plano dessa questão, se inserem os efeitos políticos da transformação do
movimento psicanalítico em instituição psicanalítica e as modalidades
diferenciadas de incorporação social do discurso freudiano em tradições
culturais diversas. Não pretendemos retomar aqui esta problemática,1 mas
apenas sublinhar que todas as tendências da psicanálise se consideram
freudianas e encontram na palavra oracular do discurso freudiano a sua
genealogia simbólica. Desta maneira, se estabelece uma efetiva luta de
prestígio entre as diferentes tendências da psicanálise contemporânea, para
definir de quem é o lugar simbólico de herdeiro legítimo da obra freudiana
e quem é o interlocutor autorizado desse lugar transferenciai absoluto,
representado pela palavra sagrada do fundador da psicanálise.
Pretendendo superar essas querelas institucionais, a finalidade deste estudo
é estabelecer as condições de possibilidade para a constituição do discurso
freudiano como um saber da interpretação, no qual se enuncia ao mesmo
tempo uma concepção de sujeito que funda este campo de interpretação. No
discurso freudiano, não existe sujeito sem que se considere
simultaneamente a existência da interpretação, pois neste discurso o sujeito
é, de fato e de direito, um intérprete. Para que se demonstre esta proposição
é preciso destacar como, em psicanálise, o sujeito se funda em pressupostos
histórico e simbólico, de maneira que as categorias de arqueologia do
sujeito e de genealogia do sujeito possam se apresentar como legítimas para
a leitura da obra freudiana.
Além disso, no discurso freudiano, as concepções de sujeito do inconsciente
e de um saber da interpretação indicam também os seus limites teóricos e os
seus impasses, pois, com o desdobramento teórico da obra freudiana, as im-
possibilidades da interpretação se colocam progressivamente como uma
problemática crucial da experiência psicanalítica. Esta viragem no discurso
freudiano é fundamental, pois implicou uma releitura da metapsicologia
para definir os impasses da interpretação na análise e os seus limites
teóricos d« validade. Se esta ruptura teórica se apresentou pela constituição
de novos conceitos teóricos na década de 1920,2 ela já se anunciava,
contudo, desde os ensaios metapsicológicos de 1915.3
E preciso enfatizar que, nesse, contexto, o registro econômico da meta-
psicologia freudiana se deslocou em relação aos registros tópicos e
dinâmico,4 tomando-se teoricamente dominante na leitura metapsicológica
do psiquismo. Nessa conjuntura discursiva, o conceito de pulsão (Trieb)
passou a ser o conceito fundamental da teoria psicanalítica.3 Como destinos
das pulsões se derivariam os conceitos de recalque e de inconsciente. Em
seguida, pelas mesmas ordens da razão, o discurso freudiano forjou o
conceito de pulsão de morte,6 indicando a existência de uma modalidade de
pulsão situada absolutamente fora do registro simbólico, como uma
negatividade radical. Estas transformações conceituais na metapsicologia
freudiana revelam as remodelações que se processam simultaneamente no
conceito de interpretação no discurso freudiano, indicando os seus limites e
os seus impasses na experiência psicanalítica.
Enunciar as condições de possibilidade do discurso freudiano como um
saber da interpretação sobre o sujeito é formular, ao mesmo tempo, o campo
teórico no qual se torna possível a sua incidência e a sua eficácia
operacional na experiência psicanalítica. Além desses limites teóricos de
validade, a prática da interpretação se transforma numa operação vazia e
sem sentido, pois incide na ordem do impossível, já que só existe
interpretação se existem efeitos simbólicos do sujeito do inconsciente.
Evidentemente, é bastante sutil a fronteira simbólica entre os territórios do
possível e do impossível, mas indica rigorosamente onde se funda o
universo encantado pela palavra do sujeito e onde se inicia o silêncio
absoluto dos enunciados. Este limite teórico de um saber da interpretação
indica ao mesmo tempo a fonte inesgotável para o eterno recomeço do
sujeito, no seu balbucio insistente face ao território sagrado do impossível.
Portanto, é no contexto do silêncio da morte que a pulsão, como “força
contínua” e “exigência de trabalho”,7 se impõe ao sujeito como um jorro
inesgotável, como um excesso de pulsionalidade que demanda, em
contrapartida, a sua exegese pelo trabalho da interpretação e da
simbolização.
II
Primeiro, é preciso considerar o momento inaugural de constituição da
psicanálise como saber, para apreender em estado nascente as coordenaâas
teóricas que possibilitaram a produção de um saber da interpretação. Em
seguida,é necessário sublinhar as transformações deste saber e do conceito
de interpretação ao longo do percurso freudiano, pois o discurso da
experiência psicanalítica colocava questões cruciais para o discurso
metapsicológico, de maneira a exigir uma outra figuração teórica dos
processos psíquicos, que pudesse sustentar de forma rigorosa o que se
realizava no registro clínico da experiência analítica. '
Nesta perspectiva, o conceito de interpretação se transformou ao longo do
discurso freudiano, não sendo absolutamente o mesmo nos seus primórdios
e no apagar das luzes da obra freudiana. Nada seria mais ingênuo do que
considerar imutável a concepção de interpretação no discurso freudiano. A
leitura deste, mesmo superficial, não valida essa suposição. Podemos
destacar, no registro do conceito de interpretação, o que Hyppolite
enunciava como sendo o trabalho incessante de recomeço que se encontra
presente na escritura freudiana: “Nada é mais atraente que a leitura das
obras de Freud. Fica-se com o sentimento de uma descoberta perpétua, de
um trabalho em profundiade que não cessa jamais de questionar seus
próprios resultados, para abrir novas perspectivas." ’
Este trabalho perpétuo de transformação conceituai se regula por certas
exigências fundamentais, que autorizam as rupturas teóricas realizadas no
conceito de interpretação e nos demais conceitos freudianos. Estas
exigências teóricas se fundam na prioridade que assume a experiência
psicanalítica, centrada na intersubjetividade da transferência, para a
constituição do saber psicanalítico. Sem esta fundamentação na experiência
analítica, o saber psicanalítico perderia não apenas qualquer referência e
eficácia operacional, mas também qualquer razão para a sua existência.
O que implica enunciar que a metapsicologia freudiana deve receber uma
leitura que considere as vicissitudes da experiência psicanalítica, sem a qual
a metapsicologia perde as suas condições de possibilidade de constituição e
de fundamentação. Assim, a metapsicologia não é nem um domínio teórico
da psicologia, representada esta como Uma teoria geral da adaptação do
organismo ao meio ambiente,9 nem uma metafísica do psiquismo, que pode
enunciar pressupostos teóricos sobre a subjetividade sem se referenciar no
seu espaço intersubjetivo de validade como experiência.
Foi no campo desta experiência intersubjetiva que a metapsicologia se
constituiu como um saber teórico que transcende o campo da consciência,
como indica a existência do prefixo meta, já que, no contexto histórico da
constituição da psicanálise, a psicologia se definia principalmente como um
saber da consciência. A metapsicologia se define como uma concepção não
consciencialista da psique. O inconsciente é enunciado como sendo um
registro psíquico que se encontra além da consciência, indicando pois a
existência, na psicanálise, de um sujeito estruturalmente dividido
(Spaltung).
Entretanto, esta descoberta freudiana só foi possível na medida em que o
psiquismo foi pesquisado no campo da relação com o Outro, com a
eliminação do método da introspecçâo em que se baseava a psicologia
clásica.10 Assim, o psiquismo foi inscrito no contexto das relações com
outros psiquismos, sendo pois concebido num quadro dialógico. Este
deslocamento metodológico do contexto da pesquisa do psiquismo indica a
dívida teórica que Freud contraiu com Charcot, Bernheim e Breuer.
Portanto, o psiquismo foi deslocado do seu isolamento absoluto e do seu
ensimesmamento radical — onde, como uma mônada, existia apenas como
pensamento no registro da consciência — e inserido na relação com o
Outro, pela ação e pela linguagem. Pela constituição desta experiência
intersubjetiva fundada na fala, o psiquismo pode ser figurado como
transcendendo o campo da consciência, indicando o registro inconsciente de
sua existência pelos efeitos produzidos pela linguagem.
Para estabelecer este procedimento metodológico e superar a psicologia da
consciência, criando condições para a constituição da psicanálise, foi
fundamental no percurso freudiano o estudo sobre as afasias.11 Nesse
ensaio, propriamente denominado “estudo crítico”, Freud realizou a
desconstrução sistemática da concepção localizacionista das afasias. Com
isso, pôde criticar a concepção mecanicista do psiquismo, que, centrado nas
funções cerebrais, seria uma espécie de epifenômeno do funcionamento
nervoso. Desta maneira, Freud pôde conceber a existência de um circuito
funcional da linguagem relativamente autônomo e independente da
topografia anatômica do sistema nervoso. Na leitura crítica freudiana
existiría a dominância do registro funcional sobre o registro tópico.
Enuncia-se uma concepção em que a psique é fundada na linguagem.
Na genealogia dos conceitos psicanalíticos, o aparelho psíquico foi
formulado primordialmente como um aparelho de linguagem, o que
permitiu não apenas criticar a concepção mecanicista do psiquismo, como
também enunciar, no mesmo ano, que o tratamento psíquico se realizava
pela linguagem.12 O tratamento pela linguagem teria efeitos sobre o corpo e
sobre a psique, podendo pois ser eficaz no registro corporal e no registro
psíquico. Apesar de partir da crítica à concepção mecanicista da psique, ao
enunciar uma psique fundada na linguagem e como um aparelho de
linguagem, Freud realiza no seu ponto de chegada uma crítica radical da
psicologia da consciência. Se a psique é fundamentalmente um aparelho da
linguagem, a consciência é uma das <£ia-lidades da psique e não toda a
psique.
Se a psique se funda como um aparelho da linguagem e a consciência é
apenas um de seus domínios tópicos, o discurso freudiano pode realizar a
crítica do método da introspecção, presente na psicologia clássica e na
tradição consciencialista da psicologia, que se originou historicamente com
Descartes.13 Por isso, foi possível criticar sistematicamente o dualismo
entre os registros do corpo e do espírito, tal como fora estabelecido por esta
tradição teórica. O discurso freudiano perfila a possibilidade de articulação
entre o corpo e a psique, que era impossível na tradição cartesiana, dada a
separação absoluta entre o corpo (res extensa) e o espírito (res cogitans).
Um dos maiores efeitos teóricos da crítica freudiana à tradição
consciencialista da psique foi colocar como objeto possível de pesquisa a
problemática que enunciava como indagações cruciais o advento do registro
do corpo a partir do registro do organismo e a emergência do sujeito no
corpo. Mediante esta problemática se perguntava quais seriam as condições
de possibilidade para transformar o organismo num corpo e para surgir um
sujeito encarnado.
Essa problemática do discurso freudiano possibilitou a constituição
inaugural da psicanálise como um saber da interpretação e revelou a
posteriori os seus impasses, caso a psicanálise permanecesse presa a estes
limites epistemo-lógicos.
A questão crucial do discurso freudiano foi a de como o sujeito se constitui,
como um sujeito encarnado, pelo corpo e a partir do corpo. Em tomo desta
indagação esse discurso pôde constituir os conceitos de corpo erógeno e de
pulsão.14 Na medida em que constituía essa problemática teórica, o discurso
freudiano pôde enunciar inicialmente a concepção de corpo representado e,
depois, a de corpo fantasmático, isto é, registros da corporalidade marcados
fundamentalmente pelo investimento do Outro e pelos símbolos ordenados
pela linguagem. Da mesma forma, com o enunciado do conceito de pulsão,
o discurso freudiano pôde formular a existência de outro registro entre o
somático e o psíquico,13 mediação fundamental, capaz de dar conta da
constituição do corpo e do sujeito.
Nesta perspectiva, concordamos com a leitura do discurso freudiano
empreendida por Hyppolite, crítico da longa tradição francesa de
interpretação da psicanálise, que contrapõe no discurso freudiano a retórica
cientifícista e a retórica hermenêutica. Esta oposição teórica aparece em
Politzer, que contrapõe a inovação freudiana — representada, na cura
psicanalítica, pela inter-subjetividadefundada na linguagem — e a retórica
cientifícista da psicologia clássica, que existiria nos escritos
metapsicológicos.16 Dalbiez retoma a mesma oposição teórica quando
contrapõe radicalmente o “método” e a “doutrina” psicanalítica; o método
interpretativo revelaria a inovação teórica do discurso freudiano, e a
metapsicologia poderia ser descartada como não condizente com a
metologia.17 Ricoeur retoma a mesma oposição teórica quando contrapõe as
categorias de energética e de interpretação no discurso freudiano, para
demonstrar que a psicanálise é um saber hermenêutico.11
Hyppolite critica essa oposição teórica entre o modelo positivista da
metapsicologia freudiana e o modelo interpretativo da experiência
psicanalítica, sublinhando que isso revela a pretensão teórica, do discurso
freudiano em articular uma filosofia da natureza e uma filosofia do
espírito.19 Destacando a existência dessas retóricas como indício de uma
problemática teórica e não como um equívoco, a leitura de Hyppolite indica
a importância de se pensar as questões do sujeito e da interpretação no
discurso freudiano como fundadas no conceito de pulsão.
Isso não implica reconhecer que o discurso freudiano tenha solucionado
esta questão, mas define o campo teórico no qual a problemática pode ser
retomada ha modernidade. Com isso, podemos delinear a nossa leitura do
conceito de interpretação no discurso freudiano, indicando as coordenadas
que possibilitaram a constituição da psicanálise como um saber da
interpretação e os impasses posteriores que se colocaram para a redução do
espaço psicanalítico como sendo apenas o campo da interpretação.
Nesta perspectiva, podemos delinear a constituição e o desenvolvimento do
discurso freudiano no tocante ao conceito de interpretação. Inicialmente o
discurso freudiano acreditou na possibilidade de que a pulsão como força
(Drang) pudesse ser inteiramente transformada em símbolo pelo trabalho da
linguagem, constituindo o registro do inconsciente, de maneira que o sujeito
do inconsciente como historicidade seria a resultante deste processo de
transformação. Mas, no desenvolvimento da sua pesquisa, Freud foi
destacando os impasses existentes nesse processo, o que não implica
enunciar que o sujeito do inconsciente, como interpretação da pulsão pela
linguagem e pelo Outro, não se produza desta maneira. O que o discurso
freudiano passa a destacar agora são os impasses e as impossibilidades
desse processo de transformação. A pulsão como força se inscreve na
ordem simbólica mediante uma série de destinos,20 nos quais se transforma
a energia originária da pulsão pela linguagem. Mas os impasses cruciais e
os obstáculos para esta transposição começam a ser tematizados pelo
discurso freudiano como uma questão fundamental da psicanálise, nos
registros clínico e teórico.
A formulação da existência de uma pulsão de morte, de uma modalidade de
pulsão que não se inscreve diretamente no registro simbólico, é a revelação
mais eloquente desse impasse. No percurso da pulsão, existiría um
momento mítico em que ela seria pura negatividade e não se inseriria no
campo das representações. Por isso mesmo, o discurso freudiano a
representou pela figura do silêncio,21 para destacar a sua dimensão
antidiscursiva, algo que não é imediatamente dialetizável pelo discurso e
pelo Outro.
Entretanto, a sua articulação com a pulsão de vida produziría efeitos na
psique: a compulsão à repetição, a agressividade e a destrutividade. Esta
série revela as ramificações da pulsão de morte, pelo trabalho de
simbolização produzido pela pulsão de vida. Vale dizer, de negatividade
radical a pulsão de morte se ordena como símbolo e como linguagem,
passando a evidenciar os seus destinos no universo da representação.
Em função desses problemas colocados na experiência psicanalítica e os
seus desdobramentos no discurso metapsicológico, os impasses do trabalho
de interpretação passaram a se colocar de forma progressivamente mais
radical no percurso freudiano. De um saber triunfante sobre a interpretação,
o discurso freudiano passou a se indagar sobre os impasses e as
impossibilidades da interpretação. São as condições de possibilidade da
interpretação que passam a se destacar na obra freudiana.
Neste sentido é que se apresenta nos escritos freudianos a metáfora do
“excesso” pulsional e se enuncia com mais vigor a dimensão quantitativa da
pulsão. O encaminhamento do processo analítico e a sua resolução passam
a ser representados por algo imponderável, isto é, pelos investimentos das
forças que se opõem no conflito psíquico e suas imensidades.22 Assim se
constituiu o conceito de construção em psicanálise,23 algo diferente do
conceito de interpretação. O discurso freudiano passou também a figurar a
existência de um pólo pulsional da psique,24 anteriormente inexistente,23
representado pela figura exuberante do id.
Eis aí o percurso teórico deste livro. Nos deslocaremos por essas diferentes
temáticas para indicar a constituição do discurso freudiano como um saber
de interpretação, ao mesmo tempo que analisaremos seus impasses e
impossibilidades, que, em contrapartida, permitem estabelecer com maior
rigor as condições de possibilidade do campo do interpretável em
psicanálise.
1. Sobre isso ver J. Birman, Freud e a experiência psicanalítica. Rio
de Janeiro, Taurus-Tünbre, 1989.
2. Sobre isso ver S. Freud, "Au-delà du príncipe du plaisir” (1920). In
S. Freud, Essais de psychanalyse. Paris, Payot, 1981; “Le moi et le ça”
(1923). Idem. •
3. S. Freud, Métapsychologie (1915-1917). Paris, Gallimard, 1968.
4. Sobre isso ver S. Freud, "Uinconscient” (1915), capítulo 2. Idem.
5. S. Freud, “Pulsions et destins de pulsions” (1915). Idem.
6. S. Freud, “Au-delà du príncipe du plaisir”. In S. Freud, Essais de
psychanalyse. Op. cit.
7. Sobre isso ver S. Freud, “Pulsions et destins des pulsions”. In S.
Freud, Métapsychologie, p. 18. Op. cit.
8. J. Hyppolite, "Psychanalyse et philosophie” (1955). In J. Hyppolite,
Figures de la pensée philosophique. Volume I. Paris, Presses
Universitaires de France, 1971, p. 373-374. O grifo é nosso.
9. H. Hartmann, Psicologia do ego e o problema da adaptação. Rio
de Janeiro, Civilização Brasileira, 1958.
10. Sobre isso ver G. Politzer, Critique des fondements de la
psychologie, capítulos 1 e 2. Paris, Presses Universitaires de France,
1968.
11. S. Freud, On aphasia (1891). Nova York, International Universities
Press, 1953.
12. S. Freud, Psychical (or mental) treatment (1891). In The Standard
Edition of the complete psychological works of Sigmund Freud.
Volume II. Londres, Hogarth Press, 1978.
13. R. Descartes, “Méditations. Objections et réponses” (1641). In
Oeuvres et lettres de Descartes. Paris, Gallimard, 1949, p. 160-175.
14. S. Freud, Three essays on the theory of sexuality (1905), primeiro
ensaio. In The Standard Edition of the complete psychological works
of Sigmund Freud. Volume VII. Op. cit.
15. S. Freud, “Pulsions et destins des pulsions”. In S. Freud,
Métapsychologie. Op cit.
16. G. Politzer, Critique des fondements de la psychologie. Op. cit.
17. R. Dalbiez, La méthode psychanalytique et la doctrinefreudienne.
Dois volumes. Paris, Desclée de Brouwer, 1936.
18. P. Ricoeur, De Tinterprétation. Essais sur Freud. Paris, Seuil,
1966.
19. J. Hyppolite, “Psychanalyse et philosophie". In J. Hyppolite,
Figures de la pensée philosophique. Volume I, p. 409-410. Op. cit.
20. S. Freud, “Pulsions et destins des pulsions”. In S. Freud.
Métapsychologie. Op. cit.
21. S. Freud, “Le moi et le ça”. In S. Freud, Essais de Psychanalyse.
Op. cit.
22. S. Freud, Analysis terminable and interminable (1937). In The
Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud. Volume XXIII. Op. cit.
23. S. Freud, Constructions in analysis (1937). Idem.
24. S. Freud, “L’inconscient”. In S. Freud, Métapsychologie. Op. cit.
25. S. Freud, “Le moi et le ça”. Introdução, caps. 1 e 2. In Essais de
Psychanalyse. Op. cit.
Primeira parte Interpretação,
deciframento e sentido
“o que afirmássemos como sendosua essência não seria a sua verdade,
mas somente o nosso saber sobre ela..."
G. W. F. Hegel, A fenomenologia do espírito1
Loucura e verdade
A psicanálise rompe com os campos da medicina e da psiquiatria ao
conceder à loucura o estatuto de verdade, considerando-a como portadora
de um sentido. Fica para trás o universo de subumanidade a que ela tinha
sido relegada pela então recente tradição psiquiátrica, que a considerava
basicamente resultante de uma anomalia na estrutura do corpo, sobre a qual
a palavra não possuía qualquer poder revelador.
Que, exatamente, significa essa proposição? Em que medida o discurso
freudiano representa efetivamente uma subversão na história recente da
medicina mental? Qual o alcance teórico dessa atribuição de sentido à
experiência da loucura?
Tentemos, em primeiro lugar, definir com maior rigor os contornos dessa
problemática e destacar os tópicos fundamentais para a sua enunciação,
percorrendo os textos em que aparecem indícios de que Freud atribuía
sentido às experiências psicopatológicas, codificadas como enfermidades
sem significação pelo discurso psiquiátrico.
Psicanálise, verdade e loucura
Em 1895, referindo-se a algumas formações de pensamento típicas da
neurose obsessiva, experimentadas afetivamente como verdadeiras pelos
pacientes mas caracterizadas como absurdas pelo discurso psiquiátrico —
pois não correspondiam a qualquer verdade situada na realidade extra-
subjetiva —, Freud afirmava peremptoriamente:
“... uma análise psicológica escrupulosa destes casos mostra que o estado
emotivo enquanto tal é sempre justificado...” 2 ,
Ou seja, mesmo se o discurso do paciente é aparentemente absurdo, seu
sofrimento mostra de maneira insofismável que sua experiência é
verdadeira. Nesses casos, o afeto, e não o discurso, revela imediatamente a
verdade que o sujeito atribui a si mesmo. Verdade que deve ser remetida a
outra dimensão psíquica da experiência, que ainda não pode ser enunciada
pelo sujeito através da palavra.
Esta última formulação — uma das construções metodológicas iniciais do
discurso freudiano — pressupõe o reconhecimento de uma dimensão
originária da questão: com seus tormentos, o sujeito está dizendo a verdade.
Com efeito, apesar de apresentar-se de forma aparentemente absurda se o
critério de verdade for a adequação do discurso a referenciais extra-
subjetivos, o sentimento expressa uma relação originária do sujeito consigo
mesmo e enuncia algo fundamental.
Remetendo a verdade da subjetividade a outro contexto fundamental de
referência, Freud indica que esta categoria não se sustenta apenas nos
objetos e situações pertencentes à experiência social imediata do sujeito,
circunscrita à atualidade histórica. A verdade que justifica os sofrimentos
toma como referencial o sujeito, suporte de uma experiência que se
desdobra numa história e se demarca num tempo que transcende o presente.
Ou seja, a verdade em questão considera como referência básica o sujeito, e
não os objetos reais, atuais, da experiência deste.
Em 1909, no relato da experiência analítica de “O homem dos ratos”, Freud
trata de uma situação similar. Colocado diante de uma estrutura obsessiva,
ele volta a contrapor o discurso aparentemente absurdo do analisando ao
sentimento deste — que acreditava ser um “criminoso real” —, atribuindo
ao sofrimento do paciente o valor de indicar uma verdade subjetiva. Neste
caso, ao contrário do anterior, Freud não apenas situa a questão. Constrói
também um esquema interpretativo que assinala a teoria dessa experiência
forjada em quinze anos de trabalho psicanalítico:
“... quando existe uma mésalliance, eu começo, entre um afeto e seu
conteúdo ideativo (neste caso, entre a intensidade do remorso e sua causa),
um leigo diria que o afeto é muito grande para a causa — que ele é
exagerado — e que consequentemente a dedução inferida deste remorso (a
inferência de que o paciente é um criminoso) é falsa. Ao contrário, o
médico (analista) diz: ‘Não. O afeto é justificado; o sentimento de culpa não
é para ser criticado, mas ele pertence a um outro conteúdo que é
desconhecido (inconsciente) e que precisa ser procurado. O conteúdo
conhecido da idéia só se introduziu na sua posição atual por causa de uma
falsa conexão. Nós não estamos habituados a sentir afetos injpnsos sem
conteúdo ideativo. Portanto, se o conteúdo está faltando, nós apreendemos
como substituto qualquer outro conteúdo, que é de alguma forma adequado,
assim como nossa polícia, quando não consegue pegar o verdadeiro
assassino, detém um outro em seu lugar. Além disso, a existência da falsa
conexão é o único caminho para explicar a impotência dos processos
lógicos para combater a idéia atormentadora...” 3
A construção metodológica a que nos referimos já se encontra realizada
aqui. Ela pressupõe a veracidade da experiência que se revela pelo afeto e,
dessa forma, confere outro contexto ao discurso aparentemente absurdo,
destacando o sujeito, e não a realidade objetiva, como eixo da experiência.
O afeto se refere a uma representação que está ausente do enunciado do
discurso porque foi substituída por outra, fazendo com que o discurso se
tornasse absurdo.
Reconhece-se, portanto, a existência de uma realidade psíquica que
transcende a consciência do sujeito e a determina, apresentando-se através
de fragmentos que escapam ao controle desta. O sujeito passa a ser
considerado como estruturalmente dividido (Spaltung). Sua verdade não se
situa apenas no espaço da consciência que se refere a objetos extemos, mas
também a objetos centrados na sua experiência interna. Quando se
reconhece a existência de um sujeito descentrado em relação à consciência
e ao mundo dos objetos extemos — devolvendo-se à psique toda a sua
materialidade — a experiência da loucura volta a ter sentido.
Considerando essa problemática, Freud formaliza um postulado
fundamental para a teoria psicanalítica, ao aprofundar a existência de uma
realidade psíquica que se contrapõe à realidade material, apresentando, em
relação a esta, materialidade de pregnância idêntica, porém de ordem e de
natureza diversas.
Quando se considera um referencial centrado na realidade psíquica (e não
na material), torna-se possível reconhecer um critério de verdade e um
sentido na experiência da loucura. Freud não atribui dimensão apenas física
à realidade material, pois reconhece que experiências de tipo sócio-cultural
instituem padrões subjetivos de avaliação do que seja verdadeiro ou falso.
Em relação a estas experiências, o discurso da loucura efetivamente se
caracteriza como absurdo e falso, destituído de racionalidade. Mas se o
referencial usado for a realidade psíquica, reencontra-se o sentido e outra
ordem de razão se impõe.
Isso significa que, na loucura, a problemática do sentido se insere num
plano bastante específico da experiência do sujeito. O sentido considerado
não se regula por uma concepção de verdade que seja o contraponto da
idéia de erro, num registro regulado pela oposição verdadeiro/falso.
Considerando a realidade psíquica como suporte e referencial de uma
verdade singular da subjetividade, podemos postular que neste plano da
experiência a verdade se coloca para o sujeito de maneira absoluta, como
um é radical, e se constitui como tal numa temporalidade histórica,
materializando-se nesta especificidade em que se enuncia.
Da experiência analítica com o “homem dos ratos”, Freud destaca o
sintoma da “onipotência dos pensamentos”, enunciado pelo próprio
analisando.4 O alcance conceituai dessa formulação é logo ampliado e
transformado, ganhando uma abrangência reveladora do processo originário
do sistema inconsciente.5 Será que não aparece aí a caracterização absoluta
desse é da verdade do sujeito, que não pode ser transformada apenas pela
apresentação de provas que demonstrem sua inadequação à realidade extra-
subjetiva?
Nesta perspectiva, no contexto da realidade psíquica a verdade se inscreve
num eixo regulado pela oposição serlnão ser. Alguma coisa é ou não é
verdadeira, sem se superpor absolutamente à problemáticada verdade
regulada pela oposição verdadeiro/falso.
Face a esse deslocamento dinâmico de representações, Freud argumenta que
de nada adianta usar argumentos lógicos para provar ao analisando a
falsidade de sua proposição, baseando-se na adequação ou não da
proposição a referenciais objetivos. Além de não conduzir o paciente a
transformar sua convicção, essa tentativa não situa a questão no seu devido
lugar. Para tal, é preciso reconstituir as condições subjetivas que
conduziram o sujeito a substituir uma representação por outra, e isso exige
que se percorra a cadeia associativa dessas substituições. Seria preciso, por
exemplo, reconstituir o cenário do “crime” do “homem dos ratos”, para que
se pudesse restituir o sentido originário dessa identificação do analisando
com a figura do “criminoso”.
Se nos deslocarmos da neurose obsessiva para a melancolia,
reencontraremos comentários similares no texto freudiano. No caso da
melancolia não estamos mais no campo das neuroses de transferência, mas
no grupo das neuroses narcísicas, incluídas pela psiquiatria de então entre
as grandes psicoses, ao lado da esquizofrenia. Para o discurso psiquiátrico,
a melancolia é destituída de sentido em última instância. Por causa de um
distúrbio orgânico, teria havido uma ruptura na trama significativa do
percurso histórico da figura do melancólico, com quebra de sentido da sua
experiência subjetiva. Porém, desdobrando a trilha teórica entreaberta pelo
trabalho anterior de Abraham,6 Freud reencontra o sentido perdido dessa
experiência e formula que, assim como ocorre no modelo do luto, essa
situação subjetiva se sustenta numa dolorosa experiência de perda, isto é, de
algo dotado de enorme valor para o sujeito.7 Nas duas situações,
aparentemente diversas, uma experiência desse tipo remetería a uma
dilaceração da auto-estima. *
Se, numa primeira inflexão metodológica, o modelo normal do luto
possibilita reencontrar o sentido dessa experiência da loucura, permitindo
superar inicialmente, a oposição normal/patológico do discurso médico-
psiquiátrico, num momento teórico posterior ambas as experiências são
submetidas às mesmas coordenadas subjetivas, de forma a serem
consideradas como variantes possíveis de um mesmo dinamismo estrutural,
cujo traço marcante é a perda de um objeto interno investido de enorme
valor libidinal. Com isso, o normal e o patológico se encontram
identificados nos seus fundamentos, ultrapassando-se a oposição absoluta
que o discurso psiquiátrico atribuía a esses universos.
O melancólico se relaciona consigo mesmo na base de auto-acusações
fulminantes, percebendo apenas as dimensões negativas de si mesmo, que
remetem a uma abissal autodepreciação e a um esvaziamento mortífero da
auto-estima. Porém, considerando seus feitos e comportamentos na vida
cotidiana, as pessoas que com ele convivem não o reconhecem,
objetivamente, nessa imagem negativa. Recoloca-se aqui a oposição entre,
de um lado, a convicção subjetiva do paciente e, de outro, o que os demais
consideram um discurso absurdo. O afeto que se contrapõe à apresentação
objetiva do sujeito diz respeito, no entanto, a algo interno a ele. Por isso,
não adianta usar argumentos realistas para convencer o paciente sobre o
infundado de suas proposições, pois o registro do sentido não se reduz ao
discurso do verdadeiro/falso:
“Seria cientificamente, assim como terapeuticamente, infrutífero
contradizer o doente que dirige tais queixas contra o seu ego. Ele deve ter,
de alguma maneira, razão e descrever alguma coisa que é tal como lhe
parece. Nós somos forçados a confirmar imediatamente e sem reservas
algumas de suas alegações. Ele é efetivamente tão desprovido de interesse,
tão incapaz de amor e de atividade como ele diz. Mas, como nós sabemos,
isto vem secundariamente; é a consequência deste trabalho interior,
desconhecido para nós, comparável ao luto, que consome seu ego...”8
Até este ponto do texto, Freud apenas retoma as proposições que
destacamos anteriormente, mas a partir de agora ele avança formulações
ainda mais inovadoras sobre a relação entre loucura e verdade, invertendo
radicalmente a relação tradicional, estabelecida pelo discurso psiquiátrico:
“Em algumas de suas outras queixas contra si, ele nos parece igualmente
ter razão, e não faz senão apreender a verdade com mais acuidade que
outras pessoas que não são melancólicas. Quando, na susf autocrítica
exacerbada, ele se descreve como mesquiqho, egoísta, insincero, incapaz de
independência, como um homem em que todos os esforços não tenderíam
senão a ocultar as fraquezas de sua natureza, ele podería bem, segundo
nossa opinião, ter se aproximado bastante do conhecimento de si, e a única
questão que colocaríamos é de saber por que se deve começar por ficar
doente para ler acesso a uma tal verdade. Pois não há dúvida que aquele
que se descobre assim e que exprime diante dos outros uma tal apreciação
sobre si — uma apreciação como aquela que o príncipe Hamlet mantém em
reserva para si mesmo e para todos os outros — é doente, que ele diga
precisamente a verdade ou que ele se mostre mais ou menos injusto
consigo...” ’
Nesse momento do pensamento freudiano, a concepção de loucura se
associa fundamentalmente à idéia de verdade do sujeito sobre si mesmo e à
revelação ao outro dessa verdade descoberta. Sustentada no eixo subjetivo
onde se realiza o processo de autoconhecimento, a loucura passa a ser
concebida como um acidente que pode ocorrer ao sujeito, no processo de
revelação da sua identidade.
No seu autodesprezo, o sujeito pode estar sendo “mais ou menos injusto
para consigo mesmo”. Mas isso não coloca em questão o postulado
fundamental do discurso freudiano: existe a apreensão radical de uma
verdade pelo sujeito. Desconhecida até esse momento, essa verdade é
destacada com toda paixão e exibida publicamente sem qualquer reserva. O
sujeito define, para os outros, os contornos de sua recente identificação e,
nesse contexto, esquece uma série de outras verdades sobre sua própria
identidade.
Portanto, enlouquecer seria, para o sujeito, aceder a uma insuportável
verdade sobre si mesmo, estabelecendo-se, para o sujeito, um conflito
violento com a imagem forjada pelo ego, a respeito da sua identidade. Além
disso, seria assumir plenamente essa verdade recém-resgatada como sendo
a sua única verdade, apresentando-a ao outro sem qualquer rodeio, de forma
nua e crua.
Diante dessa veracidade subjetiva, toma-se secundário discutir se o sujeito
está sendo “mais ou menos injusto” consigo mesmo. De nada adianta usar
argumentos lógicos para corrigir o desvio no pensamento do paciente,
confrontando a sua auto-avaliação com a representação dos outros sobre sua
pessoa. A inadequação da verdade centrada na experiência psíquica dp
sujeito à sua experiência socialmente compartilhada com os outros não se
insere no registro dominado pela oposição verdade/erro, mas no registro do
sentido, em que a verdade se enuncia radicalmente como um é absoluto,
desligando-se, portanto, do quadro de referência que regula o mundo das
inter-relações comportamentais:
“Não é pois essencial se perguntar se o melancólico, na sua penosa
autodepreciação, tem razão, na medida em que sua crítica coincide com o
juízo dos outros. O que deve antes nos reter é que ele descreve
corretamente a sua situação psicológica. Ele perdeu o respeito por si e deve
ter para isto uma boa razão..." 10
Assim, não existiría na loucura uma perda absoluta da razão, como se
podería pensar a partir de uma análise que, incapaz de penetrar no âmago
desta experiência, considere apenas o juízo dos outros sobre o paciente e as
características personalógicas que estes lhe atribuem. A auto-apreciação do
paciente estaria sendo regulada por outra ordem de razão, cujo direito à
existência é tão legítimo quanto o da primeira. Na experiência da loucura, a
desrazão aparece quando pretendemos avaliar a razão do louco de acordo
com um discurso que se baseia na oposição verdadeiro/falso, utilizado pela
psiquiatria e pelos que compartilham o cenárioda existência social do
sujeito.
Nessa perspectiva, incorre-se num evidente propósito de normalização
social quando se atribui a alguém a condição de doente mental, utilizando-
se uma concepção de verdade sustentada no eixo definido pela oposição
verdade/ erro. Neste caso, a experiência da loucura, identificada como
sendo da ordem da doença mental, é definida pela ruptura com um sistema
de regras que circunscreve a identidade social do indivíduo. E, no entanto,
evidente que o discurso normalizador é o correlato, no plano social, do
discurso do ego, isto é, das imagens unificantes do sujeito sobre a sua
identidade social.
Porém, se admitimos a existência de outros cenários na experiência psíquica
do sujeito, propondo que esta tem uma história que lhe confere uma
espessura, a razão da loucura reencontra o seu fundamento. Nesse contexto,
o sentido da experiência da loucura está situado de maneira absoluta no
plano do ser, impondo-se como uma verdade fundante do sujeito. Ela
ultrapassa o registro do verdadeiro/falso e não se regula pelo código
normalizador da identidade social.
Se nos deslocarmos agora para a temática da esquizofrenia, ou da “para-
frenia” como pretendia Freud, reencontraremos a mesma fundamentação
teórica sobre a questão da verdade. Completamente desarticulado,
estilhaçado em múltiplos fragmentos, sem unidade em tomo de um ego
totalizante e dizendo coisas disparatadas a respeito das suas relações com q
mundo, o paciente esquizofrênico também vive uma experiência dotada de
sentido, sustentada por uma verdade histórica que precisa ser restaurada.
Impossível de ser reconhecida e expressa na fala do sujeito, essa verdade
aparece, no disctfrso delirante, deslocada de sua posição originária.
Vejamos como Freud formula essa problemática no final de sua obra,
sublinhando a presença de um “método” e de outra forma de racionalidade
na experiência da loucura:
“Esta concepção sobre os delírios não é, eu penso, inteiramente nova, mas
enfatiza um ponto de vista que não se traz usualmente para o primeiro
plano. A essência disto é que não há apenas método na loucura, como o
poeta tinha já percebido, mas também um fragmento de verdade histórica; e
é plausível supor que a crença compulsiva que é atribuída aos delírios retira
precisamente sua força de fontes infantis desta espécie...” 11
Ao restaurar o sentido da experiência delirante, Freud não apenas rompe
com o discurso psiquiátrico sobre a doença mental. Identifica-se também
com o discurso poético, que sempre atribuiu significação ao processo de
enlouque-cimento. Assim, cabe destacar enfaticamente o sentido da
experiência esquizofrênica, e não medir de fora dela, baseando-se em
características formais, a adequação/inadequação do discurso delirante a um
código social de valores, definidos como normais pelo discurso
psiquiátrico.
A postura face à experiência psicótica se transforma, e isso influencia
diretamente a maneira de conduzir o processo analítico. De nada adianta
contradizer o discurso delirante com proposições lógicas e argumentos
realistas, pois isto não irá transformar a convicção do paciente. É preciso
possibilitar que o sujeito reencontre sua verdade histórica, restaurando
assim a continuidade temporal de sua existência, que foi rompida de
maneira radical:
“Seria provavelmente útil fazer uma tentativa para estudar casos da
desordem em questão, na base das hipóteses que foram aqui avançadas e
também realizar seu tratamento nestas mesmas linhas. Seria abandonado o
esforço vão de convencer o paciente do seu delírio e de sua, contradição
com a realidade; e, ao contrário, o reconhecimento deste núcleo de verdade
proporcionaria um fundamento comum sobre o qual o trabalho terapêutico
poderia se desenvolver. Este trabalho consistiría em libertar um fragmento
de verdade histórica de suas distorções e de suas ligações com os dias
atuais, conduzindo-o para o ponto do passado ao qual ele pertence. A
transposição do material de um passado esquecido para o presente, ou para
uma expectativa de futuro, é uma ocorrência habitual nos neuróticos, não
menos que nos psicóticos. Frequentemente, quando um neurótico é
conduzido por um estado de ansiedade a esperar a ocorrência de algum
evento terrível, ele está de fato meramente sob a influência de uma memória
recalcada (que está procurando entrar na consciência, mas não pode tomar-
se consciente). Alguma coisa que era naquele tempo aterrorizante realmente
aconteceu. Eu acredito que ganharíamos uma grande parcela de efetivo
conhecimento trabalhando desta forma com psicóticos, mesmo se não
conduzir a nenhum sucesso terapêutico.'”12
Como se vê, Freud não vincula diretamente o trabalho fundamental de
restauração da verdade histórica e o seu correlato (o restabelecimento da
continuidade da temporalidade subjetiva) à produção imediata do efeito
terapêutico. Ao agir assim, destaca o valor da restituição da verdade
histórica e lhe confere uma prioridade evidente no plano metodológico. Ou
seja, o método de investigação define o eixo fundamental que norteia o
campo da clínica psicanalítica, e o método de cura fica subsumido a esta
exigência fundamental.
A admissão da veracidade do sintoma e a tentativa de apreendê-lo num
contexto de referência que admita que ele está originalmente dizendo
alguma coisa implicam que se reconheça a existência de uma ordem mais
primordial. Nesta perspectiva, os delírios e as alucinações da psicose
esquizofrênica, que formalizam a experiência da loucura na sua
radicalidade, constituem uma narrativa da verdade do sujeito. Este narra a
sua verdade à sua maneira, com os meios psíquicos de que dispõe.
Reconhecer efetivamente essa situação é um pressuposto fundamental para
admitir a existência dessa verdade histórica e poder aceder até ela. Isso
implica não considerar os sofrimentos mortíferos como subprodutos de um
corpo e de um cérebro naturalmente inferiorizados. O suporte da
experiência da loucura é um sujfeito, e não um corpo de natureza involuída
e uma mentalidade cujos valores básicos foram originariamente pervertidos,
gerando uma subjetividade essencialmente defeituosa.
Reconhecer sentido na experiência da loucura implica conferir, à palavra do
louco, direito de existência e poder de manifestação. Não por acaso, todo o
empreendimento psicanalítico será cenffado no ato de falar, no convite a
poder dizer tudo e nos obstáculos encontrados pelo analisando no exercício
dessa prática discursiva que toma a si próprio como temática. Enfim, se
retiramos a loucura da ordem do corpo patológico e a instalamos na ordem
do sentido, no plano da história da subjetividade, e se abrimos espaço para
que esta possa falar, ela recupera o estatuto de verdade que foi silenciado
pela recente tradição psiquiátrica.
O saber psiquiátrico e a abolição do sujeito na
experiência da loucura
Assim, tendo enunciado a problemática da verdade na experiência da
loucura em diversas estruturas psicopatológicas e destacado vários eixos
teóricos que sustentam a sua postulação no discurso freudiano, podemos
retomar nossas interrogações iniciais e delinear a ruptura fundamental que
esta concepção introduziu face ao discurso da recente tradição psiquiátrica.
Como se colocava, no discurso psiquiátrico de então, a relação entre a
experiência da loucura e as temáticas da verdade e do saber? O que
representou o deslocamento realizado pela “revolução psiquiátrica”, que
passou a situar a problemática da loucura no contexto de uma teoria da
enfermidade? Qual o significado desse deslocamento histórico da
problemática da loucura para a da enfermidade mental, e que
transformações houve na representação da natureza da loucura quando esta
se inscreveu na recente ordem psiquiátrica? Qual a implicação, no plano
intersubjetivo, dessa transformação havida na representação da natureza da
loucura?
Encaminhemos esquematicamente os eixos básicos que definem o espaço
teórico no qual estas interrogações podem encontrar solução. Na medida em
que a loucura passou a ser considerada como uma forma especial de
enfermidade, o sujeitoperdeu o lugar de suporte fundamental dessa
experiência. Nesse percurso, a loucura foi dessubjetivada. Apesar do
discurso psiquiátrico tratá-la como um “excesso” de subjetividade que
carece de um reconhecimento da “realidade”, de um “interno” que se volta
contra o “externo”, esta subjetividade assim enunciada corresponde a uma
abolição do sujeito, pois este supõe essencialmente, no discurso
psiquiátrico, o reconhecimento do “real”.13 Portanto, o “excesso” subjetivo
e passional da loucura correspondería a uma ausência efetiva de
subjetividade, pois, se esta existisse mesmo, reconhecería a existência da
“realidade”.
Com essa subtração constituinte, o louco passa a ser marcado por uma
minoridade essencial, que o caracteriza negativamente em diversos planos
— complementares e necessariamente articulados entre si — de sua
existência. Ele se apresenta marcado essencialmente por uma minoridade
psicológica, social e ética, que produzirá como contrapartida fundamental a
sua minoridade jurídica.
A figura do louco terá um percurso bem delineado ao longo dos trajetos que
atravessam o espaço social, com áreas de restrição absoluta e com interditos
bem definidos, tanto no plano real quanto no simbólico. Sendo negatividade
essencial, a loucura tem como contrapartida a mutilação de seu personagem
social. Por isso, todos os traços de positividade atribuídos à loucura terão
como efeito e finalidade constituir um corpo para esta negatividade
originária, funcionando como um discurso que a legitime.
Passamos assim a nos defrontar com formas diversas de transfiguração de
uma figura alienada. Em última instância, elas remetem à retirada do lugar
do sujeito na experiência da loucura. Esta subtração, que seria a sua
alienação fundamental, vai ser inversamente codificada pelo discurso
psiquiátrico como sendo da ordem de uma alienação mental. Portanto, a
figura da enfermidade mental, lançada sobre a loucura, justifica e encobre a
operação fundamental em pauta, isto é, a retirada do lugar do sujeito desSa
experiência, atribuindo-se à natureza do louco uma negatividade originária.
Evidentemente, esse silenciamento do lugar do sujeito na experiência da
loucura não é produzido apenas pelo discurso psiquiátrico, que se constituiu
e se desenvolveu para responder a uma demanda sócio-histórica mais
abrangente, na passagem do século XVIII para o XIX.14 De qualquer forma,
a psiquiatria deu corpo a esta negatividade, formulando um discurso
positivo sobre a loucura. Pelo logos médico, a loucura se constitui como
corpo negativo e como moralidade alienada, sendo delineada como uma
figura que deveria ser domesticada pelo isolamento absoluto em relação ao
espaço social e pela tecnologia do tratamento moral — formas de
normalização do louco para sua inserção no social.
A subtração do sujeito e as figuras instituintes de sua minoridade se
condensam na prática da exclusão asilar e no interdito da circulação social,
que elevam ao plano do símbolo essa negativação absoluta que marca de
modo indelével a identidade social da loucura. Tomando o corpo negativo
da loucura como suporte, a normalização asilar empreendida pelo
tratamento moral seria a maneira de se construir uma personagem social
regulada pelas normas.
A alienação do lugar do sujeito na loucura pode ser formulada pelo discurso
psiquiátrico em dois registros teóricos que, embora diferentes, não são
excludentes. São até mesmo complementares. Pode-se pressupor que essa
negatividade essencial existe basicamente no plano do corpo biológico e
tem efeitos secundários no plano da organização moral. Ou, ao contrário,
que ela é basicamente moral e deixa indene a organização somática. Alguns
teóricos do emergente alienismo, como Falret, tematizaram a articulação
necessária entre corpo e psique para a produção da alienação mental.I5> 16
Contudo, em qualquer alternativa destacada pelas diferentes tendências do
então recente pensamento psiquiátrico, admitia-se que um defeito
fundamental do sujeito produziría a perda da razão. Tendo perdido a posse
sobrési mesmo, o sujeito deveria ser curado por um outro, detentor do saber
sobre o corpo negativo e sobre a moralidade alienada e, por isso, apto a
restaurar a normalidade. Esta restauração não supunha o confronto entre
dois sujeitos que se encontravam, mas apenas a oposição entre um sujeito
presente e uma ausência de sujeito. O primeiro iria modelar o segundo de
acordo com uma concepção de normalidade, construindo uma personagem
adequada aos princípios que norteiam um espaço social historicamente
determinado.17
Esta estratégia fundamental do discurso psiquiátrico tem dois pressupostos
básicos, que opõem de maneira bem determinada as figuras do psiquiatra e
do louco face às temáticas da verdade e do saber. Se, na experiência da
loucura, o sujeito é silenciado e subtraído enquanto representante de
qualquer poder constituinte, não se reconhece na figura do louco a
capacidade de deter nenhuma forma de saber sobre si mesma. A loucura é
radicalmente considerada como sendo a inexistência de qualquer verdade.
Como efeito dessa subtração, a negatividade essencial do sujeito se
constitui com muita precisão.
Esta formulação terá consequências fundamentais. Despossuída de um
saber sobre si mesma, a loucura passa a situar-se no limite inferior do
humano, sendo representada como figura de passagem entre a animalidade
e a humanidade, a natureza e a cultura. Esvaziada de saber, posicionada
entre duas ordens cósmicas, a loucura é vista como uma figura humana em
decomposição, materializando a perda do especificamente humano e sendo
a explicitação desordenada de seus constituintes fundamentais. A alienação
mental seria a figuração desta decomposição, a marca de alguém que habita
os limites da condição humana.
Esta representação do louco é inseparável da representação da figura do
alienista, estando ambos contrapostos como pares complementares. A
negatividade essencial de uma das figuras corresponde ao excesso de
positividade da outra, que passaria a funcionar como fonte absoluta de
positivação da primeira. Estabelecido numa escala de essências, este
contraponto se duplica e logo se situa também numa escala ética, de forma
que o negativo e o positivo originários adquirem uma dimensão de valor,
com a oposição absoluta entre o Bem e o Mal.
No momento de sua constituição histórica, o projeto psiquiátrico procura
sustentar-se no combate mítico das forças do Bem contra as do Mal,
eternamente recomeçado ao longo da história da humanidade. Todo o
projeto terapêutico do discurso psiquiátrico encontra seu suporte neste
pressuposto central, de forma que, de ato positivo, a cura se transforma
também em ato moral. Enquanto processo de normalização social, o
tratamento moral se sustenta nesta operação em que a oposição
positivo/negativo se duplica na oposição Bem/Mal.
 "
Suporte da terapêutica, o alienista é colocado no lugar soberano de detentor
absoluto de um discurso sobre a normalidade e a anormalidade morais. Por
meio do saber, o psiquiatra pretende não apenas avaliar a anomalia
originária do doente mental para convertê-lo à normalidade moral, mas
também legitimar todas as implicações éticas, sociais e jurídicas que
atribuem à loucura uma minoridade constituinte.
Estes postulados não permitem que o louco detenha qualquer sentido de sua
própria experiência. Reduzido a uma negatividade essencial, ele não possui
qualquer saber sobre si mesmo. O psiquiatra é o detentor soberano de toda a
ciência positiva, a única que pode definir a verdade da loucura.
Transformada em doença mental, esta recebe não apenas uma redução
explicativa, mas passa também a ter fora de si o eixo fundamental de
sustentação de sua verdade. O saber explicativo torna-se a via que sustenta
o ato terapêutico sobre a loucura, despossuída de qualquer verdade. Por este
caminho o louco recebe uma verdade que o discurso psiquiátrico se arroga
o direito de possuir.
A oposição entre sentido e explicação deve ser considerada aqui de forma
rigorosa, poisneste contexto os dois conceitos correspondem a diferentes
formulações da problemática da verdade (inclusão/exclusão do sujeito da
experiência como referencial fundamental da verdade, consideração da ade-
quação/inadequação da verdade do sujeito a um objeto situado fora dele).
Além disso, vem para o primeiro plano uma questão fundamental: quem é o
portador do código de verdade na experiência da loucura?
O discurso psiquiátrico apresenta uma série de argumentos para explicar os
motivos que fazem o sujeito perder a razão e se tornar desvairado. Detendo
a verdade sobre a essência negativa da loucura, a psiquiatria pode justificar
seu empreendimento terapêutico. A verdade da loucura se encontra definida
no âmbito do saber psiquiátrico, que tenta capturar esta experiência no
quadro de suas teorias explicativas.
Tais teorias podem ser construídas em bases conceituais diferentes, que
postulam o privilégio da ordem orgânica ou da ordem psicológica, como se
faz insistentemente desde a primeira metade do século XIX, quando se
opunham as escolas somaticista e psicológica, até hoje. Estas diferentes
formulações não se contrapõem efetivamente, pois sua oposição aparece
apenas na superfície do discurso psiquiátrico, isto é, no plano dos seus
enunciados, e não do núcleo fundamental de suas enunciações.
Com efeito, quando nos deslocamos do plano formal dos enunciados para o
plano das condições de possibilidade desses discursos, podemos ver como o
eixo fundamental da problemática permanece inalterado, pois não se trtÉis-
formam absolutamente nem o locus onde se enuncia a verdade da loucura,
nem tampouco o referencial e o agente enunciador desta verdade. Em
ambas as alternativas, ela continua situada no interior do saber psiquiátrico.
Afirma-se a não-verdade da experiência da loucura através de um
referencial localizado fora do sujeito, e o detentor deste discurso se
transforma no senhor soberano da verdade.
Ao considerar a loucura como alienação mental e silenciar sobre o lugar do
sujeito nessa experiência, a ordem psiquiátrica constituída na aurora do
século XIX retira dela qualquer sentido que lhe seja inerente, destituindo o
louco de qualquer saber e de qualquer verdade. Reduzida ao estatuto de
enfermidade mental, a loucura perde sua dimensão simbólica e se insere no
horizonte dos objetos científico-naturais. Seu código de verdade se toma um
atributo, um privilégio absoluto, da psiquiatria, que usa um discurso
explicativo causai. Ele passa a ser o quadro de referência que envolve a
experiência da loucura e justifica a adoção de uma série de tecnologias
terapêuticas.
Pelas razões que assinalamos — isto é, o local onde se enuncia a verdade da
experiência da loucura, a sua referência fundamental e o detentor do seu
código — essas tecnologias terapêuticas são essencialmente marcadas pela
estratégia da normalização social. Mesmo sem considerar aqui os canais
sociais pelos quais o sujeito foi despossuído na experiência da loucura,
mesmo fixando apenas as operações epistemológicas que fundamentam o
tratamento moral, podemos assinalar que a normalização é o efeito desejado
destas operações. Como poderia ser diferente? Afinal, a verdade formulada
no eixo regulado pela oposição normal/anormal é definida no contexto do
discurso psiquiátrico, que considera o espaço social como o referencial
primordial em que se avalia a adequação/inadequação do discurso da
loucura. O sujeito, como vimos, não é a referência fundamental de sua
própria experiência.
A normalização social da experiência da loucura implica a presença, como
fundamento, de um discurso explicativo em que o referencial da verdade é
algo localizado fora do sujeito. Esta exterioridade é deslocada para o espaço
social, que define as normas de avaliação da adequação/inadequação dos
termos do discurso da loucura.
No contexto da relação intersubjetiva, tal discurso explicativo tem efeitos
muito específicos, pois implica não apenas a oposição das duas figuras em
pauta (representantes da verdade e da não-verdade), como também reduz a
relação terapêutica a uma relação pedagógica. O processo terapêutico é
representado como um ato de domesticação, com a implantação de uma
verdade onde não existe nenhuma e com a imposição arbitrária da ordem da
cultura à ordem da natureza. Desta maneira, se autoriza no saber
psiquiátrico qualquer ato de vidlência, pois se pretende impor a ordem do
Bem à ordem do Mal.
O saber psicanalítico e o restabelecimento do
sujeito
Evidentemente, esta não é a única possibilidade de existência de um
discurso explicativo sobre a experiência da loucura. Tal discurso podería ter
outra espessura epistemológica. Para isto, contudo, sua construção deveria
obedecer outra ordem de prioridades, invertendo as bases do discurso
anterior. Isto é, a construção do novo discurso explicativo sobre a
experiência da loucura deveria fundamentar-se no primado do sentido do
sujeito.
Nessa nova ordem explicativa, o sentido do sujeito se torna o único
caminho seguro para fundar os postulados e os suportes da teoria, que passa
a poder ser incessantemente transformada de acordo com os novos índices
fornecidos pela emergência do sentido na experiência da loucura e por suas
oscilações. Esta passa a questionar permanentemente a construção teórica
estabelecida.
Não seria esse o significado mais fundamental da démarche freudiana?
Freud repensou intermitentemente as suas construções teóricas, sempre
reconhecendo que estas ficavam muito aquém da exuberância do sentido
que a experiência analítica originária possibilitava explicitar. Ao reconhecer
que, de diferentes maneiras, na experiência analítica o sentido se apresenta
sempre mais além, ao recusar-se a coagular no discurso explicativo a
verdade do sujeito da experiência. Freud é impelido a questionar
permanentemente o seu próprio discurso teórico.
Por isso mesmo é que destacamos em outro trabalho a transformação
sofrida pelo significado original do movimento psicanalítico. Nos seus
primórdios, a base para a construção do discurso teórico da psicanálise era a
prioridade conferida ao sentido do sujeito na experiência da loucura. Mas a
psicanálise pós-freudiana se norteia principalmente pelo congelamento
dessa verdade conquistada, através de sua codificação num discurso
explicativo. Assim, enquanto o discurso original estava permanentemente
aberto à retificação conceituai, considerando que o sentido do sujeito da
experiência resistia à teoria estabelecida e ao psicanalista, o discurso
posterior se transforma na coroação soberana da verdade e apresenta-se
como pouco sensível ao sentido do sujeito da experiência.”
Em função desta transformação fundamental nas condições dq possibilidade
do saber psicanalítico, a psicanálise pós-freudiana passa a ter uma postura
predominantemente corretiva, baseando-se num discurso explicativo sobre
a anomalia psíquica. Orientada por princípios voltados para a nornja-lização
social, sua prática se apresenta com marcantes características
pedagógicas.19
Pode-se continuar falando em complexo de Édipo, sexualidade infantil,
perversão polimorfa infantil e mesmo em inconsciente, mas estes conceitos
adquirem frequentemente sentidos muito diferentes daqueles que possuíam
nos seus primórdios. No novo contexto eles são marcados principalmente
por uma conotação definida no quadro de uma psicologia genético-
evolutiva. Quando de sua permanência tardia na história do sujeito, seriam
indicadores de uma maturidade falha. Assim, deixam de ser radicalmente
interpretados como elementos fundamentais na constituição da
subjetividade.20
Porém, a ruptura teórica introduzida pelo discurso freudiano na tradição
psiquiátrica sobre a loucura representou exatamente essa reviravolta
fundamental. Ela inverteu totalmente a ordem de prioridades estabelecida
pelo discurso psiquiátrico, patrocinando um retomo à principalidade do
sentido do sujeito na experiência da loucura e um afastamento da verdade
codificada primordialmente como explicação. O pressuposto fundamental
do discurso explicativo da psicanálise freudianaé o sentido, eixo de
articulação ao qual estão submetidas as construções teóricas que
consideram o sujeito da experiência como referencial originário da verdade
psíquica. Por isso mesmo, o discurso teórico da psicanálise pode apresentar
diversas rupturas ao longo do percurso freudiano, pois o seu critério
fundamental de verdade é a adequação/ inadequação ao sentido da
experiência do sujeito, que a psicanálise pretende restaurar plenamente,
colocando-se como seu porta-voz.
A restituição do sentido na experiência da loucura implica o
restabelecimento do sujeito como seu suporte, como portador de um saber
sobre si mesmo e como revelador de uma verdade, com todas as
consequências que isso tem para a ordem teórica. O louco é re-situado no
centro de sua experiência, sendo portador de uma verdade singular. Esta só
pode ser apreendida pela figura do psicanalista quando este se situa, no
espaço analítico, na posição de escuta. Não pode ser constituída e instituída
originariamente por este. Por isso mesmo, o discurso psicanalítica é um
discurso interpretativo e não explicativo. O sentido está situado de modo
imanente no sujeito da experiência da loucura, e o que o analista realiza
com o analisando é a operação de deciframento de um enigma.
Na ruptura teórica realizada pela psicanálise existe efetivamente uma
revolução copemicana, para usarmos a linguagem kantiana, na medida em
que o centro das questões da experiência da loucura se desloca do discurso
psiquiátrico para a própria loucura. A verdade passa a girar em torno do
sujeito da experiência da loucura e não brota mais no interior do saber
psiquiátrico. A figura do louco retoma o centro do sistema, afastando dessa
posição a figura do psiquiatra. Retomando o lugar de oráculo da verdade da
loucura, o louco rompe com o quadro invertido do discurso psiquiátrico.
Em torno desta reviravolta teórica, deste deslocamento do discurso da
loucura para o primeiro plano do cenário analítico, o discurso explicativo da
psicanálise se constitui e se desenvolve, apresentando uma espessura episte-
mológica de outra ordem em relação à explicação psiquiátrica. As
categorias que circunscrevem o campo da explicação psicanalítica têm
como fundamento o sentido da experiência da loucura nas suas diversas
configurações possíveis e se ordenam em função dos discursos desta. Sem
considerá-los e reconhecê-los devidamente, o discurso da psicanálise não
seria absolutamente diferente do psiquiátrico.
Podemos destacar como o discurso psicanalítico também pode se inverter,
silenciar a marca de sua originalidade epistemológica e retornar às regras
que norteiam o discurso psiquiátrico, com todas as conseqüências teórico-
clínicas que daí decorrem. Neste caso, os conceitos de verdade e de saber se
recolocam como fundamentos, trazendo de volta seus loci e agentes
próprios. Com efeito, se o discurso explicativo da psicanálise se toma
autônomo em relação ao processo analítico originário, ele passa a funcionar
de modo epistemicamente idêntico ao discurso psiquiátrico, transformando-
se, assim, num discurso que se arroga soberanamente o direito de possuir a
verdade do analisando, passando então a normalizar a psique deste último
nos menores detalhes e funcionando como discurso pedagógico.
Certamente, não é um acaso que a incidência problemática deste modelo
sobre a estrutura do superego se transforme na grande questão das análises
“didáticas”, questão que há cerca de trinta anos perturba os psicanalistas
mais lúcidos do mundo inteiro.21
Esta reversão epistemológica da psicanálise no discurso psiquiátrico é uma
possibilidade sempre aberta no curso de um processo analítico, até mesmo
porque a resistência à experiência da análise é uma escansão básica que
marca as vicissitudes deste processo, caracterizado pela incessante
oscilação entre momentos de analisibilidade e de resistência, que dizem
respeito às duas figuras comprometidas nessa relação intersubjetiva. Nem o
eixo que sustenta a resistência analítica, nem o eixo que é o suporte do
desejo de análise se concentram inteiramente numa das figuras do espaço
analítico, mas se distribuem entre as duas figuras. O sentido e a verdade se
encontram permanentemente nos dois pólos da relação e entre as duas
figuras, não sendo, portanto, privilégio de qualquer um dos agentes em
causa.
Destaquemos esquematicamente os eixos centrais dessa problemática no
campo da experiência analítica, circunscrevendo nossa abordagem à figura
cíb analista, principalmente ao funcionamento de sua economia psíquica, de
forma a delinearmos o quadro em que a teoria psicanalítica centrada no
sentido se transforma na teoria explicativa da psiquiatria.
Trata-se de uma transformação relativamente fácil de acontecer. No nível
interno de funcionamento do processo psicanalítico, podemos sublinhar a
possibilidade desta reversão epistemológica, o que nos abre mais um
caminho, entre os que já assinalamos, para interpretar os desvios da
psicanálise pós-freudiana face às condições de possibilidade da existência
da experiência analítica propriamente dita.
Para que esta reversão possa se estabelecer, basta o analista “esquecer” que
entre sua figura e o discurso teórico da psicanálise existe necessariamente a
sua própria experiência analítica originária, com todo o simbolismo que esta
condensa, apontando para a sua mortalidade e a singularidade de suas
marcas pulsionais. A partir deste “esquecimento” o psicanalista passa a
pautar sua escuta pelo discurso teórico que “aprendeu”, e não pelas fendas
abertas no seu ego pela experiência analítica originária. Com isso, a
singularidade significativa de um destino subjetivo que se apresenta diante
de si é silenciada.
Neste contexto, a figura do analista coloca seu corpo libidinal fora do
processo psicanalítico e passa a “explicar” a figura do analisando a partir de
um suposto código universal de verdades sobre a subjetividade. O silen-
ciamento da singularidade da figura do analisando é o correlato e a
contrapartida necessária do silenciamento da especificidade da figura do
analista. Com isso, no interior do processo analítico se infiltra um cenário
pedagógico, cuja trama alcança todos os eixos fundamentais da análise,
produzindo inevitavelmente uma prática de normalização da psique.
A condição de possibilidade da existência do processo analítico é a
experiência psicanalítica originária do analista. Ela tem que estar presente
na figura do analista como uma pulsação permanente, não apenas para que
se torne possível perceber a experiência da singularidade do analisando,
mas também porque é através dela que se estabelece a mediação entre a
figura do analista e o discurso explicativo da psicanálise, única forma de
não transformar a teoria psicanalítica num oráculo de verdades universais
sobre o prazer, a sexualidade, a dor e a morte. Nesta eventualidade, estamos
lançados inteiramente num discurso pedagógico normalizador.22
A exigência epistemológica de manter em aberto a categoria do sentido, da
verdade emergente da experiência do sujeito na análise, implica
necessariamente que esta abertura esteja também presente em relação ao
analista. Sem ela, este aliena sua singularidade no discurso explicativo da
psicanálise, que se transforma inevitavelmente num discurso de tipo
psiquiátrico sobre a normalidade e a anormalidade psíquicas.
 •
Com isso, evidentemente, o suporte da experiência transferenciai se coloca
no primeiro plano do cenário psicanalítico, nos dois eixos possíveis de
desdobramento deste, isto é, o que promove o processo analítico e o que a
este faz obstáculo, como resistência ao movimento de revelação do sentido
da experiência do sujeito. Entretanto, a resistência, como contraponto
necessário e inevitável do processo de análise, pode se materializar tanto na
figura do analista quanto na do analisando, não existindo, também aqui,
privilégios neste obstáculo à emergência do sentido.
A representação da cura psicanalítica como um processo que se realiza
entre alguém que apenas transfere e outro que apenas

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