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Resumo Psicanálise AD1 e AP1

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Resumo Psicanálise
AD1 e AP1
Introdução:
Nosso curso começa com uma Introdução à Psicanálise que pretende contextualizá-la em relação a outros saberes, e também em relação ao contexto social e histórico de sua proposição.
Na Aula 1 trataremos de discutir o lugar da Psicanálise em meio a outros saberes, como o Senso Comum, a Ideologia, a Filosofia e a Ciência. É muito importante entender que a Psicanálise, nem nenhum outro saber formalizado pode ser confundido com o Senso Comum. Por mais que o conhecimento gerado pela Psicanálise nos toque muito de perto, fale de experiências cotidianas, isso não nos faz psicanalistas "naturais", ou "ingênuos".
Não existe tal coisa, porque nenhum saber formal é ingênuo, ele pressupõe a construção de teorias, métodos de investigação empíricos próprios, uma tradição de pesquisa particular no seio da qual novos conceitos e práticas emergem, ou seja, pressupõem. por um lado. rigor de pensamento e. por outro, abandono de dogmatismos em favor de uma postura crítica e de produção de novos conhecimentos.
A Aula 2 é dedicada a contextualização histórico-cultural do surgimento da Psicanálise. Ao entendermos o meio no qual surge a Psicanálise podemos compreender melhor que tipo de problemas ela visava investigar, e que tipo de soluções ela poderia oferecer para tais problemas dentro deste contexto específico.
Buscar tal entendimento ainda nos capacita a pensar criticamente o saber psicanalítico, pensando em seus limites de aplicação, e principalmente, compreender que contextos histórico-culturais distintos demandaram adaptações da teoria original que pudessem dar conta de situações muito distintas daquelas que a teoria original pretendia dar conta.
Este último ponto é especialmente relevante na medida em que a realidade brasileira contemporânea é bem distinta daquela que testemunhou e ajudou a engendrar os princípios da Psicanálise.
A Psicanálise se tornou um ramo do saber extremamente popular, e muitos de seus conceitos são usados no Senso Comum, na maioria das vezes sem que se dê conta de que as expressões e princípios explicativos que estamos usando de alguma forma se relacionam com o saber psicanalítico.
Por exemplo, todos nós já ouvimos expressões como “Freud explica”, “Fulano é complexado”, “Isso é uma coisa que está no seu Inconsciente”, “Como Beltrana é histérica! ”, ou, mais recentemente, “Beijinho no ombro para o recalque passar longe”. Todas estas expressões de forma mais ou menos clara, direta, ou fiel, a personagens e conceitos psicanalíticos.
Isto posto, seria mentiroso dizer que não sabemos nada sobre Psicanálise só porque nunca estudamos o tema formalmente. Assim como seria mentiroso dizer que nosso conhecimento de Senso Comum sobre o assunto nos basta para efeitos desta disciplina.
Para a maioria das pessoas, que nunca estudou Psicanálise e nunca frequentou um consultório psicanalítico, tais aproximações podem ser suficientes no seu cotidiano. Mas a partir do momento que entramos em contato com a Psicanálise enquanto campo de saber constituído, esse tipo de conhecimento passa a ser insuficiente, por ser irrefletido e assistemático.
É possível argumentar, inclusive, que tal primeiro contato pode ser de alguma maneira nocivo, na medida em que deforma os conteúdos que iremos abordar ao longo de nosso curso dificultando que as noções mais de acordo com a tradição psicanalítica possam ser apreendidas de uma maneira mais fiel.
Nocivo ou não, tal conhecimento prévio é real. Portanto, não podemos fingir que ele não existe, precisamos lidar com ele, e tentar tirar proveito das noções intuitivas que o Senso Comum construiu em nós.
Aula 01
Freud explica? A psicanálise entre o senso comum, a ideologia e a ciência
Quase todo psicanalista já ouviu a afirmação “Freud explica”, mesmo proveniente de pessoas leigas no assunto. Utilizando as concepções de Clifford Geertz, o fundador da antropologia hermenêutica, buscamos pensar tal afirmação levando em consideração suas aplicações enquanto senso comum e ideologia.
A afirmativa “Freud explica” pode ser entendida em ao menos três sentidos diferentes: o de senso comum, o ideológico e o científico. Cada
um deles implica em diferentes concepções no que se refere ao estatuto do conhecimento psicanalítico.
A existência de variadas controvérsias no campo da psicopatologia não é novidade para aqueles que se dedicam a esse tema. Neste momento histórico no qual o DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) chega a sua quinta edição, muito já foi escrito e falado a respeito do distanciamento entre algumas formas de psiquiatria e a psicanálise. Isso acontece ao menos desde a terceira edição desse manual (de 1987) e, desde então, mútuas acusações são trocadas. De um lado diversos psicanalistas criticam o reducionismo, o fisicalismo e o interesse
financeiro dos manuais diagnósticos e, de outro lado, muitos psiquiatras afirmam que a psicanálise não está mais no mainstream do tratamento psicopatológico (e, portanto, não deveria mais ser utilizada).
A psicanálise enquanto senso comum
Quase todo psicanalista já deve ter ouvido a afirmativa “Freud explica”, mesmo de pessoas leigas no assunto. Normalmente ela vem acompanhada de questões relacionadas ao que comumente se entende como complexo de Édipo ou mesmo em relação à sexualidade de forma geral. Isso sugere a possibilidade de o conhecimento psicanalítico se fazer presente no pensamento do senso comum ou pelo menos no senso comum de uma classe mais instruída intelectualmente.
O que é o senso comum, entretanto? Normalmente ele se refere ao óbvio e a um saber próprio às pessoas que compartilham um determinado contexto. Segundo o dicionário Houaiss (2001, p. 2547), o senso comum é o “conjunto de opiniões, ideias e concepções que, prevalecendo em um determinado contexto social, se impõem como naturais e necessárias, não evocando geralmente reflexões ou questionamentos”.
A concepção de Clifford Geertz, fundador da antropologia hermenêutica é, contudo, diferente dessa. Segundo ele, o senso comum é um resultado de reflexões deliberadas sobre a experiência e pode ser questionado, discutido, formalizado e até ensinado, podendo variar de pessoa para pessoa. Ou seja, o senso comum é um sistema cultural como qualquer outro e se baseia fundamentalmente na convicção do seu valor, sustentada pelos envolvidos num determinado contexto.
O caráter empírico do senso comum resulta em saberes entendidos como óbvios. Contudo, tais saberes vão se expandindo até abranger um território gigantesco de coisas que são consideradas como certas e inegáveis. 
[...] Ninguém, ou pelo menos ninguém cujo cérebro funcione bem, duvida que a chuva molhe; mas podem existir pessoas que questionem a proposição de que obrigatoriamente devemos abrigar-nos dela, e que achem que enfrentar os elementos é uma forma de fortalecer nosso caráter (Geertz, 2006, p. 114).
O senso comum supõe o bom senso, ou seja, a correta aplicação dos saberes. A questão problemática é que, assim como todos estão inseridos num sistema cultural, também todos costumam julgar ter bom senso.
Como afirma Montaigne (2000, p. 43): “Diz-se comumente que a partilha mais justa que fez a natureza, de seus dons, foi a do bom senso, pois não há quem não esteja satisfeito com sua parte”. Uma das características do saber de senso comum é tentar tornar o mundo mais previsível e menos ameaçador. Há uma tentativa de controle sobre aquilo passível de falhar em nossas apreensões da realidade. Em nossa sociedade percebe-se isso claramente com as diferentes formas de superstição existentes como, por exemplo, os diversos tipos de proteção contra o mau olhado, o uso de certas roupas quando o time preferido vai jogar ou não passar por baixo da escada. Dessa forma, seja nos protegendo de antemão com saberes ou buscando explicar algo ocorrido, as ideias do senso comum se fazem presentes também por nossa busca de controle do mundo. Comumente há componentes irracionais quando se recorre a entendimentos desse tipo.
A psicanálise, bem como diversas áreas do conhecimento, afetouos conceitos do senso comum de uma grande parte do mundo. Porém o
homem comum frequentemente não vê tais conceitos como parte de uma teoria científica articulada, mas sim como o próprio bom senso ou até mesmo como a realidade em si. Questões edípicas, portanto, são comumente consideradas como algo dado do ser humano, bem como as intenções inconscientes num sonho. Sonhou que sua mãe estava com você numa cama? Freud explica. Cometeu um lapso de linguagem? Freud explica. Há, portanto, uma explicação dada de antemão, de forma que o fenômeno não nos surpreende, havendo um mecanismo similar ao do menino azandiano.
Há também explicações elaboradas imediatamente após o fenômeno ocorrer e, por mais irracionais que sejam, constituem como uma forma de nos reassegurarmos da confiabilidade de nossas visões de mundo.
Por exemplo, se um clínico cometeu algo excêntrico durante a sessão, pode ser acusado de ter atuado com o paciente, de forma que provavelmente estava sentindo uma forte contratransferência. Se o analista negar isso frente aos demais, buscando explicar o fato de outro modo, de outra perspectiva, provavelmente será acusado de estar tendo resistências (uma vez que a explicação se confunde com uma realidade inegável). 
A psicanálise enquanto ideologia
O segundo sentido que pode ser atribuído à afirmação “Freud explica” se refere a uma questão ideológica. “Freud explica” é passível de ser entendido como “apenas Freud explica” e ninguém mais, ou então “apenas a psicanálise explica” e nenhuma outra teoria. Nisso fica implícito que Jung não explica, Skinner não explica, Heidegger não explica, enfim, só Freud e a psicanálise é que possuiriam os recursos necessários para dar conta de se entender a subjetividade humana.
Iremos aqui utilizar o pensamento de Geertz novamente, uma vez que lida com tal assunto de maneira bastante original.
O autor chama a atenção para o fato de ser uma pequena ironia da história intelectual moderna o fato de o próprio termo “ideologia” ter-se tornado ele mesmo ideológico.
Mas o que é ideologia? Existem várias definições possíveis para o termo. O sentido marxista talvez seja ainda um dos mais utilizados e se refere a uma falsa consciência de classe, além de outros sentidos. Outro conceito de ideologia, o do dicionário Houaiss (2001, p. 1565), se refere a “um conjunto de ideias, crenças e atitudes que representam entendimentos sobre o mundo social e político”. Vamos, no entanto, entender o termo seguindo o raciocínio de Geertz em seu texto. Num primeiro sentido, político, trata-se de uma visão normalmente dualista que opõe um “nós” aos “eles”, sendo esses últimos encarados normalmente como perversos. Nessa visão fica subentendida uma ideia central: quem não está conosco está contra nós. Isso também pode ser pensado dentro do universo da psicanálise como, por exemplo, lacanianos e psicologia do ego, sociedade de psicanálise e os que se encontram fora dela, etc. 
Sabemos da existência de questões políticas nesses embates, de forma que podemos aplicar o conceito de ideologia nesse contexto. A criação de um “nós” e um “eles” aparece com frequência na história da psicanálise pós-Freud, como na rixa entre Melanie Klein e Anna Freud. Mesmo no próprio Freud, em seu texto “Psicanálise e telepatia” (1914/2011), por exemplo, existe a nomeação de “inimigos” referente aos que discordam da teoria psicanalítica.
Geertz (2008) aponta para o fato de tal concepção dualista ser alienante, no sentido de que quem a adota desconfiar, atacar e trabalhar para destruir instituições políticas estabelecidas. Esse processo fica claro com a tentativa de regulamentação da profissão de psicanalista, por
exemplo, no sentido de algumas instituições buscarem serem as únicas credenciadas para o ensino da prática (e isso consequentemente implicaria a destruição das demais).
Outro bom exemplo dessa alienação se refere ao fechamento de uma instituição paulistana que atende crianças e adolescentes com o referencial da psicanálise. Segundo a justificativa, a instituição supostamente não corresponderia ao mainstream do tratamento psíquico atual, ou seja, os tratamentos farmacológicos. Percebe-se como não houve justificativas concretas para o fechamento da instituição acontecer, mas apenas a alegação de que a teoria não estava mais “na moda”. Essa posição dualista é frequentemente doutrinária, pelo fato de reclamar a posse completa e exclusiva da verdade e também (e fundamentalmente), por abominar o diálogo. Isso fica evidente de várias formas no mundo psicanalítico como, por exemplo, na busca constante em provar que o autor utilizado é quem “de fato” entendeu Freud mais profundamente.
Isso também ocorre ao se fazer leituras da obra freudiana utilizando uma concepção própria, mas afirmando ser freudiano. Ou então ao afirmar: existe uma única realidade; essa realidade é que o inconsciente existe; logo, quem não acredita nisso é ingênuo e superficial.
Além dessa concepção política há outra concepção de ideologia chamada por Geertz (2008) de “médica”, uma vez que é considerada como uma doença, uma espécie de defesa contra a ansiedade. Nesse sentido ela seria comparável ao alcoolismo ou até ao roer unhas. Há quatro explicações para essa concepção.
A primeira é a explicação catártica, segundo a qual a tensão emocional seria esvaziada por sua transposição a inimigos simbólicos (por exemplo, “os lacanianos”, “a psicologia do ego” ou “os behavioristas”). Em geral
percebe-se uma falta de conhecimento quando se realiza essa prática. O bode expiatório que o outro se torna é frequentemente fundado em ideias estereotipadas e até mesmo erradas, mas que possibilitam a catarse coletiva.
A segunda explicação para essa concepção de ideologia é moral, se referindo à característica de a ideologia sustentar os indivíduos em face da pressão negando-a totalmente e/ou legitimando-a em termos de valores elevados. Isso acontece, por exemplo, quando o paciente abandona o tratamento sem dizer nada e logo pensamos tratar-se de uma resistência dele em não querer lidar com seu lado mais obscuro ou com “A Realidade”. Certamente parece mais difícil considerar ter ocorrido uma má condução da transferência por parte do analista, por exemplo.
A terceira explicação para a concepção médica de ideologia é a da solidariedade. Ela ocorre, pois tal forma de ideologia tem o poder de unir um grupo ou classe social pela criação de símbolos (como as bandeiras, os líderes etc.). O próprio fato de alguém se nomear “kleiniano” ou “lacaniano”, por exemplo, já constitui uma característica semelhante à de seitas. Será que realmente faz sentido tais nomeações identitárias num saber que almeja a cientificidade? Ou seja, o compromisso maior é com o líder, com o saber clínico/metapsicológico ou com o sofrimento psíquico dos pacientes?
Por fim a última explicação é a advocatória, em que se realiza a articulação das tensões que impelem a ideologia, forçando-as ao reconhecimento público (por exemplo, a crítica exaustiva aos males que a psiquiatria faz ao mundo com o uso dos CIDs e DSMs). Quanto a isso é curioso perceber como é raro haver elogios às medicações em textos psicanalíticos – elas costumam ser entendidas mais como inimigas. É claro que há os dois lados da moeda, mas geralmente só ouvimos um desses dois lados, até mesmo por pessoas distantes da prática de atendimentos clínicos.
A psicanálise enquanto ciência
O último sentido da afirmação “Freud explica” pode ser colocado em forma de questão: Freud utiliza a explicação como recurso metodológico de apreensão do mundo e do ser humano? Essa é uma pergunta passível de parecer sem sentido caso não entendamos algumas questões prévias. 
Na chamada controvérsia sobre o método alemã (Methodenstreit) do fim do século XIX e começo do século XX, ficou famosa a divisão entre
ciências humanas e ciências naturais. Como afirma Schutz (1954), a questão era saber se as ciências humanas deveriam adotar métodos próprios de investigação ou se deveriam usar os métodos já reconhecidos das ciências naturais. Ao contrário dos positivistas, defensoresdesta última opinião e da concepção de que as ciências derivam de um tronco único, a matemática, autores como Wilhelm Dilthey eram favoráveis à separação: O conjunto de fatos espirituais que se enquadram neste conceito de ciência normalmente divide-se em dois membros, um dos quais se designa com o nome de ciência natural, e para o outro não existe, o que é bastante surpreendente, nenhuma denominação universalmente reconhecida. Eu me junto ao uso terminológico daqueles pensadores que denominam ciências do espírito esta outra metade do globus intellectualis. Em primeiro lugar, esta denominação – até pela ampla difusão da Lógica de J. S. Mill – se tornou habitual e compreensível de forma geral. Em segundo lugar, comparada com todas as demais denominações inadequadas entre as que se pode utilizar, esta parece a menos inadequada (Dilthey, 1986, p. 40-41, tradução nossa).
Vemos, portanto, que Dilthey está reforçando a diferenciação entre os dois tipos de ciência e, ao longo de seu livro Introdução às ciências do espírito (1986), busca formular concepções a respeito dessa diferença.
O termo “espírito”, derivado de Geist em alemão, e praticamente impossível de ser traduzido, nomeia as Geisteswissenschaften (ciências do espírito numa tradução mais literal, mas normalmente traduzido por “ciências humanas”). Para Dilthey (1986) a separação é importante, pois as ciências humanas não possuiriam como objeto de estudo as regularidades do mundo natural próprias às ciências naturais (Naturwissenschaften).
Nesse contexto de controvérsias metodológicas é creditada ao historiador Johann Gustav Droysen a separação entre compreensão e explicação. Assim, o método explicativo das ciências naturais buscaria a explicação de um fenômeno em termos de causa e efeito, partindo de algo geral (como uma lei da natureza) para se chegar ao particular. Já o método de compreensão, próprio às ciências humanas, refere-se a uma busca de entendimento considerando a relação entre o todo e suas partes.
Portanto, questionar se Freud explica remete à questão: Freud (e a psicanálise) utiliza a explicação como recurso? Dito de outro modo: a psicanálise é uma ciência natural? De acordo com Freud, no texto “Resistências à psicanálise” (1925/1996), a psicanálise é uma ciência natural como qualquer outra. Como vemos nos estudos de epistemologia freudiana, Freud sempre buscou embasar seus conceitos em questões físicas e químicas, seguindo principalmente o exemplo de seu professor de anatomia, Ernst Brücke. Como sabemos, o próprio termo “psicanálise” provém da química analítico-orgânica de Liebig (Assoun, 1983).
Apesar das concepções freudianas há atualmente muitos entendimentos diferentes a respeito da psicanálise. A visão de senso comum costuma classificá-la como uma ciência humana e o mesmo ocorre em muitas universidades e agências de fomento à pesquisa. Outros, no entanto, a entendem como uma ciência que está na fronteira entre as ciências humanas e as ciências naturais. Há também aqueles que nem a entendem como ciência. Com isso podemos pensar a psicanálise como um objeto de estudo bastante interessante do ponto de vista epistemológico, devido às várias concepções existentes a seu respeito.
Essa concepção é característica do naturalismo que acompanha as ciências naturais. Segundo ela, há apenas uma Verdade e uma Realidade e apenas os métodos científicos poderiam alcançá-las. Por isso muitos psicanalistas comemoram quando as ciências naturais publicam algo sugerindo uma eficácia da psicanálise. Isso se dá atualmente na relação entre psicanálise e neurociência, por exemplo: a esperança é que a neurociência – universalmente reconhecida como ciência – chegue às mesmas conclusões que os psicanalistas acerca do psiquismo.
Outros autores rejeitam a ideia de que há apenas uma única Realidade, de forma que nossos conhecimentos seriam sempre provisórios
e determinados pelos contextos nos quais estão inseridos. Desse modo, não seria necessário tentar enquadrar os conhecimentos como científicos, pois a validade poderia ser determinada segundo outros critérios que não essa forma de objetividade, por exemplo. Segundo Smolin (1997): A presunção de que aquilo que é atemporal é de alguma forma melhor, mais real ou mais verdadeiro do que aquilo que é limitado ao tempo é essencialmente uma ideia religiosa que, mais cedo ou mais tarde, entra em conflito com o nosso desejo de ter uma compreensão racional do mundo no qual nos encontramos (Smolin, 1997, p. 210 tradução nossa).
Na citação inicial deste artigo, Freud previa a possibilidade de no futuro as pessoas lidarem com a ciência de forma semelhante à forma pela qual lidavam com a religião. De certa maneira parece termos chegado a esse ponto há algum tempo. A imposição de uma concepção objetivista
de conhecimento pensada sob a perspectiva de uma evolução linear do mesmo (levando à Verdade final e à descoberta da Realidade) dificulta o diálogo entre áreas do saber que utilizam metodologias diferentes.
No caso da psicanálise e de outros saberes do campo psicopatológico, parece mais coerente realizar uma avaliação qualitativa pelo impacto clínico nos pacientes do que impor reducionismos de quaisquer tipos. É crucial atentar para o fato de a epistemologia e a política se interligarem frequentemente, de forma que justificativas teóricas e metodológicas podem servir como disfarce para intolerâncias típicas de massas e seitas.
Tendo em vista as considerações acima concluímos que “Freud explica” é uma afirmativa que deve se limitar ao seu uso coloquial. Mesmo não evocando a frase desse modo, podemos cair em armadilhas do senso comum, da ideologia e da própria ciência que nos fazem ter mais certezas do que dúvidas. Para quem busca compreender os fenômenos da forma mais aberta possível – ainda que a neutralidade seja impossível – cabe mais: “Freud explica?” (de forma interrogada). Isso também se aplica para quem valoriza um real diálogo com o diferente (ao invés de mera tolerância), bem como para aqueles que não possuem uma resposta definitiva com relação aos estatutos epistemológicos e políticos da psicanálise.
Aula 02
Sobre as bases dos procedimentos investigativos em psicanálise (Anna Carolina Lo Bianco)
Partiremos das características que tomam as investigações psicanalíticas no século XIX, no qual encontra suas raízes, para em seguida acompanhar como o surgimento de um novo objeto, o sujeito do inconsciente, impôs formas de investigação mais apropriadas ao campo recém-constituído. Trata-se de um campo cuja especificidade mais marcante é ter sua dimensão escrita acrescentada ao momento em que a experiência analítica se dá, momento da clínica, da presença do analista perante o analisante.
O objetivo do nosso trabalho é apontar para o fato de que, como não poderia deixar de ser, a pesquisa que se realiza atualmente traz a marca de seu desenvolvimento histórico e se estabelece ao reconhecer a especificidade de sua área de atuação. A preocupação com a especificidade do objeto da psicanálise faz parte de uma minoria dos artigos que lidam com esse tema, em geral brasileiros. Dificilmente encontramos autores que procurem situar a relação psicanálise/pesquisa vis-à-vis a constituição histórica da psicanálise, como procuraremos fazer. 
Tomando de início os desenvolvimentos anglo americanos, o que encontramos são textos, em sua maioria enunciados sob uma ótica, que, como reconhece Wallerstein (2001), privilegia a tradição intelectual de um “empirismo pragmático” (p. 294) cientificista. Podemos distinguir, para os propósitos de nossa apresentação, dois grupos principais que organizam os incontáveis artigos que já se acumulam nessa área. O primeiro deles privilegia o estudo dos resultados e da eficácia do que chamam de psicoterapias psicanalíticas (Bachrach, Galatzer-Levy, Skolnikoff & Waldron, 1991; Fonagy & Target, 1994; Fonagy & Target 1996; Kantrowitz, Katz, Greenman, Humphrey, Paolitto, Sashin & Solomon, 1989; Oremland, Blacker & Norman, 1975; Safran & Aron, 2001; Strupp, Schacht & Henry, 1988; Target & Fonagy, 1994a; Target& Fonagy, 1994b; Wallerstein, 2003; Weber, Bachrach & Solomon, 1985a; Weber, Bachrach & Solomon, 1985b).
Wallerstein (2001) mapeia quatro gerações de pesquisadores americanos que desde 1917 se voltam para a questão dos resultados e da eficácia da terapia psicanalítica. Não podemos deixar de observar que a orientação pragmática e empírica de tais autores certamente é responsável pelo fato de que seus trabalhos remetam antes a pesquisas
voltadas para a satisfação de consumidores, para um optimum na relação custo-benefício, que a reflexões que se dirijam a sujeitos do inconsciente.
O segundo grupo toma como questão a querela da cientificidade da psicanálise. Em relação a esse tópico, vemos muitas vezes os autores perseguindo um caminho que, como pretendemos mostrar adiante, é contrário ao que Freud teria percorrido. Enquanto o inventor da psicanálise se afastou progressivamente de um entendimento positivo acerca do sujeito, o que encontramos é a introdução forçada de procedimentos que garantam o referido entendimento. Trata-se, para esses autores, de permitir à psicanálise uma constante atualização e um alinhamento mais estrito com o conhecimento permitido pela ciência empírica existente (Schachter, 2002).
Os pesquisadores que não adotam um método quantitativo em suas investigações ainda assim tratam quase sempre de demonstrar e defender ou atacar o pertencer da psicanálise ao reino da ciência. Vale dizer, têm como horizonte de discussão a preocupação de julgar a cientificidade da psicanálise. A polêmica gerada por um artigo já não tão recente (Shevrin, 1995a), que procura saber se a psicanálise é uma ciência, duas ciências ou não é ciência, ilustra exemplarmente a constante preocupação com o estatuto científico da psicanálise.
Shevrin (1995b), em resposta às reações a seu artigo, reafirma a necessidade da pesquisa sobre a efetividade da psicoterapia e a adoção do método clínico ao lado da investigação experimental, para assim garantir a cientificidade da psicanálise. Mesmo os autores que abrem um debate (Irwin, 1996) ou se referem à discussão (Nash, 1990) entre a busca de sentido e o intencionalismo que caracterizam a hermenêutica em oposição à possibilidade de verificação empírica de dados observáveis estão constantemente confrontados com a questão da cientificidade dos achados e procedimentos analíticos.
A dúvida acerca de se a psicanálise é ou não um conhecimento científico data certamente da época de Freud (1900/1996). Seu livro sobre a interpretação dos sonhos encontrou forte resistência por parte dos cientistas da época, que o consideravam mais apropriado a um conto de fadas (Strachey, 1975). Críticas às vezes muito semelhantes vêm sendo feitas ao longo do século.
Um autor cuja crítica marcou o cenário dessas discussões foi Ellenberger (1970), que afirmou que o estatuto científico da psicanálise não estava esclarecido e que dificilmente suas descobertas seriam incorporadas pela ciência. Mais de duas décadas depois, a posição desse autor ainda serve de apoio para artigos como o de
Dumont (1994), o qual critica as asserções de Magnavita (1993) de que a descoberta freudiana se prestava à investigação científica de certas desordens, bem como das técnicas de tratamento para combatê-las.
A transferência do que consideramos a querela da cientificidade para outro contexto cultural naturalmente faz com que ela se apresente com novas inflexões. Nesse ponto, não se tem mais os incontáveis estudos sobre a eficácia e a utilidade da psicanálise. Mesmo assim, deparamo-nos, no contexto francês, com a tentativa de estabelecer o estatuto científico da psicanálise. Laplanche (1966) reconhece não ser simples a questão de saber se a psicanálise é uma ciência e de defini-la em face dos critérios de uma pesquisa científica.
O trabalho de Legrand (1973) contrapõe à ciência empírica, referida aos neopositivistas vienenses e a Popper (1968), uma definição teoricista de ciência que a identifica com a produção de um sistema de conceitos teóricos irredutíveis a qualquer apreensão empírica (Althusser, 1965). Indicando dificuldades em ambas as vias, propõe à psicanálise uma terceira. A situação analítica funcionaria como mediadora que estrutura os dados empíricos e os prepara para uma interpretação guiada por uma teoria de referência já constituída, criando assim um novo conhecimento.
Ainda que deslocada da referência ao empirismo anglosaxão, mesmo assim, encontramos nas proposições mencionadas a defesa da cientificidade da psicanálise. Tais estudos começam a surgir com mais freqüência a partir do início dos anos 1990, época em que a psicanálise começa a se firmar como disciplina nos cursos brasileiros de pós graduação.
Ainda que não abandonem por completo a
querela da cientificidade, não a situam em referência ao empirismo e ao pragmatismo que caracterizam os estudos norte-americanos, dirigindo-se de preferência às questões do rigor e da precisão das conceituações teóricas e quase sempre deixando entrever a especificidade do objeto da psicanálise.
Mezan (1990) toma dois termos da definição de Laplanche & Pontalis (1967) – ficção e elaboração –, que a seu ver remetem respectivamente à escuta da imaginação do paciente e à elaboração e construção de modelos conceituais. Com base neles, concebe a possibilidade de construção de uma teoria de acordo com os modelos universais do funcionamento psíquico desenvolvidos por Freud. 
Birman (1993) busca dar orientação metodológica à questão da relação psicanálise/pesquisa e mostra como Freud ultrapassa os padrões científicos que vigoravam para as ciências naturais ao representar teoricamente o que considera uma nova modalidade de cientificidade para a psicanálise. Garcia-Roza (1993) faz uma distinção entre pesquisa clínica e pesquisa acadêmica em psicanálise. A última teria como objetivo o trabalho teórico que visa verificar a validade formal da teoria. No entanto, longe de ter apenas esse objetivo, contrastando-a com o trabalho do epistemólogo, o autor afirma que a pesquisa acadêmica em psicanálise deve se dedicar também à “releitura” da teoria. Com essa noção aponta para a introdução do novo na referida teoria, por meio da multiplicação das possibilidades de sentido retiradas da clínica psicanalítica.
Lino da Silva (1993) reconhece o “objeto esquivo” da psicanálise (p. 21) e considera que, na
pesquisa como na clínica, deve-se esperar a emergência de novos significados, os quais seriam articulados em uma teoria que conferiria à psicanálise seu estatuto de cientificidade. Mezan (1993) procura saber o que significa a pesquisa em psicanálise. Também se referindo ao inconsciente, deriva da especificidade desse objeto as possibilidades de teorização em psicanálise.
Em suas reflexões sobre o uso do material clínico na pesquisa psicanalítica, Safra (1993) afirma que a maneira de garantir a objetividade dessa pesquisa está no controle exercido sobre a análise do próprio analista. Gondar (1995) sustenta que Freud, ao romper com a concepção tradicional de clínica, inaugura uma clínica de investigação, isto é, um espaço em que tratamento e cura são resultantes de procedimentos de investigação. Machado Pinto (1999) identifica a presença da transferência na base do processo de criação, mesmo na atividade científica. Ao analista caberia a demonstração da passagem da crença no saber
da ciência, implicada na transferência, para a evidência de uma ciência do singular. Uma discussão com as ciências empíricas é estabelecida por Palombini (1999), que igualmente reconhece um estatuto de conhecimento próprio à psicanálise. A mesma especificidade é defendida por Nobre (1999), que defende o fato de que a pesquisa em psicanálise não pode ser motivada pela vontade de saber e buscar dados exatos para a comprovação de hipóteses formuladas a priori, argumentando que a direção tomada por essa pesquisa é dada pela experiência que afeta o pesquisador ou pela qual ele se deixa afetar.
Procurando se deslocar dos confrontos diretos entre a psicanálise e a ciência cartesiana experimental, positivista ou neopositivista,Beividas (1999a) os reencontra ao se alinhar com essas ciências para interrogar o que considera um excesso transferencial e uma acentuada submissão às autoridades de Freud e Lacan na pesquisa psicanalítica. Seu trabalho foi contestado
por Elia (1999), que argumenta que a psicanálise não constitui um saber a mais entre outros que compõem as ciências da natureza ou da cultura. Segundo esse autor, ela encontra sua chance de produzir uma pesquisa frutífera e conseqüente justamente no reconhecimento de uma transferência simbólica, que a singulariza.
Beividas (1999b) discorda de Elia quando este afirma que a psicanálise não integra o campo científico, afirma que ela é uma ciência humana e reafirma que os excessos transferenciais devem ser combatidos para que ela faça parte do referido campo.
Usando o conceito de tipo ideal de Weber (1949), não seria exagero reconhecer, por um lado, uma típica produção norte-americana ou anglo-saxã que, conforme afirmamos, nutre-se do empirismo pragmático, e, por outro, uma produção nacional também típica, que, na última década, se dirige à questão da pesquisa psicanalítica.
As raízes dos procedimentos investigativos em psicanálise
A educação formal de Freud se dá em estreito contato com as pesquisas acadêmico-científicas de fins do século XIX. Ainda na escola de medicina, Freud se dedicava especialmente aos estudos de fisiologia, biologia e zoologia, recebendo, logo após o segundo ano, uma bolsa em zoologia para pesquisar a estrutura gonádica das enguias. Freud dissecou e examinou ao microscópio centenas de enguias; o artigo resultante dessas investigações foi lido na Academia de Ciências de Viena e, posteriormente, publicado em seu Boletim (Jones, 1980). Acreditamos estarem sendo lançadas aí as bases de um contato com o pensamento científico, que deixará marcas extremamente sensíveis na psicanálise, mesmo sabendo que ela não importa
diretamente as operações prescritas por tal pensamento. Freud prossegue sua pesquisa no Laboratório de Fisiologia da Universidade de Viena, dirigido por um professor “positivista por temperamento e convicção” (Gay, 1989, p. 48), cujas aulas são seguidas com muito afinco pelo interessado discípulo. Ele se chamava Ernst Brücke e fazia parte da Escola Médica de Helmholtz, um amplo movimento científico cuja história da participação no desenvolvimento da fisiologia no final do século XIX foi altamente considerada por suas contribuições ao desenvolvimento dessa disciplina.
Uma das características importantes desse movimento é retratada pelo juramento feito por seus integrantes, segundo o qual afirmavam que “nenhuma outra força, que não as físico-químicas, estaria ativa no organismo” (cf. Jones, 1980; Berchérie, 1983, p. 146). Tratava-se de um grupo que, baseado em um consenso fisicalista, sistematicamente interpretava os fenômenos orgânicos em termos de força, quantidade e movimento de moléculas.
Esses trabalhos são contemporâneos aos do médico Fechner, cujas teorias foram muito úteis a Freud, que recorreu a elas mesmo em textos tardios como “Mais além do princípio do Prazer” (1920/1996). O objetivo de Fechner era construir uma ciência fundada sobre a experimentação e sobre a medida, determinando as leis que ligam os “fenômenos físicos (psicofísica externa) e fisiológicos (psicofísica interna) aos fenômenos mentais, no sentido de uma relação regular e quantificável” (Bercherie, 1983, p. 144). Ele introduziu duas inovações conceituais importantes para o pensamento científico da época, em geral, e para a emergente disciplina psicológica, em particular. A primeira se constituiu na fonte da psicologia experimental moderna, sendo responsável pelos primeiros métodos de experimentação; a segunda foi a via por meio da qual se introduziu um “materialismo mecânico rigoroso em psicologia” (Berchérie, 1983, p.145) e se tornou possível quando o autor supôs que os fatos psíquicos seriam da mesma natureza que os físicos, podendo se exprimir em linguagem semelhante: a linguagem da quantidade, da medida e das leis matemáticas.
Da mesma maneira que na fisiologia do sistema nervoso, já estabelecida pela Escola de Helmholtz, na psicologia as noções de força e de uma energia nervosa circulante são tomadas como dado corrente, certamente presente nas concepções freudianas desde o princípio de suas formulações sobre o aparato psíquico, em 1895. Ainda, as concepções de prazer e desprazer utilizadas por Freud são exemplos de mecanismos psíquicos concebidos por Fechner, que os aproximava das leis de equilíbrio sistêmico em física.
Reconhecido e acolhido em um lugar genuinamente conquistado por seu esforço e por sua capacidade, a pergunta que naturalmente se coloca é: “Por que Freud não passa a ocupá-lo e segue a promissora carreira de pesquisador que se abria à sua passagem?”. Lacan (1975), em um fino comentário, diz que se ele não o ocupa, é porque tinha lá suas razões. Refere-se então à ousadia de Freud. Uma ousadia que o faz retirar-se das questões legítimas que eram colocadas por um mundo legítimo – acadêmico-científico de finais de século – e se debruçar sobre o que de importante se passava com ele, “suas antinomias de infância, seus problemas neuróticos, seus sonhos”. Passa a se dedicar às contingências da vida cotidiana: “a morte, a mulher, o pai” (Lacan, 1975, p. 8).
Um novo objeto requer novo entendimento
sobre a pesquisa Freud, ao deixar o Laboratório de Fisiologia, passa praticamente mais dez anos se dedicando às mais variadas formas de clínica. Começando pela enfermaria de medicina interna, trabalhou em psiquiatria, dermatologia, oftalmologia e otologia, sempre interessado nas incidências neurológicas das várias afecções estudadas. Na enfermaria de dermatologia, por exemplo, procurava estudar os pacientes da seção de sífilis em razão de sua conexão com as patologias do sistema nervoso. Ao mesmo tempo, tomava parte em um grande número de pesquisas, principalmente sobre o sistema nervoso central, em particular sobre a medula, tendo recebido um título de certa importância na
docência de neuropatologia.
É quando escreve seu estudo sobre a afasia (Freud, 1891/1987), no qual faz críticas às várias teorias sobre o funcionamento do cérebro, mais especialmente a seu antigo mestre Meynert, e demonstra que a doutrina que considerava o córtex cerebral uma “projeção” das várias partes do corpo estava baseada em erros de histologia anatômica. Caso houvesse projeção, Freud conclui, esta se daria em termos funcionais, e não topográficos. Ao mesmo tempo, e não sem certa surpresa, podemos constatar que a defesa de um ponto de vista psicológico está presente também na crítica feita ao próprio Charcot (Freud, 1893/1996b). Nela, Freud mostra que o approach “exclusivamente nosográfico adotado pela Escola de Salpêtrière não era adequado para o objeto puramente psicológico” (p. 22).
Charcot havia tido um papel muito importante ao reconhecer na histeria um quadro clínico com contornos próprios, que mereceriam atenção não só do médico, mas também dos teóricos de medicina. Como é sabido, até então a histeria era vista com descrédito; não só a histeria como aqueles que se empenhavam em seu tratamento. Charcot foi quem trouxe à cena a objetividade e a qualidade genuína do fenômeno histérico, um fenômeno que ultrapassava o conhecimento consciente imediato do paciente. Trata-se de um estado em que a lembrança pode estar presente sem que o eu tome conhecimento dela ou possa intervir sobre ela. Como vemos, desde a época em que Freud formula essa diferença de estados já estão presentes todas as bases para a constituição do conceito de inconsciente, mesmo que o termo ou a noção ainda não houvessem sido estabelecidos. Trata-se de afetos que agem sobre o sujeito sem que ele tenha conhecimento deles e, no entanto, se nos aproximamos de sua história, encontramos algo que os justifica: o trauma. Ou seja, há uma quebra na cadeia associativa que não permite que os processos mentais entrem em contato com tais afetos, de forma que o paciente fica à mercê deles, sem ter ascendência sobre eles, sem poderdominá-los ou sequer entendê-los.
É necessário ressaltar que o método ou as
técnicas de pesquisa nos quais Freud havia se formado e sobre os quais havia mostrado excelente habilidade de manejo não poderiam mais ser-lhe úteis. Trata-se agora de desenvolver os meios para lidar com um objeto, o inconsciente, que se apreende por seus efeitos de estranheza sobre o discurso do sujeito, discurso esse que se dá na e por causa da relação que mantém com o analista.
Além disso, há na questão do objeto, assim
formulada, um ponto que a complexifica e introduz
uma nova problemática. Se no caso das ciências médicas, por exemplo em uma investigação histológica como as conduzidas por Freud, tratava-se quase sempre de aplicar um método de investigação a um objeto já delimitado, o mesmo não se passa com o novo saber que surge. O inconsciente se constitui, se faz presente no ato mesmo da escuta do analista, no momento mesmo da presença do analista junto a quem fala.
A especificidade é dada pelo fato de, ao se constituir, ao se elaborar o objeto, ao se dar a ele certa consistência e divisar-lhe o modo de operação, é nesse mesmo movimento que se concebe o método de pesquisá-lo.
Trata-se de um objeto que só pode ser apreendido no campo da práxis analítica, tornando necessário um novo entendimento sobre a pesquisa nesse campo.
Os procedimentos da pesquisa psicanalítica
Tendo em vista a característica do objeto psicanalítico de se deixar circunscrever apenas em análise, decorre que o procedimento de pesquisa tem na clínica o seu ponto de apoio principal. É na referência ao material clínico que a pesquisa ganha seu colorido, sua vivacidade e, acima de tudo, sua originalidade em relação às pesquisas desenvolvidas em outros campos.
Um fator importante contribui para que, decisivamente, a pesquisa psicanalítica se afirme em sua particularidade. Uma vez que a clínica desempenha um papel tão decisivo na pesquisa, o analista é aí objeto tanto quanto o analisante e as produções inconscientes que emergem na cena analítica.
A conseqüência mais imediata é que o pesquisador não é apenas uma variável a ser controlada, pois fala de determinado lugar e, com sua fala, é causa do que emerge na sessão. A pesquisa nessa área é sempre nutrida pela clínica e, especialmente, pela singularidade de cada caso
clínico. Este comporta todo o procedimento analítico e é inteiramente dependente da transferência (da relação analista-analisante), que permite a emergência do inconsciente. Por sua vez, a singularidade do caso clínico que se constituirá no material de análise, justamente por sua singularidade, passa a exigir constante atualização.
Por não se tratar de um procedimento empirista, contudo, não se pode atribuir exclusivamente ao contato com o discurso do paciente, com a clínica, a possibilidade da conceituação psicanalítica. Como Freud (1905/1996b) afirmou em relação a seu estudo sobre a sexualidade infantil, “se os homens pudessem ter aprendido com a observação direta das crianças, estes três ensaios poderiam não ter sido escritos” (p. 120).
Com isso, chama a atenção para o fato de que, a par da observação ou do momento de análise, é preciso que o analista faça um trabalho que lhe permita formar um juízo, tanto quanto possível “não influenciado por suas aversões e seus preconceitos” (Freud, 1905/1996b, p. 120).
O que estamos considerando o trabalho do
analista inclui o que vemos ser a preocupação de Freud com a busca de formulações teóricas mais claras e precisas. Ele argumenta que se toda ciência reclama para si a construção de conceitos básicos sobre os quais se erige, em nenhuma delas, nem mesmo nas mais exatas, parte-se de definições já prontas.
A presença de toda a formação científica de Freud se faz notar na preocupação com a exatidão, com a não-contradição no conhecimento e na demonstração dos conceitos com os quais se pretende lidar. Por outro lado, é o próprio saber psicanalítico que confronta Freud (1915/1996) com o reconhecimento de que “o progresso do conhecimento não tolera qualquer rigidez, tampouco nas definições” (p. 113). Há momentos em que é preciso recorrer à especulação, sem o apoio da qual, precário que seja, não seria possível continuar. É por meio dela, muitas vezes, que se cumpre a árdua tarefa de construir a parte que falta para orientar a observação e dela tirar as lições necessárias ao estabelecimento de uma teoria (Freud, 1937/1996, p. 228).
Considerações finais: a pesquisa psicanalítica na atualidade
Os argumentos desenvolvidos levam-nos a
concluir que, na posição de pesquisadores em psicanálise nos dias atuais, colocamo-nos como herdeiros de um século de procedimentos investigativos que se seguiram aos de Freud. Se vemos a maneira como Freud opera e estabelece o saber psicanalítico, sabemos também que não nos encontramos nas mesmas condições que ele.
Muito da teoria se estabeleceu nesse período, e ela é um dos pontos de apoio fundamentais com o qual contamos para dar continuidade à tarefa de manter a psicanálise.
Manter a psicanálise, é importante esclarecer, não é deixá-la empedernida e estática, mas sim, antes de tudo, manter o vigor que Freud soube lhe imprimir, o vigor que foi capaz de fundar um novo campo, inaugurar uma nova forma de pensar, levando em conta um objeto que não se faz presente a não ser por seus efeitos no discurso de um sujeito. Manter a psicanálise tampouco é fazê-la emular os procedimentos das ciências naturais, desconhecendo a especificidade de seu objeto.
A consulta aos trabalhos escritos, nesse momento, é crucial para que se reescreva dado conceito ou se acompanhem suas formulações com vistas a julgar sua pertinência ou sua mais rigorosa aproximação das questões, surgidas da clínica, com as quais o analista estará lidando. Esse procedimento de investigação que lida com a trama conceitual muitas vezes é confundido com toda a pesquisa psicanalítica; é quando a produção psicanalítica é tomada (não sem uma certa má-fé por parte daqueles que assim a consideram) por uma extensa revisão bibliográfica.
Trata-se, ao contrário, do trabalho da análise já em seu desenvolvimento. Trata-se de entrar em contato com a história das elaborações prévias já realizadas em psicanálise e de, justamente, não reconhecer nelas uma massa de informações prontas e definitivas. Não se trata, portanto, de fazer de seu objeto, cuja especificidade insistimos em demonstrar, algo passível de apreensão pelas técnicas e pelos métodos de pesquisa de outras áreas de saber. É importante que se possam fazer perguntas aos textos. Examiná-los para saber seu alcance quanto às questões que lhe são formuladas. É importante, ainda, o exame da construção dos conceitos e do lugar que ocupam em um arcabouço teórico: por que surgem, quais as démarches lógicas no desenvolvimento da teoria analítica que fazem com que se tornem necessários. É importante acompanhar, observar que o conceito não se constrói de forma arbitrária, mas surge no movimento de vai-e-vem dos textos às situações clínicas e delas de volta aos textos, e
só se torna possível por referência à presença do analista diante do analisante. É preciso restabelecer, reencontrar no procedimento da pesquisa analítica todo o rigor que Freud trouxe a ela, assim como manter viva a audácia de não se deixar apreender nas malhas de um conhecimento já mapeado. É necessário fazer valer sua descoberta de um cotidiano aparentemente simples e prosaico, feito de sonhos, lapsos, sustos e angústia.
Cotidiano que não se deixa apreender, a não ser pela psicanálise dessas formações apresentadas pelo inconsciente, que nesse século provaram ser a matéria prima tanto da investigação psicanalítica quanto da realidade que constitui o sujeito.
Unidade 1 Aula 3
As "Tópicas"
Primeira tópica
Uma das principais preocupações teóricas de Freud era tentar fornecer um modelo que pudesse ser usado como base para a explicação dos casos clínicos com o qual se deparava. A partir de seus estudos sobre hipnose, interpretação de sonhos e o papel da associação livre na clínica das neuroses, houve a necessidade de postularuma porção inconsciente do psiquismo e buscar compreender como esta parte do aparelho psíquico se relacionaria com a nossa experiência consciente. A primeira tentativa de formulação de um modelo do aparelho psíquico data de 1900, quando publicou sua obra, A Interpretação dos Sonhos.
O caminho encontrado por Freud em um primeiro momento foi o de postular um modelo que dividira o aparelho psíquico em três instâncias, ou topos (lugar em grego -, daí o nome tópica): Inconsciente, Pré-Consciente e Consciente.
O pré-consciente não é um meio-termo entre o Inconsciente e o Consciente.
O Consciente seria o lugar da consciência, da percepção e da integração entre o que se passa na realidade externa ao sujeito (percepção, atenção) e o que ocorre em seu mundo interno (lembranças, raciocínio, etc.). Na consciência os conteúdos de nossa experiência organizam-se em uma determinada ordem temporal, sequencialmente (passado, presente e futuro em um fluxo unidirecional), ou simultaneamente (no caso de eventos que ocorrem concomitantemente).
O Pré-Consciente, por sua vez, é o lugar de tudo que não está presente na consciência em um determinado momento, mas que pode se tornar consciente a qualquer momento pela ação de um processo consciente. Por exemplo, quando nos perguntam sobre um evento passado do qual não nos lembrávamos, mas que somos capazes de recuperar por um esforço de memória.
O Inconsciente por sua vez, é o lugar dos conteúdos que por sua natureza são, ou por alguma razão se tornaram inacessíveis à consciência. O inconsciente não estaria sujeito aos mesmos processos de ordenamento temporal das experiências como os processos conscientes, poderíamos dizer em certo sentido que o inconsciente é atemporal. Por exemplo, a lembrança de um determinado evento traumático pode se tornar inacessível à consciência, e ainda assim gerar uma marca atemporal em nosso inconsciente tornando-a insuperável.
Segunda tópica
A segunda tópica também é tripartite, mas sugere outros topos, o Id, Ego e Super Ego (na verdade esses nomes são traduções para o latim dos termos usados por Freud em alemão, que traduzidos para o português seriam equivalentes, aproximadamente, a Isso, Eu e Além do Eu). Estas três instâncias psíquicas, seriam regidas por leis distintas e surgem em momentos diferentes da vida.
A mais primitiva de todas é o Id, que seria regido pelo que Freud chama de princípio do prazer. O Id é essencialmente a fonte do desejo, e opera a nível inconsciente. O princípio do prazer não conhece mediações, ele pede pela satisfação imediata do desejo.
Obviamente nem sempre isso é possível, na realidade as satisfações de nossas necessidades e impulsos precisam ser adiadas, moduladas, reformuladas, para que possam ser atendidas. A esta necessidade, Freud chama princípio da realidade.
É da confrontação com esta realidade, que cerceia a realização plena e imediata do desejo, que surge o Ego. Uma instância do aparelho psíquico que procura tornar as demandas do Id realizáveis, ainda que reformuladas, adaptadas e adiadas. O Ego, é o lugar da consciência.
Muito cedo nós descobrimos um aspecto nesta realidade que nos resiste que é muito peculiar. Para além das impossibilidades físicas da realização de certos desejos (não nos podermos nos alimentar porque não há alimento disponível, por exemplo), há impossibilidades sociais de realização dos desejos (há alimento disponível, mas o adulto impede o acesso a ele, pois "ainda não está na hora de mamar", por exemplo). O confronto com este tipo de freio ao desejo, leva ao surgimento da terceira instância do aparelho psíquico: o Super Ego.
O Super Ego é o lugar da internalização das normas morais do grupo ao qual o sujeito pertence, e normalmente sofre grande influência da vivência do sujeito com seus primeiros cuidadores (usualmente, mas não necessariamente os pais). Em especial, Freud destaca o lugar do pai (ou da "figura paterna") na constituição do Super Ego. Este destaque se deve ao bloqueio, observado por ele em sua clínica, que os pais exerciam sobre o acesso incondicional das crianças pequenas àquele que era o seu objeto de desejo primordial mais intenso, qual seja, suas mães (ou às "figuras maternas", aquelas que provêm alimentação, cuidado, acolhimento).
Diferente do que poderia parecer a um olhar superficial, estes processos de internalização de imperativos morais, e construção de ideais de eu, não são processos conscientes, pelo contrário, o Super Ego é uma instância inconsciente do aparelho psíquico. Não se trata aqui da elaboração consciente e reflexiva de regras de conduta, mas da adesão irrefletida e pré-racional a um conjunto de valores axiomáticos. É possível, e comum, que haja coincidência entre estes dois conjuntos de processos, mas isso não é uma relação necessária que se estabeleça entre eles.
A emergência do Super Ego, por sua vez, gera mais uma camada de atividade para as estruturas do Ego, que agora, além de precisar mediar as demandas do Id frente aos apelos da realidade física, também o precisa fazer ante os imperativos de ordem moral (e portanto social) do Super Ego. Do mesmo modo, o Ego também precisa "negociar" com o Super Ego, maneiras de conseguir realizar os desejos e necessidades de uma maneira que seja socialmente aceitável. Daí proviriam coisas como regras de etiqueta, toilette, e de corte sexual, por exemplo.
Por último, é importante esclarecer que apesar do Ego ser o lugar dos processos conscientes, ele não é uma instância completamente consciente. Há aspectos e estruturas do Ego que permanecem inconscientes. Talvez o exemplo mais intuitivo disso, seja o que se chama de "mecanismo de defesa", ferramentas do Ego para lidar com as pressões do Id e do Super Ego. Tomemos o mecanismo da racionalização para explorar este ponto. Na racionalização o sujeito esmera-se na construção de uma justificativa racional para atender a finalidades inconscientes (as quais o próprio sujeito não é capaz de reconhecer e admitir para si mesmo): por exemplo, argumentos racionais que justificam os impulsos agressivos, como em declarações de guerra, ou mesmo em episódios onde pequenas agressões acabam servindo como via velada para o alívio de frustrações vividas no nosso cotidiano.
Vídeo complementar
AP1
- Conteúdo: aulas 1 a 4
- 5 objetivas (1,0 cada) e 2 discursivas (2,5 cada)
- Discursivas: fases de desenvolvimento psico-sexual e mal estar, sublimação e civilização. 
Observações acerca das aulas da unidade 1
-Para Freud o ser humano é um ser social e seu desenvolvimento se dá através da interação com o outro. 
-Conceitos básicos: 
*Divisões do aparelho psíquico: inconsciente, pré consciente e consciente.
Subconsciente não é um conceito atribuído a Freud.
Freud propõe a segunda tópica: id, ego e super ego.
Aula 4
Fases do desenvolvimento psicossexual
Freud via o aparelho psíquico como algo sujeito à transformação, que a partir de sua estrutura mais primitiva, o Id, vai se diferenciando nas demais instâncias e se tornando cada vez mais complexo.
O desenvolvimento do psiquismo, de acordo com Freud, deve ser entendido como a história das transformações pelas quais passam o nosso desejo, pelas transformações que a nossa libido (a "energia" que alimenta nosso psiquismo) sofre ao se defrontar com os diferentes desafios impostos pela realidade física e social que nos circunda.
Fase Oral
Devido a uma série de fatores, dentre eles a própria maturação biológica do nosso corpo, o primeiro foco de nossa libido são as nossas necessidades de nutrição, satisfeitas normalmente através de nossa boca através do aleitamento. Neste momento de vida há, portanto, a erotização (isto é, a concentração de nossa energia libidinal) da região bucal.
É por esta razão que Freud vai chamar esta primeira fase do desenvolvimento de fase oral, pois a boca é o epicentro somático do nosso investimento libidinal. Por outro lado, é preciso salientar que o seio materno também se reveste de um papel importante nesta fase, pois é ele a fonte primária da alimentação e de satisfação do bebê. O principal objeto do desejonesta etapa é o seio materno, fonte de nutrição, conforto e prazer, ao qual o Id demanda acesso imediato assim que a fome surge.
Neste momento da vida, ainda não existe uma clara consciência ou diferenciação do eu em relação ao mundo e aos objetos que cercam o bebê. Portanto é algo impreciso nos referirmos ao seio materno como um objeto visado pelo bebê. Do ponto de vista do lactante, o seio é visto como uma prolongação do próprio corpo, assim como todos os seus dados da experiência (isto é, não há uma clara distinção entre o eu que percebe e o objeto percebido, estando ambos de certa maneira fundidos na experiência, e só aos poucos se diferenciando). Esta indiferenciação primária entre eu e mundo (com destaque para a mãe) recebe em psicanálise o nome de narcisismo.
Fase Anal
Conforme o corpo e o parelho psíquico vão amadurecendo e novas possibilidades de interação com o mundo e conosco mesmo vão surgindo, nossa libido pode procurar satisfação na realização de outras atividades para além da região da boca. Neste sentido, uma das principais conquistas deste período é a possibilidade do controle consciente dos esfíncteres, isto é, o controle sobre as excreções. Nas sociedades ocidentais modernas este período tem uma grande importância, é o momento do desfralde do bebê.
Apesar de poder parecer uma conquista pequena do ponto de vista adulto, o desfralde representa uma grande conquista para o bebê, que ganha controle sobre partes do seu corpo até então “arredias”. Consequentemente este controle traz consigo um novo patamar de independência do bebê em relação ao adulto, e também em relação às próprias demandas imediatas de satisfação das necessidades excretoras, uma vez que pode adiá-las de acordo com sua vontade (ao menos parcialmente). Este controle consciente crescente sobre as diversas funções corporais marcaria um momento de grande estruturação e fortalecimento do Ego.
O controle dos esfíncteres não tem valor apenas do ponto de vista do autocontrole que a criança passa a ter sobre seu corpo, mas ele também significa um momento de trocas significativas com os adultos. Os cuidadores tendem a valorizar essa conquista, elogiando e premiando os sucessos nesta direção e por vezes admoestando e punindo a criança em momentos de fracasso deste domínio sobre o corpo próprio. As crianças por sua vez podem se apropriar destas reações do adulto e também usar o controle/descontrole das excreções como forma de agradar/punir o adulto.
Uma outra grande conquista que tem lugar nesta fase é o desenvolvimento da função simbólica, isto é, do domínio da representação linguística, da fala.
Ambas as conquistas são condições importantes para rompimento com o narcisismo inicial da fase oral. Agora entre o sujeito e o mundo existem diferenciações e mediadores de ordens muito distintas: as excreções e as palavras mediam a relação do bebê com o mundo, e em especial com os cuidadores.
Fase Fálica
A próxima fase estudada por Freud recebe o nome de fálica. Fálico é um adjetivo que se refere ao falo, ou, em um linguajar mais acessível, o pênis. Nesta fase, em que a criança já é capaz de diferenciar-se do outro em alguma medida, uma nova descoberta se impõe com uma força avassaladora: a diferença entre os sexos. É nesta etapa que a distinção entre meninos e meninas, homens e mulheres se torna importante para a criança.
É ao diferenciar-se da mãe, que a criança também pode estabelecer uma série de outras diferenciações, a mais importante entre a figura materna e a paterna e a partir daí se identificar com uma delas. Até então, a criança não concederia importância especial a sua genitália, que só assume valor quando passa a funcionar de índice para sua identificação e diferenciação em relação aos genitores. (Neste ponto é bom lembrar que Freud está pensando em uma família burguesa tradicional de uma sociedade judaico-cristã europeia, da qual ele mesmo provém e a totalidade de seus pacientes).
Mas qual o papel desempenhado pelo pênis nesse processo? Não devemos olhar para esta fase com os nossos olhos de adulto. A erotização da genitália neste momento não é a mesma que ocorre na fase adulta. Para a criança a presença do pênis seria apenas o índice de pertença ao sexo masculino. Já a sua ausência representaria a pertença ao sexo feminino. Para Freud, teríamos então a feminilidade, vista pelos olhos da criança nesta fase, como o “negativo” da masculinidade. Para usar termos mais técnicos, apenas o pênis teria positividade, vagina seria entendida como uma castração do pênis.
A descoberta tanto do pênis, como da possibilidade da sua perda (a castração), levariam a criança a desenvolver uma série de fantasias em torno deste novo foco do investimento libidinal, e ao desenvolvimento assimétrico dos sexos. Os meninos por possuírem um pênis e as meninas por não o possuírem teriam suas linhas de evolução psicológica diferenciadas a partir daí.
Apesar de partirem de um mesmo ponto comum, o desejo de serem amados pela mãe, meninos e meninas se veem em condições diferentes para alcançar esse objetivo. Ambos entendem que tem por maior rival na conquista do amor materno, a figura paterna, que compete por esse amor. Os meninos podem identificar-se com ele, uma vez que ambos possuem um pênis. As meninas, por sua vez estariam mais identificadas com a mãe, por serem ambas “castradas”.
Para os meninos duas possibilidades antagônicas se abrem: por um lado eles poderiam se entender como postulantes legítimos ao amor materno, pois eles possuem aquilo que o atual detentor deste amor, o pai, possui, o pênis. Por outro lado, a possibilidade de perder o pênis, ser castrado, também se torna uma angústia. O medo de perder o pênis, pela intervenção paterna no embate pelo amor da mãe, recebe o nome de angústia de castração.
As meninas se veriam na situação oposta, elas já seriam castradas, elas já perderam o pênis, e veriam nisso uma prova de “desamor” da mãe por elas – uma vez que as fez assim – e incapazes de competir com o pai pelo amor da mãe. Assim elas deslocariam a disputa pelo amor materno para a obtenção do amor paterno. Ter o amor do pai, seria a via para que as meninas pudessem ter um falo, e assim conseguir, por vicariância, o amor da mãe. O desejo da menina por possuir um falo para poder competir em melhores condições pelo amor da mãe recebe o nome de inveja do pênis.
Estas duas dinâmicas da fase fálica no menino e na menina são conhecidas por vezes pelo o nome de Complexo de Édipo e Complexo de Electra, respectivamente. Derivando seus nomes de personagens da mitologia grega que tiveram sua história marcada pela rivalidade (muitas vezes desconhecida a nível consciente, mas nem por isso menos real) com os genitores do mesmo gênero.
Apesar disso, a terminologia empregada por Freud não incluía menção à figura de Electra, ele se referia à vivência feminina da rivalidade como Complexo de Édipo Feminino, ou Complexo de Édipo Negativo. O termo Complexo de Electra foi cunhado por Jung. Freud mantém o nome de Édipo nos dois casos por querer evidenciar que os processos possuem analogias estruturais em termos da constituição do psiquismo.
A substituição da relação diádica (criança-mãe) pela triádica (criança-pai-mãe) possibilitada pela diferenciação dos gêneros, é o caminho para o desenvolvimento e fortalecimento do Super Ego, ou seja, da instância moral no psiquismo. Em outras palavras, é só a partir de então, que o psiquismo realmente passaria a estar inserido na sociedade, ao reconhecer regras que ultrapassam a sua experiência imediata e que representam um freio ao desejo que vai além da impossibilidade física para sua realização.
Período de Latência
A fase seguinte é conhecida como fase de latência, e é marcada por uma certa “suspensão” do drama edípico e adormecimento da sexualidade em termos de zonas erógenas corpóreas (daí o nome latência). Para Freud a resolução do Complexo de Édipo de maneira saudável levaria à identificação da criança com o genitor do mesmo gênero, e a um apaziguamento do desejo pelo amor materno a partir da assunção da impossibilidadede sua realização efetiva pela interferência da figura paterna, e da interdição psíquica e social do incesto decorrente.
A libido descolada da possibilidade de investimento bem-sucedido nas zonas erógenas do próprio corpo, seria deslocada para outras formas de obtenção de prazer, como o investimento intelectual na idade escolar que traria consigo tanto a satisfação das curiosidades infantis, quanto o reconhecimento dos pais e mestres do empenho da criança.
Fase Genital
A última fase do desenvolvimento psicossexual descrita por Freud recebe o nome de fase genital, e ela tem como marco de seu início a puberdade e as transformações somáticas e sociais que esta etapa da vida trás. A maturação sexual e as novas cargas hormonais “despertam” a sexualidade que havia permanecido latente e podem reacender os dramas edípicos que permaneciam adormecidos, dando a eles novos desfechos.
Já identificado com um de seus genitores, e já na plenitude do desenvolvimento das características sexuais do seu gênero desenvolvidas, na fase genital encontramos uma novidade em relação às demais fases anteriores à latência, pois nesta fase o investimento libidinal já não é mais focado em zonas erógenas do próprio corpo, mas volta-se para o exterior. A satisfação sexual se dá por via genital, é verdade, mas a genitália é agora entendida como um meio, o fim é externo, o fim é o outro.
Teríamos nesta fase a possibilidade parcial de realização das fantasias edípicas, não mais focados exatamente nos genitores, mas em “substitutos” não interditos a eles. Ou seja, haveria uma tendência típica nesta fase de procurarmos pares que possuíssem alguma semelhança significativa com o nosso genitor com o qual não nos identificamos.
Artigo
AS TEORIAS SEXUAIS INFANTIS NA ATUALIDADE: ALGUMAS REFLEXÕES 
Silvia Maria Abu-Jamra Zornig
A sexualidade das crianças é um tema difícil de ser abordado, pois apesar de Freud ter chocado a sociedade vienense cem anos atrás, ao propor a idéia de uma infância que se afastava da tradicional noção de pureza e de felicidade ímpar, trazendo à tona uma criança dotada de afetos, desejo e conflitos, ainda hoje temos dificuldade em aceitar a sexualidade infantil proposta pelo fundador da psicanálise.
Em nossa cultura denominada pós-moderna, as crianças se vestem como adultos, têm agenda de
executivos e são impelidas a adotar um modelo sexual que muitas vezes ultrapassa sua compreensão.
Ao escrever Sobre o narcisismo: uma introdução, em 1914, Freud alerta para a face narcísica do amor parental: procuramos resgatar, através dos nossos filhos, a nossa infância perdida, nossos sonhos e ideais. Sua Majestade, o Bebê, nada mais é do que o bebê que outrora fomos ou que gostaríamos de ter sido. E se é fundamental este investimento dos pais em seu filho para que este cresça e se desenvolva, por outro, um amor parental que desconsidere a singularidade da criança e sua visão de mundo pode ter como resultado “pequenos adultos”, precoces, mas desconfortáveis em um papel que ultrapassa sua possibilidade emocional.
FREUD E A SEXUALIDADE INFANTIL
A sexualidade proposta por Freud é uma sexualidade ampliada e radicalmente diferente da
concepção naturalista predominante no final do século XIX, quando a normalidade sexual era definida pela sexualidade adulta e a consumação do ato sexual referida a fins de reprodução. A masturbação infantil, a simples busca do prazer sexual, ou ainda a impossibilidade do ato sexual (como em alguns casos de impotência) eram consideradas condutas anormais (perversas) ou sinais de degenerescência.
Freud (1905/1976a) propõe a idéia de uma sexualidade que surgiria desde os primórdios da constituição do psiquismo e seria radicalmente diferente da então aceita noção de instinto sexual.
se a sexualidade se inicia com a anatomia (no nascimento), sua conquista depende de um longo percurso durante a construção da subjetividade da criança.
Ao indicar o pluralismo dos componentes da sexualidade infantil, Freud se afasta da moral repressora de sua época, que só aceitava uma sexualidade baseada no instinto, o qual surgiria a partir da puberdade e teria como finalidade a reprodução. O autor denomina a sexualidade das crianças de perverso-polimorfa, por se afastar do modelo genital de relação sexual, procurando formas de prazer derivadas de qualquer área ou órgão do corpo. O auto-erotismo infantil é destacado justamente pelo fato de que na infância a sexualidade é autoerótica, sendo o corpo da criança o único meio de obter gratificação em circunstâncias normais.
O autor toma como exemplo a amamentação do recém-nascido, sugerindo que a nutrição, a necessidade biológica de ser alimentado, não parece ser o único objetivo do bebê ao mamar.
Poderíamos acrescentar que o bebê procura se nutrir não só do leite materno (necessidade orgânica), mas de uma relação afetiva que não se reduz à satisfação alimentar, apesar de se apoiar nela. Freud vai utilizar o termo apoio para demonstrar que se a sexualidade se apóia em uma função de conservação da vida, vai se destacar dela ao buscar uma satisfação que excede esta função instintiva.
Como indica Garcia-Roza (1988), o objeto do instinto é o alimento, enquanto o objeto da libido é o seio materno – um objeto que é externo ao corpo. Para Freud (1905), quando este objeto é abandonado e o bebê começa a fantasiar o seio, sugando seu próprio polegar, tem início o auto-erotismo e podemos falar de uma sexualidade que se desvia do instinto.
Autores como Stern (1992) e Cyrulnik (1999) indicam que o bebê possui, desde o nascimento, competências e capacidades que lhe permitem uma intensa forma de comunicação não verbal intensa, que procura discriminar experiências a partir de um sistema de percepções e sensações vivenciadas em seu mundo relacional.
O bebê, ao ser amamentado, procura também satisfazer suas necessidades emocionais ao entrar em contato com a pele da mãe, ouvir sua voz, sentir seu olhar, ser acariciado por ela. Ou seja, uma simples amamentação permite uma intensa troca afetiva, possibilitando que mãe e bebê sejam afetados um pelo outro e iniciem uma relação afetiva e sexual. Sexual no sentido amplo, pois a mãe (ou quem exerce esta função) ao mesmo tempo em que cuida de seu filho, erotiza seu corpo.
Este corpo é erotizado justamente por não ser apenas um pedaço de carne para os pais, mas sim, um corpo simbólico, investido de afeto e de palavras que vão marcar o bebê e lhe dar um lugar fundamental na estrutura familiar. Por este motivo, os bebês e as crianças pequenas em sofrimento demonstram seu mal-estar com sintomas físicos, através de um sintoma no corpo - de um corpo que fala, antes do advento da linguagem verbal.
A IMAGEM INCONSCIENTE DO CORPO E AS ETAPAS DO DESENVOLVIMENTO PSICOSSEXUAL
Para Freud e para os psicanalistas em geral, o corpo, além de sua dimensão biológica, é um corpo simbólico. Simbólico no sentido de que a imagem que cada um tem de si é construída na relação com os adultos que ocupam a função de pais. O narcisismo primário postulado por Freud (1914/1976c) é instituído através do investimento narcísico parental que antecipa um sujeito e um lugar para o bebê antes mesmo de seu nascimento.
Por exemplo, no trabalho em unidades intensivas neonatais com bebês prematuros e suas famílias, pudemos observar como alguns pais conseguem não só olhar o bebê na incubadora, lutando contra a morte, mas ir além, atribuindo-lhe traços de identificação a familiares.
Estes comentários, que parecem totalmente desprovidos de sentido ao serem atribuídos a bebês de 900 gramas, pouco responsivos, no entanto,
mostram uma amarração simbólica entre o bebê e seus pais que conseguem atribuir àquele bebê sentimentos e características muito além de suas reais possibilidades.
Se estas atribuições são pertinentes ou não, pouco importa. O importante é que aquele bebê não é olhado como uma massa de carne de baixo peso, mas reconhecido como um sujeito com um lugar insubstituível na cadeia transgeracional daquela família.
Françoise Dolto (1992), psicanalista francesa que
se dedicou à clínica com crianças,oferece uma contribuição importante ao postular a noção da imagem inconsciente do corpo como a representação fantasmática do corpo que se constitui a partir da relação afetiva da criança com seus cuidadores fundamentais. A autora decompõe a palavra IMAGE, para mostra que I vem de imagem, de espelho, MA se relaciona a mamãe, pois é através desta relação especular com a mãe que o bebê constrói uma primeira representação de si mesmo, e GE se associa a Eu (Je em francês), ressaltando a idéia de um Eu que
se constitui nas trocas afetivas entre a criança e seus pais. Esta relação humaniza a criança, por ser repleta de palavras que dão sentido e significado a suas vivências, muitas vezes desorganizadas. Dolto (1992) demonstra como o esquema corporal, que é inerente à espécie, pode não corresponder à imagem inconsciente do corpo, que é construída na relação afetiva. Assim,
uma criança que tenha um esquema corporal saudável pode ter uma imagem inconsciente do corpo perturbada se suas relações com as pessoas que cuidam dela se restringirem à manutenção de suas necessidades, não sendo acompanhadas de trocas afetivas que a introduzam numa relação simbólica.
As etapas de desenvolvimento libidinal (oral, anal e fálica) propostas por Freud (1908/1976b, 1923/1976d) têm que ser pensadas não só como privilegiadoras de zonas erógenas do corpo em um determinado momento do desenvolvimento global da criança, mas também como inscrições que se fazem no psiquismo a partir das relações estabelecidas entre a criança e os adultos que ocupam a função de pais. É preciso que uma mãe dê a seu bebê uma dimensão subjetiva, um estatuto singular para que ele possa se reconhecer, além de um corpo biológico, orgânico, como um sujeito dotado de importância para o outro. Assim, narcisismo implica na possibilidade de amar e reconhecer um corpo que foi investido e erotizado por um outro na infância e talvez este seja um dos motivos de, em nossa cultura, darmos tanto valor ao olhar: olhar como reconhecimento de nós mesmos, olhar como suporte de nosso eu, mas olhar também como “mau-olhado”, como destruição, como perseguição.
Na primeira infância, o olhar e a voz são elementos privilegiados na organização do psiquismo infantil. O olhar, por ter esta dimensão de unificar o corpo do bebê, humanizando-o; a voz, por ser um referencial simbólico que dá à criança um lugar e inicia uma narrativa que mais tarde a criança vai resgatar e modificar. Assim, na fase oral, a boca se constitui não somente em um órgão privilegiado de satisfação, mas principalmente em um tipo de relação entre o bebê e a mãe. Ao mamar o bebê se nutre do leite para satisfazer uma necessidade orgânica, mas principalmente para se alimentar do olhar, da voz, do amor da mãe.
Autores pós-freudianos como Karl Abraham e Melanie Klein deram grande importância a esta etapa primitiva da relação, enfatizando as fantasias do bebê em relação ao seio materno – de poder devorá-lo, destruindo-o, e em contrapartida, ter medo de ser devorado pela mãe.
Ao analisarmos desenhos infantis é comum encontrarmos desenhos de tubarões com grandes
dentes, bocas enormes, monstros, etc. Os contos de fadas também ressaltam esta dimensão de oralidade que aponta para sua vertente sexual e de destruição entre comer/ser comido pelo outro, como em Chapeuzinho Vermelho, Pinocchio e outros. Mesmo se não concordarmos com a interpretação kleiniana de atribuir fantasias tão sofisticadas a crianças tão pequenas, a clínica com bebês demonstra como os distúrbios de alimentação se relacionam a dificuldades nas relações precoces. A fase oral demonstra a equivalência entre alimento e amor materno, mas também a angústia entre existir e ser aniquilado, justamente por ser uma etapa na qual a criança ainda é muito dependente de seus pais ou cuidadores, sentindo os efeitos desta privação ou de distúrbios nesta relação através de seu corpo, muitas vezes de maneira grave e radical.
Renée Spitz (1945), pioneiro na observação de bebês, logo após a Segunda Guerra Mundial observou bebês separados de seus pais (órfãos ou abandonados) e deixados em abrigos ou hospitais onde eram cuidadas fisicamente, mas recebiam pouco afeto ou atenção de forma constante. O autor mostra os efeitos devastadores da falta de atenção qualitativa aos bebês, descrevendo a síndrome do “hospitalismo”, na qual o bebê gradualmente perde o interesse pelo meio que o cerca, torna-se apático, sem tonicidade motora, podendo deixar de se alimentar, e em casos extremos de privação materna, até mesmo morrer. Este exemplo demonstra como um bebê pode abandonar seu desejo de viver, pode se fechar ao mundo, se os cuidados que lhe são prestados só tiverem como objetivo sua sobrevivência, e não se situarem na dialética do desejo e da demanda, se a nutrição não for investida de amor e atenção.
Ao cuidar de seu corpo, a criança está internalizando a função maternante de seus pais. Ao sentir uma excitação física, ela vai inicialmente precisar de adultos que acolham sua excitação desorganizada e lhe dêem um contorno simbólico e afetivo. Ferenczi (1933/1980), psicanalista húngaro contemporâneo de Freud, escreveu um texto belíssimo em 1933, “Confusão de línguas entre o adulto e a criança”, indicando a diferença entre o mundo adulto, marcado pela sexualidade genital e pela paixão, e o mundo infantil, marcado pela linguagem da ternura. O autor não pretendia desconsiderar a paixão e o desejo de uma criança, mas enfatizar que, mesmo quando seduz o adulto, a criança exerce a sedução para garantir um lugar de reconhecimento e amor perante este. Cabe ao
adulto não interpretar a sexualidade infantil atribuindo-lhes significados adultos, mas sim, reconhecer sua forma de comunicação, sua demanda de amor.
DA CRIANÇA AO INFANTIL
Freud, em toda a sua obra, deu uma grande importância à sexualidade infantil justamente por reconhecer ser valor estruturante: as teorias sexuais infantis permitem à criança interpretar o enigma de sua existência, construindo, através de sua fantasia, um lugar subjetivo que lhe permite descolar-se da posição de alienação original no discurso parental.
A noção de uma sexualidade infantil ampliada e extragenital enfatiza também seu caráter relacional, ou seja, de como a constituição do sujeito se dá na relação com seus outros fundamentais, desconstruindo qualquer idéia de uma condição humana biológica, instintiva e natural.
Ao enfatizar o fator infantil no adulto, indicando como o adulto é moldado de ponta a ponta pelos conflitos, traumas e desejos da criança, Freud ressalta o valor do infantil que é recalcado no adulto e que uma criança coloca em cena, com sua sexualidade. O infantil em Freud se refere a dois planos: o plano da constituição do sujeito através da construção das teorias sexuais infantis e da realidade psíquica da criança; e o infantil ,que se mantém como um núcleo inconsciente presente na criança e no adulto, relacionado não a um tempo cronológico, mas a um tempo de retroação subjetiva.
A sexualidade infantil confronta o adulto com sua própria infância perdida, colocando-o diante de um
impasse: reconhecê-la, podendo acompanhar as crianças em seu percurso subjetivo, ou negá-la, para não se deparar com suas frustrações, conflitos e desejos infantis.
Manter a importância da concepção freudiana sobre a sexualidade infantil é reconhecer sua dimensão singular e estruturante: singular por estar referida à construção da subjetividade a partir da representação psíquica da relação corpo a corpo com o outro; e estruturante por testemunhar as marcas relacionais que funcionam como referentes para uma apropriação narrativa a posteriori.
Vídeo complementar aula 4
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Aula 5 - As Noções de Repetição, Transferência e Contratransferência
Para Freud a repetição, ou melhor, a compulsão à repetição, é um dos fenômenos centrais da vida psíquica e do trabalho psicoterapêutico, ela está na base dos sintomas neuróticos e da dinâmica da transferência (processo que trataremos em seguida). Mas o que é isso que nos vemos compelidos a repetir, segundo Freud?
Em linhas gerais

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