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Inés Dussel Marcelo Caruso A Invenção da Sala de Aula UMA GENEALOGIA DAS FORMAS DE ENSINAR Tradução: B&C Revisão de Textos S/C Lida. Revisão técnica: A/m Maria Taccioli de Camargo Coordenação: Ulisses F. Araújo © EOICIONES SANTILLANA, 2002 =111 Moderna COORDENAÇÃO EDITORIAL José Carlos de Castro TRADUÇÃO E REVISÃO ILXtC Revisão de Textos V C Lida COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO GRAEICA Fernando Dallo Dcgan COORDENAÇÃO DE REVISÃO Ksiev.im Vieira l.édn jr REVISÃO Sérgio Rolrerto Torres EDIÇÃO DE ARTE Ricardo Postaccliim PROJETO GRÃfICO Ana Maria Onnlii CAPA Ricardo Poslaccltini El no: 1’apcl c caneta - (111 > PESQUISA ICONOGRÃfICA Ana Lúcia Soares 01 AG RAMA CÃ O Enriqneia Mímica Meyer TRATAMENTO DE IMAGENS Américo Jesus SAÍDA DE FILMES lle lio P de Siui/a Filho, Mareio llideyuki Kainoio COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO INDUSTRIAL \\ il— m \parecidi ■ I » ique IMPRESSÃO E ACABAMENTO Gráfica Vida e Consciência UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA 0020000063031 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação |CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Ou.ssel. Inés A invenção da sala de aula : uma geneali>gia das formas de ensinar ' Inés Dossel. Marcelo Caniso ; |(radumr.l Cristina Annmesl. — São Paulo : Moderna. 2<X)3. — (Educação em pauta) Título original; La invención dei aula; una genealogia de Ias formas de ensenar. Bibliografia. 1. Educação - Filosofia 2. Ensino 3. Pedagogia •i. Sala de aula - Direção I. Caruso. Marcelo. II. TTlulo. III. Série. 03-1998 GDI >-371.102 índices poro catálogo sistemálico; 1. Sala de aula ; Pedagogia : Educação 371.11)2 ISBN 85-16-03897-1 Reprodução proibida. Arl.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de levereiro de 1998. Todos os dirvilos reservados E d it o r a M o d e r n a L t d a . Rua Padre Adelino, 758 - Belenzinho São Paulo - SP - Brasil - CEP 03303-904 Vendas e Atendimento: Tel. (0_ _11) 6090-1500 Fax (0__119 6090-1501 www.modema.com.br 2003 Impresso no Brasil 1 3 5 7 9 10 8 6 4 2 http://www.modema.com.br D ed ico este liv ro a L ita , M a r io e M ariica . São m e u s avós, ju n ta m e n te co m Carlos, E nriq u e , C h in a eA d a . N ã o h o u v e tra g éd ia n e m d o r tã o g ra n d e q u e lhes tira ssem a v o n ta d e de v iv e r e de am ar. O b rig a d a p e lo q u e m e e n s in a r a m e e n s in a m . In é s À m e m ó r ia d e m e u s a v ó s M a ria e R oberto , e ta m b é m a Velia e A na , p e la espera, p e la p a c iê n c ia e p e lo e s tím u lo silencioso . M arcelo r ■*- Sumário A g r a d ec im en t o s , 9 P r ó l o g o , I I In t r o d u ç ã o , 13 De pedantes, pedagogos e sala de aula, 15 1 Sala de aula? G enealogia? D efin iç õ es para iniciar o per cu rso , 29 História e genealogia, 33 A sala de aula como materialidade e como comunicação, 36 Do governo à “governamentabilidade”, 40 2 N asce a sala de aula: o papel da religião c o m o parteira, 47 (Pré)-história: um olhar ao íinal da Iclade Média, 48 A sala de parto da sala de aula: a divisão em religiões, 52 A sala de aula chega com atitude dominadora: definição do poder pastoral, 63 Omnes ou o lado grupai da sala de aula: o método global de Jan Amos Comenio, 67 Singidatim ou o lado individualizador da sala de aula: o método dos jesuítas, 77 O triunfo do aspecto grupai na sala de aula: o método global para a conquista da escola elementar, 84 E n saio A pedagogia e suas metáforas, 92 3 A SALA DE AULA CRESCE! A DISCIPLINA NOS TEMPOS DA R evolução In d u stria l , 103 Condições do “crescimento” da sala de aula: transformações das sociedades européias no final do século 18, 104 Primeira consolidação da sala de aula global: a escola prussiana, I 10 Segunda consolidação: como a sala de aula global derrota o método de ensino mútuo, I 17 Terceira consolidação: a escola prussiana, dos princípios pestalozzianos à teoria educacional de Herbart, 133 Quarta consolidação: os pedagogos da sala de aula simultânea na Inglaterra, 146 4 A SALA DE AULA EM IDADE DE CASAR! A TÁTICA ESCOLAR NO SÉCULO 20, 157 O triunfo do capitalismo e o biopcder, 160 A pedagogia normalizadora: controlar ou regular as trocas que ocorrem na sala de aula?, 17 1 A crítica “escolanovista”: outra forma do biopoder, 192 E nsaio A autoridade da pedagogia, 226 5 À GUISA DE CONCLUSÃO: PERGUNTAS SOBRE O FUTURO DA SALA DE AULA, 235 B ibliografia , 239 A g rad ec im en to s E m PRIMEIRO lugar, a Graciela Frigerio, que nos reiterou o convite para escrever e dialogar. Agradecemos pela confiança, pelo estímulo, pelas palavras e comentários sobre cada uma das versões e pelas conversas eletrônicas que tornaram mais interes sante o percurso durante a elaboração do livro. Em segundo lugar, a Cecília Braslavsky, a Adriana Puiggrós e a todos os nossos companheiros das cadeiras de His tória Geral da Educação e de História da Educação Argentina e Latino-americana da Universidade de Buenos Aires. Muitas das idéias que discutimos neste livro têm relação com aquilo que aprendemos deles e com eles; e as atividades, por sua vez, com partilham da maneira como essas cadeiras desenvolveram for mas de questionar e ajudar a refletir. Sem eles, sem as discussões sobre como redigir as questões de exames parciais, sem os exer cícios que fazíamos e refazíamos para torná-los interessantes e produtivos, sem essa experiência que nos formou em tantos sen tidos, este livro não poderia ter sido escrito. Em terceiro lugar, aos companheiros de jornada que continuam a nos apoiar, apesar da distância: Pablo Pineau, Ale- jandra Birgin, Gabriela Fairstein, Gustavo Fischman, Silvia Fi- nocchio, Valéria Cohen, Silvia Duschatzky, Guillermina Tiramon- ti, Andréa Brito e Daniel Pinkasz. Pablo Pineau e Estanislao Antelo deram-nos o prazer de ler e comentar os manuscritos; além dis so, Pablo ajudou-nos a procurar fontes e dados aos quais não tínhamos acesso. Agradecemos a todos. 9 A Invenção da Sala de A ula Em quarto lugar, ambos residimos atualmente no exterior, completando estudos de pós-graduação. Com certeza, este livro não seria o mesmo se não tivéssemos passado por esta nova socialização em outros discursos, modelos de redação e vida institucional na Alemanha e nos Estados Unidos. Quere mos agradecer também aos nossos professores e amigos das no vas geografias, Tom Popkevvitz, Miguel Pereyra, Irmgard Bock, Christian Harten e Jürgen Schriewer. Por último, a Pablo e Torsten, agradecemos, mais uma vez, por tudo. Baltimore/Munique, março de 1999. 10 n H ■ --------- / E no amplo terreno do público e do social, assim como no espaço íntimo e privado da subjetividade, dos mecanismos psí quicos, da alma onde se constatam os vestígios e as marcas que a educação produz nos indivíduos e na sociedade. A educação tem no estudante seu território específico, uma das formas mais universais de sua institucionalização. Nesse território há um ce nário emblemático, testemunha das combinações múltiplas que resultam da articulação de invariâncias e mudanças, tradição e novidade, repetição e inovação, lembranças do passado e so nhos de futuro: a sala de aula. Nesse cenário desenvolvem-se os múltiplos roteiros que, como atores, produzimos todos nós, edu cadores e alunos. Em determinadas ocasiões, repetimos palavras de outros; em muitas outras, criamos nosso próprio texto; nem sempre nos damos oportunidade de refletir sobre ambos, de pensar sobre eles e sobre nós. Inés Dussel e Marcelo Caruso propõem-nos um livro relativamente incomum, uma vez que não procura impor uma leitura, mas sim solióitar-nos como autores, incorporando es- trangeirismo ao cotidiano, ao dar conta de uma genealogia que, omitindo a neutralidade, restitui as múltiplas maneiras de ver o espaço e as práticas que nele transcorrem e que, dando-lhe sig nificado, se significam. Por trás das páginas que contam histórias, oferecem conceitos, estimulam exercícios, convidam à lembrança e, prin- P rólogo 11 —;A Invenção da Sala de A ula cipalmente, habilitam para a criação, está presente a preocupação com o clestino da pedagogia e com nosso próprio destino. Esta preo cupação com lima pedagogia, ou com pedagogias no plural, que não se apresentam como foi escrito, mas como algo que “aconte ce” e se constrói coletivamente, é um convite a retomar um concei to carregado de sentidos e práticas. O trabalho da educação, que é o trabalho das culturas, o trabalho de transmissão, o trabalho de descobrimento, o trabalho psíquico de elaboração de conflitos sociocognitivos e de ruptu ras epistemológicas demandam uma pedagogia não conformista, que não ignore seu passado e que ofereça algum futuro. Um futuro onde o homem não seja descartável, onde a técnica e a tecnologia estejam ao serviço do bem-estar coletivo e não sejam utilizadas para produzir exclusão, onde as produções culturais sejam um bem de uso comum, e não um privilégio reservado a poucos, e a ética, um componente da ação. Estamos certos de que, como educadores de hoje e edu cadores de amanhã, os leitores encontrarão neste texto elemen tos para questionar-se, descobertas para desfrutar, apoio para suas práticas, critérios para projetar as edificações, categorias para analisar as observações, exemplos para organizar suas clas ses, o prazer de um trabalho intelectual, e muitas informações para criar seus próprios andaimes conceituais e compartilhá-los com outros. Graciela Frigerio INTRODUÇÃO D e P e d a n t e s , P e d a g o g o s e S alas de A ula n n Quando recebemos o convite para escrever este livro, começamos a revisar tratados de pedagogia de outras épocas e observamos que na maioria deles definiam-se a pedagogia, seus tipos ou divisões, as ciências auxiliares e as áreas de aplicação. Quase todos consideravam a pedagogia como um saber que ca bia integralmente neste esquema: para alguns, tenderia mais para uma ciência, e para outros, tenderia mais para uma arte. No entanto, em todos os casos, constituía um corpo de conheci mentos definidos, que bastava especificar e transmitir aos futu ros professores para que estes os pusessem em prática. Uma obra de Bernard Shavv, Pigmalião, expressa exata mente esta visão da pedagogia. Em Pigmalião, Liza Doolittle, uma humilde florista de rua, tem um encontro fortuito com dois aris tocratas ingleses, Pickering e Higgins. Estes estudiosos da lin guística decidem fazer uma experiência: reeducar a florista para que fale e se comporte como uma dama da sociedade. A idéia é que a educação, quando utiliza um bom método, consegue trans formar as pessoas por completo, até apagar os vestígios de sua origem social e cultural. Instalam Liza em sua casa e ministram- lhe aulas diárias — teóricas e práticas. Os linguistas triunfam: Liza transforma-se em uma dama, casa-se com um jovem de boa família (embora sem posses) e mantém um relacionamento pla tônico com seu mentor, Higgins. Final feliz para a pedagogia: Liza ama seus professores e estes a amam, por ter-se transfor mado exatamente no que desejavam. Vejamos outro exemplo literário. Trata-se do conto in fantil de Emma Wolf “Escola de Monstros”. A autora narra a 15 : A Invenção da Sala oe A ula vida em uma escola onde Frankensiein e Drácula, entre outros alunos, aprendem a comportar-se como monstros. Em certa oca sião, um deles, querendo cumprir uma ordem ao pé da letra, destrói as paredes da escola. Transformou-se em monstro. Final íeliz para a pedagogia? Você dirá. Com um pouco de desconfiança, pode-se também per guntar se não há algo de monstruoso na Liza de Bernard Shaw, se ela também não aprendeu a ser um monstro, colocando-se no lugar que seu professor determinou e cumprindo suas ordens ao pé da letra. Espantamo-nos diante da menção da clonagem da ovelha Dolly, mas não nos assusta da mesma maneira essa idéia da pedagogia que quer replicar indivíduos, moldá-los e formá-los à medida que pretende dominá-los e conhecê-los por completo. Certamente, a vontade de tê-los sob controle está asso ciada ao temor provocado pela situação de ensinar. Como en frentar um grupo de crianças, cada uma com sua própria histó ria, com desejos diferentes em uma sala de aula? Seremos capazes de transmitir-lhes alguma coisa, de conseguir que aprendam al guma coisa? E se falharmos? E se utilizarem nossos ensinamen tos de maneira diversa daquela que pretendíamos? E se nem sequer nos escutarem? Esses temores são reais e concretos; en tretanto, a intenção de controlá-los completamente não contri bui senão para aumentá-los, porque diante de nosso fracasso — apesar de tudo, a vida sempre é mais complexa do que qualquer mecanismo de controle — agigantam-se ainda mais. Este livro pretende servir de apoio para que nos livre mos do medo de ensinar, e também de aprender, de ler, de conhe cer outros mundos. É provável que uma parte desses temores nos acompanhe sempre, como a todo ser humano; entretanto, oxalá a questão do controle e do medo de perdê-lo deixe de ser um dos 16 eixos mais importantes da interação professor-aluno. Se a peda gogia é um saber que ajuda os docentes a serem “bons” professo res, é conveniente começar por estabelecer como se define um “bom professor”, quem o define, como trabalha, antes de pensar mos em regras, divisões e formas de transmitir esse saber. Para nós, não há melhor maneira de abordar estas ques tões senão através de uma visão histórica. Partimos do princípio de que as definições de um bom professor, do conteúdo dos ensinamentos, de métodos e didáticas são saberes históricos, pro duzidos por indivíduos sociais, por pensadores, grupos, insti tuições que atuaram e pensaram em outros contextos — alguns muito semelhantes aos nossos, outros muito diferentes. Inclusi ve a idéia de que é preciso levar em conta a psicologia infantil e as categorias e conceitos utilizados para falar sobre a aprendiza gem da criança, que parece “natural" e “necessária”, é no entanto um produto histórico: como será visto nos capítulos a seguir, há quatro séculos, ou mesmo dois, não se falava nesses termos. Percorrendo a história da sala de aula e das formas de ensinar, procuramos esclarecer o fato de que muitas técnicas e palavras que utilizamos para nos referir ao que acontece na sala de aula têm um passado, surgiram em situações concretas como respostas a desafios ou problemas específicos, e que pro vavelmente, quando as utilizamos hoje em dia, ainda trazem parte desses significados. Compreender de onde surgem, de quais estratégias e problemas fazem parte, como foram ou são utilizadas, e que efeitos causaram pode ajudar-nos a aliviar essa carga e a assumir nossa tarefa como uma reinvenção própria das tradições que recebemos. Embora não voltemos a inventar a pólvora, também não seremos clones de outros e nem clona- remos nossos alunos. Pois, em última instância, transmitir é Intkoduçáo A Invenção da Sala de A ula também abrir espaço para que o outro utilize de maneira dife rente nosso saber e nosso desejo de educá-lo — para que seja outro, e não o mesmo indivíduo. Como disse um psicanalista, o que é fascinante “na própria aventura da transmissão é preci samente o fato de sermos diferentes daqueles que nos precede ram, e que provavelmente nossos descendentes seguirão um caminho bastante diferente do nosso. (...) E, no entanto, (...) é aí, nessa série de diferenças, que inscrevemos aquilo que trans mitiremos” (Hassoun, 1996, p. 17). Gostaríamos que este livro ajudasse a entender de onde vem o hábito dos alunos de levantar a mão, formar fila ou utili zar cadernos, para poder avaliar se isto é realmente o que quere mos lhes ensinar, e assumirmos essa decisão e essa responsabili dade. Um dos ensinamentos que gostaríamos de transmitir, à maneira de Hassoun, é que no ensino não há lugar neutro nem indiferente: todas as estratégias e opções que utilizamos em nos sa tarefa cotidiana têm histórias e significados que nos superam e produzem efeitos sobre os alunos— não só em termos de aprender ou deixar de aprender determinado conteúdo, mas tam bém de sua relação com a autoridade, com o saber letrado em geral e com os demais. Alguns professores, temerosos desta res ponsabilidade, acreditam que o melhor seja renunciar a trans mitir algo, laissez-Jaire (deixar fazer), não intervir, como se com este gesto pudessem desfazer-se do poder inerente à posição docente. Como argumentaremos adiante (Caruso e Dussel, 1996, cap. 3), o poder continua sendo, sem dúvida, constitutivo da relação professor-aluno; trata-se de assumir o papel de transmi tir a cultura da forma mais consciente possível, utilizar estes es paços de liberdade de que fala o psicanalista mencionado, pro curar sair do modelo de clonagem e produzir uma diferença em nossas vidas e nas vidas de outras pessoas. N TRODUÇAO Iniciaremos pela palavra que nos convoca, a você e a nós, a nos encontrarmos neste livro. A palavra pedagogia teve signi ficados muito diferentes através dos tempos. Levando-se em con sideração apenas os significados produzidos desde 1500 até os nossos dias, ou seja, na idade moderna — cujas características ana lisaremos no primeiro capítulo — pode-se dizer que as primeiras definições diferenciavam o pedagogo — entendido como o “aio que cria a criança” — do pedante — “mestre que ensina as crian ças”1 (Covarrubias Orozco, 1611). Desse modo, o pedagogo era entendido como um educador no sentido mais amplo do termo: não era somente um professor de escola, mas também podia ter a seu cargo funções que hoje chamaríamos de a criação das crianças. A palavra pedagogia compartilha sua raiz — ped: pé, aquele que anda a pé — com a palavra pedante, que é aquele que “se diz sábio”, aquele que pretende ser erudito. Isto revela prin cipalmente o pouco prestígio que as pessoas letradas tinham na época. Esta ambiguidade fica bem definida na seguinte frase, “um bom professor galés, um bom estudioso, porém muito pe dagógico (extraído do Oxford English D ictionaiy de 1888). Ser “pedagógico” não era, então, sinônimo de uma qualidade positi va, e sim o contrário. O Diccionaiio de Autoridades de 1737 define pedagogo como “qualquer um que ande sempre com outro, e o leva aonde desejar ou lhe diz o que deve fazer”. Neste caso, aparecem tanto o significado de “pé” como o de conduzir ou guiar como ação pró pria. Entretanto, já em 1788, o significado que conhecemos hoje aparece com mais intensidade. A pedagogia aproxima-se daquilo 1 1. N.T. Uma definição antigo da polavro pedante, hoje em desuso, significa “mestre que ensino gramático às crianças indo de cosa em cosa". que denominamos “mestre” e deixa de ser a ação de guia geral (Terreros e Pando, 1788, p.73). Surge no século 19 a definição de pedagogia como “a arte e a ciência de ensinar e educar as crian ças”. Esta descrição, que hoje nos parece natural, é, na realidade, uma invenção recente, dos últimos séculos (Rizzi Salvatori, 1996). Analisemos mais detalhadamente a definição moderna de pedagogia. A pedagogia é uma ciência e uma arte; está asso ciada ao “ensinar” e ao “educar”. A pedagogia ocupa-se das “cri anças”. Neste caso, pode-se acrescentar que algumas versões con temporâneas sustentam que a pedagogia não se ocupa unicamente das crianças, mas que há também uma pedagogia dos adoles centes e uma pedagogia dos adultos. Para analisar os compo nentes desta definição, à qual voltaremos diversas vezes no de correr do livro, começaremos pelo último ponto: 1 1. De acordo com o pedagogo Mariano Narodowski, a pedagogia moderna nasce com o conceito de que a criança deve ser educada. Se durante muito tempo as crianças corriam pelo po voado, aprendiam espontaneamente e se vinculavam a muitos adul tos, em determinado momento (que o historiador Philippe Ariès situou no final da Idade Média) surgiu uma nova “sensibilidade” com relação à criança, uma nova forma de cuidar dela. Narodowski argumenta que a criança será “infantilizada”: inicia-se uma tendên cia segundo a qual a criança precisa de maiores cuidados, que é preciso colocá-la em uma instituição, que necessita de regras mais rígidas. Esta postura constante de cuidados com a criança, e sua vigilância intensiva, permite a formação e a estruturação de um saber que justifica as razões para essas ações, suas finalidades e seus métodos: a pedagogia. Surge a disciplina universitária, e sur gem os catedráticos, que afirmam que a ciência orienta aqueles Introdução que ensinam. Analisemos também as conseqüências de “pedagogi- zar” os adolescentes e os adultos: não se trata apenas de pensar neles como sujeitos do saber, mas também de submetê-los a outro tipo de vigilância, com a idéia de que devem ser cuidados com maior esmero e assiduidade. A modernidade talvez seja a época em que diversos setores da sociedade vão-se “pedagogizando”: é preciso cuidar dessas pessoas, dizer-lhes o que devem fazer, colo cá-las em instituições educativas, se possível — lembre-se de que até hoje se diz que é melhor a criança estar na escola do que brin cando na rua — e dar-lhes regras mais precisas (Narodowski, 1995). 2. A pedagogia encarrega-se do “ensinar” e do educar. Pode-se dizer que não se ocupa somente das “situações de ensino” — como, por exemplo, o ensino da estaitura e das funções do aparelho digestivo — , mas também da educação, que é muito mais abrangente. As crianças são educadas desde seu primeiro dia de vida: tenta-se, por imposição, que obedeçam a um ritmo, que dur mam à noite, que comam com certa periodicidade. Logo vêm as proibições diante de situações perigosas, virá o controle das “neces sidades”, devem também se acostumar a comer outros alimentos em determinadas horas do dia. A “educação” inclui preceitos com relação aos palavrões, à sexualidade, à ideologia, à maneira de viver, à compreensão e à crítica aos meios de comunicação, entre muitas outras coisas. Diz-se, inclusive, que a educação não termina nunca, uma vez que uma pessoa jamais estará completamente educada. Desse modo, ainda que a pedagogia esteja diretamente relacionada com a escola, parece que também a excede, e muito. 3. Por último, diz-se que a pedagogia é tanto uma “ciência” como uma “arte”. Por um lado, pretende esse presti- 21 A Invenção da Sala üe A ula gioso rótulo cle “científica”, uma forma de conhecimento que pode ser comprovada, com regras, métodos de avaliação e pa drões compartilhados. Sabemos que em nossas sociedades os “cientistas” constituem uma profissão de grande prestígio, ainda que nem sempre recebam retribuições de acordo com esse pres tígio e muitos não entendam o conteúdo do trabalho científico. Portanto, a pedagogia quer ser tratada como ciência. Por outro lado, porém, a pedagogia é uma arte. Vejamos: um professor pode ser muito versado em diversas disciplinas, conhecer o con teúdo a ensinar, conhecer as diversas dificuldades de aprendiza gem, dispor de uma longa lista de métodos de ensino e de bons instrumentos de diagnóstico e de avaliação. Entretanto, a ma neira, o momento e a forma como utiliza seus conhecimentos — essas decisões da prática de ensino — são por si mesmas uma “arte”, se entendermos por arte uma estruturação pessoal, uma sintonia específica com a situação daquele momento. Mesmo que se possa aprender as regras do ensino, estas se modificam em cada situação e dependem do julgamento daquele que as utiliza e da situação em que são utilizadas. A pedagogia, então, prolonga-se cada vez mais no tempo: o que se iniciou com a criança chegou aos adultos e desenvolve-se até a terceira idade. A pedagogia ocupa-se da escola, mas também da fam ília, dos meios de comunica ção e de todas as outras instâncias ou agências que “educam ”, ainda que não o façam conscientemente. Por último, a própria pedagogia é tanto um saber sistemático — um a ciência — como um saber mais localizado, específico, informal — uma arte, um uso. Isto é, parece ter-se tornado importante, perpétua, uma vez que acompanha a vidainteira do indivíduo, e polimorfa, com muitas formas, uma vez que pode se encontrar em estado mais ou menos puro, como ocorre na escola, até ser mais difusa e implícita, como no caso dos meios de comunicação. 22 Introdução Diante desta “inflação" do espectro da pedagogia, é difícil decidir por onde abordá-la. Haveria muitos pontos de partida, muitas formas e temas. Haveria inúmeras possibilida des, cada uma com sua ênfase, suas virtudes e defeitos. Pode riamos realizar um estudo sistemático, um histórico, mais fo calizado na aprendizagem ou no ideal docente, entre muitas outras possibilidades. Os temas seriam inúmeros e todos jun tos formariam uma enciclopédia de vários volumes. Não se pode ignorar, no entanto, que, de todas as par tes possíveis da pedagogia, a mais importante é a pedagogia es colar. Na história dos últimos séculos, esta combinação “ciência e arte” concentrou-se cada vez mais nos aspectos do ensino, na atividade pedagógica dentro da escola (Benner, 1998). Além disso, a pedagogia escolar provavelmente influiu para que muitas ve zes a televisão, a família, as instituições, apesar de sua força pró pria, se assemelhassem mais às escolas. Pensemos nos progra mas infantis, que se preocupam muito com o entendimento das crianças, a tal ponto que às vezes as subestimam. Pensemos na mãe que auxilia nas tarefas de casa, ou na educação em uma empresa, que se torna cada vez mais escolar, uma vez que oferece cursos rápidos e já não se aprende somente com a experiência. Pensemos nos brinquedos “didáticos” — por exemplo, nas pe quenas carteiras escolares para crianças em idade pré-escolar, que vão educando e socializando na maneira de sentar-se, de postar-se para escrever e olhar para a frente. Hoje em dia, é impossível pensar uma pedagogia sem a escola. Entretanto, durante muitos séculos esse era exatamente o caso, e as pedagogias eram reflexos de como um pedagogo tinha que educar os príncipes e as crianças de determinadas clas ses privilegiadas, e nessas funções se confundiam o cuidado, o A Invenção oa Sala de A ula ensino, os modos e a vestimenta. Atualmente, as peclagogias es tão concentradas, e com razão, na escola. A pedagogia ajudou a estruturar, a dar forma e corpo às escolas como as conhecemos. Formulou programas, idéias, diretrizes que foram adaptados em maior ou menor grau, com melhores ou piores resultados. Dessa forma, queremos expor a pedagogia em ação, em funcionamento. Queremos associá-la a uma série de materiais que mostrem como os pedagogos pensa ram as salas de aula em sua época, o que propuseram e como estas propostas se relacionavam com realidades muito diferen tes. Queremos mostrar que o conhecimento pode ajudar-nos no desafio que compartilhamos com vocês de enfrentar um grupo e fazê-lo de maneira responsável. Para darmos as boas-vindas à reflexão pedagógica, fo calizaremos neste livro um exemplo de como o conhecimento pedagógico — essa ciência, essa arte — desempenhou um papel importante no momento de armar e dar um contorno a um de nossos mais antigos conhecidos: a sala de aula da escola elemen tar. Neste trajeto da história da sala de aula, talvez fique mais claro por que a pedagogia podia ser entendida tanto como mé todo, aio ou acompanhante. Queremos mostrar como a pedago gia tentou dar forma à sala de aula, à disposição do espaço, a seus rituais, costumes, modos de interação e de comunicação. Talvez isso nos ajude a lidar com nossos temores e a nos apro priarmos com decisão desse espaço de ação. Para tanto, desenvolveremos a idéia de que a sala de aula elementar é uma invenção do ocidente cristão, a partir de 1500, e que nesse processo a pedagogia utilizou-se de muitas ar gumentações diferentes para dar corpo e forma a este espaço. Isto não significa que não existissem experiências pedagógicas antes 24 Introdução desse período; pelo contrário, os gregos, os romanos, os primei ros cristãos, os povos indígenas, todos idealizaram maneiras de transmitir conhecimentos e tiveram formas de ensino mais ou menos institucionalizadas. Conservamos muitas delas: os amau- tas incas, os sofistas gregos, a figura socrática da interrogação mai- êutica deixaram marcas no imaginário sobre o que é ser um bom professor e sobre como se faz para ensinar. Entretanto, suas preo cupações e seus mundos eram mais distintos dos nossos do que os cie 1500. Seus espaços educativos eram povoados por outras inquietações e temores. Certamente, nas práticas que surgiram por volta de 1500, havia muita influência das pedagogias anterio res, que eram, afinal, o conhecimento disponível para homens e mulheres daquela época, e nosso estudo ganharia em profundida de caso fizesse todas as conexões possíveis tanto com o passado como com o futuro. O argumento pocleria retroceder ainda mais, em uma cadeia infinita. Dizem os que sabem escrever que em algum lugar deve-se colocar o ponto final, dizer “cheguei até aqui”, e é até aqui que chegaremos. Restringimos nosso trabalho à mo dernidade ocidental: em primeiro lugar, porque acreditamos que esta é a época em que a maior parte das práticas pedagógicas con temporâneas foi estruturada; e, em segundo lugar, porque enten demos que toda empreitada de escrita é pretensiosa e modesta ao mesmo tempo, define certos problemas e pontos de vista, excluin do outros. Diferentemente dos tratados de pedagogia a que nos referimos no início desta introdução, não consideramos que esta mos transmitindo um saber completo e absoluto, e sim que a pe dagogia pode ser reescrita milhares de vezes, e em cada uma delas dizer algo diferente. O livro desenvolve um argumento basica mente histórico. Os capítulos cobrem períodos da história dos últimos cinco séculos e os desenvolvem, focalizando o surgimen to de práticas e teorias sobre como ensinar e a quem ensinar. 25 A Invenção da Sala de A ula Provavelmente será útil consultar livros de história e da história da educação para ampliar alguns temas e para compreender me lhor as transformações que mencionamos. Incluímos, junto aos capítulos históricos, dois pequenos ensaios sobre conceitos que nos ajudaram a compreender esta “biografia” da sala de aula da escola elementar: um sobre metáfora e outro sobre autoridade. Por último, propusemos algumas perguntas sobre o futuro da sala de aula com relação à sua história. Como professores e alunos, estivemos, estamos e esta remos na sala de aula por muito tempo. Entretanto, na agitação da rotina de aprender e de ensinar, nem sempre paramos para pensar qual é realmente esta situação, tão importante para nos definirmos como docentes e pedagogos. O fato de ocuparmos uma sala de aula não significa automaticamente que a “habita mos”. Quando alguém apenas “ocupa” um espaço, trata-se de uma estrutura já existente: móveis, rotinas, tudo está lá e nos espera. O docente mais experiente nos diz o que considera fun damental para ser um bom professor. Se permanecermos com estas orientações, com a tradição que nos transmite a experiên cia dos outros (por mais valiosa que possa ser), estaremos “ocu pando” a sala de aula de uma maneira passiva, na qual simples mente nos acostumamos a coisas já existentes. “Habitar” a sala de aula significa formar esse espaço de acordo com gostos, op ções, margens de manobra; considerar alternativas, eleger algu mas e descartar outras. Habitar um espaço é, portanto, uma po sição ativa. Assim, este convite não se esgota no tema da sala de aula, mas tenta ser uma convocação para ativar nossas forças no sentido de “habitar” o lugar que apenas “ocupamos”. Agrada-nos esta citação do poeta Oliverio Girondo: “A rotina tece diariamente uma teia de aranha em nossas pupilas. Pouco a pouco, nos aprisionam a sintaxe, o dicionário, e ainda 26 i Introdução que os mosquitos voem zumbindo, é preciso ter coragem para chamá-los de anjos. Quando uma tia nos leva a uma visita, cum primentamos todos, mas temos vergonha de apertar a mão do senhor gato, e mais tarde,ao sentir vontade de viajar, pegamos um bilhete de uma agência de navegação em vez de transformar uma cadeira em transatlântico” (Espantapájaros”, citado em: Sar- lo, 1988, p. 62). Para ser professor não é preciso fazer as vacas voarem e rir dos cadernos — embora certamente nos caísse bem um pouco mais de poesia e de humor. É melhor considerarmos este sacudir das teias de aranha da rotina de Oliverio como um sinal de que podemos fazer outras coisas com o que temos à mão, ver de outra maneira os sinais da realidade, pensar de ma neira diferente. Pode-se transformar a carteira escolar em um meio de transporte para outros mundos, colocando-nos em con tato com outros saberes e outras experiências. Efetivamente, su põe-se que esta seja a tarefa da escola: integrar o indivíduo a outros tipos de experiências e códigos diferentes daqueles apren didos em família. Em parte, depende de nós que essa viagem seja prazerosa e que chegue a bom termo. Esperamos que este exercício de reflexão pedagógica nos coloque de maneira diferente nesta situação e que façamos da sala de aula nosso “habitat”, não no sentido animal de adap tar-se ao que já existe, mas sim no sentido de ajudarmos a ga nhar em autonomia e responsabilidade para que possamos nos comprometer com esta velha conhecida que é a sala de aula, e que talvez seja o coração educativo da cultura moderna. Oxalá possamos levar o leitor a sentir o pulsar deste coração, vivo e vital, através deste livro. 27 1 S ala de a u l a ? G en ea l o g ia? D efinições p a r a I niciar o P ercurso D ■ S e UMA pessoa pergunta espontaneamente na rua o que é uma escola, pode receber muitas respostas. Em algumas delas, pode apa recer a sala de professores, a biblioteca, os pátios; em outras, a dire tora, o porteiro. Se pensarmos em uma escola rural, talvez a figura da diretora seja ao mesmo tempo a da professora, o pátio talvez seja o campo ao redor e a biblioteca, uma reivindicação pendente há anos. Entretanto, podemos quase garantir que em todas as respostas aparecerá um lugar que todos conhecemos e que surge como o núcleo, o elemento insubstituível da escola: a sala de aula. A situação de sala de aula é conhecida de todos nós; é muito provável, inclusive, que este livro esteja sendo lido em tal situação. Todos passamos por ela, e, como professores atuais ou futuros, continuaremos a fazê-lo, e não apenas uma vez; pelo contrário, estivemos e estamos na sala de aula pelo menos qua tro horas por dia, cinco dias por semana, nove meses por ano, durante muitos anos. Assim como acontece com uma pessoa que passa grande parte de sua vida em um hospital, a institui ção, com sua estrutura, seus costumes e seus hábitos, torna-se “natural” e marca nosso caráter. Entretanto, a sala de aula como a conhecemos hoje não tem nada de “natural”. Talvez nos surpreenda reconhecer que um viajante do século 15 não entenderia o que acontece em nossas escolas, como provavelmente também não o entenderia um via- 29 A Ihvenção oa Sai.a oí A la Fig. I. Gravura de 1592, provavelmente de uma escola de latim, onde se vèem o professor e seus colaboradores (Extraído de H. Schiffler e R.Winkeler. TaunsendJahre Schule. Eine Kulturgeschichte des Lernens in Bildern, BelserVerlag, Stuttgart-Zurique, 1993). Fig. 2. Sala de aula na Alemanha da época, tal como aparece em uma publicação em 1575 (Extraído de: D. Hamilton. Towards a Theory of Schooling, Falmer Press, Londres, 1989, p. 37). 30 Fig. 3. Sala de aula inglesa, segundo a proposta de David Scow, em gravura de 1836 (Extraído de: D. Hamilton. Towards a Theory o f Schooling, Falmer Press, Londres, 1989, p. 104). Fig. 4. Sala de aula infantil, escola de Londres em 1906 (Extraído de:Dina Coppelman.London'sWomenTeachers. Gender,dass,and feminism /87O-/930,Routledge,Londres e Nova Iorque, 1996). . ( ( ( ( ( ( ( A Invenção oa Sala de A ula jante do futuro, do século 252. Como mostram as figuras 1 (Alt, pintura que representa uma escola da época de Comenio, em: Schiffler e Winkeler, 1993, p. 351), 2 (sala de aula alemã em 1575, em: Hamilton, 1989, p. 37), 3 (Stow, sala de aula inglesa eml836, Hamilton, 1989, p. 104) e 4 (escola de Londres no início do sécu lo, em: Coppelman, 1996), aquilo que conhecemos como “sala de aula” sofreu modificações, tanto em sua estrutura material (na or ganização do espaço, na escolha dos locais, no mobiliário e no instrumental pedagógico) como na estrutura de comunicação (quem fala, onde se situa, o fluxo de comunicações). De acordo com dados fornecidos pelo pesquisador Da- vid Hamilton, o termo “sala de aula para lições” começou a ser utilizado na língua inglesa no final do século 18 (Hamilton, 1989). Em castelhano, por sua vez, o uso de “sala de aula” e de “lições” era comum ao ensino universitário na Idade Média, conservan do seu significado latino de “local onde o professor ou catedráti- co ensina aos estudantes a ciência e a disciplina que professa” (Diccionano de Autoridades, 1726). Entretanto, não era comum seu uso para referir-se ao recinto no qual teria lugar o ensino ele mentar, o qual, até aquele momento, era ministrado na casa do próprio professor ou em salas disponibilizadas pelo município ou pela igreja, denominadas scholas (em latim). A diferenciação dos alunos por idade era ainda incipiente (o que investigaremos mais adiante neste capítulo), e, na maioria das vezes, todas as crianças recebiam os ensinamentos juntas, sob a tutela de um professor que sabia apenas ler e escrever, e que lhes ensinava os rudimentos das primeiras letras, de cálculo e de catecismo. Entretanto, a difu 2. Um bom exemplo desta disjunção que se produzirio em um suposto encontro com nossos ontepossodos é o filme Novigotor (Vincent UUord. fíustrólio, 1989), que conto o história de um grupo de camponeses afetados pelo peste bubônico por volto do ono 1350, que por ocoso 'surgem '’ em pleno século 20. Sala üe aula? G enealogia5 Definições para Iniciar o Percurso são do termo “sala de aula” em relação à escolaridade elementar surgiu somente com a vitória dos métodos pedagógicos que propunham uma organização do ensino por grupos escolares diferenciados entre si, às vezes por idade e outras por seus resultados de aprendizagem. Neste capítulo, propomos um exame dessa história do surgimento e da consolidação da sala de aula como espaço edu cativo privilegiado, procurando identificar as continuidades e as inovações nesse trajeto, compreendendo a lógica de sua estrutu ração. Como se deve ter notado, falamos de “genealogia da sala de aula” e não simplesmente de “história”. Sobre essa diferen ciação nos aprofundaremos a seguir. H istória e genealogia Muitos de nós certamente conhecem a palavra genealogia a partir de “árvores genealógicas”, que rastreiam os antepassados e nos fornecem um “mapa” com informações sobre nossos anteceden tes familiares. Por outro lado, este é um recurso utilizado no ensino das ciências sociais na escola primária, quando se propõe às crianças que perguntem a seus avós e pais sobre sua origem e sua história de vida. Este recurso permite abordar alguns temas, como a história local, a história do país ou alguns fenômenos específicos, como a imigração (muitos desses avós foram imigrantes ou filhos de imi grantes), a partir de uma abordagem mais significativa para os alu nos, uma vez que podem vincular estes fatos à sua própria história. Entretanto, o uso da genealogia que sugerimos neste capítulo é um pouco diferente. Para nós, de acordo com alguns filósofos e historiadores deste século, a genealogia é uma forma de olhar e de escrever a história que difere da história tradicio nal, porque é definida como história com perspectiva, crítica, inte ressada. A genealogia parte de um problema ou conceito atual e 33 A Invenção da Sala de A ula elabora um “mapa” — não dos antepassados, mas sim das lutas e dos conflitos que configuraram o problema tal como o conhe cemos hoje. Os materiais históricos(fontes, escritos de época, análises históricas) não são revisados com um interesse mera mente erudito (“para aprender mais”), e sim com o objetivo de compreender como se criaram as condições que configuram o presente. É um olhar que adota o ponto de vista daqueles que sofrem os efeitos de poderes e saberes específicos (Varela, 1997, pp.36 e 61). Esta posição é claramente contrária à da história tradicio nal, que pressupõe que o conhecimento é neutro e objetivo, e que o historiador pode situar-se acima de seu tempo e de sua sociedade, e pode conhecer “o que verdadeiramente se passou” na Revolução de Maio ou em qualquer outro evento histórico, independentemente de seus valores e posições, ou dos conceitos e categorias que sua época lhe provê para analisar a história. A genealogia, pelo contrário, assume uma visão perspectiva e não tenta enganar ninguém com relação à sua neutralidade. O filósofo e historiador Michel Foucault3 afirma que “as forças presentes na história não obedecem nem a um destino nem a 3. Michel Foucoult (1926-1984) foi um filósofo, historiador e critico social, cujos trabalhos, que não podem ser facilmente enquodrodos em uma matéria determinado, se encontrom entre os mois influentes nas ciências scaois e humonos da última metode do século. Cmboro seja difícil sistematizor em poucos palavras os linhos principais de suo obro. pode-se dizer que seus moiores interesses foram: I) o formação e a transformação do sober e dos conhecimentos e suo reloção com o poder e com o construção do verdade; 2) os sistemas de poder"invisíveis", paém centrois nos sociedades modernas3) a construção dos diferentes tipos de subjetivida de em nossos sociedades e seus antecedentes em reloção tanto aos conhecimentos sobre nós mesmos como às diversos formos de orgonização do poder. Verdade, sober. poder, sub jetividade. fí obra de Foucault è difícil e esquiva, porém seus temos centrois são de fundomen- tol importàncio paro os pedagogos — sejom eles “cientistas" da educação ou professores. Fntretonto. vale o peno tentor uma leituro. O livro no quol Foucault trata mais explicitomente da escola e da educação é Vigior a pjnir. Fm O nascimento da prisão ( 197ó), anohsa a escola com relação a processos comuns o outras instituições de "confinamento". como hospitois. pri sões. quortéis e fóbncos. Também sdo bostonte conhecidos seus livros sobre a loucura — História da loucura na época clássica (/ 9ó /) : sobre medicina—O nascimento da clínico (/ 9ó3); sobre o nascimento dos humonidades — Rs palavras e as coisas (1966); sua História da sexualidade (3 volumes. 1977-1984): e seus artigos e entrevistos sobre o poder— Microfísica 34 5a. a o: a u l a ? G fnealogia? Definições para Iniciar o Percurso uma mecânica, apenas ao acaso da luta” (Foucault, 1980, p. 20). Fntre outras coisas, isto obriga a um posicionamento, a uma análise tias exclusões realizadas, daqueles que venceram e daqueles que fo ram derrotados nessas lutas. Afasta-nos da idéia de que os processos são inevitáveis e que as coisas “aconteceram porque sim, porque as sim tinham que ser”. Há 15 anos, Lito Nebbia cantava que “se a história é escrita pelos vencedores, isto quer dizer que há outra histó ria, a verdadeira história; quem quiser ouvir, que ouça” (em relação à vida de Eva Perón). Foucault acrescentaria a Nebbia que não há duas histórias, e sim muitas, dependendo do tema e de como cada um se posiciona diante do presente, e que isto toma muito mais complexo atribuir o valor de “verdadeira” a uma dessas histórias em particular. Há, certamente, muitos debates epistemológicos e his- toriográficos dentro da filosofia e da história com respeito a estes argumentos de Foucault, que não queremos subestimar. Aqueles que quiserem aprofundar-se nestes temas têm à disposição abun dante bibliografia para consulta.4 Muitos consideram que, se tudo é simplesmente perspectiva, então resta somente o relativismo absoluto de que tudo resulta na mesma coisa — o que leva ao niilismo, a não acreditar em nada, ou seja, â desesperança. Para nós, que defendemos os argumentos de Foucault, assumir uma perspectiva implica, ao contrário, um ato de liberdade considerá vel: significa rebelar-se contra um conhecimento imposto, tirar proveito e assumir os riscos da decisão e de seus próprios pontos de vista. A genealogia não implica que todas as perspectivas le do poder, compilação, várias edições. R diferenço entre genealogia e história, que utilizare mos em nosso percurso, encontra-se em "Nietzsche, o geneologio e o história" (1971). incor porado ao já mencionado Microfísica do Poder. Paro onolisar algumas das repercussões do trabalho de Foucault no pedogogia iberoamericana. pode-se consultoria firqueologia de Io escuelo, de Varela e Rlvorez-Uria. e íscuelo, poder e subjetivadón. de iorrosa. 4- Ver, por exemplo. Noiriel ( 1997) e Foucault ( 1980) sobre o problema do perspectivo no momento de escrever história e do fato inevitável de assumir uma perspectiva em particular. 35 A Invenção da Sala de A ula vem ao mesmo ponto, ou que não haja critérios para hierarquizá- las, ou para decidir qual nos parece mais “justa" ou “verdadeira”; apenas nos lembra que esta hierarquização ou decisão é um ato próprio (político, diria Foucault), porque implica tomar posição diante de uma realidade conflituosa e dinâmica. Não renuncia a “conhecer a verdade”, e para isso utiliza todas as ferramentas dos historiadores — essa erudição minuciosa, paciente e cansativa de consultar arquivos e ler documentos. Sustenta, porém, que o que é “justo” e “verdadeiro” também deve ser questionado, pois essas definições são produto de lutas e conflitos específicos. A SALA DE AULA COMO MATERIALIDADE E COMO COMUNICAÇÃO Saber por que a sala de aula que conhecemos é como é ajuda-nos a ver quais decisões foram tomadas no passado e que processos ocorreram para chegarmos a esta determinada confi guração. Nosso argumento central é que a sala de aula onde as lições são ministradas é uma construção histórica, produto de um desenvol vimento que incluiu outras alternativas e possibilidades. Uma vez que a sala de aula é o recinto principal de nossa atividade docen te, questionar o óbvio, ver por que esta opção triunfou e quais opções foram excluídas pode contribuir também para pensar mos outros caminhos para nossas práticas. Para abordar nossa genealogia, queremos discutir pri meiro o que é a sala de aula. Ela tem, certamente, muitos ele mentos. Não apenas os docentes e os alunos, mas também mo biliário, instrumentos didáticos, as questões da arquitetura escolar, tudo faz parte da sala de aula. Os bancos escolares, as lousas e os cadernos têm uma história e uma especificidade pouco r ~ 3 6 t Sala de aula? G enealogia? Definições pana Iniciar o Percurso l conhecidas até hoje.3 Além desse aspecto material, a sala de aula implica também um a estrutura de comunicação entre sujeitos. Está definida tanto pela arquitetura e pelo mobiliário escolar como pelas relações de autoridade, comunicação e hierarquia que apare cem na sala de aula tal como a conhecemos, e que são tão básicas no momento de ensinar que muitas vezes passam desapercebidas. Como se caracteriza essa comunicação da sala de aula? Sabemos que é uma comunicação hierárquica: suas regras não são definidas por todos, há muitas decisões já tomadas quando as crianças e os professores entram na sala de aula. Sabemos tam bém que é uma relação que não está baseada unicamente no saber, que não trata apenas de quem sabe mais matemática, mas que é uma relação de poder: o docente, pelo simples fato de ser professor, independentemente de como ensine ou quanto saiba, tem mais poder do que as crianças para definir o que transmitir a elas. É claro que esse poder não é absoluto, uma vez que o docente ensina em uma escola regida por leis, opiniões, planos de estudo e outras coisas; entretanto, ele tem o poder de definir as pautas dessa relação, de torná-la mais igualitária,mais varia da, ou mais uniforme e hierárquica. Uma vez que a situação de ensino implica uma complexa situação de poder, consideramos que o ensino, como “condução” da sala de aula, pode ser analisado em rela ção ã condução das sociedades e dos grandes grupos. Assim sendo, a sala de aula pode ser analisada como uma situação de governo. São estas conexões entre sala de aula e governo que orientarão nossa genealogia. É esta a perspectiva que elegemos: a história das form as de comunicação e governo da sala de aula moderna como parte de uma história mais ampla, a história do S. S. Os contribuições de Hamilton ( I 989). Cutler (1989) e Johnson ( 1994) sõo trabalhos pio neiros neste sentido. No âmbito do nosso trabalho, o história do caderno de lições e sua difusão na Rrgentino foi trabalhada por Silvina Gwtz (1997). 37 A Invenção da Sala de A ula governo das sociedades modernas. Certamente, pode haver genea logias que orientem o leitor em outras direções (a sala de aula como surgimento do indivíduo moderno ou como lugar de pro fissionalização docente, para citar alguns outros exemplos), mas acreditamos que esta é uma linha central na reflexão pedagógica da qual nem sempre nos encarregamos como educadores. Quan do um professor lê o recibo de seu salário ou percebe a quanti dade de instâncias que estão acima dele e que decidem sobre sua tarefa (ministérios, leis, diretores, especialistas), pode pen sar que não tem poder algum. Esta estrutura do sistema, as frus trações diárias e os poucos sucessos tornam difícil para os pro fessores pensar sobre o poder em geral e sobre seu próprio poder em particular. Em outro ponto, vimos como o poder é algo que está em todos os lugares, é onipresente; e como circula, se trans forma e se consolida.6 Em seguida, tentaremos mostrar como foi construída essa estrutura de poder particular que é o ensino na sala de aula, e se as form as da “liderança ” da sala de aula se relacionam com as form as de “liderança” na sociedade e na política. Tentaremos verificar se algumas características do governo das sociedades modernas têm algo em comum com as formas do “governo das crianças”, como alguns autores definiam a educação há 200 anos. Se durante muito tempo se falou da educação “autoritária”, terá sido porque houve ditaduras ou porque o totalitarismo também está presente na sala de aula, em seu interior? Este uso do termo “autoritário” talvez nos diga que entre a condução da sociedade e a “condução” da aprendizagem existem algumas analogias. As vinculações entre governo e pedagogia foram ampla mente discutidas por outros autores, entre eles o filósofo Imma- nuel Kant, sobre quem voltaremos a falar mais adiante. Há algu- 6. fí esse respeito, consultor nosso trabalho anterior, Caruso e Dussel ( 199ó) capítulo 3. : 38 mas décadas, quando Sigmund Freud — o fundador da psicaná- |jSC__começou a refletir sobre quando deve terminar a terapia psicanalítica, e tentou formular qual seria o ponto de maturidade da ação terapêutica, encontrou-se diante de uma questão ainda mais radical. Existe realmente esse momento no qual se pode afir mar que uma pessoa está curada? Freud responde provisoriamente que sim, e acrescenta: “Detenhamo-nos por um momento para garantir ao analista nossa sincera simpatia por ter que cumpri-lo com requisitos tão difíceis no exercício de sua atividade. E até parecería que analisar seria a terceira das profissões ‘impossíveis’, em que se pode dar antecipadamente como certa a insuficiência do resulta do. ris outras duas, há muito conhecidas, são educar egovernar” (Freud, 1937; 1986, p. 249; a parte em itálico foi destacada por nós). Com esta afirmação, que voltaremos a analisar no último capítulo, Freud tenta formular algo além do simples fato de que a educação não termina nunca, que nenhum go verno é para sempre, simplesmente porque não existe gover no “completo” ou “perfeito”, ou que o final de uma terapia psicanalítica é um momento relativo. O que a afirmação de Freud parece sugerir é que talvez educação, psicanálise e gover no tenham estru turas semelhantes. As três atividades propõem- se a modificar o indivíduo em determinada direção; ao mes mo tempo, as três enfrentam a dificuldade de moldá-lo de acordo com um esquema prefixado — pois assim como não existe governo totalmente onipotente e eficaz, que consegue tudo aquilo a que se propõe, também não existe um processo educativo que garanta totalmente que o produto final seja o esperado. Em nossa abordagem genealógica, proporemos que os problemas da educação são mais bem -compreendidos quando os enfocamos como parte das relações de poder e de estru turas de governo e de organização da sociedade. S-UA DE AULA? GENEALOGIA? DEFINIÇÕES PARA h OAR O PERCURSO 3 9 A Invenção da Sala de A ula D o GOVERNO À "GOVERNAMENTALIDADE" Para entender a sala de aula e a condução da aprendiza gem como recintos e atividades vinculados ao governo das socieda des, proporemos algumas definições que nos acompanharão na ar gumentação. Dizemos que “proporemos” as definições porque, assim como “o movimento é demonstrado andando”, como dizia Carlitos Balá, as definições consolidam-se quando ajudam no entendimen to de nosso objetivo: a sala de aula. Comecemos pelo governo. O “governo”, entendido como qualquer tipo de estru tura de ordem social que organize as energias e as forças, e que resolva conflitos, surge quando as sociedades se tornam mais complexas. Pode-se observar que as culturas tribais, embora não possuam uma instituição estatal desenvolvida, têm algum tipo de condução, onde as decisões que afetam toda a comunidade algumas vezes cabem às mulheres, e em outras, aos anciãos. Entretanto, ao falarmos aqui sobre governo, estamos nos referindo a um fenômeno ainda mais específico. Se retrocedermos até a Idade Média, encontraremos sociedades onde existiam rela ções de autoridade e de obediência, relações desiguais de poder, e também uma espécie de tropa ou exército do qual se valia o se nhor feudal, dono da terra, para impor sua vontade. Entretanto, no sentido exato em que utilizamos o termo em nossa argumenta ção, não existia um governo. O senhor era dono das terras e as arrendava aos camponeses. Estes permaneciam ligados ao “senhor”, não podiam abandonar as terras que ocupavam e aceitavam suas regras em troca de uma série de benefícios, como a proteção con tra perigos “externos”. Entretanto, o senhor feudal não centrava seu domínio no fato de os camponeses (seus servos) pensarem bem a seu respeito ou estarem de acordo com esta ordem. Tam pouco o rei (primus inter pares, ou senhor entre os senhores) o 4 0 Sala de aulaP G enealogia? Definições para Iniciar o Percurso fazia. Antes do início da modernidade — que dataremos ao redor de 1500 — , os reis herdavam terras, casavam-se com as filhas de outros reis para expandir seus domínios, e certamente também guerreavam para conquistar novos territórios e obter outros des- pojos de guerra. Entretanto, entre suas atividades, além de arreca dar os impostos dos camponeses e de outros senhores (com vio lência, se fosse necessário), não se preocupavam em convencer seus súditos de que todos faziam parte de uma unidade coletiva, ou da justiça da ordem social.7 Por esse motivo, as identidades “nacionais” eram menos que incipientes, e os sentimentos de união coletivos eram articulados através do cristianismo. Este se apre sentava como um elo universal, uma vez que todos os homens, ou pelo menos todos os cristãos, eram considerados irmãos. Desse modo, na Espanha da época, quem vivia sob o reinado de Isabel, a Católica, não era identificado em primeiro lugar como espanhol ou castelhano, mas basicamente como cristão. A noção de “governo” como tal surge na modernidade, ou seja, com o lento desaparecimento das formas feudais que des crevemos no parágrafo anterior. Este processo é muito complexo, uma vez que muitos fatores concorrem para sua estruturação: eco nômicos (o surgimentodo capitalismo), políticos (a expansão colo nial até a América, a Ásia e a África), sociais (a crescente urbaniza ção da Europa ocidental) e religiosos (o desafio protestante). Este último processo interessa-nos de maneira especial, porque teve pro fundas conseqúências sobre a pedagogia. Com a Reforma protes tante e as guerras religiosas que banharam de sangue a Europa até 7. Çmbora o Igrejo argumentasse que o poder distribuído dessa maneiro correspondia à vontade divina, suo próprio capacidade para convencer os súditos ero limitada (Broujn, 1996). Uma omostra da limitação do poder de persuosõo do Igreja é a sobrevivência maciço das superstições locais, das antigas divindades romanos e germânicos em Forma de deuses naturais, deuses da fertitidode e do relâmpago. 41 A Invenção da Sala de A ula 1648, abriu-se um cisma dentro do cristianismo que obrigou as igrejas a rever seu relacionamento com seus fiéis. Uma vez que exis tiam duas religiões concorrentes no mesmo ambiente cultural e ter ritorial, já não era suficiente que os fiéis obedecessem a determina dos rituais: tomou-se necessária a interiorização das crenças e o exercício de um controle superior sobre elas para evitar que os fiéis se identificas sem com a outra religião. As duas religiões, mas principalmente a protestante, afirmavam que, para ser um bom tiel, a pessoa deve trabalhar sobre si mesma, perguntar a si mesma quem é, o que quer e no que acredita. Este processo de autoconhecimento foi denomi nado por Michel Foucault — em outro contexto — como técnicas do eu. Nessa época, começam a surgir muitas referências a algo que até então apenas determinados círculos haviam experimentado (prin cipalmente conventos e monastérios): a consciência. Ter uma cons ciência boa ou má tornou-se o elemento central da religião. Essas técnicas do eu, essas questões dirigidas a si próprio são o que chamaría mos de a base de nossa conduta, ou seja, de nossa “condução”. Ao longo desses séculos, conduzir a si próprio, controlar-se através da boa ou má consciência converteu-se em algo primordial para as pessoas (Kittsteiner, 1991, p. 357 e ss.). Do mesmo modo, o pai de família começou a questionar-se sobre suas obrigações, entre elas a educa ção de seus filhos, embora naquele momento a “educação” fosse compreendida como algo diferente daquilo que entendemos hoje. O que ocorre entre os séculos 16 e 18 é a constituição de uma moral coletiva ainda vigente entre nós, embora conviva mos com os sintomas de sua prolongada crise. Esse processo de moralização interessa imensamente aos reis e a outras autoridades da época, que vêem o mundo transformar-se diante de seus olhos. Já não se trata de impor a obediência cega sob ameaça de violência, mas de obter a obediência reflexiva, aceita como correta. A obediência com “boa consciência”, a obediência “interior”, toma-se cada vez 42 mais importante. Como veremos nos próximos parágrafos, a pe dagogia desempenhará papel fundamental na estruturação das obe diências e na configuração das moralidades. Em relação a esse processo, uma primeira definição de governo, breve e sintética, é a seguinte: trata-se da condução das conduções. Sem dúvida, este “conduzir” está longe do ato de dirigir automóveis, e talvez mais próximo da “conduta” dos boletins es colares: como alguém se comporta, como se conduz. C onduziras conduções não é fácil. O primeiro requisito é que a população “sinta” que deve conduzir a si mesma, que deve cumprir as regras e que, caso não o faça, deve justificar-se e saber por que não as cumpre, e aceitar um castigo ou reprimenda. A idéia de que é preciso go vernar-se, controlar os impulsos, comportar-se de acordo com determinados códigos e refletir sobre as causas e consequências de nossos atos é um fenômeno que, embora reconheça antece dentes na Antigüidade clássica, se expandiu apenas durante os séculos que estamos analisando. O camponês da Idade Média, embora pagasse os impostos anuais, não tinha necessidade de jus tificar-se detalhadamente por seus atos, nem de “comportar-se” ou “conduzir-se” de maneira minuciosamente regrada. Isto não significa que fosse livre ou que pudesse fazer o que bem entendes se. Por um lado, não era livre em termos jurídicos, e tinha muitas obrigações para com seu senhor; por outro, sua vida tinha outras regulações, provenientes de seu relacionamento com a natureza, de sua religiosidade e de seu trabalho como camponês. O que queremos destacar com esta comparação retrospectiva é que o “poder central” (reis e senhores) não estava interessado nem pro curava justificativa para o que seu subordinado pensava, sentia e fazia, a não ser em relação às suas obrigações mínimas. Uma vez que a população aceita a necessidade de go vernar-se a si própria, o segundo requisito é agrupar, organizar e 5ala oe aula? G emfalogia? Definições p a r a Iniciar o Pfrcurso 4 3 A Invenção da Sala de A ula selecionar estas conduções, definindo quais dessas condutas po dem ser consideradas desejáveis e quais não o são. Por esse mo tivo, definimos governo como essas definições sobre as conduções dos súditos, essa condução das conduções individuais. A esse respeito afirmou Michel Foucault: “Em minha opinião, o ponto de con tato no qual a forma de dirigir os indivíduos está ligada a outras conduções, como a forma de condução de si próprio, pode ser chamado de governo. Em um sentido amplo da palavra, ‘gover no’ não é uma forma de forçar os homens a fazer coisas que o governante deseja; na realidade, trata-se antes de um equilíbrio móvel com agregados, e de conflitos entre as técnicas que garan tem a obediência (imposição) e os processos através dos quais uma pessoa se desenvolve e se transforma” (Foucault, 1993a, pp. 203-204). Ou seja, para criar um governo, para criar um estado de “governamentalidade” (uma mentalidade de governo, que aceite e valorize o governo), duas coisas são necessárias: em primeiro lugar, a condução de si próprio; e em segundo lugar a articulação, a união, a combinação de muitas conduções (a do pai, a do professor, inclusive a do médico) com a condução glo bal de um estado moderno. Estas duas conduções não necessa riamente coincidem: muitas vezes, o ato de autogovemar-se vai contra aquilo que a sociedade impõe, e dessas discrepâncias sur gem espaços de liberdade. Assim, o governo moderno, longe de ser a antítese da liberdade, é sua condição de possibilidade — pois a condução de si próprio e dos demais implica, paradoxal mente, a administração e a regulação da liberdade: governar-se é aprender a fa ze r uso da liberdade, de um a liberdade que nem é pura nem está livre de contaminação, mas que surge das aprendizagens sociais, das regidações e dos espaços intersticiais criados por das. * O governo deve ser produzido e, mais do que isso, deve ser produzido de maneira constante. “O conceito de ‘arte de governar’ 4 4 ií Sala oe aula3 Genealogia3 Definições para Iniciar o Percurso remete à ‘artificialidade’ das técnicas de condução (...)” (Lemke, 1997, p. 158; a parte em itálico foi destacada por nós). Esta artifi cialidade refere-se a uma “arte” que age sobre a natureza; é algo que deve ser inventado, provado, avaliado, modificado, uma vez que não se pode pegá-la como se pega uma maçã de uma árvore. Neste processo, a educação do príncipe que governa, ou governa rá, e a educação do governado passam a ter importância crucial. Assim sendo, o governo também se define pela maneira como se pensa a quem e a que se diríge a condução. Nos primórdios da modernidade — por volta de 1500 até 1700 — , surgiram duas formas para defi nir as práticas de governo: a primeira (prevalente na Idade Média) afirmava que governar era ter a soberania sobre um território, en quanto que a segunda considerava que governar não se referia so mente a um território, mas principalmente a objetos ou pessoas. “(...) o conceito de ‘governo’ não envolve uma questão de imposi ção das leis aos homens, mas dedispor as coisas: isto é, de empre gar mais táticas do que leis, e inclusive utilizar as leis como táticas em si mesmas” (Foucault, 1991, p. 95). Embora desde a Antigui dade clássica (gregos e romanos) sempre tenham existido alguns tipos de leis, códigos ou regras de validade geral, o governo mo derno, embora continue a utilizá-los, combina-os com novas formas: por exemplo, quando um governo “investe” em determinados em preendimentos econômicos, já não se trata de aplicar uma lei, mas sim de outro tipo de intervenção, que regula outros aspectos da vida social, introduzindo novos agentes e novas instituições. A es cola fa z parte desses novos tipos de intewenção: a preocupação em for mar a consciência da população e de criar uma nova aceitação para as coisas que jã existiam (os impostos, por exemplo) ou para as novas in tervenções (o serviço militar obrigatório, por exemplo). Para desenvolver essas táticas, a acumulação de conhe cimentos sobre os objetos (homens e materiais) que devem ser i 4. A Invenção d a Sala de A ula conduzidos constituiu fator primordial. A partir do século 16, vai tomando forma lentamente um saber que foi denominado “ciências do governo”. De acordo com estas “ciências”, não se governa um pedaço de terra ou simplesmente umaJamília, e sim uma população. O conceito de população é mais um que também nos parece natural, e, no entanto, aparecerá bem mais tarde na his tória das práticas de governo. Governar é, portanto, conduzir uma população (idem, p. 99). Este é o espaço central da pedagogia, uma vez que trata de educar as consciências e os corpos.8 Â sala de aula como a conhecemos e também as estruturas que a precederam são situações sociais nas quais se produzem as con duções. Em primeiro lugar, interessa que a criança conduza a si mesma, seja ficando quieta em seu banco ou conduzindo seu pró prio pensamento durante a aprendizagem. Em segundo lugar, que conduza a si mesma por meio de e com base em modelos, pautas e normas definidas pelo condutor dessas conduções: o professor e, acima dele, o Estado. Nos postulados da pedagogia com relação à sala de aula, principalmente com respeito ao método, pode-se observar como se produz uma certa “governamentalidade”, esta do que permite que sejamos governados. Em seguida, analisare mos de que maneira a sala de aula se estruturou como uma situa ção de governo na qual as crianças, os jovens e também os professores deveríam ser conduzidos. Veremos, por um lado, como surgiu na pedagogia uma condução especificamente moderna — ad o professor na sala de aula onde as lições são ministradas; e como se vincula esta nova situação com a tendência a longo prazo do mundo moderno de produzir a condução de si mesmo e de combinar todas as conduções em uma condução central, ou governo. 8. Note-se que o estatístico educacional menciona "população escolor" quando se refere a grupos de alunos. 46 N asce a S ala de A u l a : o P ap el da R eligião como P arteira R eTOMEMOS o exemplo da pergunta usual sobre a educação. Se perguntássemos agora quais são as tareias principais da escola elementar, básica ou primária, teríamos muitas respostas diferen tes, embora certamente todas elas coincidissem em poucos ele mentos: ler, escrever, contar ou fazer operações. Entretanto, como vimos no exemplo da educação imaginada para o herdeiro da co roa espanhola, na Idade Média e no início da modernidade estes conteúdos não estavam incluídos. O historiador Phillippe Ariès afirma que “conhecimentos empíricos e elementares (...) não eram objeto do ensino escolar: os mesmos eram ensinados no interior da família ou durante a aprendizagem de um ofício por meio de um tipo particular de aprendizagem” (Ariès, 1996, p. 226). A essa época, a escola elementar, de nível primário, não existia com esse conceito. A “escolarização” estava associada à cultura clássica e ao latim. Considerava-se que as escolas existiam em relação a outras funções da cultura, muito ligadas à teologia e à formação dos ecle siásticos. Por esse motivo, a ninguém ocorreria reclamar uma es cola para todos. Entretanto, ocorreram transformações que modi ficaram esse panorama. Neste capítulo, desejamos mostrar alguns processos que conduziram à invenção da sala de aula na escola elementar ou primária. Neste sentido, queremos registrar algo já mencionado, porém igualmente importante: programas e proje tos não conduzem as realidades educativas; pelo contrário, cho- cam-se com elas. No entanto, estes programas e projetos marcam A Invençào da Sala de A ula a direção do desenvolvimento, as formas que a sociedade deseja para sua socialização escolar, e, assim sendo, têm algum tipo de efeito sobre as duras realidades sociais. Neste histórico sobre o nascimento da sala de aula, veremos que o trabalho de parto é difícil, contraditório e muito pouco “natural". Queremos demons trar de que maneira foi inventada a escola elementar, induzida por processos sociais, políticos e culturais mais amplos. Por en quanto, estaremos concentrados na visualização da situação de partida, ou seja, o que ocorria antes da “sala de parto”. ( P ré) - história: um olhar ao final da Idade M édia Entre as instituições existentes na Idade Média, as univer sidades desempenhavam papel central. Estavam organizadas de maneira muito diferente da que conhecemos atualmente, com es colas preparatórias, um tanto caóticas, onde se ensinavam elemen tos da cultura clássica, como o latim, a lógica e a retórica, e faculda des onde o ensino tinha certa semelhança com o ensino de terceiro grau de hoje em dia. Sem dúvida, estas instituições educativas aten diam a um público minoritário, embora diversificado (Le Goff, 1984). A escola elementar, por sua vez, é uma invenção moderna. Como dissemos, mesmo quando existiam formas de aprendizagem ele mentar antes da modernidade, não tinham semelhança com a escola que conhecemos hoje. Em nosso percurso, estaremos concentrados nas técnicas prescritas para os níveis inferiores desses colégios ou escolas de latim, que recebiam indivíduos que hoje identificaría mos como crianças (aproximadamente 10 anos de idade). É importante salientar que os estudantes e os escolares constituíam uma categoria distintiva nas cidades da Idade Média, 48 I Nasce a Sala de Au ia : o Papel da Religião como Parteiiu l sendo indivíduos detentores de certas imunidades e de privilégios, que se organizavam em grupos e escolhiam seus professores, e os remuneravam. Inicialmente, as universidades eram itinerantes, e funcionavam “por empréstimo” em instituições eclesiásticas ou em casas particulares. Não havia assentos propriamente, tanto que se espalhava feno sobre o chão para evitar dores nas costas (ver figura 5, Alt, 1961, p. 126). Entretanto, estes estudantes, muitas vezes provenientes do campo, de famílias aristocráticas, porém rurais, precisavam de um lugar para dormir e onde guardar seus pertences. Desde o século 15, as pensões mais ou menos improvi sadas onde moravam transformaram-se, por pressão da campa nha eclesiástica cie moralização da vida estudantil, em uma espé cie de internato. Tratava-se de tirar os estudantes de seu espaço de liberdade: a rua. “A partir desse momento, não se tratava mais de garantir aos estudantes pobres a manutenção de suas vidas, mas sim de superar esse estágio e obrigá-los a uma maneira de condu zir suas vidas que os protegesse das tentações do mundo exterior. Assim, os estudantes foram submetidos a uma vida comunitária determinada pelo espírito de uma prática religiosa, garantida por meio de estatutos permanentes” (Ariès, 1996, p. 247). A arqui tetura dos colégios tomou-se mais complexa, com espaços para oração, claustros e salas de aula, que eram as mesmas para todos e organizadas com assentos dispostos em duas filas voltadas uma para a outra ao longo da sala. O professor ocupava uma das extremida des da sala e circulava pelo amplo espaço livre entre os alunos. Mais tarde, esseespaço fechado recebeu funções educati vas. Já não se tratava simplesmente de manter as crianças confina das fora do horário da escola — que continuava sendo externa — , mas sim de transformar essa pensão, onde se realizavam ritos reli giosos e se praticavam rotinas determinadas, em um espaço de aprendizagem. A problemática do governo das crianças como “o 49 A Invenção da Sala de A ula grande tema da pedagogia que surge e se desenvolve no século 16” (Foucault, 1991, p. 87) toi algo novo e rompeu com as tradições estabelecidas. O governo das crianças ajustou-se progressivamente a um modelo de confinamento em instituições que buscavam a formação completa, em todos os aspectos, da criança ou do adoles cente. Evidentemente, este modelo não se generalizou por comple to, uma vez que estas instituições eram caras, porém o internato passou a ser considerado a condição ideal para a aprendizagem. A ima gem do estudante da Iclade Média — um menino de 10 anos podia começar seus estudos de gramática — que se deslocava de uma condição de aprendizagem a outra, por espaços utilizados para o ensino, mas que não eram muito diferentes nem mais higiênicos do que um estábulo, foi paulatinamente substituída pela imagem de um estudante que se subordinava a normas cotidianas concretas e a um espaço escolar separado da vida na ma (Snyders, 1974). Fig. 5. Aprendizagem da gramática na alta Idade Média, extraído de um manuscri to inglês do século 14 (Extraído de: R. A lt. Pictorial History of Education and Schools, vol. I ,Volk und W issen Volkseigner Verlag, Berlim, 1961). 50 Nasce a Sala df Aula. o Papfl da Religião como Parteira Consideremos os elementos da estrutura de comuni cação da sala de aula que estava em formação. Ariès demonstrou q u e esta nova consciência de que a criança precisava de um es paço específico é responsável pela lenta formação das salas de aula de acordo com a idade. “Durante muito tempo, a escola comportou-se com indiferença frente à divisão por idades por que seu objetivo principal não era a educação das crianças. A escola de latim da Idade Média não estava preparada para assu mir os papéis da formação moral e social. A escola medieval não se destinava aos escolares — era antes uma espécie de escola técnica para o ofício sacerdotal, tanto ‘dos velhos quanto dos jovens’. Assim, admitiam-se na escola todos os estudantes possí veis, sem preocupação de serem eles crianças, jovens ou adultos” (Ariès, 1996, p. 458). Embora já começasse a ser definido um espaço separado — uma sala de aula dentro de uma escola — e já se pensasse em antecipar a alfabetização das crianças, os pro cessos que ocorriam nesse espaço estavam vinculados ao passado. “O ensino da escrita pelo professor, vale lembrar, era quase um ensino para adultos. Daí decorre uma forma de ensino (...) orien tada para os ofícios e suas corporações na Idade Média, e que se destinava aos aprendizes” (Ariès, 1996, p. 419). Ou seja, o cânone do conhecimento ampliava-se às crianças pequenas, mas o pro blema é que não havia um método específico para elas. Por um lado, porque não haviam sido realizadas experiências de escola- rização infantil em grande escala, mas principalmente porque, como argumenta Ariès, a infância como tal, como identidade que demanda tratamento e sensibilidade particulares, não exis tia na idade Média, e estava sendo formada paulatinamente na então nascente modernidade. Assim sendo, as cenas de ensino descritas pelo autor são um tanto grotescas: são formas vincula das à prática de aprendizagens, porém sem método específico: 51 “ “ : A Invenção da Sala de A ula “assim devemos imaginar o andamento do ensino: uns apren dem a soletrar, outros, a cantar” (Ariès, 1996, p. 405). Por que motivo, questiona Ariès, a criança começa, nessa época, a ser vista com outros olhos? O que leva a socieda de a, de um momento para outro, considerar que as crianças merecem um tratamento especial? No nível da sala de aula, o que se pergunta é por que motivo as crianças precisam de uma torma de comunicação “metódica” especial. O cenário em que se instala este processo é a Europa do s tc u lo 16. Uma Europa dividida em “confissões”. A SALA DE PARTO DA SALA DE AULA! A DIVISÃO EM RELIGIÕES Analisar o surgimento da sala de aula e da pedagogia como fenômeno específico implica notar a emergência de um novo mundo, de uma nova cosmovisão: a da modernidade. Em outro trabalho (Caruso e Dussel, 1996), assinalamos que os sé culos 15 e 16 marcam a consolidação de uma nova era social, caracterizada por uma urbanização crescente, uma estruturação territorial dos estados, uma concentração do poder em estrutu ras centralizadas como as monarquias e o advento de novas for mas de saber denominadas científicas. Esses fenômenos são pro duzidos simultaneamente ao descobrimento da América, em 1492, e à divisão do cristianismo europeu ocidental em várias religiões, e são catalisados por estes acontecimentos. Trataremos, em particular, deste último, por seus efeitos na configuração da pedagogia moderna. A esse respeito, é preciso salientar que o saber letrado era preservado no âmbito da Igreja, e que os inte-; lectuais da época geralmente eram clérigos que observavam, em • ifráflL* - *4 52 Nasce a Sala de A ula : o Papel da Religião covo Papteip.a maior ou menor grau, as regras da vida religiosa (Le Goff, 1984). É natural, portanto, que os debates teóricos e a estrutura das instituições e das regulações sobre a transmissão da cultura ocor ressem nos espaços religiosos. Martinho Lutero (1483-1546) foi o iniciaclor dessa divi são. Clérigo católico da Baixa Saxônia (atual Alemanha), iniciou sua vida religiosa em um convento, porém foi posteriormente enviado a Wittemburgo, onde se tornou doutor e passou a ensi nar teologia. Na manhã de 31 de outubro de 1517, Lutero não suspeitava que o papel que levava em suas mãos para fixar na porta da igreja de Wittemburgo seria o início de grandes transfor mações, e também de grandes guerras, na Europa pós-medieval. Havia formulado 95 teses contra práticas e crenças da igreja, e pedia uma discussão a respeito. Rapidamente, formaram-se fren tes a favor e contra Lutero, e os estados europeus nascentes e suas casas monárquicas tomaram posições diversas. Ainda que esta história seja conhecida como o nasci mento dos que protestavam — os protestantes — , trata-se de um movimento com muitas expressões. Figuras como Lutero povoa ram o norte da Europa desde antes da manifestação do desafio organizado: por exemplo, 200 anos antes, era possível verificar a existência de cultos cristãos que já não aceitavam a autoridade papal, e que foram perseguidos e exterminados. O movimento da Reforma teve expressões diferentes em Calvino, em Zwinglio, e no desenvolvimento do anglicanismo, na Inglaterra, e do presbi- terianismo, na Escócia, e em Jan Huss, em Praga, entre outros. As demandas dos protestantes centravam-se na solicita ção de novas formas de autoridade religiosa. O aspecto mais co nhecido dos questionamentos de Lutero é a crítica maciça à práti ca da confissão-absolvição, e das vantagens materiais relacionadas 53 A Imvenção o a Sala df A ula a ela — já que nessa época era possível comprar o perdão da Igreja. Lutero atacou essa forma por sua hipocrisia e porque alguns papas haviam utilizado essa arma de maneira política e financeira, vendendo perdões em troca de favores. Entretanto, havia também em seu protesto uma volta ao fundamento doutrinário, que, para alguns teólogos, constitui um fundamentalismo: para Lutero, o importante não é a absolvição; o importante é não pecar. Mas como evitar o pecado? Lutero sabia que mesmo um exército de religio sos não podería evitar o pecado se os próprios fiéis não estivessem convictos de que era preciso resistir a ele. Conclamou seus segui dores a converter-se em supervisores de sua consciência e de suas boas ações. Ao invés de propor uma vigilância espiritual exterior, propôsoutro procedimento: em lugar de um controle impossível e dispendioso para os soberanos, sugeriu formar a consciência dos fiéis e trabalhar sobre seu íntimo. Lutero opôs-se ao uso da força em matéria de crenças: para ele, a fé era uma questão de consciência individual, e a coerção poderia produzir efeitos con trários naqueles que a buscavam (Sabean, 1984, p. 42). A inten ção dos protestantes era governar as almas: para tanto, estabelece ram práticas como a leitura coletiva da Bíblia e o hábito de escrever diários íntimos, que fomentavam a reflexão cotidiana sobre a con duta (Rose, 1990)4 Na visão dos protestantes, cada fiel é responsável por sua salvação, e o pastor é um administrador ou conselheiro, de quem não dependem nem a salvação, nem a condenação. A 9 9. A/este sentido, sõo interessantes alguns debotes da época sobre se deveríam ou não ser oplicodos castigos aos fiéis que não cumpriam os rituais religiosos. 6m olgumas províncias olemãs. por exemplo, castigavom-se com repreensões e oté com a prisão os pessoas que não freqüentovom a missa e que não faziam seus juromentos religiosos.- entretanto, a maioria dos teólogos protestantes opôs -se a estos repreensões, enfatizando que o trans gressor deveno desenvolver arrependimento ou sentimento de culpa interior para sanar suo falta (Sobeon, 1984. cap. I). 54 1 ( Nasce a Sala de A ula- o Papel da Religião como Parteira condenação ou a salvação depende das ações de cada um (We- ber, 1997). E sta jonna de autoridade, que, simplijicadainerite, subs titui a autoridade da Igreja exterior pela consciência interior, foi aceita no norte da Europa, em algumas regiões da França, em toda a Escandinávia, na Holanda e na Suíça. A Alemanha atual — á época, um conglomerado de diversos principados — aderiu ma ciçamente à Reforma, porém um terço da população manteve-se no catolicismo. O que hoje pode parecer uma discussão superficial sobre idéias religiosas significou, no entanto, 150 anos de en- frentamentos e causou uma das guerras mais sangrentas da his tória européia. Enquanto escrevemos este capítulo, 20 chefes de Estado da Europa celebram o tratado de paz de Westfalia, firma do há 350 anos (1648), que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos entre as religiões, assim denominadas a partir do surgimento de Lutero: a católica e a protestante. Imaginemos um mundo que conhecia uma religião hegemônica, e que, de um momento para outro, tem duas opções que competem entre si e se enfrentam. Tanto a Reforma protestante, com sua ênfase na consciência in dividual, como a Igreja católica, com suas posições tradicionais, realizaram então grandes esforços para manter os fiéis a seu lado. Nos livros de História, este processo é denominado “Re forma e Contra-Reforma”. Falaremos mais detalhadamente da “confessionalização” das sociedades. A investigação histórica concluiu que as ações da Igreja para manter a fé de seus liéis, para conseguir novas formas de obediência não constituem so mente uma reação ao desafio da Reforma protestante: na Itália, como também na Espanha da Reconquista, os estados e a Igreja empreenderam grandes campanhas de “moralização”, diante de transformações inacreditáveis para a época — como o desco- A Invenção da Sala de A ula brimento da América, a desestabilização de antigas formas de autoridade, o crescimento das cidades, etc.10 O que a Reforma protestante parece, sim, ter feito foi acelerar este fenômeno e cristalizar duas versões da religião cristã na Europa ocidental, que se denominam “confissões” (Reinhard, 1995, p. 390). Este processo de “confessionalização” estreitou os vínculos entre reli gião e política, e constituiu uma forma de “invasão” do religioso nas outras esferas da vida: o religioso e sua estruturação conver teram-se em princípio articulaclor da sociedade (Schilling, 1992). Esse processo ocorre paralelamente, e, por vezes, em oposição à constituição dos Estados modernos e à formação dessa sociedade que na introdução denominamos “moderna”, com indivíduos dis ciplinados e autogovemados. O historiador francês Jean Delumeau afirma: “Desde que, após o Renascimento, as igrejas começaram a exercer seu peso em um Estado mais poderosamente constituído do que antes, as duas Reformas, cada qual a seu turno, puderam vigiar os povos da Europa com muito maior escrúpulo e eficiência do que seria concebível apenas um século antes. Como resultado, em 1700, depois de anos de perseverante esforço, havia sido al cançada uma situação na qual a religião se apresentava como uma escolha pessoal, como uma decisão do coração e da mente, como um caminho para a salvação, porém uma situação em que todos ou quase todos estavam comprometidos em ir à igreja, e em que 10. Por porte do Cstodo, forom os famosos Reis Católicos que propiciorom umo forte ofensivo cristã com opoio estofo/, que incluiu tombém o expulsão dos religiões judio e muçulmano do território espanhol. No Itólio. é conhecido o coso de Sovonarolo (1452-1498). um monge dominicano fundomentolisto que. com seus seguidores, tomou o poder no cidode de Florenço e tentou introduzir umo teocracia (governo segundo o religião) e umo vido regulamentado de ocordo com regros estritos de um cristianismo fundomentolisto. Os se guidores de Sovonorolo são conhecidos por suos queimas de quodros e livros, suo rejei ção à vido daquela cidode comercial que ero o Florenço do época. Cstes são dois exem plos de que. em visto do início dos tronsformoções modernos, o reoçõo religioso hovio começado ontes de Lutero (Zentner. 1990. p. 495). 56 Nasce a Sala de Aula : o Papel da Religião como Paiueiua as pessoas demonstravam um nível de pontualidade jamais atin gido anteriormente” (Delumeau, citado em Hunter, 1998, p. 105). Dessa forma, pode-se dizer que, principalmente a par tir do surgimento do protestantismo, já não bastava às igrejas que os fiéis apenas repetissem rituais que muitas vezes não com preendiam (a missa ainda era rezada em latim): buscavam-se a convicção interior e que as pessoas tivessem uma conduta não apenas obediente, mas também consciente, a cada momento, de quais eram as decisões, por que motivo eram tomadas e como eram praticadas. A este propósito, pode ser útil a comparação entre o Requerimento ou Comunicação aos índios, escrito em 1513, e as palavras de Lutero sobre seus fiéis. O Requerimento, documento que informava aos índios que o Papa havia outorgado suas terras aos espanhóis e portugueses, era lido aos aborígenes americanos por um cura evangelizador, sem intérprete, pressu pondo-se que aqueles que o compreendessem e o aceitassem seriam seres capazes de receber a graça divina, e que os demais sofreriam penas terríveis. Não importam aqui a compreensão ou a consciência, apenas a dominação e a submissão (Puiggrós, 1996). Lutero, por outro lado, propôs que no momento da co munhão o fiel estivesse consciente de seu ato: “quem quiser comungar precisa ser capaz de repetir por si mesmo as pala vras da comunhão e declarar, com palavras simples, que deseja receber na comunhão a palavra e o sinal da graça” (Schwarz, 1990, p. 115). Como veremos, pouco tempo depois do desafio luterano, algumas ordens da igreja católica retomariam esses postulados, com seus próprios matizes. A pedagogia apresentou-se como um espaço significa tivo para essa nova tarefa de governar as almas. Como fazer para tornar as pessoas mais crentes, não às cegas, mas conhecendo 57 A Invenção da Sala de A ula bem a Bíblia — assunto que não estava, de fonna alguma, resol vido — e mais, como fazer para que conheçam e aceitem a inter pretação específica da Bíblia de sua profissão de fé? Para a Euro pa daquela época, este era um problema enorme. Em suas pregações doutrinárias, Lutero argumentou que o acesso de todos à leitura é a melhor maneira de colocar o crente em contato com a divindade — o que, por vezes, é associado com a expressão nem sempre feliz de “livre interpretação da Bíblia”. Para garantir es sas aprendizagens,produziu um fato notável: traduziu a Bíblia do latim para a língua vulgar — neste caso, o alemão falado na Baixa Saxônia. Isto deu à confissão luterana ou protestante um ar gumento central para tentar desenvolver maciçamente uma nova ins tituição: a escola elementar Lutero escreveu um documento inti tulado “Aos alcaicles e intendentes de todas as cidades sobre o dever de fundar e manter escolas cristãs”, no qual pedia apoio material e político para a criação de estabelecimentos onde se ensinassem “alemão, a Bíblia e a palavra divina" (Lutero, 1969, p. 69). Note-se que se ensinava a ler, mas não a escrever; a escri ta estava reservada às escolas superiores. A figura do professor de escola multiplicou-se nas aldeias, ainda que muitas vezes essa pessoa soubesse apenas ler e escrever, e tivesse se dedicado a ensinar a cantar e tocar órgão nas igrejas (Sabean, 1984, p. 16). Outra questão importante é que, ainda que se considerasse que a mulher ocupava posição subordinada em relação ao homem, era preciso instruí-la para que educasse corretamente seus filhos dentro da fé cristã. Isto levou a um crescimento relativamente rápido da alfabetização das mulheres nos países protestantes (Graff, 1986). Muitas vezes, as mulheres dos pastores (que pro vavelmente tinham um nível de instrução muito rudimentar, e não sabiam escrever) educavam as meninas, enquanto que os pastores encarregavam-se dos varões. 5 ô Nasce a Saia df Aula o Papel da Religião como Paiueika <*. f tiír fôatjtyroiaHfr ttfdtr tmitfríjfs ÍMbe:t>40 fic auffríd)tmrc vrtb í^ltm foliem íTCrtrtíriUôjLim&cr. XX>útem&rg. m . jD, 36 36 mj. 3UfT: bte fyriber tji» mír tomm t>rmb werct md)t f% Uu o* Fig. 6. Ilustração da Bíblia de Lutero (Extraído de: H. Schiffer e R. Winkeler. Taunsend Jahre Schule. Eine Kulturgeschichte des Lernens in Bildern, Belser Verlag, Stuttgart-Zurique, 1993). 59 De maneira geral, o protestantismo, com as diferentes correntes que o constituíram, deu grande impulso à escolariza- ção, e, em particular, à pedagogia. Preocupado com a conforma ção de uma nova instituição e um novo indivíduo, centrou-se nas formas de propagar sua pregação a amplas massas da popu lação. Algumas tendências, principalmente a dos calvinistas em Genebra, foram mais longe e tentaram criar uma sociedade dos homens “à imagem e semelhança” das escrituras cristãs. Nelas se valorizavam e se prescreviam ordem e disciplina rigorosas, e a escola foi estruturada segundo esses parâmetros. Muitos dos clé rigos e leigos que ali se educaram difundiram por toda a Europa os novos métodos de ensino baseados em uma organização se- qüenciada do conhecimento. Aparentemente, os calvinistas tiveram muita influên cia na adoção de termos como currículo, aula e método na pe dagogia (Hamilton, 1989, p. 46 e ss.). Em primeiro lugar, prega vam que a vida devia seguir uma regra, uma ordem, determinadas pelo cumprimento das sagradas escrituras, e que a Igreja devia impor essa disciplina a seus fiéis. Junto à desconfiança sobre as tendências naturais que os levavam a ter rígidos códigos de dis ciplina, os calvinistas aderiam à idéia de que o homem (orienta do pela Igreja) podia dominar suas paixões, e que devia educar- se dentro desse objetivo. Assim, deram muita importância ao método de ensino e de orientação da Igreja. Na Academia de Genebra, formaram grande número de discípulos vindos de to das as partes da Europa, que posteriormente ensinariam em seus locais de origem. Um deles, o escocês Andrew Melville, foi o diretor da Universidade de Glasgow, onde implementou seu sis tema — uma combinação da aprendizagem com Calvino e das tradições medievais. As reformas que impôs incluíam: residên cia obrigatória de cada reitor ou diretor da Universidade dentro ! Nasce a Sala de Aula-, o Papel da Religião como Parteira das instalações da escola; cada professor era obrigado a limitar- se a uma única área de conhecimento (latim, grego, gramática); a promoção dos estudantes estava condicionada a conduta e pro gressos satisfatórios ao longo do ano; a universidade, por sua vez, reconheceria esse progresso nos estudos como complemen to do curriculum (esta parece ter sido a primeira vez em que essa palavra foi associada ao sentido moderno de “curso de estudos” que tem atualmente). Fig. 7. Planta da escola de Guilford , 1557-1586, planta baixa e prim eiro pavimento.com as datas em que cada cômodo foi construído. (Extraído de:M. Seaborne. The English SchooI. Its Architecture and organization, 1370-1870, University of Toronto Press, Toronto, 1971) (Tradução: schooI room: sala de aula: courtyard: pátio; staircase: escada; master's house: aposentos do professor; usher's house:aposentos do professor assistente; library: biblioteca; great chamber. grande dormitório. Por outro lado, a confissão católica também reagiu a esse desafio. Em 1534, fundou-se uma nova ordem dentro da Igreja católica, denominada Societas Jesu (Companhia de Jesus). Seus oponentes chamavam seus integrantes, ironicamente, de “jesuítas”, nome que se consagrou com a acelerada expansão da ordem. Os jesuítas formaram uma corte hierarquizada, com 61 I A Invetçã:. S - .a de A ula algumas reminiscências militares, que combateu a crescente in fluência dos protestantes. Uma característica muito específica cios jesuítas foi sua obediência direta ao Papa, em oposição à dependência ao monarca ou ao senhor local, como acontecia anteriormente. Os jesuítas destacaram-se por sua ação educati va, fundando inúmeros colégios e universidades que, em pou cos anos, espalharam-se por toda a Europa. Como bem expres sou Émile Durkheim no início do século 20,11 embora os jesuítas tentassem recuperar o terreno perdido para a Reforma protes tante, “tiveram que compreender muito rapidamente que, para alcançar seus objetivos, não bastava apenas pregar, confessar, catequizar: mas que o verdadeiro instrumento de dominação das almas era a educação da juventude. Decidiram, então, apoderar- se dela” (Durkheim, 1992, p. 293). No caso das colônias ameri canas, sua ação, juntamente com a dos franciscanos, será funda mental para a educação da elite crioula e indígena. Em síntese, para produzir uma posição católica ou protestante de profunda convicção, ambas as Igrejas encontra ram um espaço em desenvolvimento ao qual dedicaram aten- 11 11. Emile Durkheim (1858-1917). que voltaremos a mencionor no capítulo 4, foi um teórico social francês considerado um dos grandes clássicos do sociologia. Seus diversos traba lhos defendicm a posição de que muitos fatos considerados "pessoais " ou "naturais" de corriam, no verdade, de estnjturas sociais. Por exemplo, o foto de que estatisticamente o número de suicídios de protestontes é maior do que o de católicos levou Durkheim a ver o suicídio como um fenômeno social influenoodo pelos diversos regras dessas confissões, e não simplesmente como umo decisão pessoal. Mesmo ossim, questionou-se sobre como serio possível que os sociedades se mantivessem unidos e. nesse contexto, escreveu diversos trobolhos sobre o popel da educação a esse respeito. Entre suas obros desta- cam-se: fi divisõo social do trobolho (1895). O suicídio (1897), Rs formos elementares do vido religioso (1912) e vários textos metodológicos. Entre seus trabalhos sobre educação encontram-se: Historio do educação e dos doutrinos pedogógicos (oulas dos anos 1904- 1905. publicados pela primeira vez postumamente, em 1939) e Educoção e sociologia (1911). Ver tombem, de vónos autores. Educação e sociedade (1980). Rindo que os posições de Durkheim não sejam desenvolvidos neste trabalho, trato-se de umo leitura recomendável poro o percurso aqui proposto. “ 62 Nascl a 5ala df A ula o Papel da Religião como Parteira ção, cuidados, programas e controle: a escola. Para governar os fiéis sob a ameaça da existência de outra confissão, foi ne cessário um processo de afirmação de certas disposições, atitu des e idéias. Em função de suas características de duração,perse verança e constância, o processo de escolarização aparecia como a forma maciça ideal para atingir esse objetivo. A SALA DE AULA CHEGA COM ATITUDE DOMINADORA! DEFINIÇÃO DO PODER PASTORAL Como vimos, a sala de aula como espaço particular começa a delinear-se no final da idade Média. Entretanto, a pergunta sobre o que deveria ocorrer entre as quatro paredes da sala de aula era ainda uma questão totalmente aberta, ou ao menos em gestação. Em seu livro sobre o surgimento da escola moderna, Anne Querrien afirma que a pergunta inicial da pedagogia era: como dirigir e ensinar uma tropa de alunos? como governá- los? (Querrien, 1979, p. 45). Para a autora, o único modelo disponível para esta tarefa era o modelo militar, portanto a sala de aula foi estruturada como um espaço no qual se produz uma militarização particular. Sem dúvida, os exércitos — que ainda não eram as formações disciplinadas e uniformizadas que conhecemos atualmente — não eram o único modelo de referência sobre como governar um grupo. As tradições religiosas proporcio navam outro modelo que inspirou muitos pedagogos no m om ento em que perguntaram de que maneira a sala de aula deveria ser organizada: o pastorado. Tudo parece indicar que, àquela épo ca, os pedagogos não viam numerosos conjuntos de alunos como uma “tropa”, mas sim como um “rebanho”. 63 A Invenção da Sala de A ula Na visão de um grupo de crianças como um “reba nho”, estabelece-se um tipo de conduta, uma forma de liderar a situação que denominamos “sala de aula”, que tenta articular-se e vincular-se com essa conduta de si mesmo baseada na boa ou má consciência: o poder pastoral. A vinculação entre o desen volvimento da modernidade e a idéia do poder pastoral que ex poremos a seguir deve-se também ao trabalho de Michel Fou cault. A idéia básica do poder pastoral é que o poder do pastor não é exercido sobre um espaço, uma cidade, mas sim sobre um rebanho ou um conjunto de homens que sê deslocam (Foucault, 1992a, p. 268 e ss.). Esta idéia é uma representação ancestral do poder que provém das grandes culturas asiáticas da Antigüidade (judeus, semitas, babilônios, entre outros). Pensemos no caso clássico de Moisés no Antigo Testamento. Se Moisés tem poder, não é sobre um território limitado, sobre fortificações, etc., mas sim sobre um grupo de pessoas cuja identidade é percebida como comum. Essa idéia continua viva em muitas culturas que vivem de maneira nômade, como os ciganos ou as tribos berberes do deserto do Saara. Assim, a idéia do pastor e do rebanho também pode ser entendida em uma situação de diáspora ou de disper são, em que um povo se desloca e permanece como povo, ape sar de haver perdido seu território. Foucault contrapõe esse modelo ao modelo grego da cidade e do cidadão. Enquanto em sua forma ateniense o exercício do poder constitui um direito e é a base da democracia, no caso das formações pastorais é visto como uma obrigação moral do pastor para com seu rebanho, e deste com relação a seu pastor. Esta forma de poder não se diferencia da forma grega apenas por acentuar as “obrigações”, e não os direitos; também não basta reconhecer que, enquanto na concepção grega se trata de governar as coisas, no poder pastoral trata-se fundamental Ó4 Nasce a Sala de Aula : o Papel da Religião como Parteira mente de governar as pessoas. Para caracterizar o poder pastoral de maneira abrangente, devemos identificar seus propósitos: o objetivo não era somente a melhor disposição das coisas para os homens, mas também sua salvação. Este objetivo ambicioso exigia técnicas que mantivessem o rebanho como totalidade, e, ao mesmo tempo, técnicas que se ocupassem de cada membro do rebanho. Fou cault identificou essa orientação como um poder dedicado “a todos e a cada u m ” (em latim, Omnes et singulatim). Este tipo de condu ta trabalha com uma economia sutil de pecados e merecimen tos, tendo sempre como objetivo a salvação. Uma vez que o pas tor decide de que maneira deve ser interpretado e solucionado esse equilíbrio entre atos bons e atos maus, exige-se do partici pante do rebanho obediência absoluta. Com relação ao tema da obediência, Foucault comenta: “de um meio para alcançar um fim, a obediência transforma-se em um fim em si mesmo: a obe diência não é mais um instrumento para se chegar a ser virtuo so, mas (...) converte-se ela própria em virtude. Obedece-se para alcançar um estado de obediência” (Foucault, citado em: Lemke, 1997, pp. 154-155). O fato de analisarmos os primeiros passos da sala de aula através do modelo do poder pastoral não implica, de nossa parte, uma desqualificação ou uma atitude de censura quanto ao que nela ocorre. Como dissemos, o universo religioso consti tuía o reservatório da cultura letrada, e era natural que se recor resse às tecnologias disponíveis à época para a transmissão do saber. É verdade que identificar as raízes religiosas de nossas práticas docentes vai na contramão da própria visão que a escola pública construiu sobre si mesma, como espaço secularizado e claramente diferenciado da Igreja — questão que ficará mais clara no capítulo 4, quando abordaremos o último século de escolari- zação; e, neste sentido, pode causar certa irritação. No entanto, 65 A Invenção da Sala de A ula acreditamos que colocar em evidência essas relações e homolo- gias entre as práticas de aula e o poder pastoral pode alertar-nos quanto aos efeitos dessa técnica de ensino e dessa utilização do poder, que são diferentes de pensarmos a sala de aula como um sistema de democracia ateniense, para citar outro exemplo. Como salientamos no capítulo introdutório, o ensino e a aprendiza gem sempre envolvem relações de poder, e, portanto, nunca são neutros em seus efeitos e resultados. De qualquer maneira, para nós é desejável poder ter maior consciência desses fatos e tomar decisões mais responsáveis. Recapitulando, a boa ou má consciência dos séculos 15 a 18 constituiu a forma pela qual se buscou que as pessoas se identificassem maciçamente com a profissão da fé católica ou com algum dos diversos grupos protestantes. A partir da estru turação de instituições pedagógicas a cargo do Estado local ou nacional, o poder pastoral estabeleceu que a consciência era o objetivo a se buscar para a produção de uma nova obediência, uma obediência que não fosse superficial. Foucault afirma que o tipo de condução pastoral baseou-se em uma coerção moral, quase obrigatória, a qual, além do mais, foi uma condução per manente. O ponto central é que a “obediência” já não consistia em fazer o que se dizia que devia ser feito — ou seja, uma obe diência exterior — , mas passou a ser, na época da divisão religi osa em catolicismo e protestantismo, uma consciência aceita e “interior”. Embora essa obediência nunca fosse completa, o gran de programa de moralização foi formulado e implementado, e influenciou a conformação do Estado e do indivíduo modernos (Schmitt, 1997, p. 648 e ss.). De que maneira se traduziu na pedagogia esta inten ção de moralizar as sociedades em meio a guerras e mudanças de credo religioso? Para começar, a pedagogia surgiu com nova 66 Nasce: a Sala de A ula o Papel da Religião como Parteira força. Um grupo de intelectuais urbanos — os humanistas — propôs programas pedagógicos para as elites, que são citadas com maior frequência nos livros de História da pedagogia. Erasmo de Rotterdam, Vittorino da Feltre, entre muitos outros, escreve ram longos tratados sobre a educação dos futuros príncipes e cortesãos, e insistiram na necessidade de reformar os costumes e as maneiras de se comportar em sociedade, incluindo, como vi mos no capítulo anterior, preceitos que envolviam desde como assoar o nariz em público até como comer (Elias, 1990). No entanto, quem se ocupou das grandes massas, quem formulou programas para a escola de massa e popular em gestação? Omnes o u o l a d o g r u p a l d a s a l a d e a u l a : O M É T O D O G LO B AL DE J A N A m OS C O M E N IO 12 Surge neste período a figura de Jan Amos Comenio (1592-1670), outro reformador religioso que se comprometeu com a causa da autonomia dos checos (dominados por diversos principados alemães), e morreu no exílio, em Amsterdã, após inúmeras peripécias. Comenio foi um clérigo preocupado com a universali zação da mensagem divina, com a leitura da Bíblia e com a mora lização de grandes massas. Escreveu várias obras educativas — 12. Falaremos do método global de ensino que todos nós conhecemos: um professor dirige- se a um grupo de olunos e organizo centrolmente o situação de aprendizagem. No enton- to. usaremos também, poro coracterizó-lo. a polovro "frontal'. que se encontro na biblio grafia de língua alemã. Fnquonto com a polovro globol se enfotizo o papel do docente de maneira gerol, o fato de sua polovro olconçor todos os alunos, com a polovro frontal salienta-se o organização espociol do método em função de umo posição frontol ocupodo pelo professor. De qualquer maneiro, esclarecemos que ombos os termos referem-se à mesma situação de comunicação no interior da sola de oulo. 67 A I nvenção da Sala de A ula entre elas, livros com ilustrações e um famoso livro de ensino de línguas estrangeiras, utilizado durante 400 anos nas escolas eu ropéias. No entanto, sua obra programática mais importante no campo da pedagogia é a Didactica Magna (1632), obra que mar ca a fundação da didática escolar moderna. Embora não chegue a transformar as práticas educativas de sua época, estabeleceu as premissas sobre as quais se estruturou a sala de aula moderna. A tese central de Comenio — seu sistema de metáforas — apoiava-se na natureza: “ao procurar os remédios para os de feitos naturais, devemos procurá-los na própria natureza. (...) Daí se deduz que essa ordem que pretendemos que seja a idéia universal da arte de aprender e ensinar todas as coisas não deve e não pode ser buscada de outra forma que não por meio do que ensina a Natureza” (Comenio, 1986, pp. 106-108). Por exem plo, quando tratava de fundamentar o conceito de solidez como eixo do método para ensinar e aprender, Comenio desenvolvia princípios ou axiomas, tais como “a natureza não faz nada sem uma base ou sem raiz”, apresentando-os como imitação da na tureza (neste caso, a árvore que cresce quando suas raízes se afirmam, ou o arquiteto que constrói uma casa sobre os alicer ces). Da mesma maneira, os docentes devem começar por tor nar seus alunos dóceis e atentos, basear-se em seus gostos e suas vontades, e educar seu entendimento e sua memória. Essas são as raízes do ensino-aprendizagem (Comenio, 1986, pp. 156-158). Sua concepção era cosmológica, ou seja, estava basea da em uma ordem “natural”, considerada parte da criação divi na. Dentro dos projetos educativos elementares do século 17, Comenio representou uma linha não antropocêntrica, uma vez que o homem não constituía o centro do curriculum: enquanto outros programas inclinavam-se pela representação das coisas 68 Nascf a Sala de A u l a : o P apel da R e l ig iã o co mo Pa r t e ir a tal como o homem as vê e tal como as utiliza, “Comenio apre senta as coisas em sua ordem divina” (Helmer, 1990, pp. 684- 685). Acreditava que por meio da imitação da natureza seria possível chegar a implementar as leis da criação divina e alcan çar sua perfeição. Na parte final da Didactica Magna, afirmava: “É nosso desejo que o método de ensinar alcance tal perfeição que exista, entre o que até agora era usual e corrente e este novo procedimento didático, a mesma diferença que admiramos en tre a antiga arte de multiplicar os livros por meio da cópia e a arte de impressão dos livros, recentemente descoberta, mas que já se tornou costume” (Comenio, 1986, p. 308, tradução modi ficada pelos autores).13 Neste século da “confessionalização”, em que se procurou produzir uma nova piedade, uma fé mais fun dada na reflexão e na interiorização, o sucesso do ensino passou a ser fundamental. Ao formular seu método, Comenio conside rou a eficácia da transmissão como uma questão central. “(...) até hoje, o método de ensino foi tão indeterminado que qual quer pessoa se atrevia a dizer: ‘Educarei este jovem em tantos e tantos anos, de um jeito ou de outro, etc.'. Para nós, parece que este método deve ser: ‘Se a arte desta plantação espiritual puder estabe- lecer-se sobre uma base tão firm e, que seja empregada de maneira segura sem que possa fa lh a r’ ” (Comenio, 1986, p. 121). Educar não era uma atividade simples que qualquer pessoa pudesse exer cer; pelo contrário, a pessoa deveria conhecer as regras do méto do e estar disposta a aplicá-las. Como vimos, esta idéia do méto do e da ordem era muito cara aos protestantes; Comenio desenvolveu-a amplamente para o ensino elementar. 13. Comenio escreveu suo obro em latim, o que era comum em suo époco. Cmboro tenhamos adotado como bose o tradução espanholo fornecida pelo editora Flkal, introduzimos modi ficações em algumas citoções da tradução alemã de 1913. que foi realizado por umo prestigiosa equipe de latinistos. A Invenção da Sala de A ula No entanto, Comenio tinha consciência da ruptura que sua tecnologia de sala de aula supunha em relação ao mundo medieval e com as formas de aprendizagem elementar do passa do. Opunha-se às formas de ensino que iam contra a vontade da criança (1986, p. 141) e às pessoas que recorriam ao castigo como método educativo (1986, p. 151); propôs também que, em lugar dos salões escuros e impessoais observados na figura 1, as salas de aula fossem ambientes agradáveis, cheios de luz, lim pos e com pinturas educativas sobre as paredes (1986, p. 142). Entretanto, mais do em qualquer outra coisa, a novi dade do método residia em seu caráter sistemático e em seu fun damento na natureza, em sua globalidade e frontalidade. Come nio enunciou, como programa do futuro, a sala de aula que hoje chamamos de “tradicional”: o professor — como figura centrali zada ou “encarnação” da autoridade — expõe didaticamente, diante dos alunos, que o escutam e obedecem. Um problema central desta proposta é conseguir que os alunos efetivamente escutem, e assim surgiu o tema da motivação-atenção como objeto de preocupação da pedagogia. A esse respeito, Comenio anuncia o que, à época, era uma orientação nova: “para qualquer estudo que deva ser empreendido, é preciso preparar o espírito dos alu nos. É preciso despojar os alunos de impedimentos. De nada adianta transmitir preceitos se antes não tiverem sido removidos os obstáculos que se interpõem aos alunos, afirmou Sêneca” (Co menio, 1986, p. 127). O método coloca o problema novo de captar a atenção de todos, no momento em que a educação ele mentar passa a ser obrigatória — não do ponto de vista legal, mas do ponto de vista moral. Uma vez que a natureza começa toda sua atividade no interior, saindo para o exterior, “deve-se formar primeiro o co nhecimento das coisas; em segundo lugar, a memória; e, em ter " 7 0 Nasce a Saia de A ula: o Papel da Religião como Parteira ceiro lugar, a fala e a mão. O docente deve levar em conta todos os meios para abrir o conhecimento e utilizá-lo de maneira con gruente.” (Comenio, 1986, p. 130). Daí decorre a necessidade de formular “princípios” ou fundamentos “para a facilidade de ensinar e aprender”. Estes princípios afirmam que: I. Deve-se começar cedo, ames que o espírito seja corrompido; II. Deve-se atuar com a devida preparação dos espíritos; III. Deve-se proceder do geral para o particular; IV E do mais fácil para o mais difícil; V Não se deve pressionar nenhum dos alunos; VI. E todos os procedimentos devem transcorrer devagar, VII. E não se deve obrigar os espíritos a nada que não seja conveniente para a idade e para a lógica do método; VIII. Ensina-se tudo pelos sentidos atuais; IX. Para sua aplicação imediata; X. E sempre por um método único e constante. Comenio, 1986, p. 138. Observemos que os princípios não mencionavamnada sobre a organização da sala de aula: não diziam, por exemplo, se o professor deveria controlar individualmente cada aluno ou falar com todo o grupo. Tentavam apenas garantir que a mensagem docente chegasse aos alunos, lecionando em seu ritmo constante. Existe um elemento na cosmologia de Comenio que estrutura toda sua didática: o panteísmo, caracterizado dentro de uma corrente ampla de pensamento cujo auge ocorreu en tre os séculos 15 e 17 (Hroch, 1992). Trata-se de uma concep ção intermediária entre a visão sagrada do mundo que existia na Idade Média e as novas correntes profanas da ciência e do conhecimento da natureza: “Uma vez descoberto ou intuído o sistema da natureza, atribui-se a ele a onisciência divina, que impregna toda a criação de uma certa ordem, porque a mente A Invenção da Sala de A ula divina é perfeita. É o que a Escolástica chama de ‘ordenado por um ente uno’. A partir deste conceito, a concepção panteísta, formulada pela primeira vez por São Francisco de Assis, sus tenta que a idéia ordenadora é algo que está na natureza huma na, porque tudo na natureza está impregnado de Deus. Trata- se de uma idéia de tradição oriental que não estava nem na tradição bíblica, nem na cristã: toda a Criação está impregnada de seu Criador, e este está na Criação” (Romero, 1987, p. 80).14 Se o ensino extrai sua estrutura da natureza, ela passa a admi rar o mundo como “Criação”. O eixo central do método é esta relação que Romero descreve como “ordenado por um ente uno”; ou seja, a variedade empírica e concreta da natureza — ainda que pareça desordenada — é, na realidade, uma ordem que provém de um “ente uno” ou totalidade singular como princípio organizador. Para Comenio, este “ente uno” era, cla ramente, a divindade. Por esse motivo, quando introduziu o método global ou frontal, o fez como uma metáfora naturalista que continha essa idéia de um “ente uno” oposto a uma varie dade empírica: “o sol”, que “não se ocupa apenas de objetos singulares — por exemplo, um animal ou uma árvore — , mas que ilumina, aquece e dá vida a toda a terra” (Comenio, 1986, p. 176). Com esta metáfora naturalista, apresentava-se o méto do global: a partir de então, a pedagogia passaria a postular que o professor (ente uno) ordenaria uma variedade de alunos diante de si. O princípio unificador na sala de aula era uma tentati va de fazer sentir a divindade por meio dessa “derivação” da natureza, que é o ensino global. Esse princípio estava presente 14. Como vimos no caracterização que Foucault Foz do poder pastoral, trato-se — ossim como o ponteísmo — de umo tradição oriental. 72 Nasce a Sala de A ula o Papel da Religião como Parteira no ideal metodológico de Comenio. Como “a natureza trabalha sempre da mesma maneira”, Comenio recomendava: 1. Que existisse um mesmo e único método para ensinar ciências; apenas um único e o mesmo para todas as artes; e um único e idêntico para todos os idiomas; 2. Que em cada escola fossem seguidos a mesma ordem e o m es mo procedimento em todos os exercícios; 3. Que, na medida do possível, os livros de cada matéria tivessem edições iguais. Dessa forma, todas as coisas aconteceriam, fa cilmente e sem nenhuma dúvida. Comenio, 1986, p. 153. Não apenas se unificava o método, mas também o docente aparecia com toda sua centralidade, como encarna ção da unificação. Embora diante da característica maciça da sala de aula de sua época utilizasse como ajudantes os alunos mais adiantados ou mais hábeis (chamados monitores, a exem plo da pedagogia jesuítica que analisaremos a seguir), Come nio não queria que a autoridade centralizada do professor se diluísse. As funções centrais, como a responsabilidade de ga rantir a atenção dos alunos, cabiam ao professor: “Essa aten ção não pode ser despertada ou mantida simplesmente pelos monitores ou outras pessoas às quais seja confiada a inspe ção: esse trabalho é realizado mais adequadamente pelo pró prio professor (...)” (Comenio, 1986, p. 180, tradução m odi ficada pelos autores). Comenio propôs uma sala de aula na qual se configu rava uma autoridade centralizada por meio da fala direta ao rebanho ou grupo que se situava à sua frente. No contexto da Reforma protestante, movimento do qual sua ordem fazia par te como seita dissidente, tal proposta não era surpreendente. 73 A Invenção da Sala de A ula No protestantismo, a pregação constitui o eixo central da mis sa; é “o meio clássico de comunicação religiosa na forma de um discurso público”. Desse modo, a pregação utiliza uma “forma de apresentação própria”. Centralmente, “a pregação é entendida principalmente pelas pessoas que freqüentam o ser viço religioso regularmente e que podem ver-se confrontadas com a interpretação religiosa da realidade exposta pelo pastor” (Drehsen, 1995, p. 993). Assim sendo, tudo parece indicar que o método glo bal ou frontal adota muitos elementos da tradição e da cena da pregação. Assim como a regularidade da freqüência à missa é uma característica importante para a aceitação dessa represen tação particular, dessa “interpretação” da realidade, que é a pregação, a regularidade do ensino e sua cotidianidade assegu ram que aqueles que escutam possam fazer parte da cena se guindo sua forma de apresentação; que é diferente das comu nicações que existem fora da escola. A com unicação hierarquizada e ritualizada estabelece-se por meio de uma cena constante, que se repete mediante diversos conteúdos. No entanto, essa unificação da figura da autoridade e de sua cen- tralidade não significa que a relação de autoridade seja uma simples imposição. Comenio afirmava; “é preciso ensinar aos homens, enquanto é possível, que devem conhecer as azi- nheiras e as faias, não pelos livros, mas pelo céu e pela terra; ou seja: conhecer e investigar as próprias coisas, e não obser- ivações e testemunhos alheios sobre elas”. Para tanto, reco mendava que “nada deve ser ensinado simplesmente a partir ia autoridade: tudo deve ser exposto por meio da demons- :ração sensorial e racional (Comenio, 1986, p. 163, tradução nodificada pelos autores). 74 Nasce a Sala de A ula o Papel da Religião como Paiueip.a Pensemos nas conseqüências. A azinheira e a faia, o céu e a terra não estão na sala de aula. O livro e o professor, sim. Ou seja, somente se o livro e o docente tiverem uma es trutura de acordo com a natureza poderão exercer uma influ ência semelhante à dessa natureza, que, como vimos, é uma expressão da divindade. No entanto, essa influência de acordo com a ordem natural deve ser compreendida, e não apenas “percebida”. No mesmo método que unificava a autoridade em uma pessoa e suas ações (o docente), Comenio negava que tal autoridade fosse o único princípio docente. Nesse pastorado imaginado por Comenio, as “ovelhas” praticariam “técnicas do eu” baseadas na obediência por meio da compreensão. Não lhe interessava a obediência cega à autoridade, mas sim a obediên cia pensada, aceita: temos aqui o programa de Lutero desen volvido em sua expressão máxima. Assim, para ele, o proble ma do controle direto era secundário: “pode-se argumentar que a inspeção individual é necessária para o controle, para verifi car se cada aluno tem seus livros limpos, se faz suas tarefas com seriedade, se memoriza os detalhes, etc. E para tanto, quan do são muitos os alunos, há necessidade de muito tempo. Res pondo: não é preciso ouvir todos sempre, nem revisar sempre os livros de todos. Pois o docente conta com o auxílio dos monitores, que exercerão vigilância sobre os alunos sob seus cuidados para que cumpram seus deveres com a maior preci são” (Comenio, 1986, p. 182). Desta vigilância surgiria a obe diência reflexiva. O que importava era adequar as almas con forme essa natureza divina. O governo das crianças apresenta-se nesta versão por meio de sua condução grupai. Comenio acre ditava que a obediência grupai, mais do que o controle indivi dual, constituía a técnica escolar adequadapara conduzir a alma das crianças maciçamente. 75 ( I A Invenção da Sala de Aula ( ( ( Figs. 8 e 9. Ilustrações dos livros Janua linguarum reserata (1675) e Orbis sensualium pictum ( 1658), de Jan Amos Comenio. (Extraídas de: R. A lt Pictorial History o f Education and Schools, vol. I .V o lk und W issen Volkseigner Verlag, Berlim , 1961). 76 Nasce a Sala de Aula : o Papel da Religião como Parteira O programa pedagógico de Comenio não chegou a se concretizar completamente, e, superando a Didactica Magna, suas obras mais difundidas foram seus livros didáticos “sensoriais” (apren der por meio de imagens, como em Orbis sensualium pictum, já men cionado). Embora hoje seja considerado normal ou natural, o mé todo global ou frontal não era facilmente assimilável em sua época. De maneira geral, nas escolas luteranas e protestantes, assim como nas católicas, prevaleceu a “memorização simples” (Karant-Nunn, 1990, p. 36). E como veremos, mesmo dois séculos depois, a gene ralização do método global-frontal era uma grande inovação. S lN G U L A T IM OU O LA D O IN D IV ID U A L IZ A D O R DA SA LA DE a u l a : o m é t o d o d o s j e s u í t a s Embora Comenio tenha-se baseado em como a centra- lidade da pregação poderia ser transferida para as formas de co municação da sala de aula, existiu também uma pedagogia que acentuou o outro aspecto do poder pastoral: a atenção a cada indivíduo (Singulatim ). Já mencionamos anteriormente que a escolarizaçâo foi uma das tarefas prediletas dos jesuítas, que, no entanto, imaginaram em sua pedagogia uma sala de aula dife rente daquela proposta por Comenio. A pedagogia jesuíta está materializada na regulamen tação de estudos válida para todas as escolas da ordem em todo o mundo: a Ratio Studiorum. Esta regulamentação foi elaborada ao longo de várias décadas, por meio de consultas às diversas organizações da ordem, e com base em experiências que se acu mulavam na área escolar. A primeira versão definitiva foi final mente sancionada em 1599, mantendo-se em vigor até 1832, quando recebeu pequenas modificações. Todas as obras da pe 77 I A Invenção da Sala de A ula dagogia jesuíta dedicaram-se a comentar, introduzir, exemplifi car e detalhar a Ratio S tudiorum , motivo pelo qual essa obra as sumiu o caráter de texto pedagógico básico dentro da ordem. Os jesuítas insistiram decididamente nas relações entre o ensino, o governo e a pregação. Um membro da ordem poderia não ser um grande teólogo, nem estar interessado nas sutilezas da discussão religiosa. Nesse caso, os jesuítas abriam a seus irmãos outra possibilidade: uma carreira escolar. Esta atividade prestava- se àqueles que podiam fazer pregações e governar.15 Os jesuítas foram provavelmente a primeira ordem a dedicar-se à formação de um corpo erudito, que ocupou posições não apenas ensinando outras gerações como parte da ordem, mas também dentro da crescente burocracia do Estado (Varela, 1983). A sala de aula jesuíta era um espaço claramente recor tado da vida diária, onde se falava apenas o latim e onde se ensi navam conteúdos literários clássicos. O latim, o grego e a religião constituíam a essência do curriculum. Dentro da estratégia do po der pastoral, a pedagogia jesuíta deu destaque à questão da aten ção individual, provavelmente derivada da tradição da prática católica de confissão e absolvição, tão criticada pelos reformadores protestantes. Um dos obstáculos para esse método era o grande número de alunos na sala de aula jesuíta (calcula-se que no espaço pedagógico conviviam entre 200 e 300 alunos). Os jesuítas esfor çavam-se para criar um método que conservasse tanto a indivi dualidade quanto a educação de massa. Para tanto, criaram a figura do monitor: identificava-se o aluno mais esperto ou mais 15. O ortigo 7 do Rotio Studiorum dedaro: "se olguém afino! nõo tiver um talento extraordiná rio, mos tiver um dom excepciono! poro fozer pregações e governar', pode compensar suas deficiências na disputo teológico com suas hobilidodes "que sdo de interesse da Sociedade', por meio de mais oportunidades de formação com vistos a um futuro posto escolar (Rotio Studiorum, 1887. p. 249). 78 Nasce a Sala de Aula . o Papel da Religião como Parteira adiantado, capaz de controlar os demais individualmente em seu processo de aprendizagem, e esse aluno era nomeado ajudante do docente. A esse respeito, diz a Ratio Studiorum: O s monitores devem ser escolhidos pelo docente. Os mesmos devem ouvir o que foi memorizado, devem recolher os trabalhos escritos para o docente, devem anotar em um caderno quantas vezes a memória falha, quem não fez o trabalho escrito ou quem não trouxe os materi ais; devem também realizar outras coisas, caso o docente assim deseje. Ratio Studiorum, 1887, p. 395.16 Os monitores foram uma criação da pedagogia jesuíta que determinava grande parte da vida cotidiana na sala de aula. Nas regras para os professores das classes iniciais, o artigo 19 determina: Os escolares devem repetir para os monitores aquilo que deve ser memorizado. (...) No entanto, os próprios monitores devem repetir o que deve ser memorizado diante do monitor superior ou do pró prio docente. O professor deve ouvir a repetição de alguns alunos, como, por exemplo, os mais lerdos e aqueles que chegam tarde, para poder comprovar a confiabilidade dos monitores e para manter o esmero de todos os alunos. Ratio Studiorum, 1887, p. 385. Ou seja, assim como o restante dos alunos, o próprio monitor também é testado de maneira individual. Essa forma de fazer perguntas individualmente equivale ao que em nossa cultu ra pedagógica identificamos como “dar aula”. Nome curioso, uma vez que se supõe que a aula seja um discurso contínuo, enquanto 16. Nos citações do Rotio Studiorum. tomamos com bose o edição bilíngue (lotim-olemõo) de Pachtler (1887). que foz porte de importante série documental do final do século 19: Monumento Germonioe Poedogogico. 79 A I nvenção da Sala de A ula que a aula escolar que conhecemos lembra muito mais um inter rogatório (uma forma de conlissão?) do que a apresentação sus tentada e contínua de um tema. Além da participação dos moni tores, existia ainda na sala de aula jesuíta a aula como ação exercida pelo docente. No artigo 27 das regras para professores das classes iniciais, consigna-se sua estrutura: em primeiro lugar, lê-se em voz alta um trecho de um texto, “em seguida explica-se muito sucintamente seu conteúdo, e, caso seja necessário, a relação com o que foi visto anteriormente”. A seguir, explicam-se as orações obscuras, “relaciona-se uma coisa com outra e esclarece-se o sen tido, porém não de maneira infantil, substituindo um termo por outro, mas sim por meio de uma explicação real do sentido por meio de orações mais claras” (Ratio Studionim , 1887, p. 391). No entanto, a aula era apenas uma pequena parte da jornada escolar. Os jesuítas preocuparam-se mais com a ativida de contínua na sala de aula e com a personalização do contato. Vejamos as regras para o professor de humanidades: A divisão do lempo é a seguinte: na primeira hora da manhã, os monitores devem ouvir o que foi memorizado com relação à elo- qüência e à métrica; enquanto isso, o docente corrige os trabalhos escritos recolhidos pelos monitores, e os escolares fazem alguns exer cícios determinados pelo docente; finalmente, alguns escolares de vem falar diante da classe aquilo que guardaram de memória, e o docente deve controlar as anotações feitas pelos monitores. Ratio Studiorum, 1887, p. 385.17 17. Çsta organização é bosicamente o mesma paro outros disciplinas. Por exemplo, as regras paro o professor de retórica, artigo 2. estabelecem que: "a divisão do tempo é o seguinte: na primeira hora da manhã, (os alunos) repetirão o que foi memorizado; o docente corrige os trabalhos escritos recolhidos pelos monitores, e. enquanto isso, diversos exercícios escolores são dados aos alunos: finalmente.o docente repete o liçãoanterior" (Ratio Studiorum, 1887, p. 401). 60 Nasce a Sala de A ula o Papel da Religião como Parteira Basicamente, a sala de aula jesuíta é uma sala de aula de indivíduos. A unidade à qual o docente se dirige é um aluno, seja ele um aluno “raso” ou um monitor. O importante é que, nesse procedimento de interrogatório ou repetição, o docente jesuíta trabalha basicamente conteúdos de memorização que devem ser reproduzidos na sua presença. Aparece aqui, com grande eloquên cia, o caráter quase obrigatório do pastorado: a “salvação” do alu no implica aprender um texto concreto, que deve ser memoriza do e estar à disposição na memória a qualquer momento em que o docente o solicite. De certa forma, o aluno que repete seu texto diante do docente jesuíta confessa seu pecado e o expurga, acei tando a orientação, o texto e o ritmo que o docente determina. A esse respeito, podem ser salientadas analogias entre a aula-inter- rogatório jesuíta e os “exercícios” que seu fundador, Santo Inácio de Loiola, havia escrito para purgar os pecados da alma. Os “exer cícios” de purificação eram pequenos martírios que os fiéis infligiam a seus corpos para “purificar” a alma. Enquanto repete suas frases na língua oficial dessas escolas — o latim — , o aluno jesuíta apren de que a obediência é uma virtude; o importante não é apenas o texto curto de Cícero que deve memorizar, mas também a mecâ nica de que existe uma ordem determinada e um papel designado para cada um. Ainda que esta idéia esteja na base de cada situação na sala de aula, e que também seja encontrada nas prescrições de Comenio, a particularidade do jesuíta é que o aluno responde e obedece como indivíduo. Em Comenio, o momento da obediên cia é basicamente um momento coletivo, no qual todos, a um só tempo, ouvem as mesmas coisas, preparadas de forma a produzir efeitos semelhantes em todas as cabeças. Outra diferença é que, no caso dos jesuítas, o sistema de vigilância sobre a obediência está muito mais desenvolvido e or ganizado. Cada aluno devia confessar-se pelo menos uma vez por 81 A Invenção da Sala de A ula mês, sempre com o mesmo confessor, que, dessa forma, manti nha a relação de seus confidentes. Como manifestado pelas reco mendações aos docentes da ordem do padre Jouvency, no século 17, a partir desse conhecimento íntimo, nada acontece por acaso — nem o sermão, nem a aula, nem o livro que o professor traz debaixo do braço nos encontros “casuais” com os alunos: Será bom falar com freqüência com os alunos que parecem mais rela xados em sua conduta e que talvez estejam expostos a vícios mais graves (...), lendo um texto ao acaso ou recomendando um livro sobre piedade que esteja à mão; recitando um conto (...), fazendo com que compreendam que mentir, enganar, jurar, pronunciar palavras obsce nas e ímpias, criticar (...) são comportamentos vergonhosos; em todas as circunstâncias, fará escolhas com habilidade e criará, mesmo à dis tância, oportunidades para ensiná-los a conduzir-se em direção a Deus (...). Dará a cada aluno livretos que falem de piedade e recompensará aqueles que melhor se aplicarem à sua leitura. Em seguida, pergunta rá aos alunos se os leram (...), porém sempre com doçura, uma vez que o maior inimigo da virtude é a violência. C ita d o p o r V are la , 1 9 8 3 , p . 134. Assim sendo, observa-se, no caso dos jesuítas, que a individuali- zação da educação é uma individualização do momento de obediência. Não se trata da individualização da pedagogia contemporânea, ligada ao desenvolvimento das capacidades e dos gostos da criança, mas sim uma individualização como forma de alcançar ou convocar cada aluno no momento de obedecer. Como salienta Durkheim, um dos princípios dos jesuítas era que “não pode existir uma boa educação sem um contato ao mesmo tempo contínuo e pessoal entre o aluno e o educador, e com duplo objetivo. Em primeiro lugar, porque o alu no não deve jamais ser abandonado a si mesmo. Em sua formação, é preciso que seja submetido a uma ação que não conheça nem eclip ses nem desmaios: porque o espírito do mal está sempre atento. As- 82 Nasce a Sala de Aula o Papel da Religião como Parteira sim, o aluno dos jesuítas nunca ficava só" (Durkheim, 1992, p. 325). Seria possível estar só na sala de aula de Comenio? Provavelmente. De qualquer forma, naquela, assim como em outros cenários peda gógicos, um docente pode falar e os alunos podem pensar em qual quer outra coisa enquanto parecem prestar atenção. Diante disso, os jesuítas formularam um sistema didático que reduziria ao mínimo essa possibilidade, e que garantiria que cada pessoa havería de obede cer e trabalhar sobre sua consciência cumprindo as ordens claclas.18 A presença do monitor assegurava que a autoridade fosse uma indivi dualização “próxima”, um indivíduo que era a continuação dos olhos e da autoridade “verdadeira” ou original, que é a figura do professor. Por outro lado, o sistema jesuíta introduziu outras novi dades. Por exemplo, os jesuítas foram os primeiros a utilizar as tão discutidas notas escolares. Em um esquema no qual se instalava a competição dos sujeitos individualizados na vida cotidiana da sala de aula, as notas foram um incentivo à competição. Como afirma Foucault, a forma pedagógica da sala de aula jesuíta era “a guerra e a rivalidade” (Foucault, 1995, p. 149). O artigo 31 das regras da Ratio Studiorum para os professores das classes iniciais determina: (...) geralmente, fica combinado que o professor pergunta e os com petidores respondem, ou que os competidores fazem perguntas en tre si. Este procedimento deve ser levado em alta consideração e deve ser desenvolvido tão frequentemente quanto a disponibilidade de tempo permita, para que se promova uma competição respeitosa, essa poderosa alavanca do esforço e da aplicação. Ratio Studiorum, 1887, p. 393. 18. Com relação oo uso do tempo nos escolas jesuitos, foucault comento: ”o princípio subja cente oo emprego do tempo em suo formo tradicional ero essencialmente negativo; prin cípio do não ociosidode: é proibido perder um tempo contado por Deus e pago pelos homens; o emprego do tempo devio ofostor o perigo de esbonjó-lo. o falto moroI e o falto de honrodez econômico" (foucault. 1995. p. 158). 83 A I nvenção da Sala de A ula Durkheim também viu na introdução da competição entre os alunos um fator de sucesso das escolas jesuítas, dentro de sua estratégia de “contínuo envolvimento” dos alunos (Durkheim, 1992, p. 326). De acordo com seu mérito, os alunos seriam agru pados em insatisfatório, ruim, fraco, médio e satisfatório”. Estas categorias determinavam também a localização de cada grupo na sala de aula. Sem dúvida, o método jesuíta foi pensado para con teúdos que iam além de ensinar a ler, escrever e fazer contas. Que tipo de população escolar os jesuítas recebiam e procura vam? Uma vez que o ingresso nos colégios jesuítas tinha como requisito conhecimentos rudimentares de latim, muitos alunos recorriam antecipadamente a professores particulares. Por esse motivo, os alunos da primeira série da escola jesuíta chegavam com qualificações distintas, e, conseqüentemente, o docente podia escolher seus “colaboradores”, ou monitores, entre os mais adiantados. Esta não era a situação na escola elementar de massa que nascia então. Nesse aspecto, o ensino elementar tinha ou tras demandas. Essas demandas constituem o conteúdo da pró xima seção deste capítulo. O TRIUNFO DO ASPECTO GRUPAL NA SALA DE AULA! O MÉTODO GLOBAL PARA A CONQUISTA DA ESCOLA ELEMENTAR No final do século 17, surgiu no mundo católico outra iniciativa, agora orientada para a educação elementar, e muito bem-sucedida: a fundação de escolas para pobres por parte do cura francês Juan Bautista de La Salle (1651-1719). Embora ti vesse participado com religiosos de diversos empreendimentos 8 4 Nasce a Sala de Aula : o Papel da Religião como Parteira educativos, La Salle organizou, por volta de 1680, uma comuni dadedenominada “Irmãos das escolas cristãs”, que se incumbiu de abrir escolas e casas para crianças pobres a partir de doações dos ricos ou de ajuda dos municípios. Seu empreendimento alcançou sucesso significativo, uma vez que os municípios ga rantiram apoio financeiro e a rede de “escolas livres” expandiu- se consideravelmente. La Salle criou também um sistema para ajudar as famílias a mandar seus filhos para a escola: somente as famílias cujos filhos frequentavam regularmente a escola recebiam donativos da fundação. É preciso lembrar que, até o final do século 19, grandes parcelas da população, principalmente das áreas rurais, opunham-se à escolarização de seus filhos, uma vez que sua colaboração no trabalho familiar ainda era significativa. Além disso, embora não seja esse o caso das escolas lasalleanas, as taxas cobradas em muitas instituições não favoreciam a pre disposição à escolarização. Esse tipo de estabelecimento centra do na atenção aos pobres e aos órfãos expandiu-se também na Inglaterra, a partir da fundação, em 1698, da “Sociedade para a promoção da consciência cristã”, que manteve inúmeras escolas de caridade por todo o reino (Sanderson, 1995, p. 2). La Salle escreveu um Manual para os professores de sua ordem, que imediatamente se transformou em texto de orienta ção da pedagogia elementar. A Conduta das escolas cristãs, que começou a ser escrita em 1695 e foi finalmente publicada em 1720, um ano depois da morte de La Salle, incluía três partes: a primeira detalhava tudo o que devia ser feito desde o momento em que a escola abria até seu fechamento; a segunda, os meios necessários e úteis para manter a ordem na sala de aula; e a ter ceira definia critérios para a inspeção das escolas e a formação de professores. Este M anual tornou-se ainda mais necessário à medida que a ordem (que se tornou congregação em 1725) cres 85 A Invenção da Sala de A ula cia, incorporando mais professores à tarefa de ensinar crianças pobres. Por volta de 1790, a congregação já estava distribuída por 108 cidades e povoados, e educava cerca de 35 mil crianças em escolas que recebiam entre 100 e 300 alunos cada uma (Ha milton, 1989, p. 70). A inovação que Juan Bautista de La Salle produziu com relação às escolas de caridade anteriores foi a maximização da re lação entre um professor e seu grupo de alunos: “este método simultâneo de leitura implica que cada criança traga seu livro e que todos os livros sejam iguais, o que ocorre pela primeira vez” (Querrien, 1979, p. 49). Ou seja, La Salle adotou o método global em suas escolas, porém manteve a visão moralizadora e de con versão das escolas jesuítas. Desenvolveu o que se denominou uma pedagogia do detalhe, na qual cada pequena ação, cada assunto, por insignificante que parecesse, submetia-se à regulamentação, à atenção e à influência do docente. “A minúcia dos regulamentos, o olhar exigente das inspeções, a submissão ao controle dos míni mos detalhes da vida e do corpo” eram características dessa estra tégia (Foucault, 1995, p. 144). A comunicação entre o docente e os alunos tomou-se muito mais ritualizada e menos verbal. Por exemplo, as orações começavam quando o professor batia pal mas; a recitação do catecismo começava quando o professor fazia o sinal da cruz; e as aulas eram organizadas como uma espécie de orquestra, na qual a intervenção de cada aluno era indicada pelo professor, ao tocar um instrumento sonoro de metal chamado “si nal” (Hamilton, 1989, p. 60). Neste conjunto harmonioso, o si lêncio passou a ser um fator determinante na sala de aula: por um lado, porque permitia que fossem detectadas condutas transgres soras por parte dos alunos; por outro lado, porque garantia a ex clusividade do controle sobre quem fala ao professor e sobre qual assunto (Narodowski, 1995, p. 115). 86 Nasce a Sala de Aula o Papel da Religião como Paiuei iu Uma das maiores inovações introduzidas pelo método lasalleano foi a adoção da língua materna como primeira língua de ensino, que parecia mais eficaz do que o latim para o ensino de religião e das primeiras letras. Em suas memórias, La Salle afir mou: “Para crianças que escutam uma e não escutam a outra, a língua francesa, sendo a natural, é, sem, dúvida, muito mais fácil de aprender do que a língua latina. Consequentemente, é preciso muito menos tempo para ensinar a ler em francês do que em la tim. A leitura do francês prepara para a leitura em latim; ao con trário, como mostra a experiência, a leitura em latim não prepara para a leitura em francês” (Citado em: Chartier e outros, 1976, p. 128). A partir desse momento, a maior parte das experiências es colares elementares foi realizada nas línguas maternas, que, em muitos Estados, se tornaram idiomas nacionais; e o latim passou a ser um conteúdo da educação de nível superior. La Salle adotou também diversas formas disciplinado- ras individualizadoras dos jesuítas, ampliando-as a ponto de exer cer uma “vigilância constante sobre o corpo infantil” e sobre o corpo docente (Narodovvski, 1995, p. 113 e ss.). Em sua obra Conduta das escolas cristãs, por exemplo, estipulava que “os esco lares devem permanecer sempre sentados, inclusive lendo a ta bela do alfabeto e as sílabas, manter o corpo ereto e os pés firme mente apoiados no chão. Quando lêem as sílabas, devem manter os braços cruzados, e quando lêem livros, devem segurar seu livro com as duas mãos (...), com o olhar voltado para frente, levemente inclinado em direção ao professor” (Citado em: Char tier e outros, 1976, p. 115). O mérito de La Salle foi perceber que o pastorado precisava tanto do momento coletivo quanto do indi vidual. Ao contrário de Comenio, que negligenciava o aspecto do controle individualizador por parte do professor, delegando-o aos monitores, La Salle adotou algumas das táticas jesuítas de 87 A Invenção da Sala de A ula governo da sala de aula. A mais visível era a distribuição espacial dos alunos, ou localização, princípio que determinava em que lugar da sala de aula as crianças deviam sentar-se, de acordo com seu mérito, suas notas e seu progresso. A localização era uma arma dos jesuítas para manter continuamente a competi ção entre os alunos. A intervenção de La Salle adota o princípio de que a localização é uma decisão da autoridade. No entanto, o docente não pode atuar livremente: (...) em todas as salas de aula haverá lugares determinados para todos os estudantes de todas as disciplinas, de modo que todos aqueles que frequentam uma mesma disciplina ocupem sempre os mesmos luga res, que serão fixos. Os estudantes das disciplinas mais avançadas deverão sentar-se nos bancos situados mais próximo à parede, e os demais ocuparão os lugares em seqüència, de acordo com a ordem das disciplinas, avançando em direção ao centro da sala de aula (...) Cada aluno terá seu lugar determinado e nenhum deles abandonará ou trocará seu lugar, salvo por ordem e com o consentimento dos inspetores das escolas. A distribuição dos lugares será feita de forma que os alunos que têm parasitas e cujos pais são descuidados fiquem separados daqueles que são asseados e não têm parasitas; que um estudante leviano e relaxado fique entre os sensatos e sossegados, que um libertino fique sozinho ou entre os piedosos. L a S a l le , Conduta das escolas cristãs, c i ta d o e m F o u c a u lt , 1 9 9 5 , p . 1 5 1 . A localização ou disposição espacial dèfinia dentro da clas se categorias às quais os alunos ficavam vinculados. Enquanto em Comenio o grupo constituía uma massa indefinida, a disposição lasalleana tomou o espaço “seriar’: um lugar para cada um, uma pessoa por lugar, posições permanentes; tudo constituía uma série que somente fazia sentido em conjunto com uma ordem particular. A “massa” de alunos tomou-se analítica, com componentes que 88 . :____ ___ ___ ___ __ Nasce a Sala de A ula : o Papel da Religião como Paíueiíu podiam ser considerados isoladamente. A partir desse sistema,ain da que chegasse a ter 100 alunos por classe, o docente sabia onde cada um estava situado, e por que motivo. Isto lhe pennitia um panorama melhor para controlar a situação da classe, com trocas mais previsíveis e padronizadas: o aluno A podia falar com B, C ou D, e, se tudo transcorresse como previsto, o docente tinha uma zona “livre” de preocupações e podia concentrar-se nas zonas “difí ceis”. Observamos também que as categorias da distribuição provi nham do sentido prático (os alunos eram organizados por seu nível de progresso ou de lições) ou moral (estavam localizados segundo seu comportamento com relação a libertinagem, sossego, sensatez, frivolidade e desregramento moral). Estas categorias são distintas de mérito-obediência, critério utilizado pelos jesuítas. A vantagem da proposta de La Salle residia não só no fato de contemplar aspectos práticos, mas também, produzindo um pastorado equilibrado entre o método global e a individua lização, em atender as diversas demandas de uma sociedade com pouca mobilidade social, com estratos definidos e não cambiá veis, onde importavam a obediência como grupo ou como estra to, o reforço da moralização e a disciplina maciça.19 Quando falamos em disciplina, não nos referimos ape nas ao castigo corporal. Com relação a este último, o mundo esco lar sempre foi muito criativo no momento de castigar o corpo: ajoelhar-se sobre grãos de milho, suportar durante horas a barriga cheia de água, ficar parado durante horas de braços cruzados, a régua que golpeava os dedos, o puxão de orelha, o puxão de cabe lo. No entanto, La Salle — e antes dele, os jesuítas — haviam 19. Foucault: afirma: "Pouco o pouco (...) o espaço escolor se desdobro: o classe torno-se homogêneo, está composto openas por elementos individuais que se dispõem um ao lodo do outro sob o olhar do professor" (Foucault. 1995. p. 150). iii !l89 A Invenção oa Sala de A ula formulado claramente que o que se deve castigar é a alma, aquilo que neste trabalho denominamos boa ou má “consciência”. Por castigo deve-se entender tudo o que é capaz de fazer com que as crianças percebam que fizeram alguma coisa errada, tudo o que é capaz de humilhá-las, de provocar uma confusão (...), certa frieza, certa indi ferença, uma pergunta, uma humilhação, uma destituição de posto. L a S a l l e , Conduta das escolas cristãs, c i ta d o e m : F o u c a u l t , 1 9 9 5 , p . 1 8 3 . Esta disciplina aplicava-se tanto aos alunos quanto ao corpo docente. É importante lembrar que na Conduta das escolas cristãs foi incluída uma terceira parte sobre a inspeção e a forma ção dos docentes. O professor é “objeto de outros olhares (do diretor), que, por sua vez, poderá ser. controlado diretamente por um inspetor (que também observa os professores e os alu nos) (...). Institui-se dessa forma uma cadeia de vigilância na qual os elos permanecem unidos em função do controle que exercem uns sobre os outros. Instalam-se assim nas instituições educacionais relações de poder sustentadas na capacidade de olhar e julgar (...)” (Narodowski, 1995, p. 119). Assim, a sala de aula é constituída por ações disciplina res. Com essa denominação, Foucault conceitualiza técnicas que se aplicam ao corpo para domesticá-lo, e, por meio dele, conseguir efeitos na alma (Foucault, 1995, pp. 182-189 e ss.). Ser observa do, sentar-se em determinado lugar e permanecer quieto, as ins truções para sentar-se “corretamente”, a insistência em escrever com a mão direita, a orientação da cabeça para frente, que favo rece a curiosa “comunicação” entre rosto e nuca, são técnicas aplicadas ao corpo — não necessariamente castigos — que, com o passar do tempo, se internalizaram, tornando-se “naturais” e 90 Nasce a Sala oe Aula o Papel oa Religião como Parteira “corretas” para nosso senso comum. Essas técnicas, por sua vez, produzem saberes que influenciam a maneira pela qual perce bemos a realidade social e humana: a economia, a linguística, a história, a biologia, a medicina. A hipótese central de Foucault com relação a essas “disciplinas” distintas do castigo é que fo ram-se desenvolvendo em diversas instituições — quartéis, hos pitais, escolas, internatos, mais tarde nas fábricas — e começa ram a dominar a vida cotidiana das pessoas. Essas ações disciplinares desenvolveram-se dentro de um Estado absolutista, forma dominante do governo político à época. O absolutismo é uma “forma de governo na qual o sobe rano detém poder ilimitado sobre a competência de legislar e sobre o cumprimento da legislação. Trata-se de um poder que dispensa as leis” (Zentner, 1990, p. 9). Durante o século 18, e em função de mudanças culturais, econômicas e políticas que analisaremos no próximo capítulo, o despotismo ilustrado con- verteu-se em absolutismo. Em que resultou este desenvolvimento da pedagogia da escola elementar nas condições da “confessionalização” e da formação dos estados absolutistas? O pastorado como princípio de condução integra-se cada vez mais à vida das massas, por meio de uma nova form a institucional: a escola elementar Ainda que tenha mos verificado que algumas pedagogias, como a de Comenio, acentuavam o momento grupai do pastorado, outras, como a je suíta, praticavam a relação individual como forma de condução. A estrutura da sala de aula e a organização das interações desen volvidas a partir desses princípios foram, portanto, diferentes. Entretanto, La Salle produziu uma síntese na qual a obe diência grupai e a individual se combinavam, não por meio de um a mescla de métodos, mas priorizando o método global — e, portanto, A Invenção da Sala de A ula o gm po — como interlocutor. La Salle optou por urna form a de con dução que admitia que a obediência grupai era decisiva. Por essa form a, uma desobediência individual não produzia catástrofes, podia ser conigida, porém uma desobediência grupai era considerada gra ve. Em uma sociedade que começa a mover-se em direção à massificação, veremos que força poderá adquirir esta forma de condução baseada no grupo escolar quando as sociedades co meçarem a transformar rapidamente seus princípios de funcio namento no final do século 18. ENSAIO20 A PEDAGOGIA E SUAS METÁFORAS Vimos muitas vezes em Comenio: o docente deve atuar como a natureza; sua ação de ensinar a todos os alunos ao mes mo tempo assemelha-se à atividade do sol, que aquece todos os objetos de uma só vez. Comenio dizia também que o docente na sala de aula é como o arquiteto, que começa a casa pelos alicer ces; assim, o professor deve começar por esse alicerce específico, que é a disciplina das crianças. O mesmo processo de ver alguma coisa com uma lupa, porém sob outra perspectiva, encontramos na discussão que apresentamos sobre o poder pastoral — ou seja, se os alunos são vistos como um exército ou como um rebanho. Para definir uma coisa, usamos outras. É isto o que fazemos todos os dias: pode riamos dizer que o/a diretor/a da escola é como um presidente ou um rei. Em ambos os casos, as comparações nos dizem algu 20. "Porte introdutório de um discurso, espécie de prelúdio" (UUebsters Comprehensive Dictio- nory, Chicago. 1996. p. 446). 92 Nasce a Sala de A ula : o Papel da Religião como Parteira ma coisa, porém em cada caso nos dizem alguma coisa diferen te. Quando se diz que o/a diretor/a da escola é como um presi dente, a idéia é que, ainda que dirija o conjunto da escola, seu poder não é ilimitado. Quando se diz que o/a diretor/a é como um rei, essa afirmação provavelmente evoca outras coisas: certo despotismo, caprichos, um poder que parece não regulamenta do. Assim sendo, estas comparações não são inocentes nem neu tras: evocar outros significados implica destacar as relações e conexões que podem não ser evidentes para as outras pessoas, e que queremos que o sejam. Na retórica, essas afirmações não inocentes foram de nominadas “metáforas”, e são conhecidas desde a Antigüidade, quando já foram utilizadas por Aristótelesem sua Poética. Desde então, a metáfora é definida como “a substituição de um termo por outro” (Innes, 1997, p. 344). Por exemplo, pode-se dizer que a aula de um professor de História sobre os dados das guer ras de independência adota a mesma “vertente” do já extinto programa “Domingos para a juventude”. Se eu decidir definir essa aula como “Domingos para a juventude”, e não como “um modelo de perguntas e respostas que não ajudam as crianças a construir compreensões sobre a história”, estarei definindo a mesma aula com duas metáforas diferentes. E cada metáfora constrói diversos pontos de vista, estabelece percursos distintos. A primeira talvez saliente o ritual escolar: essas datas que memo rizamos por alguns dias e depois caem no esquecimento parcial ou total. A segunda está direcionada à (não) contribuição dessa aula para a atividade de aprender em um sentido mais preciso. Enquanto a primeira metáfora indica principalmente a cultura escolar, as regras da aula em si mesmas, a segunda refere-se basi camente às operações de conhecimento ligadas à situação da re petição de memória para vencer um jogo. Ou seja, escolher uma 93 A Invenção da Sala de A ula metáfora para descrever um objeto específico não é uma ação inocente; marca uma direção e dá à definição um matiz específi co. Neste sentido, a linguagem não reflete a realidade, mas sim produz compreensões, cria a realidade social. As metáforas são cruciais para permitir o desenvolvi mento em situações sociais. Por exemplo, quando alguém per gunta: “Você tem horas?” e a outra pessoa responde apenas “Sim”, a resposta é correta do ponto de vista estrito da pergun ta. No entanto, do ponto de vista de como nos comunicamos, o “correto” é responder: “Quinze para as duas”. Ou seja, utili zamos diariamente metáforas para viver. Um menino de dez anos pode falar de sua “velha” para se referir a sua mãe, que talvez tenha 35 anos. No sentido literal, estrito, a mãe não é velha; no entanto, ao chamar sua mãe de “velha”, o menino constrói seu ponto de vista, sua distância com relação à outra geração. Ou seja, escolher uma metáfora particular coloca o filho em uma posição particular. Cada cultura desenvolveu sistemas de metáforas dife rentes. Lakoff e Johnson, dois pesquisadores americanos, colo caram em páginas admiráveis todas as metáforas que existem na cultura americana em tomo da idéia de que “tempo é dinheiro”. Outro exemplo pode ser a comparação das diferentes formas de insulto que existem em diversas línguas e culturas: é muito inte ressante verificar que em algumas culturas predomina o compo nente sexual e, em outras, o componente animal ou da cultura campestre — ainda que atualmente não existam muitos campe- sinos. As metáforas fa lam da imaginação das culturas. As pessoas que vivem dentro dessas culturas sentem que algumas coisas são adequadas e outras são inadequadas, e por vezes também questionam como deveriam ser as coisas dessa sociedade. Em 94 Nasce a Sala de A ula : o Papel da Religião como Paíueiila todo esse processo da imaginação, do desejado, as metáforas desempenham papel muito importante (Lakoíf e Johnson, 1988). Voltemos a Comenio para dar outro exemplo. Se o do cente é “o sol”, as crianças são colocadas, nessa comparação, no lugar da “árvore” e dos “animais”. Esta metáfora ajuda Comenio a justificar sua afirmação de que o princípio ativo da sala de aula — seguindo a imagem do sol — só pode ser o professor. A diferença abismai entre o sol e a árvore ou entre o sol e o animal combina muito bem com o preconceito de que o abismo entre o professor e o aluno na sala de aula pode ser comparado aos conceitos da atividade-passividade, ou à idéia que muitas pessoas têm — entre elas alguns professores — de que, quando chegam na escola, as crianças “não sabem nada de nada”, e colocam o professor como um sol que as “iluminará”, como se todas elas tivessem vivido no desconhecimento/escuridão antes da escolarização. Ou seja, defi nindo um segundo aspecto, pode-se dizer que as metáforas não apenas não são inocentes, mas também podem ser analisadas como estratégias para formular algumas idéias que muitas vezes permanecem fora da discussão. Vejamos novamente o exemplo comeniano: a árvo re e o animal são impensáveis ou impossíveis sem o sol. É impen sável um aluno sem o professor? Aprender é o mesmo que “ser ensinado”, como esta metáfora propõe por meio da figura passiva da criança? O tipo de dependência do animal e da árvore com relação ao sol é o mesmo tipo de dependência do aluno com rela ção ao professor? Todas essas idéias não formuladas cruzam-se na formulação de Comenio. Dessa forma, quando analisamos a metáfora de Come nio, não sabemos muito bem se realmente descrevia a relação entre o professor e o aluno em sua época, mas sabemos, sim, que, provavelmente de maneira inconsciente e permeada por sua 9 5 A Invenção da Sala de A ula cultura, Comenio nos fala mais sobre sua estratégia em relação à sala de aula do que à própria sala de aula como objeto “real”. Analisar as metáforas é, portanto, vê-las fundamentalmente como sintomas ou resultados de estratégias, de intenções de quem as cria. É precisamente o fato de a metáfora não ser inocente que nos revela a “não inocência” de quem a pronuncia e nos dá pis tas para poder compreender aonde quer chegar”.21 Queremos com isto indicar uma perspectiva importante no momento de analisar a escola, a sala de aula e a pedagogia: as metáforas não são “enfeites” colocados para dizer “a mesma coisa” com outras palavras. Vimos que utilizar uma metáfora ou outra não é dizer “a mesma coisa”, mas, sim, que o que aparece como “a mesma coisa” é o docente: o docente é um sol, o docente é um guia. No entanto, esta “mesma coisa” não é independente da forma pela qual nos referimos a ele: quando Comenio diz aos professores o que é que devem fazer, essa orientação é extraída das metáforas, e não de uma suposta qualidade universal do pro fessor. Daí termos afirmado anteriormente que a linguagem cria 21. A/o teoria psicanalítico considerou-se com muito seriedade que a metóforo e a metonímio — esto último é umo metóforo que não substitui umo palavra por outro, mas sim uma parte por um todo (por exemplo, "cabeça de gado' poro mencionar a voco inteira) — sõo meca nismos centrais no funcionamento de nosso inconsciente, no sonho, nos piados, em nos sos lopsos. Rlgumas situoções psíquicos graves, como o psicose, também forom defini dos, de formo bastante simplificada, como “ausência do mecanismo do metóforo’. No mundo psiquiátrico encontromos vórios vezes uma onedoto um tanto trágico, cuja autenti cidade não podemos garantir, mas que parece bem cloro. Cm um hospital psiquiátrico, os familiares levam o um psicótico internado olgumos coisas para sua higiene pessoal, entre elas um tubo de posto de dente ‘'Colgate''. O paciente recebe o nome do posta de dente como uma mensagem literol. não como algo que se lê de outro maneira, umo marco, mas sim como uma mensagem real. e se enforca (N. L em espanhol, “cólgate" significa "enfor que-se“). Por esse motivo, diz-se que o ausência da metáfora é um problema de primeiro grau. R metóforo é vista como umo função simbólico de primeira importância. Sobre o papel do metóforo e do metonímio nos processos inconscientes, consulte Dor, 1981. cops. ó-IO; UJidmer. 1997, cop. 5. 96 Nasce a Sala oe A ula : o Papel da Religião como Parteira a realidade social, produz maneiras de compreender o mundo. A metáfora é, portanto, um recurso decisivo no momento de definir as coisas. As m etáforas povoam nossa linguagem cotidiana e ta m bém a linguagem especializada. Na maioria das vezes, ao fa lar, usamos metáforas das quais geralmente não temos cons ciência. Quando falamos da teoria, por exemplo, podemos dizer que é como um edifício que tem suas fundações, que deve ser construída, que precisa ser abandonada ou ainda demolida. Quando falamos da aprendizagem, dizemos que tambémé uma construção ou uma estrutura. Em todos os casos, o uso de certas metáforas cria relações de semelhança com alguns fenômenos, e não com outros, nomeia e define de forma que também exclui outras possibilidades. Vejamos outro exemplo de um pedagogo inglês, que analisaremos no final do capítulo seguinte. Este educador usa va a metáfora da jardinagem e do crescimento natural para referir-se ao processo de ensino-aprendizagem. Dizia “(...) a mente das crianças, e também dos adultos, pode ser compa rada com justiça a um jardim que, se não for cuidado, logo estará invadido por ervas daninhas, que se enraizarão tão pro fundamente que sufocarão todos os bons pensamentos e afe tos, e até mesmo a própria consciência” (Wilderspin, 1824, p. 29). O dever do professor-jardineiro é regar as plantas, cuidar e satisfazer suas necessidades especiais, retirar as er vas daninhas, até que floresçam por si mesmas. Observe o conteúdo conservador do enunciado: o jardineiro pode aju dar a planta a crescer, mas não pode modificar o potencial inerente ou inato de cada planta de desenvolver-se em sua própria direção. A Invenção oa Sala de A ula Neste sentido, queremos enfatizar que as metáforas têm consequências22, definem um universo de qualidades e de ações possíveis, tanto como no caso do professor-sol. Neste sentido, participam diretamente da construção de nossa subjetividade, por exemplo, dando-nos formas para nomear nossa atividade docente que determinam de que maneira vamos processar nos sas experiências na sala de aula23. Propomos agora que a escola seja pensada segundo estas metáforas: 1. Como uma empresa. Se a escola é vista como uma em presa, pode-se dizer que os investimentos devem estar relacionados com os lucros esperados, pode-se pensar que a escola deve oferecer “garantias” de seus produtos, como fazem as empresas e, para tanto, devem criar um sistema de medição da aprendizagem que estabeleça de algum modo os parâmetros da garantia. O diretor passa a ser um gestor, quase um executivo da escola, que deve procurar sponsors, fazer propaganda da escola, traçar uma estratégia, entre outras coisas. Da mesma forma, em uma empresa, trabalhadores são demitidos quando não há trabalho; e quando a educação é considerada unica mente como uma empresa que deve ser rentável, uma escola com 20 alunos, situada em local distante de um centro urbano, pode ser eli minada do organograma, já que não teria suficiente trabalho, nem “produziria” uma quantidade significativa de alunos escolarizados. 2. Como uma família. Se a escola é vista como uma fa mília, é possível que as professoras — já que, em sua maioria, os docentes de hoje são mulheres — sintam-se “mães”. Ser “mãe”, 22. Frigerio e Poggi trabalharam algumos destas em seu livro Coro y ceco, prindpalmente no capítulo dedicado às culturos institucionais escolares. 23. Sobre este temo. vejo Frigerio. 1995. 98 Nasce a Sala de A ula: o Papel da Religião como Parteira ser “segunda mãe” no “segundo lar” são expressões metafóricas que nos informam que as pessoas que as usam pensam a escola como uma família. É possível que em uma família haja uma divi são do trabalho: alguém retira o lixo, alguém serve a mesa, al guém corta a grama. Por outro lado, na família predominam as relações afetivas, e as regras costumam ser mais flexíveis do que em outras organizações sociais. Essas características são transferi das para a escola? Existem em uma escola as relações de “heran ça”, como em uma família? O poder e as faculdades de um docen te são comparáveis aos de um pai ou aos de uma pessoa que detém o pátrio poder? O que acontece com a condição de trabalhadora de uma professora quando é considerada uma “segunda mãe”? 3. Como agente do progresso. A escola aparece como o meio para combater a “escuridão” da ignorância, como um lugar onde a luz do conhecimento (diz-se que uma pessoa inteligente é “iluminada”) expande-se à custa da escuridão. Nesta visão, a esco la pode ser vista também como um bastião contra uma sociedade cada vez mais “brutal”, ou como um centro onde a razão governa e se desenvolve. No entanto, será que essa escola está atualizada e participa de muitas pesquisas científicas, da política e das mudan ças das formas de relacionamento entre jovens e adultos que ocor rem na sociedade não escolar? Será que as sociedades mais escola rizadas são sempre as que mais progrediram? 4. Como templo do saber. Esta metáfora está vinculada à anterior, mas contém elementos religiosos, ainda que sem uma presença divina. Diz-se que a docência é um “apostolado” (então será destino dos professores serem comidos pelos leões nos anfi teatros, como os apóstolos cristãos?). Também se ouve dizer que a 9 9 A Invenção da Sala de A ula escola é um “templo” e, portanto, tem regras especiais: assim como os fiéis se benzem ao entrar na igreja ou lavam os pés antes de entrar na mesquita, nas escolas há saudações “pouco naturais”: colocar-se de pé, formar fila, tratar de forma diferente o inspetor ou o diretor. Observe, por exemplo, o seguinte parágrafo sobre os professores que fumam na sala de aula, escrito em 1884: “Em Pedagogia, muito se falou e se escreveu sobre a escola como um templo e o professor como um sacerdote; como consequência, se o maior respeito é guardado na casa de Deus, também clevena ser observado naquela onde a juventude se educa. O professor que fuma na sala de aula começa por profanar o sagrado recinto em que se encontra, faltando com o respeito que deve a seus alunos, e termina por lhes abrir o caminho da imitação e do desejo, por que as crianças são imitativas e copiam facilmente tudo aquilo que vêem fazer os mais velhos, e principalmente o professor, que é seu modelo diário” (“El maestro que fuma en clase”: em Revista de Ediicación, Nü XL, de 1884; citada em Pineau, 1997, p. 100). Essas metáforas foram e são usadas para referir-se à educa ção, e podem ser analisadas com a pedagogia normalizadora descri ta no capítulo 4. Sua aplicação sofreu mudanças através do tempo, embora se possa afirmar que as metáforas da empresa e do agente do progresso continuam amplamente em uso, assim como a da escola como uma família. Estas mudanças nos regimes metafóricos fazem referência a mudanças mais gerais do lugar da escola na sociedade e dos discursos que a sociedade aceita. Por exemplo, a idéia de que a escola é como uma empresa não era comum há 60 anos na Argenti na (mas era comum nos Estados Unidos), mas hoje é uma das mais utilizadas na linguagem dos políticos e administradores do sistema. Ou seja, se um tipo de metáfora toma-se mais importante em uma cultu ra, esse fato indica o que está ocorrendo nessa cultura. Se a escola é vista 100 Nasce a Sala de A ula : o Papel da Religião como Paíxíeiixa como um templo do saber, deverão ser reforçadas todas as formas mais ou menos solenes da cultura escolar; se for considerada como uma família, será preciso verificar se a autoridade do professor pode ser igual à dos pais; isso leva alguns pais a “autorizar” os professores a castigar fisicamente seus filhos, uma vez que, para eles, a escola não deve ser diferente do modelo familiar— que às vezes também inclui a bofetada, o puxão de cabelo e toda uma variedade de ações. Assim sendo, pensar a escola através de certas metáforas significa determinar o que se acredita que deve ser feito com ela. As metáforas que utilizamos, e que nos parecem apropriadas, contêm toda uma série de conseqüências possíveis para o futuro de nossas escolas. A pedagogia como um saber específico, com sua história, suas vinculações, seus efeitos diretos ou indiretos, também pode ser pensada a partir das metáforas que organizaram seus discursos. Neste livro utilizamos muitas metáforas para nos referir a ela. Neste percurso, é fundamental poder ver que as metá foras nos dizem algo, que nos indicam muito mais do que pode parecer. Por esse motivo, como professores, é importante ver quem usa determinadas metáforas,que situações nos ajudam a formular uma metáfora e que situações nos estão sendo oculta das. Tal como na vida cotidiana, também estão na escola, e as sim como “cortar” uma relação pode sugerir que uma pessoa corta um cabo que a une a outra, as metáforas pedagógicas da aprendizagem como “apropriação”, do professor como “gestor da sala de aula” também nos fornecem muitas informações so bre o cenário pedagógico e de forças educativas onde atuamos. Para aprofundar este tema, consultar: Charbonnel (1991); Jakobson (1980); Kliebard (1972); Lakoff e Johnson (1988); e Richardson, “Writing: A Method of Inquiry”, em: Den- zin e Lincoln (1994). 101 3 A S ala de A ula C resce : a D isciplina nos T empos da R evolução I nd us t ri al ■ a Quando deixamos a sala de aula nas mãos de La Salle, algumas páginas atrás, estávamos em uma sociedade que funciona va basicamente com formas sociais bastante estáveis: o camponês e o rei nasciam e morriam como tal, a maioria das pessoas nascia e morria no mesmo lugar, a ordem social também era vista como algo estável, e não como algo que poderia mudar. Neste capítulo, quere mos mostrar como a sala de aula “cresceu” em suas estruturas e penetrou no contexto das grandes mudanças econômicas, sociais e políticas na Europa ocidental pouco antes de 1800. Vamos concen trar-nos nessa época cheia de novidades e de mudanças estruturais e na forma como a sala de aula, como materialidade e como forma de comunicação, foi não apenas reagindo a este desenvolvimento, mas também contribuindo para que de fato ocorresse. Vamos retomar algumas pontas soltas do capítulo an terior. Argumentamos que a pedagogia de 1700 imaginava e pro punha uma sala de aula onde a condução pastoral havia sido deslo cada, passando a dar prioridade ao grupo, e havia deixado de lado certa individualização das práticas educativas anteriores (por exem plo, a prática implícita na educação de príncipes e artesãos). Um dos motivos do sucesso dessa proposta entre os estadistas era o número de alunos que pretendia incorporar. O outro lado da moeda era o fato de privilegiar uma obediência em grupo, con siderando a individual como um resultado daquela. No entanto, as novas condições nas sociedades européias reivindicaram mu 103 A Invenção da Sala de A ula danças na transmissão pedagógica. O método grupal-global con seguiu impor-se, mas foi submetido a críticas e transformações que criaram uma geografia da sala de aula muito diferente da quela de Comenio ou dos irmãos lasalleanos. Vamos deter-nos nessas condições sociais na próxima seção. Condições do " crescimento" da sala de aula: TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPÉIAS NO FINAL DO SÉCULO 18 O fato de a proposta da sala de aula global ter tido su cesso, ainda que com certa lentidão, não é surpreendente. No sé culo 18, as sociedades européias enfrentaram mudanças que teri am grande importância para seu futuro. Ainda que se baseassem na atividade agrária e conservassem parte das suas estruturas tra dicionais, uma série de processos começou a transformá-las radicalmente, mesmo quando cada região assumia essas mudan ças com seu próprio ritmo e com configurações particulares. A primeira mudança importante é a Revolução Industrial. Apesar de tratar-se de um processo, e não de um fato pontual e determinado, vários historiadores concordam ao datar seu surgi mento na Inglaterra entre 1760 e 1780. Como indica seu nome, o ponto central foi o surgimento de um novo tipo de produção: o da indústria centralizada nas fábricas. As formas artesanais e des centralizadas da produção, até então dominantes, foram desapa recendo em certas áreas, principalmente na têxtil, para dar lugar à fábrica, essa construção gigantesca com sua chaminé fumegante, que se instalou em uma paisagem cada vez mais urbanizada, um lugar novo no qual se desenvolveram relações sociais inéditas e de onde surgiram novas identidades, como as de capitalistas e operá A Sala de A ula Cresce a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial rios. As mudanças que introduziu foram impressionantes, desde a fisionomia das cidades até a constituição familiar e a transforma ção do espaço íntimo. Em 1846, Jules Michelet, escritor, historia dor e político francês, dizia: “(a diminuição do preço do algodão) foi uma revolução para a França. Vimos que o povo pode ser um grande e poderoso consumidor quando sua mente está voltada para isso. (...) Antes, toda mulher usava um vestido azul ou preto, e nunca o lavava com medo de que se desfizesse em pedaços... Agora, pelo valor de uma jornada de trabalho, seu marido, pobre trabalhador, vai vesti-la com estampados de flores. Este conjunto de mulheres, que agora cria um arco-íris de milhares de cores em nossas ruas, até pouco tempo parecia estar de luto” (Michelet, Le Peuple, citado em: Cacciari, 1993, p. 7). No entanto, as transformações não ocorreram igual mente para todos. As respostas dos contemporâneos foram tão drásticas como a própria revolução: alguns, entusiasmados, fize ram fortuna rapidamente; muitos outros — a maioria — sofre ram dramáticas mudanças em sua vida cotidiana, empobrece ram e foram obrigados a se submetei a outros mgimes de trabalho e de socialização. Alguns desses grupos mais afetados resistiram, destruindo as máquinas; outros começaram a se organizar para pedir melhores condições de trabalho, movimento do qual sur giram os sindicatos e os partidos dos trabalhadores modernos. Massas de camponeses converteram-se em habitantes proletários das cidades, e em poucos anos, pequenos vilarejos transforma ram-se em poderosos centros industriais. Por último, em função de seu poder econômico, a posição central da Inglaterra causou novas tensões internacionais (Elobsbawm, 1977). A Europa continental incorporou-se a este processo mais tarde e de forma paulatina. Embora já em 1780 tenha sido in- 105 A I nvenção da Sala de A ula troduzicla a primeira máquina na Alemanha, e na mesma época, na França, havia um problema central. A indústria nascente preci sava de grande quantidade de trabalhadores, que nesses países ainda viviam no campo e dependiam legalmente da nobreza para subsistir. A liberação dos camponeses das relações feudais, que os obrigavam a viver em um lugar específico e a pagar seus impostos a um nobre ou a um senhor determinado ocorreu lentamente, e em 1850 (quase um século depois da Inglaterra), o camponês desses países já era “livre” em termos burgueses: livre para deslo car-se de um lugar a outro, livre para trabalhar como operário que ganha diariamente seu salário. A “liberdade” significou principal mente uma grande migração às cidades, que adquiriram caracte rísticas de massa (Kemp, 1974). As cidades massificadas foram objeto de fascinação e de medo para os contemporâneos: a idéia de uma multidão incontrolável expressava como poucas a per cepção da aceleração da mudança social e da dificuldade de go verná-la com as antigas técnicas. Vejamos, por exemplo, como Edgar Allan Poe descreve Londres na metade do século passado, sentado em um bar e olhando pela janela: “esta rua é uma das principais avenidas da cidade, e durante todo o dia passou por ela uma grande multidão. Ao cair a noite, o movimento aumentou, e, quando as luzes se acenderam, pôde-se ver uma dupla e contínua corrente de transeuntes passeando apressadamente em frente à porta. Nunca tinha estado no café a esta hora, e o tumultuoso mar de cabeças humanas encheu-me de uma emoção deliciosamente nova” (Poe, “O homem na multidão”, citado em: Benjamin, 1988, p. 143). A massa aparece como um conjunto amorfo, desfigura do, anônimo, e como o pano de fundo ideal para o cenário de um crime, como continua no relato de Poe. Juntamente com a Revolução Industrial, e em parte esti mulada por ela e por outros movimentos, ocorreu uma revolução 106 A Sala de A ula Cresce a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial política para colocar fim a estas relações servis com relaçãoà no breza e à monarquia. A Revolução Francesa (como este momento passou para a história) irrompeu em Paris em 1789, a partir de uma aliança entre burgueses antimonárquicos e as camadas po bres da cidade, que decidiram eliminar a monarquia. A história desta revolução (como a de tantas outras) é complexa, com fac ções internas e episódios de grande dramaticidade (Vovelle, 1984). Para as outras casas reais da Europa, a decapitação do rei da Fran ça e de sua mulher teve um caráter mais que simbólico: mostrava um novo ator político (a burguesia mercantil e industrial), que exigia sua parte na divisão. Foram desenvolvidas novas linhas de conflito entre um bloco monárquico, com apoio dos camponeses, da nobreza e da maior parte da Igreja católica; e um bloco burguês, com o apoio das nascentes classes operárias nascentes, que reivin dicavam melhores condições de trabalho e representação política. Apesar de os governos revolucionários terem sido derrotados e a monarquia, restaurada, a Revolução inaugurou o legado da mo derna tradição liberal e republicana, baseada nos direitos huma nos e dos cidadãos. As idéias de democracia, progresso e secula- rização, ou separação da igreja e do Estado, passaram a ser os baluartes do credo cidadão na maior parte dos países ocidentais e, sem dúvida, influenciaram as revoluções pela independência das colônias hispano-americanas. Ocorreu nessa época um terceiro movimento, de limites mais difusos e que talvez se tenha iniciado mais cedo, que envol veu uma progressiva transformação do panorama cultural e a for mulação de novos programas de governo, como a república par lamentarista. Esta transformação originou-se no poderoso movimento intelectual e político chamado Iluminismo, que se es tendeu por toda a Europa. O Iluminismo era definido por si mes mo como a “luz” em oposição à “escuridão” dos tempos medie A Invenção oa Sala de A ula vais; Kant, um de seus mais famosos expoentes, afirmou que re presentava a saída do homem da infância à qual estava submetido pela escuridão medieval. Ainda que, como todo movimento, in cluísse tendências e pensadores heterogêneos, a maioria acredita va que a razão é a capacidade humana fundamental, e que habilita o ser humano a pensar e a atuar corretamente. Do ponto de vista político, os iluministas eram ambíguos: em alguns casos, como na Prússia (atual Alemanha), estavam à disposição do monarca abso luto e tentavam que este liderasse as reformas modernizadoras (Schneiders, 1997). Na França, muitos iluministas integraram as filas da Revolução e chegaram a criar uma política oposicionista. Independentemente dessas posições, somando-se o surgimento da industrialização, o aparecimento de novos programas políticos — que incluíam novas formas de governo — e as discussões do Iluminismo, formou-se um conjunto que preocupava os pensa dores: nunca se viu, desde as guerras religiosas, tanto movimento e tanta transformação. Estas condições forjaram o lento surgimento do liberalismo clássico. Em cada estado, esta situação surgida no último terço do século 18 foi processada de maneira diferente, desde a radicalização política e a reforma social (como no caso das revoluções americanas pela independência) até a reação monár quica absolutista de muitos reinos europeus. Neste contexto em que as transformações causavam novas demandas e inseguranças, os estados centrais começaram a demonstrar maior interesse na questão da educação primária. Lembremos que, até este momento, as iniciativas da educação popular tinham-se baseado em obras de caridade de caráter pri vado e, além disso, de forma inorgânica e pouco coordenada. A educação obrigatória apareceu como a nova ferram enta para a pro dução em massa da obediência, no contexto de populações que mi gravam, cidades que cresciam descontroladamente e ritmo de cres 108 A 5ala oe Aula Cresce: a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial cimento acelerado. Em 1768, o presidente do parlamento de Pa ris dizia: é necessária a educação comum que divulgue “os mes mos princípios e as mesmas luzes (de maneira uniforme). Imbu ídos desde a infância das mesmas verdades, os jovens de todas as províncias se libertarão dos preconceitos do nascimento, de senvolverão as mesmas idéias de virtude e justiça, e aprenderão a derrubar as barreiras que os separam de seus compatriotas” (citado em Chartier e outros, 1976, p. 209). Entre 1763 e 1803, Prússia, Áustria, Saxônia e Baviera foram os primeiros estados a introduzir a obrigatoriedade escolar por um período de seis a sete anos (Manacorda, 1987, p. 391). Em alguns casos, era com plementada com a obrigatoriedade de participar de uma escola dominical de fundo religioso até os 18 anos. A escola não era gratuita e, apesar de as taxas não serem muito altas, o grande número de crianças em uma família camponesa poderia resultar em uma soma total considerável a ser paga. Por outro lado, a escolarização significava afastar as crianças do mundo do traba lho, privando as famílias de uma renda que, em muitos casos, era insubstituível. Isto significa que, para mandar as crianças para a escola, a família camponesa pagava, de fato, um imposto esco lar — obrigatoriedade e não gratuidade simultaneamente —• e perdia renda e força de trabalho. Por esse motivo, durante todo o século XIX, a escola., como instituirão teve uma fama duvidosa nesses setores. No caso da Revolução Francesa, durante os pri meiros anos de governo republicano, foram feitos diversos pla nos de instrução pública, que, embora não tenham conseguido impor-se de forma clara e homogênea, estabeleceram as bases do ideal liberal na educação: obrigatoriedade, centralização e, em alguns casos, gratuidade e laicidade (Debesse e Mialaret, 1973). A adoção da escolaridade obrigatória implicou que o espaço fechado da sala de aula e sua metodologia se convertes 109 :1 - A Invenção oa Sala de A ula sem paulatinamente em uma experiência pela qual passariam todas as crianças. O moclelo de sucesso era proporcionado pelas diversas iniciativas caritativas: na Inglaterra, as já mencionadas “escolas de caridade”; na França, a rede escolar de La Salle; nas áreas protestantes da atual Alemanha, os “filantropos”. No en tanto, a massificação deste modelo trouxe novos problemas. Começaremos pelos debates que surgiram na escola prussiana (a primeira experiência organizada de educação pública) e con tinuaremos com a única grande “ameaça” que o modelo global enfrentou ao longo de sua história: o método de ensino mútuo. Por último, delinearemos as pedagogias de Pestalozzi e Herbart no mundo de língua alemã, e de outros educadores ingleses que discutiram a importância do processamento didático e idealiza ram outras técnicas de disciplina e governo na sala de aula, esta belecendo muitas das bases de nossas práticas educativas atuais. P rimeira consolidação da sala de aula global: A ESCOLA PRUSSIANA Considerado como um dos grandes protagonistas des se tempo de mudanças, Immanuel Kant (1724-1804) foi profes sor de Filosofia na Universidade de Kõnigsberg (atual Polônia). É uma das figuras mais básicas e controvertidas da filosofia mo derna, produtor de uma teoria de conhecimento humano que ainda se discute apaixonadamente. Kant também trabalhou in tensamente com os problemas da filosofia política, da filosofia da religião, a estética e a ética. Entre suas obrigações docentes, estava a de lecionar pedagogia, que nesse momento era conside rada um ramo da filosofia. Em 1776, começou seu curso afir mando a importância da educação para sair da barbárie ou da 110 A 5ala de A ula Cresce a Disciplina nos Tempos da Devolução Industrial animalidade. Para Kant, o objetivo da escola era disciplinar os instintos animais e “humanizar” o homem. Assim, o tema da con dução das crianças era central em suas preocupações. Dizia que, inicialmente, as crianças são encaminhadas “à escola, não ainda com a intenção de que aprendam algo, mas'sim como objetivo de habituá-las a permanecer em silêncio e a observar pontual mente o que lhes é ordenado, para que mais tarde não se deixem dominar por seus caprichos momentâneos” (Kant, 1803; 1983, p. 30). Não por acaso, Kant escolhe a metáfora das plantas e da jardinagem para falar da educação. Ao comparar o trabalho com as crianças ao trabalho com as plantas, mostra claramente as tendências disciplinadoras da época por meio da idéia de que o pensamento infantil pode ser endireitado como um galho torci do (Petrat, 1987, introdução). Entre os filósofos modernos, Kant é um dos primeiros a refletir sobre a relação entre o governo e a educação. Em suas aulas, argumentava que “a arte do governo e a arte da educação” são as duas invenções mais difíceis da humanidade, e sobre as quais sempre haverá controvérsia (Kant, 1983, p. 35). O gover no que imaginava devia basear-se na razão, e não na força; por tanto, era preciso que a obediência estivesse fundada na racio nalidade, e não na repetição de memória: “deve-se cultivar a memória desde muito cedo, sem esquecer também da compre ensão” (idem, p. 65, tradução modificada pelos autores). Con centrar-se, sentar-se em silêncio, obedecer às instruções: para Kant, eram estas as atitudes fundamentais na sala de aula. Afir ma: “A escola é uma cultura coercitiva” (p. 63); deve habituar a criança ao trabalho, separando a vida escolar da brincadeira e dotando-a da seriedade e da coação necessárias. Embora se ba seasse no uso da razão, a seriedade de sua pedagogia tem conti nuidade na vida escolar jesuítica, que criava um universo artifi 111 A Invenção da Sala de A ula ciai em latim, com vigilância minuciosa. “A memória deve ser utilizada apenas com as coisas cuja conservação nos é conveni ente, e que tenham relação com a vida real. À leitura de roman ces é prejudicial para a criança, porque só lhe serve de distração enquanto os lê; debilita também a memória, pois seria ridículo absorver o romance e querer contá-lo aos demais. Desta forma, é necessário tirar das mãos da criança todos os romances” (idem, p. 65). A imaginação e a fantasia não eram úteis para a vida real e deveríam ser desconsideradas pelo professor. Referindo-se aos métodos existentes, Kant descar tou os progressos que seus amigos, os filantropos,24 haviam realizado em suas escolas experimentais e centrou-se, por outro lado, na validade do método catequista. O catecismo é um livro para a transm issão de conteúdos da fé organizado nor m alm ente em fo rm a de perguntas e respostas (Drehsen e outros, 1995, p. 595). Kant dizia que “(o) método socrático deveria ser a regra no catecismo. Na verdade, é um pouco lento e difícil expor o catecismo de tal forma que alguém aprenda alguma coisa a partir dos conhecimentos de outra pessoa. O método mecânico-catequista é bom para algumas ciências; por exemplo, para a apresentação da religião revelada. Pelo contrário, para a religião geral, deve-se utilizar o método so crático. Recomenda-se especialmente o método mecânico- catequista para aqueles que devem ensinar historicamente” (Kant, 1983, p. 69, tradução modificada pelos autores). 24. Os filântropos foram um grupo de pedagogos de origem protestante que. orgonizados em diversas obras de caridade, tentarom concretizor o velho progromo de Comenio de ensino globol-frontal e desenvolveram importantes moteriois poro o ensino. Partindo de umo pos tura religioso, queriam fazer uma componho de moralização dos pobres e morginolizados. fí tradução de filantropo é "amigo do homem". Os filantropos viam no educoção, mais uma vez. uma formo de redenção do homem (Blonkertz. 1992. p. 45 e ss., p. 79 e ss.). 112 A Sala de Aula Cresce: a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial i As recomendações cie Kant retomavam uma velha prá tica das escolas elementares dos primeiros tempos da moder nidade. O catecismo católico (o mais famoso foi escrito por um jesuíta, Pedro Canisius) e o catecismo protestante (escrito pelo próprio Lutero) tinham uma longa trajetória de utilização nas salas de aula da escola elementar. “Catecismo” (do latim medieval catechismus) significa “instruir em viva voz” (Cucu- zza, 1997, p. 1), e era a forma corrente de instrução religiosa. No entanto, a insistência de Kant no método catequista con tinha elementos novos, uma vez que propunha resolver a ques tão da disciplina em meio a grandes mudanças sociais e políti cas. No caso alemão, a obrigatoriedade da escola — sancionada na Prússia por um regulamento para as escolas rurais de 1763, e reforçada por outro regulamento em 1794, no qual as doutri nas kantiana e iluminista de “educar o camponês” estavam na ordem do dia — não coincidia estritamente com a industriali zação, nem com a ascensão da burguesia, como nos casos in glês e francês. Naquele momento, o problema da Prússia era como “liberar” os camponeses das velhas relações de submis são à nobreza e introduzi-los nas relações mais modernas sem sofrer as turbulências revolucionárias que colocariam em risco a ordem absolutista estabelecida. Kant e os iluministas alemães- prussianos pensavam que, nesse contexto de transformações, a escola deveria desempenhar um papel estabilizador (Van Horn Melton, 1988), e por esse motivo sua pedagogia reduziu o método global à catequização, onde a dinâmica de pergunta e resposta era, na verdade, uma contrapartida na qual a resposta já estava estabelecida e deveria apenas ser reproduzida. Ao mesmo tempo em que Kant desenvolvia seu pensa mento filosófico, ocorreu um fato que mostra a nova importância da educação, não apenas pela regulamentação da obrigatoriedade 113 A I nvenção da Sala de A ula da escola25. Na Alemanha, a pedagogia assumiu nesse momento o caráter de disciplina universitária. Em 1779, na Universidade da cidade de Halle, criou-se a primeira cadeira de Pedagogia em língua alemã. Essa cadeira foi ocupada por Christian Trapp (1745- 1818), que no ano seguinte publicou suas aulas com o título Ensaio de Pedagogia. Na sua obra, a didática — esse ramo da pedagogia que se ocupa do método de ensino — emergiu como uma catequização disciplinadora, como vimos em Kant. No en tanto, tinha uma preocupação crescente com a atenção do aluno e a compreensão do conteúdo, que recuperava a velha demanda de Comenio sobre a compreensão e a motivação com base no ensino (Trapp, 1977, p. 256 e 286 s.). Trapp defendia que a compreensão do aluno (e não apenas a repetição de memória) fosse incluída na estrutura de comunicação na sala de aula. O que ocorreu então foi o que hoje chamaríamos de processamen to didático da catequização. Este processamento serviu tanto para aprofundaras disciplinas já existentes como para inaugurar um novo campo profissional: o professor especializado. Neste momento, não por acaso, surgiu a form ação docente propiiam ente dita: no m om en to em que o ensino, tanto das crianças como das almas, precisava de conhecimentos especializados. Coincidindo com o surgimento da pedagogia como disciplina diferenciada, registrou-se uma lenta mudança nas práticas que Gerhard Petrat identificou como a transição de “sustentar a escola”26 para “ensinar” (Petrat, 1979). Já não se 25. Um comentário do époco dizio: "fílguém pode imogmor o trobotho que dó ensinar codo umo dos 80 o 100 crianças a soletrar e ler. talvez duos vezes pelo monhõ 0 duos vezes pelo torde. O professor deve ficor tonto muito rapidamente" (crítico anônimo do fina! do século 18 citodo por Petrot. 1979, p. 193). 26. fí expressão alemã é "Schule-Halten"observe que holten é 0 verbo que também designa o expressão "pronunciar umo prédico" C'eine Predigt holten). 114 A Sala de A ula Cresce: a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial tratava de apenas manter as crianças quietas na sala de aula, mas também de fazer com que aprendessem. Até então, a es cola elementar tinha muito da creche disciplinar, onde as pessoas soletravam, cantavam e, às vezes, liam e contavam. 0 “ensino” emsentido estrito e moderno existiu a partir da estru tu ra do processamento didático e ocorreu a partir da preocupa ção não com uma disciplina aparente ou superficial, mas sim com um governo “profundo” das crianças, por uma internali- zação de saberes que modificava condutas e atitudes. Esta transição foi possível porque a memória perdeu o monopólio como objetivo da formação, e a compreensão ou o entendi mento passou a ocupar o centro. A nova pedagogia exigia que os “alunos (fossem) levados paulatinamente a pensar” (Petrat, 1979, p. 187). Diferentemente da obediência reflexi va de Lutero, centralizada na relação da pessoa com sua co munidade e com Deus, a idéia pós-kantiana da compreensão como objetivo do ensino centrava-se em um indivíduo carac terizado por uma nova consciência de si mesmo, pela inte gração da personalidade individual e pela capacidade de con duzir sua própria conduta (Sabean, 1984, p. 35). Esta ênfase na compreensão foi aplicada tanto aos ve lhos como aos novos conteúdos. Vamos usar como exemplo o caso do processamento didático da parábola bíblica do semeador (Bíblia, 1997, Mateus 13, 4-10, Marcos 4, 3-9 e Lucas 8, 5-8), uma narração com moral (Petrat, 1979; Rumpf, 1984). A novida de da escola que “ensinava” foi que esse objeto (a narração bíbli ca) transformou-se em conteúdo escolar. A didática nascente ela borou 17 perguntas para trabalhar a história do semeador, por exemplo: “Como sabemos que as sementes significam a palavra divina? / Por que a palavra divina não é aceita por todos os ho mens? / Onde Cristo planta as sementes? / Como Cristo interpreta 115 A Invenção da Sala de A ula a semente que cai no chão?” Perguntas deste tipo dirigidas a um indivíduo causaram uma ruptura com o método de ensino anterior. Enquanto na sala de aula jesuíta o professor controlava as respos tas de um aluno e os outros realizavam ações diferentes, na escola prussiana o professor interrogava o aluno como parte de um gru po ou sala de aula. Rumpf formula uma hipótese para explicar esta transformação: “as perguntas que se sucedem mostram a di reção: não se pode e não se deve deixar ao acaso o que efetiva mente ocorre aos homens em relação à parábola e em relação aos fantasmas que estas histórias despertam. Se alguém se contentas se em contar alguma coisa para as crianças (aula) ou as deixasse dizer alguma coisa sobre o tema, a relação estaria fora de controle (...). Assim, a pergunta do professor é um meio de evitar as rela ções privadas, caóticas e irregulares dos homens com os conteú dos de ensino, todos devem entender o correto (o mesmo) sobre a parábola do semeador” (Rumpf, 1984, p. 102-103). Dessa forma, vemos que este ensino, caracterizado pelo processamento didáti co dos conteúdos escolares nessa época e pela duração das formas catequistas de interrogação, obedece tanto à necessidade de com preensão (já não é uma mera memorização) como a uma forma mais efetiva e cotidiana de atribuir uma direção “disciplinada” ao pensamento das crianças. Desta form a, no início do século 18, o catecismo era a for ma de processamento didático privilegiada, com um a nova ênfase na compreensão individual. Na Prússia agrária e campesina, esta com binação causou uma síntese nova e maciça. A formação da técni ca interrogativa foi um primeiro conteúdo central da formação docente que surgia. O método global já se consolidava com o objetivo de conquistar o mundo. No entanto, como veremos no item seguinte, chegava um concorrente. 116 A Sala de A ula Cresce a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial S e g u n d a c o n s o l i d a ç ã o : c o m o a s a l a d e a u l a GLO BAL D ER R OT A O M É T O D O DE ENSINO MÚTUO Paralelamente à evolução da escola prussiana e da pe dagogia como disciplina universitária, ocorreram no âmbito pe dagógico outros fatos que se constituíram em alternativas de ensino de rápida difusão em todo o mundo. Entre eles, o desen volvimento do método de monitoramento ou mútuo, que co meçou a ser utilizado aproximadamente em 1800; foi provavel mente o mais espetacular, já que, alguns anos depois, tinha-se convertido no preferido dos incipientes sistemas educativos na cionais (Kaestle, 1973). Aceita e propagada por Bernardino Ri- vadavia em Buenos Aires, Bernardo de 0 ’Higgins, no Chile, José de San Martin, no Peru e Simón Bolívar, no norte da América do Sul, e como escola oficial no México desde 1823, a escola lan- casteriana converteu-se também no método privilegiado de en sino popular das ex-colônias hispano-americanas (Weinberg, 1984, p. 98 e ss.; Newland, 1992; Narodowski, 1995). Nos Es tados Unidos, foi adotado como método oficial de ensino entre 1820 e 1840. Em quase todos os casos, sua propagação foi o resultado da ação das sociedades (particularmente da British and Foreign School Society) que financiavam as escolas, enviavam representantes e propagandistas, e conseguiam impor o método como pedagogia de Estado (Kaestle, 1973)27. Este método, tam 27. é interessonte observar como é Feitio o compilação de Jeon Pierre Bostion ( 1990), de que o difusão do lancasterianismo no Rmérico Latina foi mediado pelo disputo entre o protestantismo e o catolicismo. James Thompson, o enviado do British ond Foreign School Society. escrevia em seus relatórios sobre estes temos sul-omericonos os progressos diá rios no vendo de Bíblios protestantes, junto oos ovonços do método loncosteriono. Rpo- rentemente, conseguiram o opoio do Coroo britânico com o orgumento de que o exponsõo de suo couso otroirio odeptos oo império inglês oo difundir o religião e o cultura daquele pois (Bostion. 1990). A Invenção da Sala de A ula bém chamado lancasteriano pelo nome de um de seus iniciado- res, Joseph Lancaster (1778-1838), baseava-se na utilização sis temática dos alunos auxiliares (os quais foram chamados moni tores), que já vimos quando analisamos a proposta educativa dos jesuítas. Através do auxílio de monitores ou alunos adianta dos, o método possibilitava que um só professor conseguisse “conduzir” uma classe de até mil alunos. Junto a Lancaster, ou tro introdutor do método foi Andrew Bell (1753-1832), que o desenvolveu nas missões cristãs inglesas na índia, provavelmen te a partir de elementos do ensino .jesuítico. Bell publicou seu livro de divulgação e aperfeiçoamento do método em 1797, e Lancaster o fez em 1803. Bell, que era protestante, insistia na constante supervisão dos professores e na necessidade de con servar a ordem escolar e social, ensinando a cada um o estrita mente necessário (propondo o ensino da leitura, mas não o da escrita); por outro lado, Lancaster, que pertencia às igrejas dissi dentes britânicas, enfatizou as conquistas individuais e desenhou um sistema de castigos e recompensas que estimulava a auto- superação individual. Apesar destas diferenças28, ambos concor davam com relação à estrutura básica do ensino mútuo, organi zado a partir de um professor e seus alunos-ajudantes. Devido à semelhança dos alunos-ajudantes com os mo nitores jesuítas, o pedagogo uruguaio Jesualdo denominou este método “velha novidade” (idem, p. 24), que Bell definia como “o método pelo qual uma escola inteira pode ser instruída sob a vigi lância de um só professor” (citado por Jesualdo, idem, p. 24). No 28. Rs diferenças entre Lancaster 0 Bell não eram menores, jó que Loncoster. apesor de contar com o apoio do Rei e de alguns nobres, sofria a resistência do Igreja anglicana, que lonçou violentos campanhas contra ele, e que opoiovo Bell (Toylor, 1996). Considerado um liberal. Lancaster teve que emigrar paro os Cstados Unidos em 1818. e em 1826 viveu algum tempo em Corocos. contratodo por Simón Bolívar (Norodoujski. 1995. p. 141). 118 A Sala de Aula Cresce a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial contexto de uma revolução industrial e da transformação política da Europa e da América, o método parecia vantajoso com relação ao global, porque permitia alfabetizar muitascrianças em pouco tempo, e com menor custo. Lancaster afirmava que podia realizar em dois anos o mesmo trabalho que uma escola tradicional reali zava em sete, e que se poderia economizar 60% do orçamento (Narodowski, 1995; Kaestle, 1973). Mesmo quando muitos seto res dominantes não olhavam com bons olhos a escolarização ma ciça, temerosos de que, quanto maior fosse a educação, maiores seriam as reivindicações de mobilidade social, a idéia de que a educação traria ordem e progresso começou a ser cada vez mais consensual; e, nesse contexto de consenso, o apoio ao método mútuo cresceu de forma exponencial. O método mútuo progredia de forma ordenada e regu lamentada por uma série de etapas para ensinar os alunos a ler, escrever e contar. Havia uma série de cartazes ou figuras impres sas que marcavam os passos a serem cumpridos por todos e cada um deles; uma vez que a primeira era aprendida e memorizada, passava-se para a segunda, e assim sucessivamente. Os passos do método correspondiam às aulas organizadas em sala de aula. Como a aprendizagem destes passos era avaliada de forma indi vidual, o ensino podia ser mais rápido ou mais lento, segundo os progressos do aluno; a promoção de uma série a outra era um tema individual e dependia do próprio ritmo. Os monitores (es colhidos pelo professor depois de uma avaliação) controlavam o cumprimento das etapas, davam as orientações para a leitura e a repetição, e controlavam a disciplina. As crianças, por sua vez, tinham lousas ou caixas com areia onde escreviam as letras ou realizavam as operações aritméticas que eram pedidas. A lousa individual, chamada também lousa manual (Gvirtz, 1997, p. 44 e ss.), era a tecnologia fundamental do ensino: grande parte da 119 A Invenção da Sala de A ula interação e da regulação das relações professor-monitor-aluno era realizada através dela, situação que perdurou até princípios do século 20. A centralização da lousa pode ser observada nas ordens que os professores deveriam dar aos monitores, confor me um professor lancasteriano: C la sse , m o s tr e m s u a s lo u sa s: as crianças da sala instantaneamente co locam suas lousas sobre a carteira, com o lado onde escreveram para frente, e levemente inclinada (...). C la sse , a p a g u e m a s lo u sa s: apagam as palavras inspecionadas com suas esponjas. C la sse , v a m o s J a z e r a lição , v a m o s p a r a f o r a d a esco la ; à Igreja; a o C a te c ism o ; ou às Contas: as crianças levantam-se de suas cadeiras e, vol tando-se em direção ao professor, esperam a nova ordem. C la sse , le v a n te m -s e : saem de suas carteiras, e colocam-se detrás das mesmas, mantendo os olhos fixos no professor. Os meninos cruzam suas mãos por detrás das costas; as meninas, pela frente. Poole J o h n , “The village school improved” (1813), citado em: Gosden, 1969, p. 5. Estas ordens eram dadas da frente, com uma série de sinais escritos, que Lancaster chamou de “telégrafo”: um quadra do de madeira com seis quadrados menores nos quais se podia ler as letras iniciais da ordem respectiva. Outros professores, junta mente com as ordens da lousa, também usavam um sino para chamar a atenção dos monitores e dos alunos: o primeiro toque indicava que deviam preparar-se para ficar de pé; o segundo, para ficar parado de pé; o terceiro, para avançar à direita e à esquerda; o quarto, para juntar-se no fundo da sala (Johnson, 1994, p. 10). O método lancasteriano fo i comparado ao funcionam ento da indústria nascente. Na opinião de Foucault, o método de monitoramento era uma máquina pedagógica de grande efi ciência: “(...) o complexo sistema de relojoaria da escola de 120 A Sala oe A ula Cresce a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial ensino mútuo começa a ser construído engrenagem por en grenagem: começou destinando aos alunos maiores tarefas de simples vigilância, depois de controle do trabalho e, mais tar de, de ensino; a tal ponto que, no final das contas, todo o tempo dos alunos ficou ocupado, seja ensinando ou apren dendo. A escola converte-se em um aparelho de ensinar, na qual cada aluno, cada nível e cada momento, se combinados como devido, são utilizados permanentemente no processo geral de ensino” (Foucault, 1995, p. 170). A metáfora da máquina ajuda a considerar o caráter sistemático e interliga do das etapas do método. No entanto, também podem ser feitas comparações da escola lancasteriana com a estrutura militar. O próprio Lan caster dizia que era necessário transformar a autoridade tra dicional do professor, baseada em sua personalidade, em um sistema que fosse independente do caráter do mesmo; e que para isso, o exército, onde “o sistema, mais que a pessoa, está investido de autoridade; a categoria, antes do homem, orde na a obediência; e o oficial subordinado é tão rapidamente obedecido como seu chefe”, oferecia uma estrutura mais acei tável do que a da escola tradicional. “Um homem de idade de alta patente ou um jovem de 16 anos ordena e é obedecido. Esta ordem admirável, geralmente associada à guerra, não se torna desordem se for aplicada em tempos de paz" (Lancas ter, “The Lancasterian System of Education”,1821; citado em: Kaestle, 1973, p. 89). Logicamente, esta ordem quase militar nem sempre era cumprida estritamente, e há relatos de alunos e professores que não podiam ou não queriam segui-la. Para complementar e re forçar a obediência grupai, Lancaster criou um sistema de re 121 A Invenção da Sala de A ula compensas e castigos. Estipulou que os alunos deveriam agru par-se em conjuntos ou classes de 10 ou 12, numerados conse cutivamente e com um cartaz no peito, pendurado no pescoço, que mostrava seu número. O monitor devia passar a lição para cada um e, se alguém errava, voltava um número na fila. Com o passar do dia, os alunos que cometessem menos erros encabeça riam as filas, e os que cometessem mais erros ficariam no final. Quem levava o número um tinha também um cartaz de couro ou cobre que dizia: “Mérito em leitura” ou “Mérito em escrita”, e recebia uma ilustração de presente; se falhasse, também perdia este distintivo (Lancaster, “Improvements in Education”, 1806; citado em: Gosden, op. cit., p. 6). O que diferenciou este método de outras experiên cias educacionais com monitores foram sua generalização como sistema e o desenvolvimento de uma série de técnicas destinadas a garantir sua eficácia — técnicas que logo perma- neceriam nos sistemas educacionais nacionais. Com relação à formação de um sistema, Lancaster considerava que os pro fessores deveriam ser rigorosamente formados através de seus livros e de seus ensinamentos diretos. Em 1805, existia um grupo considerável de alunos que viviam com ele; identifica- va-os como “sua família” e ensinava-lhes sobre a condução da escola, a seleção de monitores e “as paixões”; os futuros monitores deveriam aprender a registrar o temperamento e a conduta dos alunos, e a usar a si mesmos como exemplo (Taylor, 1996, p. 17). Propôs também que a Sociedade Lan- casteriana pagasse uma pensão ou salário fixo aos professores (e não, como ocorria até então, que esta remuneração fosse proveniente do pagamento das mensalidades dos alunos), tam bém quando estivessem doentes ou na velhice. Isto permiti- 122 A Sala de A ula Cresce, a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial ria que a carreira fosse mais atraente para os melhores estu dantes, e daria à sociedade o direito de controlar o ensino que ofereciam. Com relação à generalização, diz Mariano Narodowski que o método lancasteriano instaurou “a alter nativa como estratégia geral na expressão das atividades: os que agora são alunos, logo poderão ser professores; os mais adiantados ensinam os atrasados, que, por sua vez, estão em condição de formar outros em piores condições no estudo, e assim sucessivamente” (Narodowski, 1994, p. 137). Neste sentido, foi introduzido um critério de mobilidade das posi ções educativas que teveconsequências políticas liberalizan- tes (Hamilton, 1989). Comparemos por um momento a mobilidade “regu lamentada” do sistema lancasteriano com a técnica da locali zação de jesuítas e lasalleanos — posicionar um aluno em um lugar determinado da sala conforme seu mérito. Enquanto a posição do aluno na sala jesuíta e na lasalleana era algo mais ou menos estável, que podia mudar de vez em quando (tal vez um antecedente de nossos bimestres, trimestres e quadri- mestres?), e que era decidida diretamente pelo professor, a “posição” no sistema lancasteriano podia mudar dia a dia. Imaginemos que diariamente eram possíveis mudanças mais ou menos importantes na “ordem” da sala de aula e que estas mudanças não eram decisões diretas do professor, mas sim obedeciam à aplicação de regras gerais. O professor, nesta situação, está afastado do aluno, sua autoridade não aparece como próxima ou pessoal, mas sim como afastada e anôni ma; não é um “fazedor de lei” (um legislador que determina as regras da situação), mas sim alguém que aplica regras exis tentes e que escapam ao seu poder. Lembremos que, em Co menio, o professor, visto como o sol, era uma espécie de en 123 A Invenção oa Sala de A ula carnação da autoridade divina que atuava aplicando as regras no ensino. A autoridade do professor lancasteriano era uma autoridade técnica, de aplicação, uma autoridade que talvez não fosse vista como algo derivado do sagrado, mas sim como algo mais profano e empírico. Neste sentido, assemelha-se muito à autoridade do inspetor da fábrica, que também se encarrega de levar os homens a “cooperar” com a máquina industrial e tenta que isto ocorra de acordo com regras que não são definidas por ele. Se há algo que caracteriza uma “máquina de ensino" é a massividade. Por isso, produziu-se nela uma série de téc nicas e saberes para garantir o controle e a docilidade da po pulação escolar massificada, que se consolidaram como parte das relações sociais dentro da escola. Um destes saberes é o registro minucioso e detalhado da vida escolar (Narodowski, 1994, p. 142 ess.). Estes registros, que relatavam o progresso de cada aluno em cada matéria e sua freqüência, eram guar dados ano após ano. O controle da freqüência não se realiza va chamando os alunos por seus nomes, como é feito hoje, mas prolongava-se durante o dia e era realizado classe por classe. Quando um grupo estava em aula, os alunos que o compunham eram chamados (10 ou 12, lembremos); os nú meros que não estavam presentes eram então marcados no registro. Se um aluno estava ausente durante vários dias, al gum funcionário da escola ia até sua casa para saber se algu ma coisa estava acontecendo. Outra reestruturação da experiência áulica que te- ria muitos efeitos sobre a escolaridade, assim como a co nhecemos hoje, é a reorganização do tem po e do espaço esco lares. Na escola lancasteriana, a jo rnada escolar, como 8 124 A Sala de Aula Cresce: a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial veremos mais adiante, também estava minuciosamente re gulamentada. Lancaster premiava a pontualidade e sancio nava ou mandava para suas casas os alunos que chegavam tarde; também pautou a agenda escolar diária chegando a extremos desconhecidos até então. Dizia: “Ninguém pode ignorar a grande quantidade de tempo que se perde na es cola, durante o qual os alunos não estão fazendo suas tare fas, e talvez nem mesmo tentando aprendê-las. As melhores escolas que vimos, em outros países ou neste, dedicam uma parte do tempo muito pequena aos misteres de pagam ento” ou burocráticos (citado em: Taylor, 1996, p. 105). Esta nova preocupação com o. tempo deve ser entendida no contexto da transformação social mais geral do capitalismo. Enquan to os agricultores ou os artesãos podiam organizar com rela tiva liberdade seu tempo de trabalho — por exemplo, traba lhando mais no verão para a colheita, ou descansando aos domingos e às segundas-feiras, quando não eram solicita dos — , os donos das fábricas não toleravam estes vaivéns, e exigiam freqüência pontual e regular. O ócio passou então a ser considerado de maneira depreciativa, e foi perseguido pelas leis que castigavam a preguiça e o Hc^rrtprego. No terreno educativo, pode-se observar que, enquanto na esco la jesuíta e lasalleana o importante era não perder um tem po divino, e estar ocioso era considerado pecado, na civili zação contemporânea, na escola lancasteriana, o ócio na sala de aula era visto como uma perda mais em nível econômi co. “Quanto à disciplina, busca uma economia positiva; pro põe sempre o princípio de uma utilização do tempo teorica mente crescente; esgotamento mais do que ocupação; trata-se de extrair do tempo cada vez mais instantes disponíveis e, de cada instante, cada vez mais forças úteis” (Foucault, 1995, 125 I I A Invenção da Sala de A ula p. 158). Este princípio de utilização do tempo tinha um com ponente de maximização: aproveitar o tempo, não porque perdê-lo fosse pecado, mas sim porque era antieconômico29. Quanto à organização espacial, deve-se destacar que a sala de aula lancasteriana era, em geral, um grande salão, muito cheio de alunos, com uma disposição espacial também estritamente regulada (ver figura 10). O professor devia estar na frente, sobre um tablado, para controlar os movimentos e as lousas dos alunos e o trabalho dos monitores; os alunos eram dispostos em fileiras de nove, sendo que no final estava um monitor. Ocasionalmente, os alunos paravam junto ao monitor e, em semicírculo, recitavam a lição ou as contas. Esta organização serial (em séries de monitores e alunos, em vários grupos distintos) do espaço escolar, disse Foucault, foi “(...) uma das grandes transformações técnicas do ensino fun damental. Permitiu ultrapassar o sistema tradicional (um aluno que trabalha alguns minutos com o professor, enquanto o grupo confuso dos que esperam permanece ocioso e sem vi gilância). Ao determinar lugares individuais, possibilitou o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Orga nizou uma nova economia do tempo de aprendizagem. Fez o espaço escolar funcionar como uma máquina de aprender, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar” (Fou cault, 1995, p. 151). A escola da figura 10 pode nos dar uma idéia apro ximada de como as medidas eram ajustadas e de como os 29. Pode-se comparar esta preocupação pelo eficiêncio do tempo escolar com o comentário de Domingo F. Sarmiento em suo viagem oos Fstados Unidos: “nesta época de movimento universal, o povo que tiver embarcações mais velozes, de construção mais barato e, porton- to, com fretes menos elevados, será o rei do universo" (Sarmiento, 1845-184:1993. p. 335). 126 A 5ala de Aula Cresce a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial Fig. 10. Uma escola lancasteriana em funcionamento. A ilustração mostra 365 alunos sentados, com os monitores encostados, conforme um Manual da British and Foreign School Society de 1831 (Foto de W .Johnson.‘“ Chanting C ho ris te rs ’: simultaneous recitation in Baltimore's Nineteenth C en tu ry Prim ary Schools", History o f Education Quarterly, vol. 34, N Q 1, 1994). professores e os alunos se sentiriam nessa sala de aula. A sala media aproximadamente 7 metros de largura por 12 de com primento. As carteiras, comuns para todas as fileiras, mediam por volta de 2,5 metros e estavam localizadas a um metro de distância uma da outra. Assim sendo, cada aluno tinha apro ximadamente 30 cm de carteira à sua disposição. A situação piorava com os assentos: eram banquinhos com uma base superior de 20 x 15 cm (Johnson, 1994, p. 6). Compare este assento e esta parte da carteira com o tamanho do livro que tem em suas mãos, e verá que era pequeno. A situação material das escolas lancasterianas nas ex- colônias hispano-americanas não era muito melhor. Por um lado, havia maior pobreza de recursos e não se contava com as carteiras fabricadas em massa ou com escolas construídas 127 AI nvenção da Sala de A ula especialmente para este fim, como no caso dos Estados Uni dos, como mostra a figura 10. Um relato sobre uma escola lancasteriana em Bogotá, em 1820, revela as dificuldades que eram enfrentadas: O local constava de duas partes: um corredor de pedra e susten tado por uma enorm e coluna de pedra, e um a sala estreita, com fumaça, escura e tão úm ida que a parede estava coberta até a altura de um m etro por um limo verde que causava um cheiro m uito desagradável. Uma antiga mesa de cedro, uma cadeira de braços, em cujo espaldar havia um touro e um loureiro em rele vo; quatro bancos duríssim os e um banco de tijolo eram os ú n i cos móveis que decoravam aquele lúgubre cômodo. Sobre a cadeira do professor havia um adereço composto por um enorme chapéu de palha decorado com penas de peru (vulgar mente cham ado “to n to ”), um a corda trançada de seis fios, duas palm atórias e um cartaz escrito em grandes letras verm elhas, que dizia: “A letra marca-se com sangue, e o trabalho, com dor”. R. Carrasquilla. “Lo que va de ayer a hoy", citado em: Weinberg, 1984, p. 101. Como sabemos, os homens não são máquinas e as crianças, menos ainda. Por isso, uma “máquina de ensino”, cuja “matéria-prima” eram pessoas, não podia funcionar inteiramen te como uma máquina. Como mostra a descrição anterior, e muitas outras, o método não funcionava na prática como foi proposto por seus criadores. Por um lado, olhando um plane jamento do tempo escolar de uma escola lancasteriana norte- americana, pode-se observar que o regime de monitoramento coexistia com outras formas de instrução simultâneas a cargo do professor e com outros rituais não “mutualizados”. 128 A Saia de Aula C íxesce a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial Agenda do dia do professor MJilton (1836) 9:00 — 9:10 Sentar-se. Fazer comas ou figuras nas lousas. 9:10 — 9:30 Aula. Primeira lição: gramática, geografia. 9:30 — 9:45 Exercícios simultâneos: corrigir erros de sintaxe. 9:45 — 10:00 Exercícios simultâneos de escrita. 10 :00— 10:30 A escola deve estar em silêncio. O sinal toca 4 vezes; levar os alunos até os monitores que estão nos cor redores. Os temas, de acordo com a aula: gramática, geografia, escrita e leitura. 10:30 — 10:45 Toca o sinal; os monitores recolhem os livros. Escrever palavras dadas pelo monitor. 10:45 — 1 l:15Gram ática ou geografia simultâneas. 11:15 — 12:00 Escrita, primeiras 5 lições erri papel, as seguintes na lousa. 12:00 Saída. 2:00 — 2:10 Reunião igual à da manhã. 2:10 — 2:30 Aula, primeira lição: aritmética. 2:30 — 3:15 Com os monitores nos corredores: aritmética, exceto a primeira classe, que estuda geografia com mapas que estão pendurados na parede mais alta da sala. O professor examina por 15 minutos a primeira classe. 3:15 Voltam aos seus bancos. 3:15 — 4:00 Quadros simultâneos, com explicação incluída. 4:00 —- 5:00 Contas. 5:00 Saída. Copiado de Johnson, 1994, p. 10-11. Em segundo lugar, logo surgiram manifestações críticas sobre a habilidade e a capacitação dos monitores para ensinar os alunos (Kaestle, 1973; Johnson, 1994). Muitas vezes, os monitores só sabiam ler (mesmo tendo sido dadas instruções posteriores de Lancaster para tentar evitar isto e propor, em troca, maiores requisi tos para sua seleção); e muitos temiam também que, ao tomar o ensino independente de sua própria atuação, a capacidade de con trole e de instrução do professor sobre o conjunto de seus alunos 129 A Invenção da Sala de A ula fosse reduzida. As crianças aprendiam os conteúdos por meio de um companheiro, o qual, embora estivesse mais adiantado na hierarquia, era, de qualquer maneira, um de seus pares. Corria-se então o risco de que o monitor, o ajudante, fosse mais importante do que a figura centra lizada do professor. Muitos julgavam que este método não garantia o sentido moralizador do ensino, a produção nos alunos da boa ou má consciência como regulador interno: o professor estava muito dis tante dos alunos e sua autoridade era mediada por outro aluno. Para os críticos da época, não bastava alcançar a docilidade dos corpos; era preciso também educar a alma. Além disso, o método estava cen trado no ensino da leitura-escrita e de cálculo, e negligenciava as aprendizagens religiosas, que até então tinham sido centrais. “Lan caster aceitava em suas escolas crianças de todas as seitas, não ensi nando nenhum dogma, limitando-se à leitura de passagens extraí das da Bíblia, sem comentários, convencido de que o ensino religioso propriamente dito deveria ficar sob a responsabilidade dos pais” (Jesualdo, 1954, p. 31). Pode-se ver como exemplo a organização da jornada escolar proposta pelo professor M’Jilton citado anterior mente: lá se verifica que não há rituais religiosos nem lugar para orações, como nas escolas jesuítas ou em outras da mesma época. Por outro lado, o método lancasteriano teve efeitos não desejados, como a formação de lideres operários sindicais e po líticos na França e na Inglaterra (Querrien, 1979). Isto foi facili tado, em primeiro lugar, pela presença de crianças e jovens de diversas idades que transmitiam entre si experiências e conheci mentos que podiam exceder o limitado curriculum proposto por Lancaster e Bell, e incluir saberes sindicais e sociais. Em segun do lugar, muitos tinham aprendido a desenvolver um trabalho mais autônomo, sem nenhum representante unificador imedia to, como o professor; e a leitura e a escrita permitiam que en trassem em contato com as sociedades semipolíticas que se or- 130 ganizavam àquela época em favor do sufrágio universal, da re gulamentação da jornada de trabalho e da educação obrigatória. Por sua vez, os alunos das escolas do método global pa reciam mostrar resultados menos evidentes , porém mais “segu ros”: a proximidade relativamente constante do professor — rela tivamente, porque nas salas “globais” era comum encontrar 100 alunos — , o fato de que uma e só uma figura estivesse encarrega da de organizar, sancionar, avaliar e dispor, não despertava a des confiança dos Estados, que também estavam centralizando mui tas funções: a educação, a saúde, a punição do ócio, o exército. Por esse motivo, dizia-se que aos estados capitalistas nascentes não interessava tanto qual método era barato e rápido, mas sim qual método constante, centralizado e paciente, como a gota que pinga na pedra, poderia garantir a “ordem” nas jovens gerações no contexto de uma sociedade que se transformava aceleradamente. Devido a estas críticas, e a esta crescente desconfiança do Estado com relação aos resultados do método, a escola lancas teriana foi perdendo terreno. Na metade do século 19, o método de monitoramento havia sido abandonado na maioria dos territó rios franceses e ingleses. Mesmo assim, continuava vigente na Amé rica Latina, em função das guerras civis e da escassez de docentes. No entanto, no último terço do século 19, quando os estados nacionais se organizaram, foi combatido decididamente (Pineau, 1997). Os estados nacionais decidiram progressivamente pela prim a zia do pastorado modernizado que surgia juntam ente com a disciplina independente chamada pedagogia, baseada em sistemas de ensino si multâneos, como os que veremos a seguir. Como vimos, a sala de aula global quer que os alunos obedeçam de forma reflexiva, e não às cegas, que todos acreditem que a ordem na qual participam — seja na sala de aula, seja na A Sala de Aula C ilesce a Disciplina nos Tempos da Revolução Inoustímal 131 < A Invenção da Sala de A ula sociedade — seja correta e legítima. Aparentemente, para os críti cos da época, o método mútuo representava uma organização da sala de aula na qual, ainda que se solicitasse que todos tivessem papéis e tarefas contínuas, a identificação das crianças com essa ordem era muito mais superficial e instável. Talvez a distância relativa da figura central do professor tivesse permitido passar para segundo plano a produção daobediência por meio da boa ou má consciência. Ou seja, aquilo que La Salle denominava “humilhar” ficava relegado frente às ocupações diárias de organização do gai- po em todos os seus aspectos (ver p. 88). Para produzir a obediência “profunda” era necessário um passo fundamental: que a autoridade “externa”, que é o pro fessor, se convertesse em “interna”. Ou seja, que o controle do professor sobre o discípulo se “interiorizasse” na consciência dos alunos, e que estes começassem a autocontrolar-se. Para isto, o olhar “próximo” do professor tem importância fundamental. Por um lado, porque permite que os alunos aceitem as regras; por outro, no caso daqueles que não as aceitam, o olhar próximo também tem uma eficácia disciplinar especial. Por exemplo, em uma situação de exame, os alunos muitas vezes não colam por temer que o professor os descubra, mesmo sendo difícil que o professor exerça vigilância eficaz sobre 35 ou 40 alunos: ou seja, que a autoridade do professor produza efeitos independente mente de sua presença física ou de suas ações imediatas. Assim sendo, sua proximidade não consegue apenas acentuar a obedi ência em alguns — aqueles que vêem que colar é imoral — , mas também nos outros — os que não acreditam que essas regras sejam particularmente morais, mas que, diante da possibilidade do olhar do professor, “autocontrolam-se”. Neste sentido, o mé todo global parecia oferecer uma situação onde se possibilitava essa transição do controle externo ao autocontrole. Essa presen- A Sala de Aula Cresce a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial ça controladora do docente talvez fosse o elemento de que mui tos pedagogos sentiram falta no método lancasteriano. Cada vez mais, a sociedade industrial e a economia ca pitalista preferiram o “velho” sistema global a um método pouco seguro em seus resultados “morais” ou de “obediência”. Propuse mos ver os métodos de governo da sala de aula como vinculados à forma de governo mais global das sociedades. Isto não significa que ambos os governos sejam idênticos, mas sim que têm víncu los e que permitem a circulação de empréstimos de uma esfera para outra. O fato de o método lancasteriano, com sua lógica de ensino contínuo muito semelhante ao ritmo das fábricas, não ter conseguido se impor nas sociedades industriais a longo prazo mostra-nos que, em uma sociedade “moderna”, nem todas as ins tituições ou partes dessa sociedade se modernizam concomitan temente. A partir do momento em que os setores dominantes eu ropeus e americanos destinaram à escola uma função mais conservadora ou estabilizaclora do que transformadora, o método global foi considerado a forma mais indicada para esta função de ordenamento. Como veremos a seguir, a pedagogia atendeu a este “mandato” com a produção de teorias de ensino abrangentes. T erceira consolidação: a escola prussiana, DOS PRINCÍPIOS PESTALOZZIANOS À TEORIA EDUCATIVA DE HERBART Ao mesmo tempo em que o método lancasteriano estava no auge na Inglaterra, outros desenvolvimentos na atual Alemanha mostravam um caminho diferente. Ali o sistema de ensino mútuo, ou lancasteriano, havia sido muito pouco desenvolvido na escolari zação elementar, e os seguidores de Comenio e seus discípulos ti- 133 A Invenção da Sala de A ula nham mais força. Um deles Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), que viveu nos cantões suíços de língua alemã, produziu um método que teria muitas repercussões na sala de aula e na formação docente. Pestalozzi era um personagem forasteiro e. ilustre, proveniente de uma família abastada que tinha empobrecido durante sua infância devido à morte de seu pai. Na juventude, leu Rousseau30 e outros iluministas, que o convenceram da necessidade de educar as massas para superar o atraso e a pobreza social. Quando estourou a Revolu ção Francesa (veja p. 104), Pestalozzi apoiou-a fervorosamente e foi nomeado cidadão francês pela Assembléia revolucionária em agos to de 1792, juntamente com outros 18 estrangeiros “iluministas”. Sua fama como educador na Europa cresceu, e seu estabelecimento educativo em Yverdon recebeu visitas de todas as partes, incluindo membros da sociedade lancasteriana (da qual se tornou membro honorário em 1815). Mesmo depois de sua morte, a escola que seus discípulos mantiveram era visitada como escola modelo por peda-' gogos e políticos da Europa e da América (Luzuriaga, 1992). Qual era o motivo de tanto sucesso? Pestalozzi fundou várias escolas ou lares nos quais esta nova qualidade de ensino, o processamento didático dos conteúdos a ensinar, encontrou uma de suas primeiras formulações. Continuou com a tradição de olhara natureza para deduzir as ações educativas, assim como tinham feito Comenio e como propunha Rousseau. Em um de seus livros mais famosos, Cómo Gertrudis educa a sus hijos (Como Gertrudes educa seus filhos), destacou que o modelo para o ensino escolar devia 30. Jeon-Jocques Rousseau ( 1712-1778). de quem trotaremos em detolhe mois odionte, foi um filósofo, político e teórico sociol de gronde importância poro suo époco. formulou o proposição de que os sociedades se boseorom em um "contrato" — nós o chamoríomos poeto ou constituição — entre pessoas livres e iguais. De suo vosto obro, destaco-se, no compo educotivo. Cmilio ou do educoçõo ( 1762), onde troça umo utopio pedagógico no quol o educoçõo devio oproximar-se ò noturezo do crionço. Cmilio é um dos grandes clás sicos do pedogogio moderno e suo leitura é muito recomendável. 134 A Sala de Aula Cresce a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial derivar-se do ensino familiar, considerado como natural; por isso, a importância de observar como Gertrudes (uma mulher do povo) ensinava seus filhos. Dizia nesse livro: “Homem, imite esta ativi dade da excelsa natureza, que desenvolve o germe da maior das árvores a partir de uma semente minúscula” (citado em: Luzuria- ga, 1992, p. 212). Assim também devia proceder a educação, co meçando pelo essencial e desenvolvendo-se lentamente do me nos essencial ao essencial. Esta consideração do educativo também contribuiu para que Pestalozzi escolhesse a forma de “lares” ou pensionatos como estabelecimentos educativos, fazendo com que o ensino se assemelhasse ao máximo ao ambiente familiar. Ao longo de sua vida, Pestalozzi fundou inúmeras es colas; muitas delas fundiram-se por falta de apoio financeiro e devido a divergências entre seus professores. Ele defendia prin cipalmente um método experimental para testar as leis da na tureza que “descobria”. Destacou a importância da observação direta, assim como tinha postulado Comenio, e desenvolveu um método de questionamento para a educação da percepção ou educação intuitiva. Para ele, o objetivo da ação educativa era o “desenvolvimento de todas as forças hum anas”, e neste sentido sua proposta implicava uma ampliação da proposta lancasteriana, que superava am plam ente a noção de instrução ou alfabetização, que era o eixo do curriculum da escola mútua. Em Cómo Gertrudis educa a sus hijos, Pestalozzi conta que, durante muito tempo, esteve tentando determinar quais eram os pontos básicos do ensino da cultura que foram adaptados à essên cia da natureza, e subitamente encontrou a resposta: “todo nosso conhecimento procede de três formas fundamentais: o número, a forma e a palavra”; finalmente chegou à “essência” tão desejada (ci tado em Luzuriaga, 1992, p. 221). Como consequência, o profes 135 A Invenção da Sala de A ula sor sempre dirigiría a atenção dos alunos a esses três aspectos: quantos objetos e de que classes se apresentam a seus olhos; como se mos tram, como são sua forma e seu contorno; como se chamam, como cada um deles pode ser representado por meio de um som e de uma palavra. Tais deveriam ser os guias de todos os professores para educar a mente, a mão e o coração de seus alunos. Estes três pilares constituíram a base da didática pesta- lozziana, juntamente com o princípio da observação e da educa çãoperceptiva. Vejamos como funcionava este método na prática. Johannes Ramsauer, discípulo e colaborador de Pestalozzi, reme morando sua experiência como aluno, narra um exemplo do en sino da língua. Esta se organizava a partir de exercícios de obser- vação-intuição sobre um velho tapete pendurado na parede. Este tapete frequentemente estava estragado e tinha rasgos e bura- ' cos. Nós (os alunos) deveriamos observar o tapete, que tinha figuras desenhadas, e deveriamos descrever a superfície com seus buracos e rasgos, e tínhamos que dizer algo sobre a forma, o número, a locali zação e a cor do que víamos e percebíamos. Então, o que dizíamos era formulado em orações cada vez mais longas. Ele dizia: Rapazes, o que vocês estão vendo aqui? (ele nunca se dirigia às meninas). Respostas: Um buraco na parede. Outra resposta: Um rasgão na parede. Pestalozzi: Muito bem! Agora repitam comigo: vejo um buraco no tapete. Atrás do buraco, vejo a parede. Atrás do buraco estreito e comprido, vejo a parede. Os alunos repetem. Pestalozzi: Repitam comigo! Vejo figuras sobre o tapete. Vejo figuras pretas no tapete. Vejo figuras pretas redondas no tapete. Vejo uma figura quadrada e amarela no tapete. Ao lado da figura quadrada amarela, vejo uma figura redonda e preta. A figura quadrada comu- nica-se com a figura redonda por meio de uma linha grossa preta. Citado em Blankertz, 1997, p. 109-110. A Sala de A ula C r e s c e a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial Para os contemporâneos de Pestalozzi, esses exercícios eram uma espécie de milagre metodológico. De forma indutiva, com base na observação, Pestalozzi criava situações nas quais as crianças partiam de suas representações e idéias “caóticas” ou “de sordenadas” para iniciar-se na observação'sistemática e em uma lin guagem cada vez mais complexa. Como mostra o exemplo, o con teúdo da observação era quase irrelevante, e o importante era o exercício de observação em si. Como estes princípios eram rela tivamente independentes dos conteúdos das observações, foi dito que o método de Pestalozzi — como já vimos, global — tinha uma tendência à formalização: podia converter-se em regras e princípios mais abstratos, utilizados em diferentes contextos e para diferentes disciplinas. Esta possibilidade de fo rm a lizar e pa dronizar o ensino tornou-o mais atraente. Em 1810, o reino da Prússia deu bolsas de estudo a dez professores das escolas fun damentais para que aprendessem o método pestalozziano na Suíça. Inclusive, de muitos programas de estudo das escolas populares do século 19 constava a disciplina “ensino intuitivo” (ou de observação) como matéria independente que preparava para a alfabetização e o cálculo, entre outros. Também nos livros de pedagogia argentinos do final do século 19 e início do século 20 há capítulos dedicados ao método de Pestalozzi. Como já mencionamos, apesar de a posição política de Pestalozzi ser republicana, contra a monarquia e de apoio à Revolu ção Francesa, seu método parecia muito compatível com a política disciplinar das monarquias do início do século 19, que se baseavam em princípios contrários ao liberalismo. Graças a este consenso, foi considerado o pai da escola popular de língua alemã, um Sarmien to dos Alpes, e converteu-se em um verdadeiro mito pedagógico. Os estados imaginaram que com o método pestalozziano poderíam gerar planos de estudo que garantissem um ensino unificado em todo seu terri- A Invenção da Sala de A ula tório. Isto era cada vez mais necessário devido à liberação dos cam poneses e à incipiente industrialização, que provocava deslocamen tos e migrações de populações e que exigia uma massa mais disci plinada. Com este argumento, entre outros, os responsáveis pela política educativa desejavam construir um ensino homogêneo, dis ciplinado, regulamentado até nos detalhes. Qual é o conteúdo governamental da proposta pesta- lozziana? A criança aprende a abordar os objetos do ponto de vista do conhecimento. Aprende a conduzir-se como alguém que conhece, em uma situação de grande estruturação determinada pelo professor. Os alunos aprendem a “conduzir-se” a si mesmos. Assim sendo, o professor é um verdadeiro “condutor” das condu ções dos alunos, um governante da situação de ensino que ele mesmo estrutura, guiando e sistematizando as percepções e as disposições dos alunos. Pestalozzi avança na proposta do método global, redefinindo um sistema centrado em uma criança que aprende e que, por sua vez, o guia até objetivos preestabelecidos. Neste sentido, pode-se dizer que o método pestalozziano parece ser uma das grandes formulações do governo da sala de aula con temporânea, que mais tarde viria a se aprimorar e se tornaria mais complexa, como veremos no próximo capítulo. O próprio pedagogo argentino, Rodolfo Senet, transcre ve uma das atividades que a diretora da Escola Normal de Dolo- res, Lupercina Laborda, utilizava para ensinar o método pestaloz ziano. A professora propunha uma série de problemas pedagógicos baseados nos nove princípios, a partir de uma situação de ensino que não cumpria alguns deles. Os alunos deviam indicar qual era o princípio que não estava sendo seguido e quais seriam os passos para corrigi-lo. Laborda perguntava: “Que princípios pestalozzia- nos são violados procedendo da seguinte forma?” 1 38 A Sala de Aula Cresce a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial — Na aula de leitura, ocupar a maior parte do tempo com explica ções de palavras, exercícios de vozes, sinônimos-parônimos, etc. — Na aula de caligrafia e desenho, exigir que as crianças copiem corretamente os modelos, sem ter um conceito claro da forma nem de seus elementos. — Ensinar o que são um sabiá, uma calopsita, etc., antes de ensi nar o que são um pardal, um pintassilgo, etc.. — Começar uma aula sobre adjetivo dando sua detinição. — Usar em todas as escolas um planejamento uniforme, de ma neira que as crianças conheçam antecipadamente a ordem em que o assunto será apresentado. Senet, op. cit., pp. 86-87. Apesar do sucesso de Pestalozzi e de sua incorporação ao saber pedagógico comum à sua época, foi outro contemporâ neo seu, Johann Friedrich Herbart (1776-1841), que teria influ ência decisiva no momento de estruturar a sala de aula do méto do global e da necessidade de processamento didático. Herbart foi o sucessor de Kant na cátedra de Filosofia de Kònigsberg (veja p. 107), mas também foi professor particular e ocupou-se especialmente do que agora seria o ensino médio. Foi provavel mente quem mais sistematizou a idéia de que a pedagogia devia fundar-se principalmente na psicologia e em uma concepção determinada do sujeito de ensino e de conhecimento, seguindo a linha naturalista de Comenio e Pestalozzi, porém levando mais longe sua formalização nas leis e regras universais, ao modo de Immanuel Kant. Seu impacto foi estendendo-se com o passar dos anos por toda a Europa, e também nos Estados Unidos e na Argentina os pedagogos herbartianos organizaram-se e difundi ram sua proposta. Como bom sucessor de Kant, Herbart manteve na pe dagogia o vínculo direto das atividades de governo e das ativi dades de ensino: “a pedagogia geral, com relação à qual fare 139 A Invenção da Sala de A ula mos adiante algumas considerações particulares, é estudada, no primeiro momento, de acordo com os três princípios capi tais: governo, instrução e disciplina” (Herbart, 1935, p. 35). O governo era o de maior extensão, porque sem ele os outros dois não seriam possíveis. Herbart entendia por governo o alcance da ordem e a condução da classe, e incluía tanto os corpos como as almas. Seu fundamento estava em manter ocupadas as crianças e em vigiar, castigar e dar ordens múltiplas (pp. 37- 39). A instrução, por outro lado, era a atividade espiritual que chegava a multiplicar o interesse e a virtude; a ênfase sobre o interesse — que, como veremos, tinha importância capital para Herbart — indicava a necessidade de motivaro aluno e de dotar o saber da energia que vem da vontade. Por último, a disciplina tinha como objetivo formar o caráter e educar a von tade; em lugar da obediência cega, por temor ou adesão, Her bart propôs uma obediência reflexiva e escolhida pelo aluno. Por .esta razão, devia adaptar-se a cada aluno, considerando suas debilidades e forças (Herbart, 1935, p. 142-149). A partir desta descrição dos princípios capitais da pe dagogia, observa-se que o papel de conduzir e governar as crian ças era mais importante do que as estratégias de processamento didático. Tudo estava subordinado à necessidade de mantê-las ocupadas: “As crianças devem estar sempre ocupadas porque a ociosidade causa a desordem e o mau comportamento. Será ain da melhor quando a ocupação consistir em trabalho útil (por exemplo, trabalhos manuais ou agrícolas). E será melhor tam bém quando, com a ocupação, se ensinar algo que contribua para a educação para o futuro” (Herbart, 1935, p. 46). Como vemos, as prioridades de Herbart eram muito claras. Primeiro, queria que as crianças não pensassem no que lhes viesse à cabe ça, mas sim no que o professor e a pedagogia julgavam adequa- A Sala oe A ula Cresce a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial do. Para que sua imaginação não voasse, era necessário mantê- los ocupados. Segundo, se a ocupação estava garantida, era bom que aprendessem algo. Com esse propósito, Herbart formulou algo semelhante a uma didática geral que continha indicações de como organizar o ensino de acordo com as disciplinas e a idade dos educandos. Pode-se dizer que Herbart é um dos primeiros pe dagogos que estruturaram o clássico triângulo pedagógico: professor-aluno-conhecimento. “Que a instrução tome ou não seu verdadeiro caminho depende do professor, do aluno e do objeto, simultaneamente” (Herbart, 1935, p. 94)31. Esta afir mação, hoje tão incorporada em nosso senso comum, era, no entanto, completamente nova se comparada com a pedago gia de Comenio, La Salle ou Lancaster, que não falavam de um objeto de conhecimento nem do professor como media dor nessa relação. Herbart explicitou e fundamentou esta trí ade de conceitos, e formulou uma pedagogia que triplicasse a relação entre os três. Como se depreende das considerações anteriores sobre o governo e a disciplina, o triângulo não era equilátero, nem supunha uma relação equivalente entre as partes: o professor continuava sendo o "sol” que Comenio im agi nou, ainda que em um sistem a mais rico e complexo, cheio de alunos com vontades, interesses e experiências que deviam ser 31. Herbart distinguiu um sujeito de conhecimento e um objeto de conhecimento distintos e separados entre si. fí epistemologio contemporâneo questiono esto oposição, sustentando que conhecemos o objeto sempre de formo mediado por nossos cotegorios de pensamento e nosso formo de ver o mundo, e que estos cotegorios não são "invoriontes' atemporais e universais poro todos os sujeitos (como disse Hont). Bssim, umo árvore pode representar um elemento vivo do natureza (o biologia moderno), umo criatura divino (o visão teocrótica do sociedade), ou umo princesa encantado (como os ceibos de olgumos mitologias indígenas): estos representações são constnjções sociais e históricos que determinam o formo pelo quol observamos o "árvore" epelo que o integramos em umo narrativo ou lógica mois gerol. 141 A Invenção da Sala de A ula considerados, e de saberes ou conhecim entos científicos, religiosos e morais que tinham suas próprias lógicas. Para harmonizar todos esses pólos, Herbart propôs di ferenciar entre uma instrução sintética e uma analítica (distin ção muito freqüente nos manuais de pedagogia no início do sé culo 20): enquanto na primeira era o professor que determinava o que era ensinado, na segunda partia-se dos pensamentos do aluno, que em seguida seriam analisados, retificados e comple mentados sob a direção do professor. Uma partia da iniciativa do professor, e a outra iniciava-se com os relatos de experiências dos alunos, dirigidos para um ensino específico (a gramática, a história, a geografia). Por meio da recomendação do uso de am bos, Herbart tentou reconciliar a autoridade docente e a ênfase no saber do professor com suas noções de interesse e atenção do aluno como fundamentos da aprendizagem. No entanto, como já mencionamos, nesta equação o professor era um termo com muito mais peso relativo do que o aluno: “Costuma-se exigir que os alunos se exercitem com relatos e descrições; mas não se deve esquecer que aqui predomina principalmente o exemplo do professor” (Herbart, 1935, p. 97). Por exemplo, Herbart re comendou que, nos relatos “espontâneos” de seus alunos, os professores tivessem cuidado com expressões idiomáticas co muns, erros de pronúncia e sons fora de lugar. Olhando mais de perto esta vigilância, é evidente que o espaço dedicado para a expressão estudantil ou para o trabalho sobre os erros, tal como hoje o concebemos, é pequeno. É necessário considerar tam bém que esta ênfase em disciplinar a língua e a linguagem dos alunos é paralela à constituição de um idioma nacional e à per seguição e repressão dos dialetos e falas populares que ocorre ram na segunda metade do século na Alemanha, França, Itália e também na Argentina, com relação à fala indígena, popular e r~ 142 A Sala de Aula Cresce a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial dos imigrantes. “Falar bem”, corretamente, sem palavras gros seiras ou vestígios de outros idiomas passou a ser o “ponto” de diferenciação entre os alunos educados e os não educados. Her bart e a pedagogia geral participaram deste processo de vigiar e reprimir as falas não autorizadas e de legitimar a fala escolar e erudita como correta e válida. Tampouco é por acaso que Herbart propôs o uso de castigos físicos quando necessário. Mas também neste plano o pedagogo alemão tratou de inculcar nos alunos a auto-reflexão e a obediência racional. Assim, propôs que os castigos fossem pro porcionais ao erro, como reparação pelo mau comportamento, e que o aluno os reconhecesse como justos (Herbart, 1935, p. 15). O monopólio da força e a violência deveriam estar no professor e no Estado; o conflito deveria ser visto como algo ingrato, incul to, incivilizado (Elias, 1983). Outra das contribuições de Herbart ao formular a idéia de um triângulo de três vértices claros e distintos foi reconhecer que na situação de ensino-aprendizagem encon tram-se várias “diferenças”: as diferenças entre os alunos e as diferenças entre o professor e o grupo. Apesar de não tê-lo formulado nesses termos, Herbart percebeu que a sala de aula moderna é uma situação híbrida, uma mistura de conheci mentos, personalidades e relações diferentes. Assim, para dar conta dessa variedade, para poder captar a atenção das crian ças, “a instrução (deve ser) múltipla, e com esta multiplicida de, uniforme para muitos, de forma a contribuir para a corre ção das desigualdades nas orientações espirituais” dos alunos (Herbart, 1935, p. 49-50). No entanto, pouco depois de tran sitar pelo caminho da diversidade, Herbart tentou controlá- la e discipliná-la: para que não fosse perigosa nem levasse ao 143 ; ■' ' ; A I nvenção da Sala de A ula descontrole, esta diversidade deveria seguir um único modelo. Com este objetivo, propôs um m étodo aplicável a todas as idades e a todos os conteúdos. Como conseguir esta unidade ou uniformidade? Como Pestalozzi, Herbart recorreu à natureza, ainda que tam bém tenha incorporado seus próprios saberes de referência — a reflexão filosófica. Anunciou pela primeira vez que a educação é um a disciplina cujos objetivos são colocados pela filo sofia, e cujos meios são fo rm u lados pela psicologia. No entanto, quando dizia psicologia, pensava em algo abstrato, em meca nismos gerais, não em uma psicologia infantil específica, e menos ainda em uma psicologia experimental. Seu sistema era psico-lógico: a lógica da psique era compreensíveldo ponto de vista “lógico”, mais do que do ponto de vista “psi- co”. Em vez de recorrer às etapas infantis de pensamento, Herbart propôs um método que seguisse o que para ele era a lógica do conhecimento: “quando se tem que aprender mui to, é necessária a análise, para não cair na confusão; mas como também se necessita de unificação, esta pode começar pela conversação, avançar destacando os pensamentos principais e concluir em uma auto-reflexão ordenada. Clareza, associa ção, sistema, método” (Herbart, 1935, p. 55). Para Herbart, eram estes os quatro passos formais do ensino. O primeiro passo — clareza — requeria que se falasse com palavras compreensíveis, que alguns alunos de veriam repetir com precisão. Para associação, o melhor era a conversação livre, porque nela se dava a melhor possibili dade para que o aluno estabelecesse conexões com seu pen samento. Por outro lado, o sistem a necessitava de mais uma apresentação ou aula do professor para esclarecer os termos, 144 A Sala de A ula Cresce a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial destacar as idéias principais e aproximar o aluno do conhe cimento cie forma ordenada. O pensamento metódico — ou m étodo — era o que deveria guiar a aplicação, levando os alunos a fazer trabalhos próprios nos quais exercitassem o que tinham aprendido, sendo corrigidos pelo professor (Her bart, 1935, pp. 56-58). Vejamos a importância deste professor para exercer o governo das crianças. Primeiro, captava-se a atenção: como vi mos, não se permitia que as crianças registrassem suas impres sões ao acaso, eram conduzidas a determinados objetos que lhes eram impostos como obrigatórios. Se atentarmos para os termos que Herbart usava — clareza, associação, sistema, método — , observamos que cada um desses passos tinha o nome de algo que acontecia no íntimo da criança. A criança de Herbart escla recia suas representações, as associava, refletia sobre elas como sistema e as aplicava metodicamente. A tática de Herbart era que o diálogo professor-aluno, o interrogatório professor-aluno, causasse efeitos nas mentes e nas almas das crianças. Dessa fo rm a , a didática herbartiana estava orientada para um trabalho profundo sobre a criança, refletindo sobre de que maneira as operações externas (ensino) desencadeavam operações internas (aprendizagem). Logicamente, em sua pedagogia, o primeiro determinava a segunda. As crianças não aprendiam apenas certos hábitos mentais, mas principal mente como conduzi-los; não os ensinavam para que eles mes mos apresentassem situações, mas sim para que reagissem de forma correspondente e adequada a situações já apresentadas. De certa forma, apesar de todas as rupturas que Herbart intro duziu, em seu sistema podem ser encontradas características da pedagogia catequista, que estabelece as interações antecipada mente e as limita em um intercâmbio predeterminado. Houve, sim, inovações: o pensamento e a identidade que propôs a didá 145 A Invenção da Sala de A ula tica herbartiana estavam centrados na obediência — uma obedi ência baseada na compreensão, tema já presente em Comenio e em Pestalozzi, mas que encontrou em Herbart uma formulação muito mais rica e complexa, “autorizada” e legitimada pela filo sofia e pela ciência de sua época. Devido a esta capacidade de produzir um pensamento inovador, e também sistematizador de tradições existentes, Her bart converteu-se no pedagogo oficial da Alemanha do século 19 e em uma referência para a Europa e para a América. A peda gogia herbartiana, seu estudo didático, seu caminho e seu suces so vincularam-se à eficácia desta pedagogia emergente para con cretizar as formas de processamento didático para todos os objetos a serem ensinados e para todos os sujeitos educáveis. Estas for mas implicavam o cerceamento da espontaneidade, tanto de pro fessores como de alunos, e a imposição do costume de que os alunos devem reagir perante situações que não podem estrutu rar (porque isto não lhes é permitido). Desta forma, a sala de aula foi pensada como um espaço de um governo que buscava adaptar e disciplinar as massas, principalmente quando, na se gunda metade do século 19, apareceram os movimentos sindi cais, operários ou populares que impugnavam a ordem social e que tornaram mais urgente a “necessidade” de disciplina. Q uarta consolidação: os pedagogos da sala DE AULA SIMULTÂNEA NA INGLATERRA Paralelamente aos trabalhos de Pestalozzi e de Herbart na Alemanha, ocorreram na Inglaterra outros avanços realizados pelos pedagogos que se desenvolveram por caminhos menos atraentes, mas igualmente eficazes: os de pensar a estrutura material da sala de 146 A Sala de Aula Cresce a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial aula e da escola, as formas de comunicação e as táticas cotidianas, para alcançar a ordem e a condução do gm po escolar. Vários deles foram professores e diretores de escola que escreveram suas experiências inovadoras e estabeleceram as bases para uma sala de aula diferen te. Detalhando suas práticas burocráticas e as soluções concretas que encontraram nos problemas que enfrentaram, estes pedagogos constituíram um conjunto de técnicas de governo escolar tão mi nuciosas como novas. Nenhum deles tentou, como fizeram Pesta lozzi ou Herbart, escrever a grande teoria da pedagogia; no entanto, através de percursos distintos, chegaram a algumas soluções e pro postas similares para os dilemas da educação de massa. Considere mos, por exemplo, o caso de Samuel Wilderspin, professor escolar. Este é o relato de como se colocou à frente de uma escola infantil para crianças de 18 meses a sete anos de idade: A escola para crianças em Quaker Street, Spitafields, foi aberta em 24 de julho de 1820, e 26 crianças foram aceitas no primeiro dia; no segundo dia, 21; em 31 de julho, 65, e em 7 de agosto, 36; nesse momento, minha esposa e eu fomos convocados por Joseph Wilson para dirigir a escola. Esse cavalheiro construiu a sala de aula da esco la, custeou de seu próprio bolso tudo o que era necessário, e pagou nosso salário. Assim que nos instalamos, começamos a ensinar e logo percebe mos que tínhamos diante de nós, por assim dizer, um deserto a cultivar, já que as crianças não se conheciam e poucas delas co nheciam as letras. A primeira coisa que parecia necessário era for m ar classes com as crianças, o que, uma vez feito, nos permitiu selecionar os alunos de cada classe para atuar como monitores. No entanto, uma vez que não havia mais do que seis crianças em toda a escola que conheciam as letras, foi impossível contar com algu ma ajuda para poder ensinar aos demais. Como conseqüência, vimo- nos obrigados a pegar crianças de uma sala por vez e dar a cada um a delas um cartão, no qual estava impresso o alfabeto em letras grandes. Colocamos todas em um quadrado, e passamos a recitar a A Invenção da Sala de A ula letra A, fazendo com que cada criança indicasse a letra com seu dedo; uma vez feito isto, recitavamos a letra seguinte, e assim por diante até que tivessem repetido todo o alfabeto. Seguindo este plano, com o passar do tem po, conseguimos encontrar monitores que conheciam as letras e assim adotam os um sistema regular, que passamos a relatar nas páginas seguintes. Wilderspin, 1824, pp. 30-31. Em um primeiro momento, pode-se identificar alguns elementos do sistema lancasteriano: os monitores, as letras do alfa beto, a subdivisão do grupo de alunos em classes. No entanto, o próprio Wilderspin mostrava em seu relato que a ajuda dos moni tores era pobre e que teve que recorrer ao ensino simultâneo de todo o grupo para suprir esta carência. A simultaneidade, termo ini cialmente utilizado para designar a instrução simultânea da leitura e da escrita, ou para o ensino que requeria que os membros da classe repetis sem em coro as lições de leitura, começou a ser utilizada, como no caso deste professor, para referir-se ao método pedagógico pelo qual os profes sores dirigiam a atençãosimultânea dos alunos. No final de 1830, era este o uso mais difundido, que constituiria a base da nova experi ência desses professores e diretores (Hamilton, 1989, pp. 102-103). Assim como Lancaster, Wilderspin queria educar as crianças pobres (já que os ricos preocupavam-se em educar a si mesmos). Confiná-los nas escolas era a solução para que não se contaminassem com os males da rua e não se convertessem em delinquentes precoces (Wilderspin, pp. 13-17); no seu caso, po rém, essa formação tentava alcançar a interiorização da discipli na e a autoridade de forma mais sistemática e pormenorizada. “Foi a prática de muitos”, dizia o professor Samuel, “considerar que a escola só deve preocupar-se em ensinar as letras às crian ças; mas eu sou da opinião de que a formação do caráter é da maior importância, não apenas para as crianças, mas também r- 148 A Sala de Aula Cresce a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial para toda a sociedade” (idem, p. 138). Esta afirmação o aproxi mava das experiências pestalozzianas de educação “natural” e de caráter, as quais, por outro lado, eram conhecidas há mais de uma década na Inglaterra (Taylor, 1996). Como conseguir isto? Wilderspin propôs várias táticas ao mesmo tempo. Em primeiro lugar, adotou uma posição mais ativa em relação aos pais: estabeleceu para eles regras ou obrigações, e também ofereceu benefícios; em outras palavras, estruturou uma aliança com as famílias (Hunter, 1998; Narodowski, 1995). Entre as regras, constava mandar seus filhos para a escola pontualmente, lim pos e alimentados, e avisar em caso de ausência justificada. Quando uma criança nova era aceita na escola, os pais recebiam uma cópia das regras em uma pequena lousa para que a pendurassem em sua casa e se lembrassem sempre delas (Wilderspin, 1824, p. 36). Em troca, Wilderspin e sua esposa os ajudariam a disciplinar seus filhos, ensinando-os a não mentir, a ser obedientes e limpos, e evitariam que ficassem na rua enquanto seus pais trabalhavam, expostos ao perigo das más companhias. Wilderspin relatou alguns casos nos quais, junto com a mãe de um aluno, descobriu que ele estava fu gindo das aulas e aprendendo a roubar na rua, e que com esta reve- iaçao salvou a criança de um mau futuro (idem, pp. 151-154). Em segundo lugar, estabeleceu-se um tipo de autori dade pedagógica diferente: menos brutal, mais sutil, orientada para satisfazer as crianças e a ensinar em um contexto no qual o afeto era moeda de barganha. O professor deveria ser exemplo de bom humor e paciência, proporcionar atividades interessan tes e divertidas, e, seguindo um preceito da filosofia utilitarista então em voga, tentar que, na medida do possível, as crianças fossem felizes e úteis à sociedade. Com este espírito, Wilderspin propôs as seguintes regras para o professor e a professora: 149 A I nvenção da Sala de A ula 1". - Nunca corrigir a criança quando estiver aborrecido. 211. - Nunca deixar de devolver alguma coisa que tirou da criança. 3o. - Nunca quebrar uma promessa. 4°. - Nunca deixar passar um erro; mas estudar sempre, para apre sentar às crianças um exemplo digno de ser imitado, para que elas vejam as boas ações do professor e glorifiquem a Deus, nosso pai, que está no céu. Wilderspin, op. cit., p. 37. Em terceiro lugar, Wilderspin implantou algumas mo dificações na edificação e na jornada escolar, principalmente pela introdução do pátio de recreação. Considerava o pátio como o lugar de maior eficácia da formação do caráter: “O pátio pode ser comparado com o mundo, onde os pequenos são deixados livres; ali é possível verificar que efeitos foram produzidos por sua edu cação, já que, se algumas das crianças gostam de brigar e discutir, é ali que vão fazê-lo, e isto dá ao professor uma oportunidade de lhes dar um conselho claro sobre a inadequação de tal conduta; se, ao contrário, as crianças são mantidas em uma escola sem pá tio, estas inclinações negativas, e muitas outras, não se manifesta riam até que estivessem na rua, e então o professor não teria a oportunidade de tentar remediá-las” (Wilderspin, 1824, p. 134). O pátio era o lugar onde tais condutas poderiam ser detectadas, onde seria possível executar uma vigilância mais completa; obser vando as brincadeiras infantis e a interação entre os alunos, os professores alcançariam uma avaliação mais completa e cabal de seus educandos e poderiam intervir a tempo para resgatá-los das más tendências. Wilderspin também propôs que os pátios tives sem árvores frutíferas e flores, com o objetivo não só de que agra dassem às crianças e pudessem ser um eventual objeto de estudo, mas principalmente para que aprendessem a respeitar a proprie dade privada. Não comer as frutas ou cortar as flores seria uma 150 A Sala de Aula Cresce a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial demonstração de sua honestidade. A escola convertia-se assim em uma prova moral cotidiana e permanente, mesmo quando a cri ança não a via como tal; qualquer ocasião consistia em uma opor tunidade para vigiar suas inclinações e julgar suas respostas e ati tudes. Neste confinamento das crianças na sala de aula e nos pátios implementado por Wilderspin, foram ampliadas as formas de governo da infância, e enriqueceram-se as técnicas e os dispositi vos de vigilância e de disciplina (Hunter, 1998). Vamos deter-nos um momento nesta inclusão do pátio. Na proposta de Wilderspin, o pátio é a continuação da sala de aula por outros meios. Nele se produz a mesma dinâmica que na sala de aula: a criança está sob uma autoridade que o observa e o educa de uma maneira mais “invisível”, apesar de estar em uma situação que, à primeira vista, não parece educativa. Imaginemos que o pátio tam bém pode funcionar como a situação de exame que descrevemos (ver pp. 111-112). Sabendo que são observados pelo professor no pátio, os alunos vão aprendendo, pouco a pouco, a autocontrolar- se “por via das dúvidas”, como no caso de não colar em uma prova. Na imaginação pedagógica, o professor devia funcionar como um Deus para as crianças: apesar de não o ver, está sempre presente. Esta é a “mensagem” implícita daquele professor que, escrevendo _ na lousa de costas para seus alunos, avisa: “Cuidado que tenho olhos na nuca”. Desta forma, o pátio, algumas vezes considerado como um espaço de liberdade, em oposição à ordem da sala de aula, é, na proposta de Wilderspin, a extensão da própria sala, em outras con dições. No pátio as crianças aplicam autocontroles que são uma das “técnicas do eu” na situação pastoral32. 32. Osto situação pastoral foi tão difundido que durante muito tempo a escolo sandonou e castigou coisos que ocorriam foro do escolo. No fírgentina, alguns regulamentos discipli- nares castigavam o que os alunos foziom na soida da escolo até um raio de 500 metros. 151 A Invenção da Sala de A ula Vamos fazer um balanço preliminar das inovações pro postas por Wilderspin. Pode-se observar uma linha de continui dade entre Pestalozzi e Wilderspin, não apenas na idéia da for mação do caráter, mas também naquela de considerar algumas noções sobre a psicologia infantil. Neste sentido, ambos formam parte do movimento que começa a propor que o “sujeito da apren dizagem” é algo diferente de um adulto em miniatura, e que, se conseguirmos estudá-lo cientificamente, poderemos conseguir um método de ensino totalmente eficaz. Wilderspin desenvol veu estes conceitos em torno da idéia de aprender brincando. Este professor acreditava que a aprendizagem deveria alternar- se com a brincadeira, principalmente considerando que toda sua população escolar tinha menos de sete anos de idade; assim, propôs instalar redes na sala de aula e inventou rimas aritméti cas para que os alunos cantassem enquanto descansavam. Pode- se observar neste duplo “uso” da atividade da brincadeira (brin car e aprender) a obsessão compartilhada com Lancaster pela otimização do tempo: tudo deveria ter um fim educativo, nada poderia sernegligenciado. Por exemplo, os exercícios físicos deveriam ser feitos enquanto se aprendiam os números e o alfa beto, levantando um braço ou uma perna juntamente com a vogal soletrada ou o número dito em voz alta. Quase paralela mente à escola de Wilderspin, David Stow abriu uma escola nor mal em Glasgow, na qual também introduziu outras inovações. Além do pátio de recreação, Stow propôs a introdução de anfitea tros ou arquibancadas como parte do mobiliário escolar. Duran te boa parte do dia, os alunos se sentariam em degraus de frente para o professor, o que daria a este um domínio visual completo e lhe permitiria dar suas lições a setenta ou oitenta alunos de uma só vez. Em seu livro para a formação de docentes, Stow dava os seguintes conselhos aos futuros professores: 152 A Sala dl Aula Cresce, a Disciplina nos Tempos da Revolução Industrial Permitam que todas as crianças, ou algumas delas, respondam simulta neamente no anfiteatro. Anotem uma ou duas das respostas, certas ou erradas. Por meio da exposição do tema, convençam as crianças que deram a resposta errada de que estavam equivocadas; exercitem suas mentes por meio de analogias, ilustrações, etc., até que seu erro fique claro. Se as respostas incorretas não forem discutidas junto com as cor retas, os erros continuarão a ser repetidos. Se todas as respostas forem ignoradas até que se obtenha uma resposta correta, só se vai criar, ou pelo menos perpetuar, confusão e ruído. Façam todas as crianças repe tirem a resposta correta, não na mesma forma em que foi dita, mas invertendo a frase. Este é um princípio fundamental do sistema (...). Stow, 1854, p. 324. A incorporação da galeria à paisagem da sala de aula tam bém introduziu m udanças nas práticas de questionam ento. Já não se tratava de manter as perguntas e respostas catequistas que analisamos anteriormente neste capítulo; Stow e outros insistiram que era importante desenvolver o entendimento e a individualidade infantis, e que isto deveria ser feito por outros métodos. Como vimos no exem plo anterior, Stow propôs trocar as perguntas e as respostas mais abertas pela elipse, a fra se iniciada pelo professor que deveria ser completada pelos alunos (do tipo: “San Martin era....”, resposta da classe: “um patrio ta”). O sistema de perguntas e respostas era benéfico porque conseguia produzir conhecimento, mas seu uso reiterado co locava as crianças na defensiva, fato pelo qual era conveniente trocá-lo pela elipse (Stow, 1854, p. 325). Nunca se devia per mitir que os alunos intuíssem pelo tom da voz, ou pelo cará ter repetitivo, qual seria o próximo passo. Assim, eram man tidos permanentemente ocupados (como queria Herbart) e aprendendo. Por outro lado, outro pedagogo escocês, William Meston, idealizou, na mesma época, um sistema para orde nar a participação grupai: “Aquele que acha que é capaz de 153 A Invenção da Sala oe A ula responder deve levantar-se ou dar algum sinal” (Meston, 1823, citado em Hamilton, 1989, p. 107). Surgia assim a costume de levantar a mão para poder intervir na resposta. Segundo Stow, eram muitos os benefícios desse sis tema de ensino. Basicamente, interessava-lhe salientar a efi ciência do método e sua capacidade de questionar em outras situações por meio dos futuros professores que estavam se formando em seu sistema. Destacava também os benefícios na aprendizagem para todos: As meninas e os meninos podem responder, ou é possível chamar uma única classe (subgrupo de alunos) ou fazer a pergunta a um úni co indivíduo; no entanto, todos escutam e todos aprendem. Talvez apenas a metade das crianças responda; mas se o professor dirigir sua atenção de forma que garanta que todos tenham seus olhos fixos nele, pode estar seguro de que estão recebendo instrução; e devemos refe rir-nos ao fato de que, durante as respostas simultâneas, observa que são as crianças que estão em silêncio aquelas que geralmente apren dem a maior quantidade de conhecimentos e as mais comunicativas com seus pais em casa sobre o tema das lições do dia. Stow, citado em: Hamilton, 1989, p. 103. Retomando o exemplo da parábola bíblica prussiana (ver p. 112), pode-se observar que também neste caso a pergun ta é dirigida ao mesmo tempo ao indivíduo e ao grupo. A grande vantagem do método de Stow e Wilderspin foi a invenção das técnicas que permitiam, ao mesmo tempo, a individualização dos alunos, por meio de uma vigilância e da colocação de per guntas ao longo de toda a jornada escolar, incluindo as brinca deiras, e a conquista de uma ordem grupai disciplinada e alta mente estruturada. Neste jogo duplo centrava-se a maior conquista do sistema. 154 A Sala de Aula Cresce a Discipuha nos Tempos da Revolução Industrial Fig. I I .A aula na galeria, segundo o sistema de Wilderspin ( 1840). O bserve que as crianças levantam a mão (Extraído de: D. Hamilton: Towards aTheory ofSchooling, Falmer Press, Londres, 1989). Recapitulando tudo o que foi dito sobre esta etapa da Revolução Industrial, da Revolução Francesa e da modernização do século XIX, podemos dizer que o pastorado, na maneira como foi integrado à sala de aula nos primeiros tempos da modernida de, adquiriu nessa época uma forma mais definida e minuciosa mente regulamentada. A imagem clássica do professor diante da lousa e as crianças olhando para frente — tão clássica que às vezes nos custa imaginar outra, apesar de existirem variantes, como tentamos mostrar neste capítulo — aparece como uma proposta que sintetiza os propósitos moralizadores da condução pastoral e os disciplinadores da condução industrial. Nessa época, com a lenta, porém segura expansão da obrigatoriedade da escola e com a produção de técnicas de con dução e vigilância por parte dos pedagogos, consolidou-se essa “mentalidade de governo” que chamamos “govemamentalidade”.155 1 n m a n B n n H M A Invenção da Sala de A ula De fato, as crianças foram colocadas em uma situação definida pela obediência — responder uma pergunta, não se arriscar a colar, aprender que a autoridade está centralizada e que define as coisas. A civilização industrial, não só através da sala de aula e da escola, mas também tomando-as como pilares, ampliou as formas e o alcance do governo. Tantas horas, tantos dias, tantos anos em uma situação de governo como é a sala de aula levavam as grandes massas a pensar no governo como algo “natural”, e não como algo construído pelos homens e pelos poderes. Em bora anteriormente se produzisse obediência (vimos inclusive que Lutero falava de uma obediência reflexiva), na nova ordem social que surgiu depois da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, esta obediência foi produzida em termos de um indi víduo autônomo, capaz de governar suas condutas e seus senti mentos. Isto ocorreu por meio de muitos agentes: o serviço mi litar, a autoridade médica, a adoção das línguas vulgares na missa, a legislação estatal sobre a família, nascimentos, cemitérios, etc. Nesta estratégia, a sala de aula global ou simultânea, com sua comunicação organizada em torno de uma figura centralizada, desempenhou papel fundamental. A formação do caráter e a docilidade dos corpos foram dois lados do mesmo processo; no entanto, este não fói automá tico, imediato ou completo, mas sim o resultado de muitas pro postas e de desenvolvimentos divergentes. Junto a eles, a didáti ca emergiu no meio dessas mudanças como uma tecnologia em rápida expansão. A formação docente sistem atizada seguiu este desenvolvi mento e institucionalizou-se. No entanto, longe de ser um cami nho de desenvolvimento e aperfeiçoamento sem riscos, a pro dução pedagógica sobre a condução da sala de aula sofreria ainda outros questionamentos e mudanças. Serão estes os temas do próximo capítulo. 156 A Sala de A ula em Idade de Casar: a T ática Escolar no Século 2033 Apesar dos grandes debates e das mudanças que surgi ram na primeira metade do século 19, o ensino escolar no final desse séculoainda continuava sendo passível das mesmas críticas que inspiraram Pestalozzi e Wilderspin a “inventar” outras propos tas educacionais. Por exemplo, quase cinco décadas depois de Wilderspin e de Stovv, Richard Church, que foi aluno da escola infantil inglesa em 1890, recordava assim sua escolaridade: “Lenta mente e com muito esforço, aprendi o alfabeto e a escrever palavras de duas letras, cantando-as em uma sala de aula com 60 crianças pequenas, seguindo o ponteiro vermelho da professora e o que ela havia escrito na lousa... Um adulto conseguiría ficar sentado das 8h50 da manhã até as 12h00, com poucos intervalos, em um ban co de madeira duro, a ;m uma lousa coberta ue cuspe e um lápis estragado, (...) contente por não mostrar quase nenhum progresso, dia após dia; e depois voltar a esta tarefa cheia de pó e malcheirosa das 13h40 até as 16h30?” (citado em: Davin, 1996, p. 115). Sem dúvida, parte desta crítica continuaria válida ao lon go dedo século 20. A artificialidade de manter meninos e meninas sentados e atentos durante a jornada escolar é um fato que foi enfa tizado por pedagogos e literatos, como veremos mais adiante neste capítulo. Quase todos nós experimentamos também, em maior ou 33. Emprestamos esta subtítulo do porta III do trabalho de Puiggrós, 1990, que. por suo vez. se baseou em Senet, 1918. A Invenção oa Sala de A ula menor grau, essa resistência. Entretanto, desde a opinião daquele aluno inglês até a nossa época, houve um processo que se tomou natural e universal na escola. Embora possamos reclamar por estar mos confinados, por não termos tido pátios suficientemente gran des para jogar ou porque não houvesse espaços verdes em nossas escolas, atualmente a maioria das crianças e dos adultos está acostu mada com a experiência escolar e a compreende como etapa inevi tável para crescer e integrar-se na sociedade adulta. Mesmo aqueles cuja escolaridade é difícil por motivos econômicos compreendem- na como um bem desejado e relevante. O que aconteceu desde a surpresa e a estranheza de Richard Church até nossos dias? Basicamente, a escola passou a fa ze r parte de uma estrutura de massa, o sistema educacional, e ser viu como modelo e centro de transmissão da cultura letrada. Enquanto na primeira metade do século 19 a diversidade de propostas e de agentes educacionais era muito grande, veremos, neste capítulo, de que maneira no final do século 19, e principal mente no século 20, houve uma homogeneização e uma centraliza ção das formas de educar em tomo do ensino simultâneo e do mé todo global. Além disso, o Estado nacional assumiu a função de controlar e dirigir a educação, o que não implicou a anulação da diversidade nem o surgimento de outras propostas; apenas, diferentemente da experiência anterior, estas foram organizadas em torno de um câno- ne-padrão dominante fornecido pela escola pública estatal. Esta mudança aconteceu paralelamente ao surgimento daquilo que Michel Foucault chamou de “biopoder”. Este autor afirma que no século 19 surgiu uma nova estratégia de poder e de governo, uma nova forma de condução das conduções: o biopoder. Por biopoder entende-se um tipo de poder que já não se aplica somente ao corpo individual, como no caso das disciplinas, mas sim um poder cujo A Saia de Aula em Idade de Casar a Tática Escolar n o Século 20 objeto é o grupo, mais exatamente o que se denomina “população”. Fou- caull define esta estratégia de poder como uma operação para apo derar-se da vida (Foucault, 1992b, p. 166, e 1993, p. 177). De fato, enquanto muitas gerações viveram sem nenhum tipo de atenção por parte dos governantes, estes observam que as populações — que são, afinal, o reservatório de mão-de-obra para a economia — devem ser administradas. Aparecem a medicina social, as estatísti cas de nascimento e de mortalidade, e os programas sociais; o Esta do percebe que é necessário dar garantias contra os riscos e aciden tes de trabalho, controlar casualidades, implantar a idéia de um bem-estar comum com a contribuição de todos (Ewald, 1986). Desenvolve-se toda uma série de novos instrumentos para adminis trar a vida das pessoas: o governo interessa-se pelas vidas de seus súditos e as administra; quer que vivam mais, que se alimentem de determinada maneira e que adotem hábitos higiênicos. O Estado cresce: a palavra “crescer” é exatamente a palavra-chave. Eoram muitas as repercussões dessas mudanças no governo da sala de aula, nas formas de governo “dos corpos e das almas” que habitavam as escolas, e as abordaremos neste capítulo. Como síntese geral, podemos assinalar três grandes mudanças. Em primeiro lugar, o próprio docente passou a estar su jeito à disciplina. Em um sistema de massa, que contava com gran de número de professores, tornou-se decisiva a necessidade de estabelecer regras para suas atividades, de contar com informa ções mais detalhadas sobre seu gestual e de garantir que ensi nassem o que fosse determinado pelo Estado. Em segundo lugar, houve uma mudança nas atitudes com relação à infância: não só de via ser controlada, mas também protegida e “civilizada”. O ensino da higiene e da educação cívica, por exemplo, passou a ser um fundamento da função educadora dos docentes. Por último, a pedagogia adquiriu um a força inusitada: transformada em “ciência e 159 A I nvençào da Sala de A ula arte de ensinar”, tornou-se a base dos dispositivos de controle e tam bém a fonte de muitas posturas de oposição. Surgiu um campo pe dagógico, isto é, um conjunto de instituições e pessoas que se reúnem para discutir e elaborar as regras e estratégias da disci plina com o objetivo de dominar os demais participantes. Este campo pedagógico também conquistou autonomia crescente.34 Para iniciar a análise deste processo de estruturação do biopoder, descreveremos algumas características do período que vai desde 1840, ano em que terminou o relato do capítulo ante rior, até aproximadamente 1914, data em que se iniciou a Pri meira Guerra Mundial. O TRIUNFO DO CAPITALISMO E O BIOPODER As transformações ocorridas na segunda metade do sécu lo XIX foram tão surpreendentes para seus contemporâneos como haviam sido as transformações ocorridas na primeira metade do século para Edgar Allan Poe e outras testemunhas. A marca princi pal da época foi “o transitório, o incerto, o fugidio”, como definiu o poeta Baudelaire em 1851, assim como “tudo o que é sólido se desmancha no ar”, como afirmou Marx em 1848. A expansão das estradas de ferro, a conquista de países e reinos na África e na Ásia, 34. Sobre o noção de compo. ver Bourdieu ( I 992). Cste sociólogo francês define compo como 'uma rede ou umo configuração de relações objetivos entre posições. Cstos posições sõo definidos objetivomente em suo existência e nos determinações que impõem a seus ocu pantes, cgentes ou instituições por suo situoçõo (situsj otuol e potencial dentro do estru turo do distribuição dos diferentes espécies de poder (ou e copitol), cujo posse oriento o acesso oos benefícios específicos que estão em jogo no compo, e, oo mesmo tempo, por suos relações objetivos com os outros posições " (Bourdieu, 1992, pp. 72- 73). Pensor no pedagogia como um compo é um convite poro olhor olém dos intenções e ofirmoções dos pessoas e dos instituições, e poro considerar seus comportamentos como porte de estra tégias dentro de um espaço no quol estão em jogo relações de poder, dentro e foro do compo considerado. 160 I A Sala de A ula em Idade de Casar : a Tática Escolar no Século 20 as descobertas científicas, a difusão das letras foram elementos que dotaram as sociedades de uma riqueza superior e que lhes deram uma fisionomia muito diferente da que possuíam anteriormente. Entre estas modificações destaca-se, em primeiro lugar, o triunfo da burguesia liberal. Esta burguesia, um setor que reunia não somente industriais e comerciantes, mas também setores das elites educadas, dos funcionários públicos, da população urbanaabastada, foi impondo cada vez mais suas representações sobre o governo, a sociedade, a moral e o Estado. Aumentando sua influ ência, após um momento de agitação e mobilização social, passou a ocupar um lugar conservador dentro da estrutura social. Princi palmente a partir das revoluções liberais de 1848, que impuseram de fonna majoritária a idéia de governos parlamentares, ainda que restntos, a burguesia assumiria uma atitude apática e temerosa ante o surgimento de uma nova força determinada pelo desenvol vimento industrial: o movimento operário. No princípio, fez o possível para ignorar a questão social, ou seja, a crescente pobreza urbana, e tentou bloquear qualquer tipo de reforma distributiva. Com este bloqueio, os partidos liberais perderam o voto operário já conquistado e surgiram as correntes socialistas, comunistas e anarquistas. Cumo veremos, surgiu mais tarde o Estado de bem- estar social como uma solução para responder a este desafio sem perder sua posição de dominação. Ao longo desse período, o principal objetivo das lutas políticas foi elaborar a herança da Revolução Francesa. O lema “li berdade, igualdade, fraternidade” havia-se tomado um programa democrático radicalizado para uma Europa cujas monarquias rea giam contra essas proclamações. Todo o século 19 foi marcado por lutas entre conservadores e liberais, entre monarquistas e republi canos, entre religiosos e leigos. Essas lutas tiveram várias etapas, 161 A Invenção da Sala de A ula movimentos revolucionários (como o de 1848, ao qual nos referi mos), e pactos nos quais se adotaram formas mistas: reis confirma dos mediante plebiscitos (como na França), parlamentos com po deres divididos (como nos estados alemães) e monarquias constitucionais, entre outras. Por outro lado, a Europa tomou-se a força que efetivamente dominava o mundo. No final do século 19, os impérios de Grã-Bretanha, França, Alemanha, Bélgica, Portugal, Holanda e Itália compreendiam quase todo o planeta, com exceção do Japão e da China. O modelo europeu de civilização e cultura, assim como a escolarização, impôs-se nessas regiões, quando ne cessário a feiTO e fogo, o que determinou relações desiguais entre as diversas regiões do mundo, desigualdade que ainda hoje subsiste com toda sua dramaticidade (Hobsbawm, 1996). Demograficamente, esse processo foi acompanhado por uma explosão populacional, pois, apesar dos inúmeros proble mas, algumas condições de vida foram melhorando: a mortali dade infantil diminuiu, enquanto a expectativa de vida cresceu de maneira considerável. O avanço da medicina e a reforma ur bana, que instalou sistemas de fossas para drenar os resíduos, contribuíram para esta melhora. Além disso, essa população deslocou-se territorialmente de maneira significativa. O mundo de experiências configurado neste período caracterizou-se pela mobilidade entre o campo e a cidade, pela vida ruidosa das ci dades em crescimento e pela competência onipresente da pro dução industrial capitalista. Grandes massas de população des locaram-se por todo o globo no último terço do século 19: entre os países cuja população duplicou ou triplicou nesse momento estavam Argentina, Estados Unidos, Austrália e Canadá. Por outro lado, as pessoas deviam acostumar-se às mu danças que ocorriam diariamente, na área da higiene, nas co- 162 A Sala de Aula em Idade de Casar : a Tática Escolar no Século 20 municações, na política, na imprensa. Comparando-se, por exemplo, a circulação do jornal londrino The Times de 1830, que editava regularmente 10 mil exemplares, com a circulação do Daily Telegraph, periódico popular mais barato, de 1860, com uma tira gem de mais de 140 mil exemplares, pode-se ter uma idéia do cres cimento exponencial de um público leitor e da difusão da cultura letrada a amplas camadas da população (cf. figura 12, onde se vê uma família operária com um jornal, em 1861)35. A meta do mun do europeu era o crescimento: crescer tornou-se a nova lógica da sociedade e da cultura européias. Enquanto dezenas de gerações vi veram no campo o que se denomina uma “economia de subsistên cia” ou de sobrevivência, a vida econômica e a extensão do capita lismo transformavam as expectativas e a realidade das pessoas. Diz-se que o capitalismo, como sistema de produção e acúmulo de riqueza, triunfou definitivamente no dia em que todos os operários ingleses tomaram seu chá com açúcar. A que se deve esta associação, que nos parece estranha? O raciocínio é o seguinte: se o operário necessita de açúcar para seu chá — e lembremos que havia muitos operários, formando um mercado maciço — , se está acostumado a esse consumo, isto põe em marcha toda uma máqui na econômica mundial que vai desde a plantação de açúcar nas Antilhas, em Cuba ou no Brasil, passando pelo transporte, refino, comercialização, venda ao varejista, entre as tantas etapas necessá rias desde a produção até o consumo. Embora antigamente estes artigos de consumo fossem considerados artigos de luxo, começa ram a incorporar-se como produtos básicos que as pessoas precisa- 35. AIo RrgenUna. esse crescimento foi um pouco mais tordio e ocorreu nos décodos de I 880■ I 920. emboro tombem tenho sido espetacular. No opinião de fldolfo Prieto. o fírgentino era. em 1882. o quarto pois do mundo no reloçõo de periódicos editados por número de habitantes. Cm 1877. Lo Noción e to Prenso editovom 18 mil exempla res diários: em 1888. vendiam cerco de 60 mil (Prieto, 1988. pp. 37-39). 163 ( ( f ( ( ( ( ( ( ( A Invenção da Sala de A ula vam comprar, uma vez que não os produziam por si mesmas. Des se modo, o sistema baseava-se no crescimento contínuo: da econo mia, da riqueza, das cidades. Em sua famosa obra O Capital (1867), Marx chamou esta característica de “reprodução ampliada”. Esta beleceu a diferença entre “reprodução simples” e “reprodução am pliada” da economia. A primeira refere-se à economia tradicional: planto batatas para sobreviver e voltar a plantar batatas no ano que vem, sobrevivo, “procrio”; com as batatas que vendo adquiro ou tros produtos que nem eu nem minha família podemos produzir. A “reprodução ampliada”, por sua vez, vai mais além. Trata-se de acu mular riqueza, não apenas de sobreviver e simplesmente procriar, uma vez que toda a economia e a sociedade produzem para acu mular e crescer. Este ciclo de produção crescente e de consumo é a característica específica da nova situação social no final do século 19 (Marx, 1974, pp. 591, 624 e 647). Fig. 12. Operário inglês e sua família em sua casa, em 186 1. De uma pintura da épo : 164 A Sala de A ula e m Idade de Casar a Tática Escolar no Século 20 Esse processo foi designado, no nível cultural, como a “dinâmica crescente” do sistema (Link, 1997, pp. 24-25 e 170). Iniciou-se em todo o mundo o fascinante processo da eletrificação; a iluminação noturna tornou possíveis novas atividades (pensemos no cinema ou no teatro modernos). A estas foram agregadas novas formas de comunicação, como o telégrafo, o telefone e, mais tarde, o rádio. Um automóvel que viajava a 40 quilômetros por hora pro duzia enjoos nos primeiros motoristas, que até aquele momento só andavam a tal velocidade no trem de ferro. O mundo parecia, ao mesmo tempo, diminuir e acelerar-se: as notícias chegavam mais rapidamente, havia mais coisas para fazer e também mais tempo livre, as sociedades tornavam-se mais complexas, principalmente nas cidades. Este novo ritmo, pautado por um constante cresci mento das possibilidades, foi denominado “modernidade clássica”. Destaquemos a diferença entre esse processo e os aconte cimentos do final do século 18. Naquele tempo, as sociedades, ain da majoritariamente agrárias e tradicionais, viam aparecer novos “monstros” na forma de fábricas, cidades e movimento de pessoas e objetos que tanto as surpreendiam. Entretanto, boa parte da socie dade permanecia afastada desse processo. No decorrer do século 19. generaliza-se a lógica de acumulação capitalista,ou seja, a produção da mais-valia. Os operários ingleses começam a colocar açúcar em seu chá, lêem jornais, compram roupas diferentes. O capitalismo e sua “dinâmica crescente” passam a ser o eixo organizador das socieda des européias, enquanto o setor agrário toma-se “tradicional”, qua se uma relíquia do passado. Grandes camadas da população passa ram de uma forma de vida para a outra; certamente criaram também formas mistas, nas quais coexistiam as duas situações. Por outro lado, esse dinamismo tomou o mundo europeu menos estável: as crises econômicas mundiais sucediam-se umas às outras, e aumen taram as guerras intercoloniais entre os impérios, para conseguir 1 65 A Invenção da Sala de A ula mercados e praças onde colocar suas mercadorias e empréstimos. Entretanto, a lmha de crescimento sustentado não foi interrompi da. Mais exatamente, esta é a época da grande expansão da econo mia de monopólio na Argentina, da explosão da população e das grandes ondas migratórias. Qual foi a repercussão dessas mudanças nas formas de governo da sociedade? Vimos que as disciplinas são invenções e técnicas anteriores à expansão do capitalismo como forma de pro dução — lembremo-nos dos jesuítas e dos lasalleanos — , que, embora tentassem consolidar o poder do rei e da monarquia, o faziam com uma lógica que identificamos como “fixadora”, porque queriam, afinal, fixar cada um em seu lugar, queriam disciplinar para que as pessoas agissem segundo as ordens. Entretanto, com a difusão da reprodução ampliada, surgiram novas demandas de go vernabilidade para a sala de aula na Europa ocidental. A forma disciplinar não foi abandonada, mas esta nova form a da lógica social, a dinâmica crescente da cultura e da economia, onde a mudança apare ce como regra e não como exceção, começou a constituir outra forma de governo que integrou as disciplinas em uma estrutura maior, abrangen te, mais de acordo com o ritmo vertiginoso dos tempos. Como dissemos, Michel Foucault denominou biopoder esta nova estratégia de poder e governo. O objeto do poder já não era mais visto como um indivíduo isolado, mas como parte de uma população que devia ser controlada como população. Embo ra as formas de biopoder tenham surgido antes do período con siderado por Foucault36, acreditamos que somente no final do 3ó. Foucault doto do oporecimento do biopoder de moneiro contraditório. Cmboro os primeiros indícios provenham de meodos do século 17 (1992b. p. 166). no realidade considero que suo extensão e sucessos tornom-se evidentes no início do século 19 (1993, p. 175). Mesmo ossim, menciono cloromente que entre os disciplinas e os regulações existe "umo diferenço cronológico" (1992b, p. 166. e 1993. p. 173). A Saia de Aula em Idade de Casar a Tática Escolar no Século 20 século 19 seus efeitos puderam ser sentidos com intensidade na pedagogia. As ações derivadas da biopolítica foram denominadas por Foucault ‘regulações’: já não se tratava de disciplinar o corpo para produzir efeitos na mente, como nas disciplinas que, como vimos, Pestalozzi e Stow tentaram estabelecer, mas de regular um organismo vivo, que cresce e se transforma, que nesse momento começou a ser denominado “sociedade”. Se o que caracterizava essa nova época era o “crescimento”, esse fator, sob a perspectiva do governo, deveria ser administrado. A partir de então, a expan são da economia, das possibilidades de vida começou a ser regu lada (Foucault, 1993, p. 177). “A reprodução, as taxas de natali dade e de mortalidade, o nível de saúde pública, a expectativa de vida, a vida longa com todas as suas variações foram convertidas no objeto de medidas interventoras e de controles normativos: (isto é a) biopolítica da população” (Foucault, 1992b, p. 166). É evidente que a regulação não elimina a disciplina, uma vez que se preocupa com outra coisa: o crescimento. Como veremos, as duas formas combinaram-se no caso da pedagogia republicana france sa e da pedagogia dos normalizadores argentinos, onde, na maio ria das vezes, a disciplina acabou articulando e prevalecendo so bre a idéia de regulação. No entanto, também entraram em contradição, uma vez que, enquanto a disciplina dava um molde prévio para as condutas, a regulação partia das condutas já existentes para dar-lhes uma nova direção. Neste processo, as ciências natu rais tiveram papel fundamental. A idéia de que com a ajuda da ciência a humanidade podería “descobrir" as leis naturais e domi ná-las tornou-se cada vez mais forte no senso comum. Embora esta ênfase na ciência como fundamento da ação pedagógica já estivesse presente em Pestalozzi e em Herbart, veremos que a par tir deste momento há maior obstinação com relação a elas, há um desenvolvimento muito mais marcante das técnicas de observa- 167 A Invenção da Sala de A ula ção e de classificação, e uma construção do sujeito objeto de ensi no como uma pessoa que deve ajustar-se a leis “naturais” e in questionáveis. Como veremos, esta afirmação levou a enormes disparates, fundamentados no que era considerado então “conhe cimento científico”. Para esclarecer este ponto, consideremos a afirmação de Francis Galton, um dos “pais” da estatística moderna e da investi gação educacional. Em 1877, Galton afirmava: “As leis típicas (...) explicam quão pequena é a contribuição que passam para as gera ções futuras aqueles que se desviam da média (ou promédio), seja por excesso ou por falta (...)” (citado em: Hacking, 1990, p. 180). Para os cientistas dessa época, o importante era analisar as socie dades como produto de regularidades e normas; encontrar as leis que as governavam e explicar por que motivo, algumas vezes, as coisas se desviavam desse caminho prefixado, que é o crescimen to. A regulação converte-se em algo normativo: prescreve qual é a conduta “natural” e previsível, e que por isso “gera” e “produz” a anormalidade, a transgressão, o desvio. “A norma é uma medida, uma maneira de produzir a medida comum” (Ewald, 1990, pp. 168). Nessa ação de produzir a medida comum, o estabelecimen to da norma exclui aqueles que não a cumprem. Não por acaso, é nessa época que surge a classificação dos alunos de acordo com suas capacidades e o confinamento dos “anormais” em institui ções especiais. Observe-se a linguagem utilizada para se referir aos “desviados”: “deficientes”, “anormais”, “incapacitados”. Todos estes qualificativos somente ganham sentido quando comparados com o indivíduo “normal”. Voltemos por um instante à idéia do biopoder e suas implicações na pedagogia. Dissemos que o biopoder pressupõe administrar o crescimento, o que significa que o crescimento “já — 168 - « .• iw M s is s s s rv s sS I A Sala de Aula em Idade de Casar- a Tática Escolar no Século 20 existe”, é entendido como um acontecimento natural e que é necessário orientá-lo. A partir de então, e graças à combinação des sas novas form as de governo e dos conhecimentos médicos e biológi cos, a aprendizagem passou a ser considerada um processo com raí zes biológicas, que se desenvolve e cresce. Enquanto a disciplina produzia a aprendizagem através de uma sala de aula já configu rada, com comunicações preestabelecidas, a aprendizagem no biopoder surgiu como algo que, na situação de sala de aula, de veria antes ser “orientado”, e não criado ou produzido. Nesta concepção “biopolítica”, o professor deveria facilitar um proces so que ocorreria espontaneamente; deveria guiar e orientar um caminho que já estava fixado, assim como estavam fixadas as capacidades intelectuais dos alunos. Foi também nessa época que se começou a investigar o pensamento infantil com caracte rísticas positivas próprias, e quando se afirmou que as crianças não esperam ser ensinadas para começar a aprender. Enquanto nas disciplinas vinculadas à época da Revo lução Industrial o aprender era visto como uma consequência do ensinar, neste mundo moderno, que adotava o crescimento como natural, o aprender, o pensamento e a atividadeda criança surgiam como algo “dado”, como algo já existente, como um elemento da realidade que deveria ser aceito. A discussão dentro da pedagogia estruturou-se em torno dessas novas percepções; por exemplo, uma questão muito importante foi estabelecer se a comunicação na sala de aula deveria estruturar-se de acordo com as características deste pensamento infantil ou de acordo com os ditames da sociedade adulta. Reformadores denominados “es- colanovistas” (porque queriam uma “escola nova”) inclinaram- se, na maioria das vezes, em favor dos “interesses da criança” e, em consequência, pela organização da sala de aula com base na “natureza” infantil. Um segundo grupo de pedagogos, que de- 169 A Invenção da Sala de A ula nominaremos normalizadores, tentou administrar o crescimento criando uma sala de aula em torno das “necessidades” da socie dade adulta, que eram as necessidades da pátria, da república, do império ou do desenvolvimento industrial. A visão reguladora de todos estes grupos apoiava-se em uma noção sobre o que é e o que deveria ser o sujeito da aprendi zagem; estabelecia uma série de suposições sobre a natureza, a afetividade, os níveis de maturidade e a autonomia das crianças: nesse sentido, pode-se dizer que expandiu a intervenção exterior a limites muito mais amplos. Para o “escolanovismo", não bastava instruir o indivíduo em suas funções intelectuais, mas procurar que o indivíduo fosse criativo, autônomo e livre, que sentisse de maneiras determinadas, que controlasse seus impulsos e fosse cooperativo e generoso. Desse modo, a regulação intervinha ati vamente, configurando o campo de experiência ao qual as nor mas seriam aplicadas (Macherey, 1990, p. 172). Além disso, ao sustentar-se em uma linguagem biológica e psicológica, a regula ção buscava um nível de inquestionabilidade e imobilidade maior do que se estivesse baseada em uma decisão política,' como as necessidades da república ou da indústria, uma vez que a arbitra riedade desta última surgia de forma mais imediata. Nas seções seguintes, aprofundaremos estas idéias. Em primeiro lugar, trataremos dos pedagogos “normalizadores”, como foram denominados por Adriana Puiggrós, ou seja, aque les que deram ênfase à estruturação de normas, para que todas as condutas e ações de docentes e alunos se adaptassem a elas, e idealizaram mecanismos para detectar e castigar os transgresso res. Em segundo lugar, faremos uma resenha das idéias e ações de correntes distintas que se enquadram dentro dos conceitos do “escolanovismo”, uma tendência pedagógica renovadora na 170 A Saia de A ula em Idade de Casaiv a Tática Escolar no Século 20 educação, que se propôs a aprofundar a idéia de regulação e que viu com maior clareza suas contradições em relação às discipli nas utilizadas anteriormente. A PED A G O G IA N O R M A L IZ A D O R A ! C O N T R O L A R OU REGULAR AS TRO C A S QUE O CORREM NA SA LA DE A U L A ? Adriana Puiggrós denominou “normalizadores” os pe dagogos leigos e católicos argentinos que, desde o final do sécu lo 19, impuseram um modelo de ensino-aprendizagem que te- ria ampla repercussão até nossos dias (Puiggrós, 1990, p. 41 e ss.). Este era o modelo da instrução pública, na qual “o educa dor era portador de uma cultura que deveria impor a um indiví duo incapaz, socialmente inepto e ideologicamente perigoso” (idem, p. 41). Os indivíduos do povo, os imigrantes pobres, os campesinos originais da região do Rio da Prata e que sobrevive ram à migração maciça, os indígenas que escaparam do extermí nio não eram considerados “confiáveis”: seu desenvolvimento autônomo levaria à perpetuação da barbárie, daí a necessidade de impor-lhes a cultura “civilizada". Analisando a pedagogia de Rodolfo Senet — que apre sentamos no capítulo anterior, quando nos referimos a Pestalozzi —, Adriana Puiggrós a identifica exatamente como um exemplo desta pedagogia uniformizadora e disciplinadora. Tomando como exemplo a proposta de Senet sobre a professora Laborda, que exer citava seus alunos de acordo com os princípios pestalozzianos, Puiggrós enfatiza quanto se perde quando estes preceitos se con vertem em regras que devem ser memorizadas, tomando-se um “sistema de homogeneização e rotinização da prática docente”. O sistema pestalozziano foi utilizado para “acompanhar os ges 171 A I nvenção da Sala de A ula tos, reprimir a palavra, estabelecer uma ordem nas ações de ensino-aprendizagem cuja alteração descaracteriza a palavra ‘educar’” (idem, p. 269). A idéia de normalização utilizada por esta autora foi, sem dúvida, tomada de Foucault. Como já dis semos, a normalização implica a criação de uma norma geral em cujos termos se pode medir cada um a das singularídades individuais, e verificar se cada um a cumpre ou se desvia do parâmetro comum. Assim, a norma supõe a idéia de que é preciso “corrigir” o indi víduo que se desviou, seja mediante um castigo ou adotando estratégias de reforço que evitem que a conduta transgressora volte a se repetir. No entanto, como salientamos anteriormente, esta visão da normalização não faz parte de uma estratégia de regulação “pura”: na maioria das vezes, aplica-se a indivíduos que, embora cresçam, e se reconhece que crescem, são tratados como sujeitos estáticos, que não têm e nem devem ter autono mia, e a relação que se estabelece é mais de imposição do que de orientação. Como veremos mais adiante neste capítulo, a posição dos pedagogos “escolanovistas” a este respeito será bas tante diferente. Foram os pedagogos “normalizadores” que construí ram os pilares de nosso sistema educacional no final do século 19 e início do século 20. A denominação “normalizadores” tam bém está associada ao fato de que muitos se formaram nas pri meiras escolas normais que foram criadas no país, principalmente na Escola Normal de Paraná e nas Escolas Normais N251 e 2 da Capital Federal. Através delas, difundiu-se uma pedagogia que reformulou as formas de ensinar e aprender na Argentina37. Os planos de estudo, os códigos disciplinares, as edificações escola 37. Fl esse respeito, recomendamos o leitura do história do formação do profissão docente, e da influência das escolas normois nessa etopo. no trabalho de Pineou, 1997. cujo terceiro capítulo detalho os trocos nas regulações do tarefo docente e nos métodos pedagógicos. 172 A 5ala de A ula em Ioaoe oe Casar : a Tática Escolar no Século 20 res, os textos pedagógicos são fruto de sua atividade abundante, incessante, minuciosa, que formaria boa parte dos professores do século 20. Mesmo quando houve dissidências muito impor tantes38, foram os normalizadores que impuseram seu conceito de vínculo pedagógico e que por muitos anos estruturaram as bases de uma relação entre professores e alunos na sala de aula. Interessa-nos principalmente analisar como concebe ram a estrutura da sala de aula, enquadrada no que se denomi nou “a tática escolar”. Esta expressão era utilizada desde 1880 nas escolas argentinas. Em um artigo publicado em 1884, inti tulado “La táctica escolar”, um colaborador anônimo da Revista de Educación da Dirección General de Escuelas da província de Buenos Aires dizia uos movimentos que professores e alunos pre cisam executar na escola são muito semelhantes aos movimen tos militares, e, como tal, devem ter uma tática especial” (citado em: Pineau, 1997, p. 95). Constituía também um conteúdo do programa de pedagogia do primeiro ano das escolas normais em 1903 (Gvirtz, 1991, p. 73) e surgiu no livro de pedagogia de Senet para as escolas normais de 1918, como capítulo especial. Assim como os lancasterianos, a metáfora militar era utilizada mais uma vez para analisar o que ocorria na sala de aula. Continuava válida a idéia de que era necessário ordenar o conjun to, estabelecer um sistema de hierarquias, tornar os corpos dó ceis. A tática escolar, definida por Senet como “um sistema de sinais e movimentos” (1918, p. 115), ajudava a obter ordem, pou pavatempo e criava nos alunos o hábito da obediência, e dava uniformidade aos movimentos. Dentro desta tática, Senet dedi cou-se a especificar aspectos da vida escolar que até então eram 38. Sobre os dissidências, remetemos oo livro de Puiggrós jó citodo, principalmente o porte II, que troto do pedagogo Corlos Vergara. 173 A Invenção da Sala de A ula mais frouxos e flexíveis: horário de entrada e saída da escola, to que de campainha antes de iniciar as aulas, formação de filas para entrar na sala de aula, respeito aos recreios, formas de sair da es cola sem aglomerações; preocupou-se até em escrever parágrafos sobre a necessidade de os alunos ficarem em pé ao lado de suas carteiras até o professor ordenar que sentassem. O que nos interessa especialmente neste capítulo são suas prescrições para a sala de aula: Senet estabeleceu que os alunos deveríam executar movimentos de maneira uniforme e simultânea, e que o professor deveria ter sempre o controle da situação. Deveria determinar as formas e os momentos de levantar e sentar, de pegar ou guardar os objetos, de sair da sala de aula. Continuava sendo o “sol” que Comenio imaginou nas primeiras formulações do método global; todos deveríam organizar-se em tomo do professor, como raios que irradiavam sobre cada um dos alunos-planetas. Entretanto, Senet também introduziu algumas inova ções no método da sala de aula global. Em primeiro lugar, ima ginava-se o professor como um “guia” e “orientador” dos alunos, que realizariam a maior parte do trabalho da aula. O docente deveria proporcionar conhecimentos aos alunos apenas quando estes não pudessem descobri-los por si m esm os; entretanto, esta “desco berta” não aconteceria mediante uma atividade autônoma ou espontânea dos alunos, mas sim por meio das técnicas de ques tionamento do professor e da aprendizagem por meio de ilustra ções, também conduzidas pelo docente. Neste sentido, essa no ção de aprendizagem através da descoberta estava bem distante daquela que, mais tarde, proporiam os seguidores de Piaget. Por outro lado, surgiu uma ênfase muito acentuada sobre a necessi dade de adaptar a pedagogia à psicologia do educando, não ape nas em termos de seu interesse, como afirmava Herbart, mas ! 174 A Sala de Aula em Idade de Casaí\: a Tática Escglait no Século 20 também de medições mais sofisticadas sobre o limiar de atenção de uma criança (20 minutos, entre 7 e 10 anos de idade, e 25 minutos, entre 10 e 14, afirmava Senet), que tipo de memória pode exercitar, que imagens devem ser estimuladas. A esse respeito, é importante salientar a escola filosófica e psicológica em que se baseava a maioria dos pedagogos norma lizadores: o positivismo. Este foi um movimento intelectual amplo, de grande alcance na segunda metade do século 19, e que incluiu tanto uma renovação filosófica como um plano de regeneração social. Como afirmou Frederic Harrison, discípulo inglês de Comte, “o positivismo é, ao mesmo tempo, um programa educacional, uma forma de religião, uma escola de filosofia e uma fase do soci alismo” (citado em: Stromberg, 1989, p. 166). Propôs reformas universais não apenas nas ciências, mas também em todas as esfe ras humanas. Embora nesta corrente houvesse posturas distintas, determinaremos alguns elementos comuns. Em um sentido social, pode-se dizer que o positivis mo processou de maneira peculiar a herança da dupla revolu ção política e industrial. O temor da mobilização das massas e da restauração da monarquia absolutista foi fundamental para muitos pensadores da época. De acordo com W. H. Simon (1965), os positivistas propuseram-se a construir “um novo credo comum para tomar o lugar da religião católica, que a revolução havia abalado de maneira irremediável para os ho mens educados. Cada um propôs elaborar uma doutrina de salvação social, e da necessidade de uma reconstrução inteli gente após a crise desencadeada em 1789”. Desse modo, a or dem, a reconciliação e a harmonia sociais surgem como elementos fundam enta is do discurso positivista. Não é por acaso que a ban deira do Brasil, elaborada na década de 1880 por uma geração 175 A Invenção da Sala de A ula de pensadores positivistas, contém o lema “Ordem e Progres so”. Ao mesmo tempo, Jules Ferry, um dos organizadores do ensino republicano, afirmava, na França: “se prestamos tanta atenção à ordem, se a consideramos como a pedra fundamen tal do edifício republicano, é porque a ordem é a condição primeira, a condição essencial para o progresso” (Ferry, discur so pronunciado em 1883, citado em: Barrai, 1978, p. 159). Os positivistas construíram uma imagem do passado que o apre sentava como uma sequência de progressos sucessivos que nos conduziam à condição positivista final — a do reinado da ci ência que traria o conhecimento coletivo e o domínio sobre a natureza. Não foi por acaso que este movimento ganhou força com a consolidação dos impérios coloniais na Europa e serviu como justificativa do empreendimento educacional colonial, que levava a “civilização” aos povos atrasados da Ásia e da Áfri ca. A leitura do darwinismo, que citaremos mais adiante, no contexto desta situação social e política resultou no apogeu do racismo e das posturas que afirmavam a supremacia dos bran cos sobre outras raças e etnias do mundo. Leszek Kolakowski define o positivismo39, em sua abor dagem filosófica, como “um conjunto de regulamentações que rege o saber humano e que tende a identificar como ‘ciência’ as operações observáveis na evolução das ciências modernas da natureza” (Kolakowski, 1988, pp. 14-15). Comte afirmava que uma mente positiva não pergunta “por quê?”, e sim estuda como os fenômenos surgem e se desenvolvem, reúne fatos e está pre parada para submeter-se a eles; utiliza a observação, a experi- 39. R denominação "filosofa positivo" foi originolmente utilizodo por Cloude Henri de Soint- Simon ( 1760- 1825) eporRuguste Comte ( 1798-1857). Mais torde, foi odoptodo e refor mulado por Herbert Spencer (1820-1903), difundindo-se e exercendo influências muito omplos, chegando à Rmérica e à 4s/o. 17ó A Sala de Aula em Idade de Casaiu a Tática Escolar no Século 20 mentaçâo e o cálculo (iclem, p. 75). Destacaremos duas das prin cipais regras do positivismo: 1. Negar valor cognitivo aos juízos de valor e aos enun ciados normativos, porque não são proporcionados pela experi ência, embora não se negue a importância da moral para o orde namento social. Mais adiante retomaremos este tópico de capital importância para a educação. 2. Estabelecer a unidade fundamental do método cien tífico. O positivismo sustenta que os modos de aquisição de um saber válido são os mesmos para qualquer campo da experiência; a atual divisão das ciências é uma etapa do desenvolvimento his tórico, que nos levará a um momento em que as diferenças serão niveladas e reduzidas a apenas uma ciência geral. Para a maioria dos positivistas, a ciência única era a física, que explica as propri edades e os fenômenos mais universais da natureza, ou seja, aque les sem os quais outros fenômenos não podem ocorrer (idem, p. 21). Para outros, esta ciência unificada estava representada pela teoria da evolução de Charles Darwin, que estabeleceu que a vida progredia devido à luta entre as espécies, na qual sobreviviam os mais aptos. Para o positivismo, a base da pedagogia deveria ser a psicologia e, além dela, a biologia. Um dos filósofos positivistas mais reconhecidos, o inglês Herbert Spencer, sustentava que era necessário estabelecer primeiro as bases da psicologia racional, científica, para fundamentar a arte da educação ou pedagogia. Spencer propunha os seguintes princípios pedagógicos, que se originavam nas leis da evolução: 177 A Invenção da Sala de A ula 1) ir do simples para o composto; 2) do indefinido para o definido; 3) do concreto para o abstrato; 4) a educação da criança deve estar de acordo, em sua forma e seqüência, com a marcha da humanidade. A suposição é quea ontogênese (desenvolvimento de um indivíduo) repete a filo- gênese (desenvolvimento global da espécie), e que a ciência segue os mesmos passos da história social com relação ao de senvolvimento da criança; 5) ir do empírico para o racional; 6) estimular o desenvolvimento espontâneo da criança, com um mínimo de palavras e obrigando-a a averiguar ao máximo, con fiando na disciplina da Natureza; 7) orientar-se pelos interesses e excitações da criança: um conheci mento agradável para a criança é o indício mais seguro de que estamos no caminho certo. Caso tal não ocorra espontaneamente, devemos estimular seu interesse, motivando-a para a experiência. Spencer (1861), 1983, pp. 105-112. De acordo com a filosofia positivista, muitos pedago gas normalizadores consideraram que tudo poderia ser englo bado sob leis gerais que deveríam ser respeitadas quase como uma lei sagrada. Em um artigo do inspetor Félix Maria Calvo, intitulado “Princípios generadores como base de la instrucción y educación” (Princípios geradores como base da instrução e da educação), a proposta ganha dimensões quase desumanas: O mestre deve seguir passo a passo as evoluções da inteligência infan til para sujeitar o desenvolvimento do ensino a uma ordem metódica e gradual: um p a sso em fa l s o , um sa lto n ã o p r e m e d ita d o , u m a e x ig ê n c ia e x a g e ra d a d e s e q u il ib r a m o e sp ir ito , como se desequilibra o funciona mento de um relógio quando se altera a engrenagem das cordas ou quando se dá mais corda do que necessário. U m b o m m e s tre , u m v e rd a d e iro p ed a g o g o não se e n g a n a n a a p lic a ç ã o dos p r in c íp io s e leis que regem o desenvolvimento físico e intelectual, nem no modo de infundir sen timentos nobres que haverão de formar o caráter da criança. C a lv o , 1 9 0 0 . 178 A Sala de Aula em Idade de Casar: a Tática Escolar n o Século 20 Este inspetor concebia a forma de relacionamento en tre docente e aluno, ou “vínculo pedagógico”, como a ação atra vés da qual o educador conduz a criança pela mão por um cami nho sujeito a leis fixas, e “qualquer infração dessas leis pode ser extremamente prejudicial”. Este prejuízo era traduzido rapida mente em termos médicos: “qualquer descuido por parte (do professor) ocasiona um mau hábito (...) em detrimento da saúde do educando (...). E uma questão tão simples como a má postu ra do corpo traz consigo, em mais de um caso, os efeitos desas trosos de uma tuberculose prematura ou de um aneurisma. Não estou exagerando os perigos: atenho-me à opinião dos homens de ciências, cuja autoridade é indiscutível” (idem). . Como vimos na introdução, a pedagogia começou a ser definida como “ciência e arte de ensinar”: se com a primeira com partilhava a busca por razões teóricas e leis naturais que organi zam o ato de educar, com a segunda associam-se a ela um caráter idiossincrásico, isto é, específico de situações particulares, e a von tade de orientar e transformar a conduta40. Nesse espectro, existiam aqueles que, como o sociólogo Émile Durkheim, afirmavam que a pedagogia estava mais próxima da ciência por ser, antes de tudo, 40. O Diccionorío d® Pedogogía de Ferdinond 8uisson. uma obro encidopédico de tom positivista editada na França em J882 e reeditada anos mois tarde, fonte de consulto obrigatório poro os mestres franceses, e bostante consultoda na fírgentino, ofirmavo que o pedagogia era umo ciência moral, com um objeto mais concreto e específico: e sua vizinha mais próxima era o política. Dizia o autor, Flenri Marion, que poro ambos (pedogogia e política) é difícil determinar se são ciência ou arte. pois têm como finolidade o ação. e não o saber. Cntretonto, todo arte requer ciêncio. conhecimentos, embora não com o objetivo de coordenor e sintetizar os usos existentes e dingi-los a um propósito de saber. Se negormos o coróter cientifico, seremos escra vos da prótica sem a teoria, do coleta de procedimentos, sem outra autoridade senão o uso corrente (o sentido comum, a experiência). "Certomente, o uso corrente è um grande mestre", levando-se em conto que indicamos diretomente a prótica: e a experiência que deve recuperor o pedagogia é pessoal de cada mestre e da história das doutrinas e dos sistemas pedagógi cos. Cntretonto. "não se oproveita o experiência própna e de outros, somente o condição de interpretá-la com justiço: a história deve ser lida com crítica" (Buisson, 1882. p. 2239). 179 A Invenção da Sala de A ula um conjunto de teorias que fundamentavam a prática; outros, como muitos pedagogos normalizadores argentinos, acreditavam que a pedagogia era uma série de receitas e prescrições que podi am ser aplicadas universalmente, pois derivavam do conhecimento de leis naturais e imutáveis. Independentemente dessas divergências, pode-se di zer, em termos gerais, que a pedagogia tomou a biologia como m o delo, e esta se transformou rapidamente em ciência médica: aqueles que se desviavam das normas, [orm anam indivíduos deficientes, anor mais, enfermos. E, se os regulamentos foram criados de acordo com essas leis científicas, o não cumprimento das regras traria graves conseqüências. Daí surge uma regulamentação radical entre os inspetores e diretores da época (ver Dussel, 1996). A assimilação da pedagogia pela biologia também resultou no determinismo da análise daqueles que poderiam triunfar na esco la e daqueles que fracassariam. O pedagogo argentino Victor Mer cante, citado anteriormente, um dos primeiros egressos da Escuela Normal de Paraná, professor, diretor de escola, inspetor, professor da Faculdade de Ciências da Educação da Universidade de La Plata e criador do Laboratório de Paidologia dessa universidade, afirmava: A herança é uma força transmissora tão poderosa que os pedagogos se viram diante da necessidade de segui-la, afirmando, por um lado, a ocorrência simultânea; por outro, a sublimação do instinto; e fi nalmente, a educação vocacional, espontânea e oportunista, em opo sição às disciplinas que se contrapõem ao sentimento e à obrigação, que são contrários a essa tendência. A educação adapta o que já está adaptado. Valoriza seus êxitos sobre o caminho traçado pelos pais e avós. Uma vez que o indivíduo traz consigo suas inclinações para o mal, somadas a muitas inclinações para o bem, o problema escolar consiste em cultivar estas e não exercitar aquelas. Mercante, 1927, p. 46. A Sala de A ula em Idade de Casar a Tática Escolar no Século 20 A partir destas concepções sobre a herança e a raça, Mercante idealizou uma série de instrumentos para recolher in formações sobre as crianças e suas famílias, que ajudariam a pre ver seus resultados escolares e seus comportamentos sociais fu turos. Por exemplo, propôs que a escola realizasse uma “anamnese de família”, ou seja, um trabalho de investigação sobre as ori gens da criança, averiguando dados sobre avós, pais e irmãos com relação a: raça, idade, origem, doenças, condutas, aptidões profissionais, bem-estar econômico, regime de vida doméstico e público, relações sociais, alimentação, frequência à escola, apli cação e aspirações. Estes dados deveriam ser conseguidos por meio de “conversas afáveis" com a família, como o fazem os psi quiatras, e de visitas a seus lares, e colocados em uma ficha que poderia ser consultada, e que teria tanto valor como “uma certi dão de nascimento”, pois permitiria explicar e prever condutas (idem, p. 48). No pensamento de Mercante, a escola deveria aliar-se a outros dispositivos de vigilância e de controle da po pulação, e produzir informações tanto ou mais fidedignas que os arquivos policiais. O aumento da regulação do trabalho docente trouxe consigo uma exigência maior tanto para professores como para alunos. Todos deveriam ajustar-se às regras naturais, expressas nos regulamentos escolares formulados “cientificamente”. Deve- se levar em consideração que na época, devido à escassez de professores formadospelas escolas normais, apenas muito pou cos possuíam títulos oficiais (ou seja, eram formados por insti tuições reconhecidas), e boa parte deles era composta por pes soas com interesses distintos para ensinar, cuja “idoneidade” e autonomia eram motivos de crescente preocupação. Para evitar desvios, e para promover maior homogeneidade no ensino, au- mentaram-se os requisitos para a obtenção do título: se antiga - 181 A Invenção da Sala de A ula mente os educadores podiam obter habilitação das autoridades escolares, isto foi tornando-se cada vez mais difícil, e foram cria dos exames complexos para aqueles que não freqüentaram es colas normais ou magistério, mas que desejavam exercer a do cência (Pineau,1997). A imagem do professor que se foi constituindo através desta crescente regulação foi a de uma personalidade consistente, representante do Estado ou da República, encarregado de uma missão superior, à qual deveria dedicar-se com todas as suas for ças. Senet recomendava: “O professor terá de cuidar para que toda ordem dada seja cumprida; assim sendo, antes de ordenar, deve pensar em sua ordem, e, se tiver dúvida de que ela seja cumprida à risca, o mais conveniente é que se abstenha de dá-la (Senet, 1918, p. 129). A autoridade que surgia destas recomendações era absoluta, perfeita, indiscutível, pois era “científica”. Entretanto, este personagem perfeito e consistente, o professor, deveria impor uma disciplina llexível e razoável, ba seada principalmente no valor da experiência. Para o filósofo positivista inglês Herbert Spencer, caso todos os aspectos da vida infantil fossem regulados despoticamente, as crianças seriam convertidas em espíritos dóceis ou em antagonistas rebeldes, o que não era desejável para um movimento cujos eixos eram a ordem e o progresso, e que valorizava tanto a invenção criativa como a obediência. Pelo contrário, as crianças deveriam ser sub metidas por meio da interiorização da regra e da culpa: muitas vezes, a aprovação ou desaprovação, a dor ou a indignação dos pais são mais valiosos do que o castigo corporal. Um dos que contribuíram para a reavaliação da ques tão da disciplina em sala de aula foi o francês Émile Durkheim, já citado no capítulo 2. Durkheim produziu aquela que talvez 1 82 A Sala oe Aula em Idade de Casap, a Tática Escolaix no Século 20 seja a definição mais famosa do termo educação: “É o ato exer cido pelas gerações adultas sobre aquelas que ainda não estão maduras para a vida social. Tem por objetivo suscitar e desen volver na criança determinado número de estados físicos, inte lectuais e mentais, exigidos pela sociedade política como um todo e pelo meio especial ao qual está particularmente destina da” (Durkheim, “Education”, citado em: Buisson, 1882, p. 532). Pode-se constatar aqui a tensão entre a noção da educação como ação social, destinada a transmitir a cultura — em última ins tância, intervenção fortuita — e a idéia de um determinismo social que aparece referente ao “destino” da criança, que a situa rá em algum lugar determinado da estrutura social, contribuin do, desse modo, para a ordem. Além disso, Durkheim criou uma definição de autori dade pedagógica como “ascendência moral” que exerceu grande influência sobre os normalizadores. Pode-se ver aqui como co meçaram a surgir mais claramente os elementos de uma estraté gia de regulação, combinados com a linha disciplinar-impositi- va mais rigorosa. A disciplina social e escolar deveria levar à formação moral do indivíduo, promovendo uma certa regulari dade (norma) na conduta das pessoas e proporcionando-lhes determinados objetivos que limitariam seus horizontes (Du rkheim, 1961, p. 47). Existe uma idéia tanto para ordenar e pro cessar as condutas existentes, como para criar o campo de experiên cia dos indivíduos; neste sentido, dizemos que a disciplina e a regulação coexistem. Para Durkheim, a própria moralidade era constituída pelo espírito da disciplina; e, na formação desse espírito, a ação educacional da sociedade era fundamental. Afirmava: “(...) para cumprir as obrigações e agir moralmente, deve-se ter apreço pela autoridade sui generis que configura a moralidade. Em outras palavras, é necessário que a pessoa tenha uma formação tal que 1 83 A Invenção da Sala de A ula sinta a existência de uma força desvinculada dela própria, que não depende de suas preferências pessoais, e à qual deve obedi ência”. Esta figura moral era exemplarmente representada pelo professor de escola, que deveria sentir que falava em nome de uma realidade preponderante e elevada, e se sentir investido de uma força superior a si próprio. Cabia ao professor inculcar nas crianças este respeito pela sociedade instituída, mostrando-se como uma autoridade legítima, justa e necessária. A noção de disciplina escolar proposta por Durkheim considerava a sala de aula como uma sociedade em pequena escala, muito mais pare cida com a sociedade adulta do que a família, uma vez que seus laços não são motivados por preferências ou sentimentos pessoais. A disciplina não era um simples dispositivo para “garantir su perficialmente a paz na sala da aula” (idem, p. 148); pelo contrá rio, era o coração moral do ensino e da sociedade. Não poderia ceder a temperamentos particulares; deveria necessariamente ser mais fria e impessoal do que os laços familiares, estava mais pre ocupada com a razão do que com os sentimentos; exigia esforço e aplicação maiores, pois implicava interagir com estranhos, o que era necessário porque a vida moral da sociedade é mais ri gorosa do que a da família, e as crianças deveriam acostumar-se e preparar-se para ela. “É respeitando as leis da escola que a criança aprende a respeitar as leis em geral, que desenvolve o hábito de autocontrole e recato (...). (A disciplina escolar) é uma primeira iniciação na austeridade do dever” (idem, p. 149). No entanto, diferentemente da meticulosidade de al guns pedagogos normalizadores, herdeiros dos jesuítas neste aspecto, Durkheim não acreditava que a vida escolar devesse ser regulamentada detalhadamente. Para ele, não era necessá rio determinar como os alunos deveriam caminhar, como de veriam escrever ou manter seus cadernos, ou como teriam de 1 84 A Sala de A ula em Idade de Casar : a Tática Escolar no Século 20 comportar-se durante os recreios. Pelo contrário, tal regula mentação provocaria o efeito contrário ao desejado: tornar-se- ia detestável e odiosa para a criança, ou esta se submeteria pas sivamente, o que destruiria toda iniciativa própria e, portanto, não permitiría que desempenhasse nenhum papel pessoal des tacado na vida coletiva. Também deveriam ser proibidos os castigos corporais e outros que produzissem danos à saúde das crianças. Para Durkheim, o castigo, baseado fundamentalmen te na reprovação do professor e do grupo, deveria ser adminis trado de maneira muito racional, juntamente com um sistema de recompensas pelas boas ações. Uma das maneiras escolhi das para castigar era privar a criança de alguma atividade pra zerosa, por exemplo, não permitir que participasse dos jogos, nos recreios ou em outra atividade que a divertisse. Voltando à pedagogia normalizadora como corrente mais geral, deve-se destacar que esta também introduziu mu danças importantes na estrutura material e de comunicação da sala de aula. Em primeiro lugar, converteu-se em um espaço onde se reuniam crianças com um nível semelhante de conhe cimentos e resultados, “de maneira que seja mais conveniente e vantajoso ensinar a todos juntos” (Menet, 1870, p. 2). Ao mesmo tempo, na Argentina, o diretor do Departamento de Escolas, don Eduardo Costa, em uma carta enviada em 8 de julho de 1870 ao ministro de governo Antonio Malaver, pedia autorização para contratar três professoras norte-americanas trazidas por Sarmiento, que estariam voltando ao seu país. As professoras propunham criar duas escolas com características novas que, segundo Costa, “não duvido (que)estejam destina das a se generalizar entre nós: uma delas denominada ‘Jardim da Infância’ e a outra, ‘graduada’. A idéia de que as crianças deveriam ser agrupadas em função de suas idades e de seu 185 A I n v e n ç ã o d a S a l a d e A u l a desempenho em algumas áreas do conhecimento transformou a estrutura das escolas, que de uma única sala de aula, ou várias sem ordem por idade, passaram a ter a estrutura atual de séries escolares, cada série com sua própria sala. Por outro lado, um dos organizadores do sistema educacional norte-americano, Henry Barnard (1811-1900) proporcionou o modelo para a mudança: em 1848, escreveu um tratado sobre a arquitetura escolar que observava como princípios fundamentais a conveniência, a comodidade e a saúde dos ocupantes do edifício escolar. Os assentos e cartei ras para os alunos “deveriam ser feitos para jovens, e não para pessoas adultas, e teriam alturas variadas: para crianças abai xo de 4 anos e até 16 anos ou mais” (Barnard, 1848, p. 69). Deviam ser individuais, de fácil acesso, e permitir que o alu no mudasse de posição. Também deveriam permitir que o docente se aproximasse de cada estudante para dar-lhe a aten ção e a instrução exigidas, sem atrapalhar quem estivesse ao lado. A carteira deveria ter 60 cm ou 70 cm x 45 cm de largu ra, com uma prateleira inferior para guardar livros e uma lousa na parte posterior (ver figura 13, Barnard, pp. 122, 216 e 222). Compare-se esta carteira com a que era utilizada nas escolas lancasterianas e será possível comprovar que se inicia va uma nova era de configuração do espaço. A sala de aula deveria ter um tablado ou superfície mais elevada para o professor, para que pudesse inspecionar a sala apenas com um olhar e transmitir seus ensinamentos sem ser interrompido. O tablado também era coerente com este lugar de mestre-sol, centro das interações e do saber, con ferido ao docente pela pedagogia normalizadora, mas agora com metáforas científicas, pois o professor aplicava leis “natu 186 A Sala de A ula em Idade de Ca$ah ; a Tática Escolak no Século 20 ü rais” à situação educacional. Por outro lado, as funções disci plinares também estavam claramente determinadas: “(o) do cente não deve ficar permanentemente em uma mesma posi ção, pois os estudantes travessos adaptariam suas próprias posições conforme a posição do professor para enganar ou se esconder; e uma posição no fundo da classe, exceto por sua inconveniência para discursar, é melhor para detectar do que para prevenir a transgressão. O olhar do professor, esse gran de instrumento de disciplina moral, não pode estimular con fiança, nem encontrar o olhar confiante do aluno” (Barnard, 1849, p. 74). Barnard também indicou quais eram os elementos didáticos necessários na sala de aula: um quadro-negro, cer tamente, embora fosse melhor ter vários quadros móveis; lou sas, tinteiro, e esponja para cada banco; um relógio, para uma justa distribuição do tempo entre as aulas; as medidas e os pontos cardeais desenhados na parede; ábacos; desenhos ou pinturas representando fatos geográficos ou históricos; cole ções de minerais e outros espécimes para aulas de ciências naturais; lanterna mágica (um tipo de projetor) para ilustrar aulas de astronomia e geografia; e livros para a biblioteca (Bar nard, 1848, pp. 75-80). Sugeriu também comprar alguns implementos didáticos que estavam em moda na época, como as tabelas aritméticas ou de ensino do alfabeto, ou as duas combinadas (ver figura 13). A pedagogia normalizadora também induziu mudan ças nas práticas cotidianas de ensino e aprendizagem das disci plinas escolares. Analisando a história do ensino da redação nas escolas francesas, o historiador André Chervel relata as conse quências da expansão da redação — antes reservada aos colégios 187 A Invenção da Sala de A ula Fig. 13. Conjunto de mobiliário e materiais escolares, projetados por Henry Barnard em 1848 (De H. Barnard, 1848,School Architecture,Teacher’s College Press, Nova York, 1970). A Sala de Aula em Idade de Casar a Tática Escolar no Século 20 — a todas as idades, na relação com o saber e na constituição dos sujeitos pedagógicos: Apesar de a pedagogia tradicional dirigir-se essencialmente para a memória, de agora em diante convém focalizar a inteligência da crian ça, cuja existência finalmente se reconhece: apelar para seu sentido moral de maneira diferente da recitação do catecismo, despertar seus sentimentos estéticos, fazê-la sair da passividade e do silêncio em que a confinavam. Enfatiza-se agora a importância da “leitura inteligente”, e a “leitura mecânica” nâo é mais considerada um objetivo satisfatório para a escola. As leituras, por outro lado, devem ser explicadas, ao mesmo tempo em que no ensino secundário deve-se ampliar a expli cação dos textos. Afirma-se o direito dos alunos à palavra e, inclusive, começa a ser tolerado, embora controlado, corrigido pelo professor: pois a expressão oral é reconhecida como precedente à expressão es crita. (...) As aulas sobre diversos temas tornam-se um dos auxiliares obrigatórios da redação, para a ampliação do vocabulário. Os textos de leitura do ensino primário são totalmente renovados; a poesia en tra finalmente na escola. Com ela introduz-se um novo exercício: a recitação clássica, que substitui a antiga V cdaçao”, a recitação elo manual de gramática, do catecismo, da aritmética. Chervel, 1987, pp. 29-30. Criou-se também um espaço nas escolas secundárias para o surgimento da leitura privada ou particular, à qual o anti go modelo jesuítico era absolutamente hostil. A idéia da leitura em silêncio, para si, foi outra mudança importante nas práticas de ensino dos normalizadores. A interiorização da palavra e da norma eram um de seus objetivos mais valorizados; e, entretan to, ao abrir as portas a atividades menos suscetíveis a regula ções, lançaram também as bases para alguns questionamentos sobre a relação saber-poder centrada na figura do docente e na crença na ciência como verdade revelada, como os que seriam formulados pelo “escolanovismo” pouco mais tarde. Por último, qual foi o legado da pedagogia normaliza- dora? Gostaríamos de nos deter em dois elementos: a idéia de uma pedagogia homogeneizante que levaria à igualdade e, ao mesmo tempo, à definição de grupos diferentes na sala de aula, de acordo com suas origens e capacidades. Em primeiro lugar, os normalizadores deixaram uma herança de ensino universal e homogeneizante. Como dizia o ministro de educação francês Jules Ferry, o ideal da escola repu blicana era colocar ricos e pobres em um mesmo banco escolar. Dizem os professores do princípio do século 19 entrevistados por Jacques Ozouf que o mais belo elogio que lhes poderiam fazer era que “não faziam diferenças”. Sobre essa base de confian ça, o período que vai de 1880 a 1930 mostra, na Argentina, um grande desenvolvimento da escolaridade primária, uma explo são no número de matrículas que incluiu grande parte da popu lação imigrante (Puiggrós, 1991). Também à carreira docente ofereceram-se oportunidades de inclusão e mobilidade social: em primeiro lugar às mulheres, que até então estavam pratica mente excluídas da educação secundária e superior, mas tam bém a indivíduos provenientes de locais mais pobres, que pude ram estudar nas escolas normais graças a bolsas de estudos fornecidas pelo Estado e ao seu esforço individual. Juntamente com esta postura uniformizadora, a peda gogia normalizadora desenvolveu também um detalhado sistema de classificação e diferenciação dos alunos de acordo com idade, desempenho, origem social, raça, etc. De alguma maneira, era essa classificação que permitia sustentar ao mesmo tempo um modelo de instrução para todos e uma postura conservadora com relação ao social, contribuindo para manter as desigualdades existentes (como dizia Durkheim, a posição à qual cada menino ou menina A Invenção da Sala de A ula 190 A Sala de A ula em Idadede Casar, a Tática Escolar no Século 20 está “destinado”). Talvez um de seus legados mais permanentes seja a manutenção desses sistemas de classificação, que embora moldem o que consideramos um “bom aluno” ou um “aluno com capacidade para aprender”, poucas vezes paramos para reavaliar. A escola é um espaço com muita inércia. O positivis mo e as pedagogias normalizadoras desenvolvem-se como críti cas a essa sala de aula formada pelo sentido prático que vimos nos ingleses do início do século 19 (ver pp. 143-153), não tanto para torná-la flexível, mas também para dar-lhe uma proposta “científica” que inclua uma visão mais diferenciada da aprendi zagem. Lembremos que os passos do ensino-aprendizagem em Herbart (ver pp. 136-143) — clareza, associação, sistema, mé todo — constituíam uma afirmação psico-lógica que era, na re alidade, mais “lógica” do que “psico”: estes passos constituíam uma lógica do ensinar e do aprender para todos os conteúdos e para todas as idades. Com a nascente psicologia evolutiva que começou a utilizar uma investigação baseada em experimentos sobre percepção, conceitos, memória, etc., percebeu-se que a atividade de aprendizagem modificava-se com o tempo. Muitos pedagogos normalizadores reconheceram esta modificação e cria ram toda uma série de materiais didáticos e de diagnóstico dife renciados. Com esses materiais, procurava-se, em geral, regula mentar esses processos “naturais” da aprendizagem com base no fato de que as “leis” da aprendizagem permitiam ver essa regula mentação como legítima, quase indiscutível. Desse modo, os normalizadores diagnosticavam as crian ças não mais como almas que tinham que educar, mas como indi víduos que se desenvolviam. Entretanto, a forma de organizar a comunicação da sala de aula que elegeram por meio de sua didá tica estruturada era um tratamento muito disciplinar. Diagnóstico 191 A Invenção da Sala de A ula regulador, intervenção predominantemente disciplinadora: estas receitas pedagógicas positivistas foram tão reguladoras e tão pou co flexíveis que às vezes nos esquecemos de que o positivismo tentava reformar as antigas práticas artesanais de ensino, trocan do-as por formas “científicas”. O caso da tática escolar mostra como uma criança, vista psicologicamente em crescimento, é discipli nada até nos detalhes dos movimentos da sala de aula. O positi vismo, como principal corrente entre as pedagogias normalizado- ras, parece temer uma de suas idéias principais: a evolução, o crescimento e a mudança. Embora reconhecendo que os novos tempos funcionam de acordo com essas leis, a didática e a peda gogia positivistas procuraram criar uma ordem diante de tama nho crescimento, querendo ver na escola um lugar de estabiliza ção, enquanto fora dela as cidades explodiam com novos habitantes, o mundo se acelerava e Julio Verne imaginava con quistar o mundo todo em um submarino, e inclusive chegar à lua. Esta contradição quase fundamental entre uma visão que usa a psicologia moderna para caracterizar os alunos, mas que en tende a sala de aula como um lugar de produção de uma ordem ainda imposta, é a chaga onde os "escolanovistas”, esse outro grupo de pedagogos nascidos nessas décadas, colocarão o dedo e dirão: basta de disciplinar, de fixar um sujeito que cresce e a quem se deve regular. Esta idéia central será o objeto das próximas seções. A crítica " e s c o l a n o v is t a " : OUTRA FORMA DO BIOPODER O movimento de pedagogos conhecido como escola nova é uma das expressões da pedagogia mais difíceis de analisar. Por um lado, muitos destes pedagogos criaram inúmeras propostas r- 192 m ífimzu í A Sala de A ula em Idade de Casar a Tática Escolar no Século 20 de reforma escolar e da sala de aula que diferiam profundamente entre si. Por outro lado, apesar das diferenças didáticas, pedagógi cas, históricas e até políticas que existiam entre elas, reuniram-se em organizações internacionais pela reforma educacional. Este fato teve importância fundamental, uma vez que marcava a dinâmica deste mundo moderno que crescia e se acelerava. As primeiras escolas novas — em muitos casos, inter natos, escolas particulares para ricos — começaram a funcionar nos últimos anos do século 19. A influência da escola nova como movimento pedagógico fez-se sentir com intensidade até a Se gunda Guerra Mundial (1939-1945). Após seu desaparecimen to como organização internacional, não houve outro movimen to comparável nesse nível, uma vez que os organismos educacionais da Organização das Nações Unidas são entidades interestatais. Em sua caminhada, o auge da escola nova, aproxi madamente entre 1900 e 1945, encontra um mundo que se po lariza, um mundo que o historiador Eric Hobsbawm caracteri zou como a “era dos extremos” (Hobsbawm, 1996b). A Europa havia conquistado quase o mundo todo e multiplicavam-se os sinais da iminência de uma grande guerra européia. Entre 1914 e 1918, este processo de internacionaliza ção culminou no que se denomina a Primeira Guerra Mundial, que banhou de sangue a Europa. Este conflito teve custos tão altos, material e culturalmente, que abriu a possibilidade para que grupos que desejavam mudanças radicais encontrassem, de repente, maior repercussão. O caso mais conhecido é o da Revo lução Soviética de 1917, que tentou estabelecer a primeira orga nização social moderna não capitalista no mundo. Os socialistas e comunistas criticavam o crescimento descontrolado dos mer cados, afirmando que criavam grandes problemas e exploração. 193 A Invenção da Sala de A ula Para eles, o desafio consistia em organizar o crescimento das sociedades de tal maneira que as injustiças e as guerras seriam impossíveis. Esta posição não era compartilhada por muitas for ças políticas, inclusive por socialistas que desejavam reformar o capitalismo existente em vez de derrotá-lo. O ponto fundamen tal é que, a partir dessa época, o crescimento das sociedades e das economias não era apenas um fato, mas um problema, pois um crescimento descontrolado levava a crises que se repetiam em nível mundial. Essa situação foi complementada por algumas mudan ças na esfera do trabalho e do Estado. Durante as duas primeiras décadas do século XX, houve um protesto essencialmente polí tico com relação às novas formas de organização social, “a cida de moderna, com administrações muitas vezes corruptas, a sin- dicalização do trabalho e a onda de fusões e integrações bancárias e industriais que estabeleceram as corporações industriais e fi nanceiras” (Miller e 0 ’Leary, 1989, p. 254). Considerou-se que esta concentração afetaria a vida democrática, inclinando a ba lança para o lado destes superpoderosos. Os demais grupos so ciais permaneceriam sem iniciativa e sem poder de negociação, e, por outro lado, a relação entre direito e obrigação, que era a base do direito moderno, se perderia: a burocracia diluía as res ponsabilidades em entidades enormes e anônimas, e a idéia de que a ação individual provoca efeitos pelos quais alguém deveria ser responsabilizado se perderia em um emaranhado de mean dros administrativos. Entretanto, não se tratava simplesmente de um problema do Estado: as mudanças nos modos de produ ção, a introdução da linha de produção, a precisão no trabalho davam uma imagem da civilização industrial que não era aceita por todos. Os filmes da época — como Metrópolis, de Fritz Lang, ou Tempos Modernos, de Charles Chaplin — mostravam a indús 194 A 5ala de Aula em Idade de Casar : a Tática Escolar no Século 20 tria como desumanizadora e totalmente arbitrária. Esta situação encontrou várias formas de oposição. Esse protesto foi denominado “progressivismo” nos Es tados Unidos, embora tivesse variantes em outros países. O pro gressivismo acreditava que era necessário modificar as formas de autoridade para conseguir deter as grandes corporações. A ciên cia e o conhecimento especializados seriam seus baluartes. A au toridade não viria de um chefe .impostoarbitrariamente, mas sim de saber conhecer e manipular as técnicas e os dados necessános para executar uma atividade concreta. Seriam as atitudes concre tas do indivíduo que o colocariam em uma posição hierárquica; por outro lado, este indivíduo não se perderia em uma burocracia anônima, pois deveria legitimar diariamente sua posição median te seus saberes. A figura do líder social que estes intelectuais e polí ticos conceberam foi a do manager ou gerente (Miller e 0 ’Leary, 1989). Pode-se analisar sua importância na educação: o professor, que passou a ser gerente da aprendizagem de seus alunos, deve realizar as tarefas e ações necessárias para que a aprendizagem ocorra. Não é o representante do Estado ou de Deus, nem o guardião do templo do saber, como era para muitos positivistas; seu saber é mais técnico e está associado à sua eficiência para produzir determinados resultados. Pen sava-se a escola como um espaço administrativo, organizado de maneira funcional e eficiente, de acordo com um regime neutro de dados e técnicas. No nível da organização do trabalho da fábri ca, esta tendência foi denominada taylorismo, nome retirado de seu mais eficiente propagador. A técnica, os procedimentos, tanto em nível burocrático como produtivo, passaram à frente do que era considerado importante para o governo de uma sociedade. Outra resposta, não apenas aos problemas de cresci mento das sociedades, mas também à alternativa que propu- 195 A Invenção da Sala de A ula nham os comunistas, foram os movimentos fascistas que toma ram o poder, primeiro na Itália (1923) e depois na Alemanha (1933). Estes movimentos tentaram dominar o crescimento com armas autoritárias dentro de uma economia que continuava sen do capitalista. Expressaram também seu descontentamento com certas camadas da população que não queriam nenhum tipo de modernização cultural e da vida. Quando, em 1929, estourou a pior crise econômica mundial, as respostas foram diferentes: por um lado, a Rússia soviética começava seu processo de industrialização, por outro, os estados fascistas impuseram uma série de controles às eco nomias; nos Estados Unidos iniciou-se também um Estado mais intervencionista e provedor de serviços sociais, para que a so ciedade não permanecesse à mercê dos caprichos do mercado. Entretanto, a convivência de todos esses modelos foi impossí vel, devido à ideologia agressiva, militarista e extremamente nacionalista dos fascistas, cujas provocações foram o ponto de partida para a sangrenta Segunda Guerra Mundial, o Holocausto do povo judeu e o terror exercido de forma sistemática contra os povos eslavos da Europa oriental. Como seria possível que neste quadro de crescente polarização, marcado por duas guerras com vários milhões de mortos cada, uma organização internacional de pedagogos fa lasse sobre a boa natureza da criança e sobre a reforma necessá ria da escola e da sala de aula? Como vimos no início deste capí tulo, nas memórias de Richard Church, a escola não só continuava tendo uma série de características antigas, indiferentes, catequis- tas, como também a intervenção do positivismo, principalmen te nas escolas urbanas, havia dado às formas mais autoritárias um toque “científico” e “correto”. 196 s A Sala oe A ula em Idade de Casar : a Tática Escolar n o Século 20 No início do século 20, a sueca Ellen Key publicou uma obra chamada O século das Crianças, muito famosa em sua época. A autora argumentava que a escola tal como estava estruturada era uma máquina que prejudicava o desenvolvimento natural das crianças, e propunha que se reorganizasse em função das caracte rísticas naturais da criança, em vez de ter que adaptar o desenvol vimento da criança à estrutura fechada da aula (citado em: Blankertz, 1992, p. 214). Ellen Key expressava uma espécie de mal-estar da época compartilhado por muitos pedagogos: a esco la é artificial, dissociada do processo de crescimento da criança; não é eficiente, pois ensina a repetir, mas não a pensar. Estas idéias, embora interpretadas de maneiras diferentes, eram compartilha das por muitos pedagogos dessa corrente. A escola nova foi objeto de um grande número de in vestigações. Foi denominada de diversas maneiras, uma vez que foi um movimento internacional — como a lógica do cresci mento capitalista à qual, acreditamos, correspondia — , e foi tam bém fortemente criticada. A escola nova como r n o N m c a b m n geu inúmeras correntes, expressões e propostas. Nomes tão diferentes como os de John Dewey, Maria Montessori, Ovídio Décroly, Jean Piaget (se o considerarmos como pedagogo) e muitos outros faziam parte desse movimento. Entretanto, o que os unia não era o amor, e sim o as sombro. O que estas e muitas outras propostas tinham em co mum era sua rejeição à ordem da comunicação catequista, e tam bém aos retoques “científicos” dos normalizadores. Alguns pedagogos da escola nova tinham idéias políticas progressistas, outros eram socialistas ou comunistas, muitos, liberais, outros, reformadores católicos, alguns deles voltaram-se ao nazismo, mas todos guardavam uma profunda distância da sala de aula frontal- 197 A Invenção da Sala de A ula global, que viam como uma inibição do crescimento. A escola nova, então, parece estar afinada com a pergunta piincipal da época: como regulamos o crescimento, como administramos essa força que já está atuando sem prejudicá-la, mas também sem que nos prejudique? Esta mesma pergunta era feita pelas forças políticas, e resultou nos di versos modelos de sociedade que mencionamos anteriormente. Ou seja, ao que parece, a escola nova nasceu do mal-estar com relação à cultura do momento, considerada artificial. Um elemento importante dessa cultura rígida era, sem dúvida, a sala de aula. Recordemos por um momento a história do ministro da Educação francês, que dizia a seus visitantes que podia garantir que a determinada hora, em toda a França, os alunos estariam realizando determinadas tarefas. Essa unifica ção e homogeneização do ensino, da qual o positivismo partici pou ativamente, passou a ser o centro da crítica: se as crianças são tão diferentes entre si, por que o ensino deve ser tão homo gêneo? Os “escolanovistas” queriam que o ensino se adaptasse à natureza da criança. Há aqui uma mudança importante com re lação ao conceito de natureza e de leis naturais da pedagogia normalizadora que analisamos. Enquanto a pedagogia normali- zadora via nas leis naturais uma possibilidade de que a interven ção dos pedagogos sobre os professores e dos professores sobre os alunos fosse indiscutível, os defensores da escola nova viam na natureza infantil algo basicamente bom, flexível e variado, que deveria servir de base para a preparação da sala de aula. Em sua grande obra sobre a escola nova, o pedagogo Jürgen Oelkers afirmou: “A escola nova (Reformpãdagogik) não foi uma reforma escolar, mas sim uma reforma do ensino” (Oelkers, 1996, p. 166). Se até esse momento o ensino era pensado em torno de figuras como a criança pecadora que devia ser catequi 1 98 A Sala de Aula em Idade de Casar: a Tática Escolar no Século 20 zada (cap. 2), ou como corpo que devia ser disciplinado (cap. 3), ou como indivíduo que cresce e que deve seguir ordens e ser moralizado (p. 148 e ss.), a escola nova apóia-se na natureza da criança, considerada basicamente boa. Pensemos então que sob esta postura que unia muitos pedagogos “escolanovistas” existia um importante potencial para estruturar a sala de aula de ma neira diversa. A escola nova como movimento pedagógico teve muitas expressões, concretizou inúmeras propostas de organi zação da sala de aula, algumas ainda vigentes. Nas próximas seções apresentaremos alguns exemplos que não esgotam o tema, nem incluem toda a variedade de propostas e experiências, po rém mostram como esta idéia da bondade da natureza da crian ça foi concretizada em contextos e culturas muito diferentes e de maneiras muito diversas. Talvezuma das figuras deste movimento mais conhe cidas no âmbito internacional seja John Dewey (1859-1952), filósofo norte-americano de grande influência na educação41. Par tidário das idéias liberais, este pedagogo afirmou que a educa ção deveria representar a vida atual e formar indivíduos abertos, empreendedores e inquisitivos, que sustentariam a vida demo crática. Para ele, a educação não deveria “preparar para a vida”, como se esta fosse uma etapa ulterior, e sim ser um processo de vida que deve ser tão real e vital como outras etapas. A base da educação deveria estar na criança, em suas capacidades, seus interesses e suas disposições. Queixava-se de 41. Trobolhou no Universidade de Chicago (1 894-1904) e no Universidade de Columbio (1906- 1922). Cscreveu vários livros, entre eles Democracia e educação (1916). Meu credo peda gógico (1897) eCscola e sociedade (1899). Nesto último obro, conto o experiência que desenvolveu em umo escolo loborotório dependente do Universidade de Chicogo, que é o único experiência no quol colocou em prático suos idéios pedagógicos (depois deu aulas universitários e nunco assumiu um corgo público). 199 A Invenção da Sala de A ula que “(n)as condições atuais, uma parte excessiva dos estímulos e do controle provém do professor” (Dewey, 1967, p. 57). Em vez de dar visões acabadas e cristalizadas dos saberes alcançados pela humanidade, o professor deveria “selecionar as influências que possam afetar a criança e ajudar a responder adequadamente a essas influências” (idem). O objetivo da educação era educar a capacidade de imaginação da criança, baseando-se em seus inte resses. Estes eram “sinais e sintomas da capacidade em crescimen to”, “representam a capacidade em forma de embrião (...) e o grau a que está perto de alcançar” (idem, p. 63); em todos estes concei tos vê-se claramente a idéia de que a educação regula um organis mo vivo que cresce e se modifica, com tendências naturais que devem ser canalizadas e ordenadas com flexibilidade. Dewey definiu a educação como “a reconstrução con tínua da experiência”. O modelo era o das ciências naturais, cu jos procedimentos recorriam a hipóteses e provas, em uma espi ral ascendente. O conhecimento escolar também deveria ser estabelecido como provisional e sujeito à revisão. “Uma vez que (o saber) nunca pode levar em consideração todas as conexões, nunca pode cobrir com perfeita precisão todas as conseqüências” (Dewey, 1966, p. 151). O pensamento ocorre na “zona crepus- cular da investigação”: é constituído de conclusões hipotéticas e de resultados incompletos. O conceito central de sua pedagogia era a experiência. Dewey perguntou-se: “Seria a experiência uma questão pessoal de natureza tal que estimulasse e dirigisse de forma inerente à obser vação das conexões envolvidas (...)? Ou seria imposta de fora, e o cumprimento dos requisitos externos seria simplesmente proble ma do aluno?” (Dewey, 1966, p. 153). Para Dewey tal oposição entre interior e exterior era falsa e era preciso encontrar novas A Sala de Aula em Idade de Casar a Tática Escolar no Século 20 formas para resolver o problema. A solução estava em considerar o conhecimento disciplinar como experiência acumulada da hu manidade, como respostas sociais e históricas a problemas reais; nessa medida, seria encontrado o elo de continuidade entre os interesses e disposições dos alunos e o saber que a escola deveria transmitir. A relação entre autogênese (história do indivíduo) e filogênese (história da espécie) era de homologia: “quando um aluno aprende fazendo, está voltando a viver mental e fisicamente alguma experiência que já se mostrou importante para a raça hu mana; segue os mesmos processos mentais daqueles que origina- riamente realizaram essas experiências”. Em sua época, havia dois grandes grupos com tendên cias opostas na pedagogia norte-americana: aqueles que sustenta vam que o curriculum deveria estar centrado na criança, em seus interesses e suas capacidades (G. Stanley Hall, W Kilpatrick), e aqueles que acreditavam que o cunicuhim deveria ajustar-se às finalidades e necessidades sociais (a formação da nação, o desen volvimento industrial, como E. Ross e E Taylor). Dewey, pelo con trário, reformulou a questão da “criança versus cuniculum ”, de tal maneira que essa oposição tomou-se desnecessária. Ilustrou seu argumento referindo-se a uma determinada disciplina escolar. “A geografia”, disse, “não é apenas um conjunto de fatos e princípios que podem ser classificados e discutidos em si próprios; é tam bém uma forma na qual qualquer indivíduo presente sente e pen sa o mundo” (citado em: Kliebard, 1986, p. 70). Para Dewey, o problema residia na aparente distância entre a fonna com que a criança vê o mundo e a forma com que o adulto o vê. “Para a criança, simplesmente por ser criança, a geografia não é, nem pode ser, o que é para aquele que escreve o tratado científico sobre geografia. O cientista viveu exatamente a experiência que constitui o problema que deve induzir a instmção. (...) Devemos descobrir o 201 A Invenção da Sala de A ula que há dentro da esfera atual de experiências da criança (ou den tro do espectro de experiências possíveis que possa viver facil mente) que possa ser chamado de geográfico” (idem, p. 70). Ne nhuma experiência estava predefinida e estabelecida como geografia. Por exemplo, se tínhamos um hectare de terra poderia mos considerá-la sob o ponto de vista geográfico, trigonométrico, geológico ou histórico. O ponto de referência do indivíduo que olhava o território era o ponto inicial para qualquer tipo de orga nização lógica das características da área. Para Dewey, a primeira questão do curriculum era “de que maneira, a partir da experiência básica original que a criança já possui, o conhecimento completo e maduro da consciência do adulto é conquistado de forma gra dual e sistemática” (idem, p. 70). Desse modo, para superar a dualidade entre indivíduo e sociedade, Dewey imaginou um curriculum. que repetisse os estágios ou épocas da humanidade, e que estabelecesse em tor no de um eixo integrador todos os conhecimentos estruturados que fossem necessários. Este eixo seria composto pelas “ocupa ções”. E a idéia de ocupação não se refere apenas a formas de trabalho, mas também a formas de vida da humanidade: colhe- dora, agrária, pastoril, industrial. “As ocupações”, afirmou Dewey, “determinam os principais modos de satisfação, os padrões de sucesso e fracasso. Desse modo, fornecem as classificações e de finições de valores operantes (...). O conjunto de atividades e de ocupações é tão importante e permanente que mantém o esque ma ou o padrão da organização estrutural de traços mentais” (citado em: Kliebard, 1986, p. 73). A compreensão das ocupa ções fundamentais de uma sociedade implicava também uma maneira de entender outros traços de uma cultura: a arte, a reli gião, o matrimônio, as leis. Para Dewey, então, um cim iculum elaborado em torno das ocupações sociais fundamentais forne- 202 A Sala de A ula em Idade de Casar: a Tática Escolar nc Século 20 ceria a ponte que podería harmonizar os fins individuais e sociais, onde, no seu entender, situava-se o problema principal de qual quer teoria educacional (Kliebard, 1986, p. 73). Durante alguns anos (1896-1904), Dewey dirigiu a escola experimental da Universidade de Chicago. Nessa escola, os nove anos de escola elementar eram divididos em três seções: a primeira incluía crianças de 4 a 7 anos; a segunda, crianças de 7 a 10 anos; e a terceira, crianças de 10 a 13 anos de idade (Kliebard, 1986, p. 72). O plano de estudos continha três gran des áreas: educação manual, história e literatura, e ciência. A educação manual representava uma oportunidade para “cultivar o espírito social” e “oferecer à criança motivos para trabalhar de maneira efetivamente útil para a comunidade à qual pertence”. Poderia, além disso, tornar-se ponto de partida para a reflexão disciplinare cientílica: “A cozinha, por exemplo, é um caminho natural para chegar a fatos e princípios químicos simples, po rém fundamentais, e ao estudo das plantas que nos fornecem produtos comestíveis (citado em: Kliebard, 1986, p. 72). O tra balho de carpintaria não tinha por objetivo desenvolver as habi lidades de usar o serrote e o martelo, mas era uma excelente oportunidade para “cultivar um genuíno sentido do número” (idem, p. 72). Os conhecimentos sobre química e aritmética se riam compreendidos de maneira mais clara se as crianças perce bessem primeiro de que modo esses conhecimentos se tornaram uma necessidade urgente para a raça humana. O historiador Herbert Kliebard relata esta experiência detalhadamente: “Esperava-se que as disciplinas escolares con vencionais evoluíssem a partir destas ocupações sociais — como plantar alimentos, construir um abrigo e confeccionar roupas — , mas com um sentido mais vital e construtivo do que aquele ex- A Invenção da Sala de A ula presso no curriculum típico. Esperava-se, por exemplo, que a aritmética surgisse cias atividades na cozinha”. “Em um amplo relatório realizado pela professora de cozinha, Miss Scates rela tou que as frações 1/3, 2/3 e 3/3 e a razão 1:2 estavam incluídas no cozimento de copos de arroz e de farinha, embora tivesse notado que ‘o experimento não tinha um grande êxito em pe quena escala’ ”. “(...) Em 1900, por exemplo, o grupo V testou sementes que seriam utilizadas mais tarde no jardim, para deter minar qual porcentagem germinaria na primavera (Group V, 1900). Em uma aula de história conduzida por Miss Camp, por meio de um trabalho na cozinha, as crianças descobriram as van tagens do carvão sobre a madeira no processo de cocção (Group V, 1900)”. “Em outro grupo, as crianças que haviam criado uma história sobre uma tribo que deixou suas cavernas e que estava descendo o rio expressaram o desejo de utilizar a argila como os índios em sua história, e começaram a experimentar os usos da argila. (...) As crianças foram convocadas a avaliar seu próprio trabalho manual como um aparente clímax do esforço de envol vê-las não apenas nos momentos de planejamento da atividade, mas também em sua conclusão. O filho de Dewey, Fred, de 9 anos de idade, por exemplo, declarou: ‘Fizemos uma tenda de índios. Minha tenda não estava bem-feita. Eu não seria um bom índio. A tenda de Harper era muito boa. William também tinha uma tenda boa. Ontem procuramos um fio no joelho de uma ovelha. Encontramos. Era o tendão’ (University Primary School, 1896)” (citado em: Kliebard, 1986, p. 75). A postura de Dewey com relação à pedagogia e à orga nização da sala de aula não se tomou a forma de ensino predo minante das escolas norte-americanas, que se voltaram para o behaviorismo (condutismo) — uma corrente psicológica tecni- cista que expressava os fortes elementos tayloristas, racionali-204 A Sala de A ula em Idade de Casar , a Tática Escolar no Século 20 zadores e de management, que também eram encontrados na pe dagogia norte-americana. Embora Dewey propusesse um a série de princípios e idéias organizadoras associadas à questão da democra cia e do desenvolvimento das pessoas, outras pedagogias p n o iiza ra m a idéia de que as técnicas neutras, dentro de uma escola tida tam bém como um sistema neutro, poderíam atender mais satisfatoiiam ente às necessidades do governo, da sociedade industrial e das ciianças. O behaviorismo, uma psicologia que teve seu auge após a Segunda Guerra Mundial, representa um extremo dessa concepção, se gundo a qual aqueles que aprendem não são vistos como pessoas que tentam, erram e refletem, e sim como pessoas que reagem a estímulos já determinados e ordenados. Os behavioristas acha vam que o ideal docente era a máquina de ensinar, derivando desse conceito o caráter tecnicista que lhe foi conferido. Entre tanto, antes do behaviorismo — que não é considerado inte grante do movimento “escolanovista” — surgiu uma série de propostas na pedagogia norte-americana onde se retomava a idéia das “técnicas justas”, neutras e do docente como uma espécie de manager especializado, não associado à idéia de democracia. A seguir veremos, de maneira sucinta, duas destas propostas. Os tecnicistas mais neutros, mais ligados às “necessida des” da indústria, à formação de homens empreendedores, etc., complementavam o que as orientações de Dewey, de acordo com muitos docentes, não ofereciam: técnicas. Por isso, junto com a pedagogia e os princípios orientadores de Dewey, houve toda uma série de pedagogos que introduziram e praticaram diversos méto dos para fazer da sala de aula um espaço para o desenvolvimento infantil. Uma das propostas mais conhecidas foi a de William Heard Kilkpatrick (1871-1965), que baseou sua didática na idéia do tra balho em pequenos grupos, como uma forma que equilibra as necessidades individuais — a criança real e suas necessidades não 205 se perdem na “massa” da classe — , mas que, ao mesmo tempo, não isola a criança de seus companheiros, não leva a uma inclivi- dualização extrema. Diante de outras propostas mais radicais e conseqüentes, que pretendiam dar às crianças o poder na sala de aula e que queriam que os pequenos grupos se auto-organizassem, Kilkpatrick opôs-se e manteve certa centralidade do docente, no mínimo como organizador. Kilkpatrick desenvolveu esta teoria em “O método de projetos” (1918), onde conceitualiza uma série de experiências que muitos docentes, predominantemente urba nos, estavam realizando (Knoll, 1994). A professora Ellen Parkhurst também propôs um siste ma que, de certa maneira, desestruturava a sala de aula tradicional. Sua proposta — conhecida como o projeto Dalton (onde estava localizada sua escola) — ajustava o “ensino” ao ritmo individual de cada aluno. Fora da sala de aula — espaço coletivo por excelência — o aluno era livre em sua atividade e fazia um “contrato” com o professor sobre qual seria seu ritmo de aprendizagem, quanto tempo iria dedicar-se a uma ou outra tarefa. O único limite era o ano escolar. Outra forma de individualização foi proposta por Carleton Washbume, em Winnetka, nas vizinhanças de Chicago. Washbur- ne propôs um programa mínimo para os alunos, que constava de atividades relacionadas aos conhecimentos tradicionais, e um “pro grama de desenvolvimento”, constituído por atividades em grupo, de caráter mais criativo (Jesualdo, 1945). Em todas essas propostas aparecem elementos novos: para o trabalho em grupo intercalado com aulas era necessário poder deslocar as carteiras. Desse modo, as carteiras parafusa das no solo eram consideradas inimigas dos movimentos de re forma. Mesmo assim, a posição central do docente parecia di luir-se intermitentemente, por exemplo, quando uma criança A Saia de Aula em Idade de Casar : a Tática Escolar no Século 20 trabalhava com seu material, como havia sido combinado em seu contrato de aprendizagem, ou quando os grupos trabalha vam nas atividades que Washburne denominou desenvolvimento. Assim como Dewey criticava a escola que preparava para a vida, pois isso significava que a própria escola não fazia parte da vida, as propostas de sala de aula de diversas atividades pareciam con vergir para a idéia de que na sala de aula não se percebia que se estava na sala de aula, pelo menos não na sala de aula tradicional que todos conhecemos. Embora essa forma rígida da sala de aula parecesse dissipar-se um pouco, a sala de aula subsistia. Entre tanto, o que se observa nestas propostas é o lugar central ocu pado pelo “técnico”, visto como algo geral, aplicável a muitas situações; em suma como algo racionalizado. Embora o contexto de crescimento rápido nos Estados Unidos constituísse a base para o aparecimento de diversas pro postas para a produção de uma sala de aula que se adaptasse à natureza dos alunos, na União Soviética, país que se tornaria “inimigo” dos Estados Unidos, novidades desse tipo também foram produzidas e adaptadas.Durante a década de 20, a nas cente União Soviética foi um espaço para centenas de experiên cias pedagógicas novas, um tanto caóticas, porém repletas de interesse, pois mostram a dificuldade que as grandes reformas às vezes encontram. Durante essa década, os pedagogos russos e ucranianos analisaram as propostas da escola nova para tentar modificar a antiga, ineficiente e pouco abrangente escola russa do czarismo. Embora estes pedagogos tivessem orientações muito diferentes — uns aboliram o sistema de notas, outros criaram repúblicas infantis, outros aplicaram testes, etc. — , todos estive ram muito envolvidos com a questão de como seria possível in tegrar a aprendizagem e a atividade — e atividade por excelên cia era o trabalho. Tratava-se de fazer com que as crianças não só 207 A Invenção da Sala de A ula soubessem trabalhar, mas também que, por meio de sua própria aprendizagem, entendessem como funcionam os sistemas eco nômicos e que pudessem participar deles de maneira igualitária. Isto supunha mudanças fundamentais para a sala de aula. Pavel Blonkij (1884-1941) foi um dos mais influentes pedagogos do trabalho dessa época. Em sua obra principal, Es cola do Trabalho Industrial (1919), estabelecia que o verdadeiro princípio do ensino deveria ser “o caminho que vai do cérebro, passando pelos olhos até às mãos e vice-versa” (citado em: Anwei- ler, 1978, p. 182). Blonkij propôs dividir a educação elementar em uma primeira fase, organizada em torno do jogo infantil, e em uma segunda fase, a partir dos oito anos de idade, na qual as crianças já aprenderiam a conhecer as máquinas e os mecanis mos ligados ao seu funcionamento. Isto é, não apenas propôs uma sala de aula onde o jogo deveria ser o mais importante — mudando-se com ele a ordem dos bancos, a centralidade do docente e o ensino predominantemente global — , como tam bém desdobrou o espaço da sala de aula: o lugar onde se apren dia na segunda fase era uma oficina de trabalho onde se traba lhava de verdade, embora sem a pressão dos ritmos econômicos. Blonkij acreditava que desta maneira o ensino e a comunicação no espaço da aprendizagem ajustavam-se à natureza infantil, que caracterizava como “impulso para o trabalho produtivo”. A proposta de Blonkij era representativa para esses pedagogos. A esposa de Lênin, a pedagoga Nadheza Krupskaia (1869-1939), afirmava, com relação aos novos planos de estudo de 1923, que sua base deveria ser o ensino integrado — no qual desaparecem os limites das disciplinas e a atividade é organiza da por problemas concretos — associado à lógica de círculos concêntricos — que, segundo ela, deveriam iniciar com os inte- r~ 208 A Sala de A ula em Idaoe de Casar a Tática Escolar no Século 20 resses das crianças com relação ao mundo, e não na imposição dos conteúdos do mundo nas mentes das crianças (Carbonell Sebarroja, 1978, pp. 11-12). Os planos de estudo de 1923 suge riam aos professores que utilizassem o método dos complexos. Os soviéticos pensavam que se as disciplinas desaparecessem como matérias e fossem substituídas por problemas, o método também deveria superar as características separadas, fragmentá rias da pergunta de forma catequista, e dedicar-se a observar as relações entre as coisas. Esta superação da fragmentação é obser vada no caso do método dos complexos, que se define como “um determinado procedimento científico no qual o estudo das coisas e dos fenômenos não é visto de maneira isolada, mas em suas relações recíprocas, em sua totalidade e em sua dependên cia mútua” (citado em: Anweiler, 1978, p. 269). Nesta proposta, a criança era “sua Majestade”, uma vez que a seleção e a organi zação dos conteúdos — e também seu modo de apresentação — deveriam ser criados apenas a partir das “leis de desenvolvimen to e de crescimento da criança” (idem, p. 270). “As mudanças metodológicas que se pretendia conquis tar implicaram também uma nova organização do trabalho do ensino. O sistema da ‘classe’ tradicional deveria se tornar flexí vel através do ensino do grupó, que não era definido por idade, e sim por um interesse comum. Outra forma de flexibilização da classe tradicional era a proposta de que o trabalho escolar fosse deslocado da sala de aula, ‘onde as crianças recebem as respos tas já preparadas de um livro’, e fosse centralizado mais em labo ratórios ou oficinas, ‘onde as crianças aprendem o novo e o des conhecido’.” Dessa maneira, o docente passava a ser um “coordenador do trabalho de investigação realizado pela crian ça” (Anweiler, 1978, p. 273). Mais uma vez, deparamo-nos com a sala de aula saindo de seus limites, pluralizavam-se suas ins- 209 l A Invenção da Sala de A ula tâncias (laboratório, oficina) e tentava-se descentralizar a figura daquele que ensina. Via-se inclusive com maus olhos o apren der a partir dos livros, pois se pensava que fosse uma aprendiza gem dogmática, com verdades predigeridas que impediriam a criança de participar ativamente e de criar sua própria aprendi zagem. Como no caso dos seguidores norte-americanos da esco la nova, observamos aqui a tendência de que a sala de aula não deveria parecer uma sala de aula. Esta tendência inclui a idéia de que a sala de aula, como estrutura, dificultava a aprendizagem. Estas experiências soviéticas chegaram a seu fim com o stalinis- mo e sua política autoritária e centralizadora: em 1931 o Partido Comunista da União Soviética sancionou lei na qual a aula e a exposição global-frontal deveriam voltar a ser os métodos dese jados para uma sociedade que se tornava rígida (Bowen, 1985). Vimos que ganhava terreno, dentro de sistemas com pletamente diferentes — como na emergente Rússia soviética e nos Estados Unidos — , a idéia de que o centro da sala de aula deveria ser a natureza infantil. As propostas não eram tão radi cais em todos os casos, mas a pedagogia sentia que a forma de interação da aula deveria ser outra. Vejamos um exemplo de 1910, de uma professora alemã da escola nova, Kãthe Lingner, para uma atividade em. matemática para crianças de nove anos: fazer operações aritméticas com séries de números, todos múltiplos de 19. A professora propõe: “Vamos conhecer a série do número 19! Cada etapa do esquema de trabalho deve ser liderada pelas alunas organizadas em grupo; uma aluna levanta-se e diz: precisamos armar primei ro a série de múltiplos; em seguida, cada criança diz um múlti plo e o docente os escreve no quadro negro, iniciando pela parte inferior do mesmo; repetem-se os números de maneira ascen- A Sala de Aula em Idade de Casar : a Tática Escolar no Século 20 dente e descendente (ajuda para os mais fracos! Exercício de leitura!); uma menina propõe nomear os números que se encon tram entre os múltiplos e dizer qual é o múltiplo corresponden te abaixo do mesmo; 60!, diz uma menina; as outras respon dem: 57! (múltiplo de 19 imediatamente inferior a 60). As meninas propõem outros números e, em seguida, propõem di zer não apenas o múltiplo imediatamente inferior, mas também o superior; propõem também escrever os resultados para que não os esqueçam; uma aluna propõe contar ‘histórias de calcu lar nas quais se utilize a série de múltiplos de 19 em determina dos problemas; a classe faz a pergunta e elabora a resposta, por exemplo: Era natal e tínhamos 57 nozes na árvore de Natal; ma mãe precisava dividi-las entre os 3 filhos; quero saber quantas nozes cabem a cada um. Outra menina responde: A cada um cabem 19!(...) As meninas definem por si mesmas suas lições de casa” (aprox. 1910, citado em: Dietrich, 1969, pp. 34-35). Neste exemplo de um protocolo de aula publicado em uma revista da escola nova alemã, é possível ver outra forma pela qual a sala de aula modificava em parte sua estrutura de comunicação: as meninas deviam desenvolver a aula em função do objetivo estipulado pela professora. Esta lhes dava assistên cia, escrevia no quadro negro, fazia poucas perguntas, parecia retirar-se do processo de comunicaçãoda sala de aula. Entretan to, nesta estrutura a sala de aula parece mais visível: o quadro- negro, as meninas sentadas em grupo e a atividade sem a utiliza ção de livros, mas focalizada em uma única tarefa. Esta cena, também considerada como escolanovista, não tem nada a ver com a utopia dos comunistas segundo a qual a cena do ensino acontece na fábrica. A desestruturação também não vai tão lon ge ao ponto que cada aluno aprenda individualmente em seu próprio ritmo — como na proposta de Ellen Parkhurst — ou 211 ~ : A Invenção da Sala de A ula que não se reconheça a presença de “matérias" — como no caso do método de projetos de Kilkpatrick. Nesta experiência da pro fessora Kàthe Lingner, pode-se ver que alguns princípios da es cola nova foram integrados a um espaço que, no entanto, mos trava-se como uma sala de aula em um sentido muito mais tradicional. Dentro da grande variedade de propostas da escola nova, houve muita ênfase em desestruturar a sala de aula tradi cional e o papel do docente tradicional, em devolver à criança sua iniciativa e sua espontaneidade, porém todas estas propos tas tentaram outorgar-lhe a centralidade do que se passava na sala de aula. Entretanto, esta centralidade não significa que não hou ve formas sutis de influência. Um grupo muito influente de pe dagogos pertencentes à escola nova, que tentaram estruturar uma sala de aula centrada na criança, foram os chamados “médicos”. Trata-se principalmente da italiana Maria Montessori (1870- 1952) e do belga Ovídio Décroly (1871-1932); ambos estuda ram medicina e desenvolveram propostas de trabalho na sala de aula relacionadas aos seus conhecimentos sobre o crescimento natural da criança. Nesses trabalhos pode-se ver uma nova abor dagem interessante na pedagogia: os normalizadores haviam es tabelecido que muitas das diferenças existentes entre as crianças eram enfermidades, problemas de “anormalidade". Neste senti do, os normalizadores tinham-se apoiado nos médicos para pro duzir uma série de controles e classificações das crianças. Tanto Maria Montessori como Ovídio Décroly mostram-nos que a medicina poderia intervir na pedagogia de uma maneira dife rente daquela pensada pelos normalizadores. Maria Montessori, a prim eira m ulher italiana a term i nar os estudos de medicina, trabalhou na reeducação de defi A Sala de A ula em Idade de Casar: a Tática Escolar no Século 20 cientes, e para isso interou-se da tecnologia de medição que a antropologia positivista italiana, particularmente bem-desen- volvida, havia criado. Um princípio de seu trabalho na época foram as correlações entre o corpo e a mente dos mentalmente atrasados. Uma proposta de exercícios físicos era, então, um requisito para o progresso mental. Sua insistência na pedago gia científica era constante. Propunha que seu fundador — o médico francês Itard, que tratou no início do século 19 um menino lobo da localidade de Aveyron, na França — permitiu a determinação de um programa de reeducação com a sistemá tica adequada. Dentro do espaço biológico, a utilização que fez de conceitos foi seletiva para a fundamentação da plasticidade da criança. Desse modo, por exemplo, os conceitos que defi niu como relevantes foram os de mutação e metamorfose, e não os da genética e da imobilidade da herança. Assim, o cres cimento visto como mutação, como mudança, converteu-se na base de sua proposta de sala de aula. Suas primeiras experiências na educação infantil de “crianças normais” foram patrocinadas por maçons, radicais e socialistas, para quem a infância trabalhadora tinha-se converti do em objeto de preocupação. Fm 1905, essa coalizão gover nante no município de Roma encarregou-a — dentro de um amplo trabalho de remodelação do bairro operário de San Lo- renzo — da organização da primeira “Casa das Crianças”. Com esta iniciativa, Maria Montessori estava articulando três deman das: a realização do discurso iluminista-maçon de melhoramen to social através da educação, o problema — caro aos radical- socialistas — da infância trabalhadora, e a condição da mulher trabalhadora, que necessitava de espaço para cuidar de seus fi lhos. A iniciativa ampliou-se rapidamente. Em 1908, a “Socie dade Humanitária” de Milão, integrada por liberais-maçons e A Invenção da Sala de A ula socialistas, inaugurou a primeira “Casa das Crianças” no norte da Itália. A partir de então, e principalmente com a publicação de seus livros em 1912 e 1913, Montessori alcançou fama mun dial (Bowen, 1985, pp. 500-501). Se, por um lado, vimos que Dewey e os norte-americanos seguidores da escola nova associavam suas novas propostas de sala de aula com o individualismo, e que os soviéticos queriam reformar a sala de aula em função da criação de uma nova sociedade, no caso de Montessori, a intenção era outra: “Com certeza virá o dia em que a professora perceberá, com grande surpresa, que todas as crianças a obedecem como cordeirinhos e que não só estão preparadas quan do a professora manda que obedeçam, como também esperam que isto ocorra (...). A experiência nos ensinou isto, e a disciplina conse guida como que por forças mágicas produz uma impressão muito boa nos visitantes da casa das crianças” (citado em: Gòhlich, 1993, p. 114). Parafraseando a vovó de Chapeuzinho Vermelho, Montes sori quer reformar a sala de aula para “disciplinar-te melhor”. Entretanto, sua estratégia pedagógica era complexa e distanciada da disciplina tosca, catequista que vimos na escola moderna até este momento. Considerava que uma educação sen- sorial era a base de qualquer ensino. Entretanto, não se tratava de fazer da criança um ser dependente de suas sensações, mas sim fazer com que esse domínio lhe permitisse a liberação de sua criatividade e de sua verdadeira espiritualidade. Inclusive, determinava Montessori, a questão da “auto-educação” somente é possível após esse desenvolvimento, que, uma vez que siste matiza as imagens nas crianças, libera suas capacidades huma nas. A esse respeito, a insistência nos aspectos sensório-motores da infância conspirava contra a ordem e a passividade das esco las tradicionais. Para fazer frente a esta tendência da escola tra 214 A Sala de A ula em Idade de Casar : a Tâiica Escolar no Século 20 dicional, que não considerava essa centralidade dos sentidos, Montessori elaborou exercícios para cada um desses sentidos que se divulgaram rapidamente. Além disso, Montessori ideali zou toda uma série de materiais, blocos de construção e formas geométricas que ainda são utilizados atualmente em muitas es colas. Nesta proposta, o papel do docente restringia-se à função de “orientador das experiências de aprendizagem” que as pró prias crianças deveriam realizar. O docente, tal como aconteceu com a sala de aula, parece afastar-se um pouco da situação edu cacional. Do mesmo modo que afirmava que a mente absorven te da criança era diferente da mente adulta, Montessori dizia que o espaço educacional da criança deveria ser um espaço simplificado, onde as contradições e a multiplicidade da vida exterior deveriam ser atenuadas. Explicam-se, desse modo, a construção de um mobiliário com as dimensões adaptadas para a criança e a sim plificação de todas as barreiras físicas do espaço educacio nal. A sala do jardim da infância como a conhecemos hoje tem muita influência dessa pedagoga. O sucesso do método baseava- se na complementaridade do espaço reformulado da sala de aula e dos materiais didáticos fundamentados em momentos especi ficamente sensíveis da criança a determinados estímulos. Essa dependência fazia supor que esses materiais garantiríam a curiosi dade e o interesse da criança mediante a determinação científica dos períodos de sensibilidade. Ou seja, a medicina diagnosticava em que momento do crescimento um sentido era particularmente sensível à influência educacional, e os métodos tentavam exerci tar esses sentidos por meio dos materiais, mais do que por meio do docente. Comovemos, a estratégia conservadora de Montes sori — que na década de 20 dedicou-se a questões mais tradici onais, como a inclusão da missa e da oração na sala do Jardim da Infância — é complexa. Como médica, compreende muito bem 215 I A Invenção oa Sala de A ula que, para serem eficientes, a educação e o entorno pedagógico não podem se contrapor às leis de crescimento da criança, entre as quais está a atividade42. Entretanto, os materiais estruturados, o docente que corrige e a invenção de um mundo completamente a parte, que imita o mundo adulto, produzem um movimento curioso: por um lado, procura-se fazer desaparecer a sala de aula como estru tura rígida global-frontal; procura-se também a diluição do papel do docente, e que o fator determinante seja a relação da criança com o material, e não sua comunicação com os docentes e com seus pares. Por outro lado, porém, opondo-se a esta intenção de dissimular o caráter artificial da sala de aula, Montessori cria um ambiente hiper-artificial, tão artificial que parece natural para as crianças: um mundo repleto de cadeiras pequenas só existe na sala de aula. Embora a aula tradicional deva desaparecer, este é o extremo oposto com relação às propostas soviéticas: enquanto a sala de aula imaginada pelos revolucionários russos deveria ser parecida com a vida real — e como vida entendia-se principal mente o mundo do trabalho e do processo de produção — , a proposta de Montessori cria um mundo à parte, totalmente sepa rado das questões sociais externas aos muros da escola. Montes sori cumpre bastante bem o papel da falsa avó de Chapeuzinho Vermelho. “Dessa forma, a reforma segue sempre o mesmo prin cípio: o princípio da perfeita adaptação do entorno pedagógico à criança, onde ela mesma pode aprender com liberdade e auto- atividade. Os efeitos são indiretos, mas nem por isso menos efici entes e tampouco menos manipuladores” (Oelkers, 1996, p. 180). 42. Uma boa formulação do situação didático na solo de oulo de Montessori foi enunciado por Jürgen Oelkers. Frente à difuso figuro docente e ò importância do aprendizagem por meio do moteriol. Oelkers afirmou: "o material è o método' ( 1996. p. 180). ( A 5ala de Aula e m Idade de Casaiv a Tática Escolar no SEculo 20 Embora também fosse médico, o belga Ovídio Décroly apresentou uma proposta de sala de aula diferente daquela apre sentada por Montessori. Se Montessori separava um exercício para cada sentido em particular (para a visão, para o tato, para a audi ção), método que se denomina analítico, Décroly contrapunha uma proposta de globalização das funções mentais superiores, juntam ente com uma teoria particular dos interesses. Neste sentido, sua propos ta respeitava a aproximação global sincrética que as crianças apre sentam em relação às diversas áreas da experiência. A globaliza ção questionava a seqüência pela qual se devia passar do concreto ao abstrato, do simples ao complexo, da parte ao todo, e determi nava outra aproximação da criança à realidade, que desmentia essa linearidade. Décroly dizia que a criança visualiza em primei ro lugar as totalidades, ainda que de maneira caótica; mais tarde, descobre os elementos, e em seguida pode voltar à totalidade, desta vez compreendendo-a melhor, pois já compreende suas par tes. Entretanto, para que isto ocorra, a sala de aula deve estar or ganizada de tal maneira que a criança se interesse por essas totali dades (Abbagnano e Visalberghi, 1980, pp. 667-669). O curriculum dos centros de interesse parecia claramente determinado por questões associadas à necessidade, à biolcgia. Décroly argumentava que o interesse genuíno estava relacionado com a satisfação das necessidades infantis e, devido à sua formação particular em medicina, dizia que eram quatro essas necessidades: nutrir-se, restabelecer-se ou proteger-se, defender-se dos perigos, agir ou trabalhar, sozinho ou em grupo. Esta determinação apriorís- tica constituía a pedra fundamental da definição curricular. Desti- tuíam-se as disciplinas tradicionais, organizando-as de acordo com estas quatro necessidades fundamentais, e dava-se maior impor tância às atividades de expressão. Por isso, para Décroly, a sala de aula era organizada em tomo de “centros de interesse”, diferentes 217 A I n v e n ç ã o d a S a i a de A u l a para cada idade, a partir dos quais sucediam-se as etapas de obser vação, associação e expressão. O que se instituiu com os centros de interesse foram os famosos “cantos” na sala de aula, que já estavam de alguma maneira presentes em vários estabelecimentos, inclusive em algumas escolas lancasterianas (Gòhlich, 1993, pp. 128-129). Cada canto da sala tinha elementos e funções distintos; a sala de aula parecia fragmentar-se um pouco em diversos momentos que transcorriam em ambientes diferentes, e não era mais uma repeti ção constante de UM método em UM espaço homogêneo. Embora a obra de Décroly não tenha a repercussão internacional consegui da pela obra de Montessori, várias de suas propostas foram adota das pelos sistemas educacionais belgas e franceses. Suas obras fo ram traduzidas muitas vezes e seu impacto chegou à América Latina, principalmente Chile, Uruguai, Brasil e Argentina. No caso do Brasil, onde a escola nova teve grande impac to, Carlos Monarcha observou uma relação entre o processo de cres cimento e urbanização e a expansão destas propostas: “o escolano vismo brasileiro expressou a emergência de uma nova sensibilidade diante do caos da cidade e da era da máquina: tomando-se compa tível com os princípios da economia de mercado: produtividade, disciplina, circulação, procurando homogeneizar a cultura e elimi nar os laços pessoais, propondo a construção de uma sociedade aberta, em um movimento semelhante a uma revolução de cima para baixo” (Monarcha, 1989, p. 24). Ou seja, já não se pode con seguir a criação de uma ordem social com as velhas armas da cate quese, a disciplina sobre os corpos e os métodos de governo da sala de aula, provenientes de uma época em que a dinâmica da socieda de ainda era muito diferente. Nessa época em que os operários se organizavam, as mulheres protestavam para que seus direitos cívi cos fossem reconhecidos, os pacifistas levantavam-se contra as guer ras, etc., faltavam outras formas de governo. Por outro lado, é sinto 218 7 A 5ala de Aula em Idade de Casar : a Tática Escolar n o Século 20 ü mático que a escola urbana, ou seja, a escola mais ligada à moderni dade e à “civilização industrial”, tenha sido influenciada pela escola nova, inclusive em nosso meio. Assim como observamos que o tra balho industrial se racionalizava medindo as tarefas, apostando em um saber que se acreditava ir além das questões sociais e políticas, e que se via como neutro, a “técnica pedagógica” (termo muito utili zado pela escola nova) tendia a ser influenciada por essas mudanças no mundo do trabalho. Na sala de aula, isto significava que “duran te o processo de aprendizagem, as diferenças entre os alunos e o professor desaparecem gradualmente, alcançando-se um mesmo nível de compreensão da vida. A escola, dizem, deve educar para a vida. A pedagogia da escola nova brasileira é, portanto, uma psicologia, ou melhor, uma psicopedagogia. O professor nunca reprime, e sim cria áreas de consenso, valorizando os interesses individuais, convertidos em centros de aprendizagem. Adminis tra as tensões e os conflitos individuais e coletivos típicos da vida em sociedade” (idem, p. 23). Não é por acaso que os escolanovistas argentinos, mui tos dos quais bastante preocupados com novas formas de ordem, tenham aceitado muitas das idéias de Montessori — que visitou nosso país em 1926 — e de Décroly. A reforma de planos de estu do das escolas primárias argentinas de 1936 invocava explicita mente o nome de Décroly como base (Ghioldi, 1936) e suas pro postas foram aceitas por muitos destes escolanovistas, mais conservadores. Por exemplo, uma idéia de Décroly importantepara os escolanovistas argentinos era que o interesse da criança, elevado a elemento central para organizar a sala de aula, poderia ser fixado antecipadamente “de maneira científica”. Décroly organizava sua sala de aula baseando-se nesses quatro interesses vitais, que eram os mesmos para todas as crianças. Nesse sentido, o “interesse” das crianças considerado dessa maneira abstrata talvez não tivesse re- 219 A I n v e n ç ã o d a S a l a d e A u l a lação com os interesses concretos das crianças da década de 30. Ou seja, o conceito de interesse parecia inquietante, porque dava muito poder à criança para decidir na sala de aula sobre conteú dos, ritmos, formas de adquirir conhecimentos, etc. Ao classificar o interesse antecipadamente para todas as crianças em todas as situações, Décroly permite vê-lo como uma arma para a ordem. Um bom exemplo desta corrente — que considera o crescimento das crianças e o regula como forma de criar uma or dem estabilizadora no governo da sala de aula — é a história do caderno escolar, estudada recentemente por Silvina Gvirtz. A idéia do caderno escolar único — embora já tivesse sido proposta no Dictionnaire de Pédagogie de Buisson (1882), ao qual nos referimos anteriormente — foi adotada nas escolas argentinas devido à pres são dos escolanovistas. De acordo com Silvina Gvirtz, esta foi uma iniciativa de José Rezzano, professor e inspetor escolar. Rezzano foi um leitor de Décroly muito interessado, e sua esposa, a peda goga Clotilde Guillén de Rezzano, publicou em 1946 um impor tante livro metodológico que intitulou Os centros de interesse na escola. Com relação ao caderno, José Rezzano afirmou: (O caderno de deveres ou caderno único) deve ser orientado no sen tido de levar a criança a J a z e r , para poder alcançar, hoje, o ideal alme jado por todos: que a escola seja verdadeiramente prática e também de caráter pré-profissional e pré-industrial — entendido este último termo não em sua acepção puramente técnica, mas no sentido de trabalho organizado e fecundo, de iniciar e aplicar idéias com enge- nhosidade prática e executiva para obter a maior produtividade. Rezzano, citado em: Gvirtz, 1997, p. 43. )U Como se pode observar, este dispositivo parecia mais adaptado aos tempos industriais do taylorismo do que as tecnolo gias anteriores. O caderno era superior à lousa em diversos aspec- 220 A Saia de A ula em Idade de Casar: a Tática Escolak no Século 20 tos: era mais higiênico (relembremos o relato que abriu este capí tulo sobre as cuspidas para limpar a lousa, e o pó de giz que ainda é utilizado para escrever no quadro negro), permitia o acúmulo e o registro de dados sobre as tarefas escolares ao longo do tempo e tornava mais fácil a análise do processo de aprendizagem como uma atividade sustentada em uma série temporal. Entretanto, sur giu, além disso, a idéia do caderno único: em vez de um caderno para cada matéria, haveria um caderno que unificaria e simplifica ria a interação entre professores e alunos (Gvirtz, 1997, pp. 45 e ss.). Além disso, Rezzano, como bom escolanovista, deu ênfase às atividades do aluno: o caderno deveria ser um “caderno do fazer”, que permitisse constância naquilo que um aluno aprendia e era capaz de realizar. Gvirtz analisa como o caderno passou a ser o centro de interesse de professores, diretores e inspetores: seria uma peça chave na avaliação daquilo que os professores ensinavam e do que os alunos aprendiam. Seria convertido em um registro de como o governo das crianças funciona em sala de aula. Dissemos que a regulação da aprendizagem como posição nova favorecia o fato de a comunicação da sala de aula se ter adapta do à criança, e não o contrário, o que significava grandes mudanças no governo da mesma. Os reformadores da escola nova propuseram muitas formas para organizar a sala de aula, das quais vimos apenas algumas. Outras experiências, como as pedagogias associadas à idéia da comunidade nos países de língua alemã, a individualização psi cológica derivada da psicologia suíça, as experiências escandinavas, etc., não foram aqui apresentadas. Entretanto, vimos na análise dos casos uma série de elementos que queremos sistematizar. Nossa tese é a seguinte: o biopoder desenvolvido na socie dade global por parte do Estado em sociedades que adquiriram uma dinâmica crescente tem sua expressão pedagógica mais acabada na escola nova. Esta imaginava uma sala de aula onde o processo de 221 A Invenção da Sala de A ula crescimento era dirigido, administrado, baseando-se, entretan to, nas “próprias” leis do crescimento. A escola nova procura adaptar a didática à maneira como as crianças crescem e às mu danças pelas quais passam constantemente. Se por um lado a sala de aula tradicional, global ou catequista, governava as crianças, obrigando-as a participar de uma situação já estruturada, o que denominamos didática antecipativa, já a escola nova aceita o cres cimento como um fato, tenta acompanhá-lo sem colocá-lo nos limites da estrutura de antecipação e do diálogo (o monólogo) didático já ritualizado, derivado da catequização. Vimos também algumas das armadilhas: se o importante na situação de sala de aula é respeitar o crescimento, a questão fun damental dessas pedagogias é a maneira como caracterizam e pen sam este crescimento. Vimos em John Dewey uma concepção flexí vel da experiência; em Maria Montessori, uma concepção centrada nos sentidos, relacionando-os com os materiais; nos pedagogos so viéticos, o crescimento como integração crescente da criança na vida social; em Ovídio Décroly, o crescimento como forma evoluti va de interesses prefixados. A escola nova pensava que “liberava” a criança. Acreditamos que produziu uma estrutura de comunica ção, uma fragmentação e uma pluralização do espaço de ensino — a oficina, os laboratórios, a horta, os cantos de atividades, os centros de interesse — , que deram origem a uma forma de gover no diferente da forma de governo do método global; uma forma mais compatível com estas sociedades onde a industrialização, a administração do crescimento das sociedades e, portanto, de seus componentes transformou-se em um tema central. François Ewald afirmou que a normalização “não é tanto uma questão de fazer com que os produtos se adaptem a um pa drão, e sim com que se chegue a uma compreensão sobre a escolha do modelo. Fornece um critério para julgamento. A normalização 222 A Sala de Aula em Idade de Casar a Tática Escolar no Século 20 constitui, portanto, a produção de normas, de padrões para medir e comparar e de regras para julgar. A normalização não produz obje tos, e sim procedimentos que levam a um consenso geral na escolha de normas e padrões” (Ewald, 1990, p. 148). Se o que importa na nonnalização não é tanto o fato de os alunos se tomarem “nor mais”, e sim que sejam aceitos como corretos os mecanismos de normalização, e que sejam transformados em procedimentos acei tos, pode-se ver a escola nova também como uma variação da nor malização cultural e social das sociedades ocidentais. Se o que im porta são os procedimentos, que sejam aceitos como legítimos, é sobre eles que a escola nova situa seu “dogma”. Os procedimentos, as técnicas definem antecipadamente um “ideal de alunos”: o aluno criativo, o “gênio” (E. Key), o ativo. É claro que a escola nova não conseguiu que todos os seus alunos fossem criativos, ativos e geni ais, mas conseguiu que se acreditasse na importância de ter estas características. Neste sentido, é normalizadora: não porque tenha convertido todas as crianças em pequenos Einsteins, mas porque impôs uma série de normas pelas quais as crianças são avaliadas na sala de aula. Entretanto, esta normalização é diferente daquela que descrevemos no início do capítulo, uma vez que utiliza muito mais a lógica das regulações, de acompanhar aquilo que se define como “natural”: o crescimento. De nossa parte, não negamos a importância das carac terísticas