Buscar

O Homem do Pelourinho - Franco Basaglia

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 18 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 18 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 18 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

“O HOMEM DO PELOURINHO” 
Franco Basaglia (1924-1980) 
 
A primeira vez que entrei numa prisão, eu era estudante de medicina e entrei como 
preso político. Era a hora em que esvaziavam os pinicos das celas e minha primeira 
impressão foi a de entrar numa enorme sala de anatomia onde a vida tinha o aspecto 
e o odor da morte. A prisão me parecia uma estrumeira impregnada de um fedor 
infernal onde alguns homens com latas sobre os ombros desfilavam em direção aos 
cagotes, para verter seu conteúdo. O pessoal que cumpria a tarefa compunha-se de 
detentos privilegiados que podiam sair das celas, o que punha em evidência como nas 
prisões existia uma estratificação social sobre a qual se fundamentava um tipo de vida 
completamente autônoma: a vida da segregação.1 O homem e a prisão eram, em 
realidade, o encarcereiro e o encarcerado, o um e o outro haviam perdido toda a 
qualidade humana, adquirindo a marca da instituição. Depois de alguns anos entrei 
em outra instituição fechada: o manicômio. Esta vez não como internado e sim como 
diretor. Estava no grupo dos carcereiros, porém a realidade que vi não era diferente: 
também aqui o homem havia perdido toda a sua dignidade humana, também o 
manicômio era uma enorme estrumeira: aquele que ocupava o lugar de doente e de 
internado deve expiar uma culpa da qual não conhece as características nem a 
sentença, nem a duração de sua expiação. Há médicos, aventais brancos, enfermeiros 
e enfermeiras, como se tratasse de um hospital, mas na realidade, se trata somente de 
um lugar de custódia, onde a ideologia médica é um álibi para a legalização de uma 
violência, que nenhuma organização está destinada a controlar, já que a delegação 
feita ao psiquiatra é total no sentido de que a técnica encarna concretamente a ciência, 
a moral e os valores do grupo social do qual ele é, na instituição o delegado 
representante. Porém, se afirma que no último século, se tem dado passos gigantescos 
para a conquista, por parte do homem, da própria liberdade e do próprio destino. Em 
cada uma de suas áreas, a ciência declara estar buscando instrumentos constantemente 
novos para a libertação do homem de suas próprias contradições e das da natureza. 
Mas ao se analisar, e, sobretudo, ao se atuar no interior e uma das instituições criadas 
por nossa “ciência” e por nossa “civilização” percebemos quão pouco se tem feito e 
como cada instrumento tecnicamente inovador tem servido na realidade só para dar 
um novo aspecto formal, uma “fachada”, a condições que continuam as mesmas no 
que se refere à sua natureza e significado. No aspecto específico da reclusão, e neste 
termo podemos incluir tanto a manicomial como a carcerária, desde o tempo da barca 
dos loucos (que navegava a deriva pelos mares com sua carga monstruosa e 
indesejável) a ciência e a civilização não parecem que tenham conseguido outra coisa 
além de uma ancoragem mais potente para esta ilha de exclusão e de reclusão, na qual 
a inadaptação doente e inadaptação sadia (“ culpável e responsável” ou seja 
“delinquência”) encontram seu lugar. Para o homem moralmente desviado: a prisão; 
para o homem doente do espírito: o manicômio. Esta é a grande conquista da ciência. 
Durante séculos, loucos, delinquentes, prostitutas, alcoólatras, ladrões e extravagantes 
compartiram o mesmo lugar, um lugar no qual a diversidade da natureza de sua 
“monstruosidade” era ocultada e nivelada por um elemento comum a todos: o desvio 
da norma e de suas regras, junto com a necessidade de isolar o anormal do comércio 
social. Os muros da prisão circunscreviam, continham e ocultavam o endemoniado, o 
louco, como expressão do mal involuntário e irresponsável, junto ao 1 As palavras e 
trechos do texto escritos em negrito não se apresentavam assim no texto original, 
foram grifados em particular nessa reprodução com fins didáticos. 2 delinquente, 
expressão do mal intencional, voluntário. Alienação e delinquência representavam, 
assim, conjuntamente, a parte do homem que devia ser eliminada, circunscrita e 
ocultada até que a ciência não decretasse a clara separação entre ambas, através da 
individualização de suas características específicas. Segundo o racionalismo 
iluminista2 , a prisão deveria ser a instituição punitiva para os que transgridem a 
norma encarnada na lei (a lei que tutela a propriedade, que define os comportamentos 
públicos corretos, as hierarquias da autoridade, a estratificação do poder, a amplitude 
e a profundidade da exploração). Os alienados, os doentes do espírito, aqueles que se 
apropriavam de um bem comumente atribuído à razão dominante (o extravagante que 
vivia segundo normas criadas por sua razão ou por sua loucura), começaram a ser 
classificados como doentes para os quais seria conveniente uma instituição que 
definisse claramente os limites entre razão e loucura e na qual poderia aprisionar sob 
uma nova etiqueta, servindo-se do critério de “doença perigosa” ou “escândalo 
público”, aqueles que transgrediam a ordem pública. Prisão e manicômio, uma vez 
separados, continuaram conservando idêntica função de tutela e defesa da “norma”, 
ali onde o anormal (enfermidade ou delinquência) se convertia em norma ao ser 
circunscrito e definido pelos muros que estabeleciam sua diferença e sua distância. A 
ciência tem separado, então, a delinquência da loucura, reconhecendo, por um lado, 
na loucura, uma nova dignidade: a de ser uma abstração, ou seja, a de sua definição 
em termos de enfermidade, por outro lado, reconhecendo na delinquência um 
momento humano ao convertê-la em objeto de investigação de criminologistas e 
cientistas que chegam a individualizar fatores genéricos biológicos como originários 
do comportamento anormal, até a descoberta do cromossoma Y. Mas, apesar da 
separação ideológica das duas identidades abstratas (delinquência e 
enfermidade),cada uma com sua própria instituição específica, praticamente 
permanece inalterada a estreita relação entre ambas com a ordem publica, ambas 
instituições mantém inalterada sua função de tutela e defesa desta ordem. Por outro 
lado, apesar do abstrato reconhecimento desta nova dignidade, nem o delinquente - 
que deve expiar a ofensa que fez à sociedade-, nem o louco - que deve pagar por seu 
comportamento incorreto e inadequado-, têm a dignidade de homens, e as instituições 
para eles criadas (para sua reeducação e redenção, por um lado, para seu tratamento e 
reabilitação, por outro) não têm modificado em nada sua função e natureza, 
continuando em sua evolução separada, uma via paralela. Reformadores do código, 
por um lado, frenólogos e especialistas, por outro, tem estabelecido uma ou outra vez 
novos regulamentos, classificações, teorias, subdivisões que, porém, nada mudaram 
da relação entre sociedade “civil” e os elementos que dela foram excluídos. Mas, além 
disso, nada tem mudado na natureza da exclusão fundamentada na violação, na 
mortificação, na total destruição do homem institucionalizado, demonstrando assim, 
que a finalidade implícita dos estabelecimentos de reeducação e de tratamento é a 
supressão dos que deveriam ser reeducados e curados. A análise da diferente situação 
institucional da inadaptação em relação aos diversos graus de desenvolvimento 
tecnológico, pode nos aclarar a imutabilidade da função implícita desta organização: 
o controle e a eliminação, mediante instrumentos mais ou menos grosseiros, mais ou 
menos sutis, do objeto nela contido. Nos países onde a situação sócio-econômica, 
dado seu grau de desenvolvimento, não exige uma eficiente organização por não ser 
necessária, a delinquência e a loucura ocupam ainda o mesmo espaço: prisões onde 
não existe separação das duas diferentes entidades. Isto é, que um contexto no qual 
os limites da norma não estão bem definidos, o conjunto dos diversos indivíduos que 
estão fora da norma se organiza espontaneamente em grupos separados que se formam 
para defesa desta, para sua própriasobrevivência. A ciência não tem sido chamada 
para dar justificações teóricas de uma discriminação que ainda não se faz necessária. 
2 Recebe esta denominação o movimento cultural e filosófico ocorrido na Europa, no 
período que vai da revolução inglesa (1688) à revolução francesa (1789). O século 
XVIII é, devido a esta diretriz de pensamento, igualmente chamado Século das Luzes. 
Podemos compreender isto que “ilumina” a época em questão como a crença no 
desenvolvimento sem limites da razão; esta pode ser encarada como a principal 
característica deste movimento, desde a qual as demais considerações se 
fundamentam. 3 A ciência, então, não tem sido chamada, ainda, a levar sua obra 
colonizadora para a separação do anormal, não se conhece ainda a utilização desta 
divisão, que servirá para um estado superior de desenvolvimento. A violência ou 
ameaça de violência é um instrumento ainda suficiente para garantir a ordem pública. 
No caso de existir, essa divisão, fundamentada pelo princípio científico, produz um 
tipo de organização institucional, uma superestrutura de importação, implícita na 
lógica imperialista, que não responde minimamente à realidade local. É deste ponto 
de vista que o horror da tortura nos países sul-americanos, por exemplo, adquire uma 
forma organizada, convertendo-se em uma instituição. Representa, assim, a 
superestrutura, a organização institucional correspondente ao nível estrutural desses 
países. A tortura como instituição é o único instrumento que seus políticos, ou seja, 
os militares sabem usar para o controle de situações que não podem ser controladas, 
a não ser através de um contínuo estado de ameaça de violência. Para um povo que 
não tem esperança de mudar sua condição de vida, ou que não traduz em uma luta 
concreta de esperança, a ameaça de detenção na prisão ou no manicômio, como 
sanção aos comportamentos desviados, é inefectiva, pois para quem não come ou não 
tem uma casa para dormir, a internação pode ser também uma solução para a própria 
sobrevivência. A tortura é então o único meio de eliminação, a única ameaça de real 
destruição e, portanto, é o verdadeiro controle social correspondente a um nível de 
desenvolvimento ainda arcaico. Estrutura econômica e organização social coincidem 
sempre, e não é casual que os manicômios se tenham estruturado no sentido técnico-
institucional com o começo da revolução industrial3 . Assim, em semelhança com as 
demais formas de assistência pública, os manicômios mostram sua mais ampla 
configuração institucionalizada no momento em que se faz necessário separar o 
produtivo do improdutivo. Com o nascimento da era industrial a relação já não se 
estabelece entre o homem e a sociedade humana e sim entre o homem e a produção, 
o que cria um novo uso discriminante de cada elemento (anormalidade, enfermidade, 
inadaptação, etc), em relação a sua possibilidade de obstacularizar o ritmo produtivo. 
Em nosso nível de desenvolvimento tecnológico, esta função de organização 
institucional já não é explícita: está mascarada e ao mesmo tempo legitimada pelas 
diversas ideologias científicas. No caso do manicômio, mediante a ideologia médica 
que encontra na definição da irrecuperabilidade da enfermidade a justificação da 
natureza violenta e segregante da instituição, no caso da prisão, mediante a ideologia 
do castigo. O prisioneiro paga por uma falta cometida em detrimento da sociedade, o 
enfermo paga por uma falta não cometida e o preço é tão desproporcional à “falta” 
que chega a fazê-lo viver uma dupla forma de alienação derivada de tal 
incompreensão e incompreensibilidade da situação que se vê obrigado a viver. A 
ideologia do castigo sobre a qual se fundamenta a prisão e a ideologia médica, ou 
melhor dito, a ideologia da irrecuperabilidade da enfermidade sobre a qual se 
fundamenta um manicômio é de fato totalmente estranha ao problema da delinquência 
e da enfermidade. Sua função é ser uma simples contenção dos desvios e, portanto, 
um controle dos mesmos. A ideologia cobre a repressão simplesmente justificando-a 
e legitimando-a, mas a violência legitimada continua sendo violência. Se a finalidade 
reabilitadora de ambas instituições fosse real, haveria detentos e internados 
reabilitados e felizmente reincorporados ao contexto social. Isto ocorre muito 
raramente, dado que o ingresso em uma ou outra destas instituições marca, em geral, 
o começo de uma carreira cuja evolução e conseqüências bem conhecemos. A 
afinidade formal entre estas duas instituições parece, então, realizar-se somente no 
plano negativo. Mesmo que as novas interpretações tendam a justificar ou explicar 
em termos de dinâmica psicossocial tanto a falta como a enfermidade, a realidade das 
instituições nas quais ambas são relegadas continua baseando-se no conceito de culpa 
a expiar, a pagar por meio do castigo, inclusive no caso da enfermidade. 3 A 
Revolução Industrial consistiu em um conjunto de mudanças tecnológicas com 
profundo impacto no processo produtivo em nível econômico e social. Iniciada no 
Reino Unido em meados do século XVIII, expandiu-se pelo mundo a partir do século 
XIX. 4 Os loucos que Pinel4 havia separado dos delinquentes acorrentados, 
continuam ainda acorrentados real ou simbolicamente, uns e outros, em instituições 
separadas, mas baseados nos mesmos princípios destrutivos, princípios que são, por 
sua vez, definidos e encerrados nos mesmos juízos de valor que, no entanto, 
estabeleceram sua clara natureza. Os loucos obtiveram do racionalismo iluminista a 
dignidade de enfermos e os delinquentes passaram do âmbito da culpa moral a uma 
abstrata justificação endógena. Ambos acorrentados, mas recuperados no campo da 
investigação positivista. Ou seja, que para ambos, a realidade e a violência são as 
mesmas. O fato de que se use ou se organize de modo sofisticado a tortura, o fato de 
que as correntes sejam reais como em nossas instituições, ou simbólicas como nas 
instituições de países mais desenvolvidos, não traz nenhuma diferença real porque a 
finalidade continua sendo a proteção e o cuidado do grupo dominante, mediante a 
descrição dos elementos que impedem a ordem social. A lógica da subordinação e da 
repressão deve, portanto, criar pessoas total e acriticamente submetidas e identificadas 
ao mesmo tempo, às leis que violaram ou que podem violar. Mas a clara separação e 
o isolamento em lugares de segregação das contradições humanas, tais como a doença 
e a delinquência, implica ao mesmo tempo a focalização destes fenômenos. O efeito 
paradoxal destes “estigmas” é que se exige uma vida exemplar perfeita precisamente 
daquelas que já demonstraram a tendência a um comportamento anormal, e isto 
porque, quem está estigmatizado é reconhecível, diferente, é localizado de imediato, 
habitualmente é mais fraco, está mais exposto, sua situação é precária, não tem força 
social e econômica para se opor à cruel campanha que exige exclusivamente dele a 
perfeição da conduta e comportamento. A contradição que encarnam o recluso e o 
doente mental é uma contradição que não pode manter-se aberta porque a doença e o 
crime (delito) são “desculpas” perfeitas para eliminar a todos aqueles elementos que 
impedem o normal funcionamento e desenvolvimento de nossa sociedade, baseada na 
produção capitalista e cuja única lei deve ser respeitada. A doença ou a delinquência 
é uma contradição do homem, mas é também um produto histórico social e, apesar 
disso, continua fazendo sofrer as consequências, sob acobertamentos científicos 
variados, àqueles que são inocentes, como se tratasse sempre de uma culpa individual, 
ao mesmo tempo que se utilizam para relegar e destruir aqueles que, de um modo ou 
de outro, estão excluídos ou impedem o processo produtivo. Como é evidente são 
sempre os marginais os que não têm poder econômico para se opor, os que não tem 
um espaço privado onde viver sua inadaptação, são eles que caem sob as sançõesmais 
rigorosas. O grupo dominante preserva a ordem pública, o ritmo produtivo, a 
eficiência de sua organização, o funcionamento da vida antinatural que produz ou 
impõe, protegendo a quem trabalha da ameaça potencial representada pelos 
marginalizados (os que não produzem, os que voluntariamente se excluem ou 
involuntariamente são excluídos do intercâmbio social) jogando, ao mesmo tempo, 
com a ameaça de uma possível marginalização. Paradoxalmente, volta-se a propor, 
em nome da exploração e da eficiência, a dialética servo-senhor, na qual o senhor 
cuida do servo da ameaça representada por quem pode perturbar a ordem de seu 
trabalho, criando as instituições onde se possam isolar e neutralizar esta ameaça. 
Porém a existência destas instituições atua, ao mesmo tempo, como ameaça para o 
servo que pode cair nas suas malhas. Estas organizações, chamadas reabilitadoras, 
têm, portanto, uma dupla função: a violência como sistema concreto de eliminação e 
destruição e a violência como ameaça simbólica desta destruição e eliminação. Nesta 
perspectiva no nosso nível de desenvolvimento, cada contradição deve ser isolada e 
deve achar-se o espaço separado onde o sujeito pague por si mesmo a contradição que 
representa. O que importa é descobrir rapidamente o diferente e isolá-lo para 
confirmar que não somos nós ( os sadios, os normais, os bons cidadãos), isto é, a 
estrutura de nossa organização social que produz contradições, é sempre o outro, o 
estrangeiro, o corruptor, “as más companhias” os que produzem o contágio, que deve 
ser prevenido e neutralizado para proteger a coerência da norma, ou seja, os 
parâmetros que definem a ordem moral e pública. Nesta tentativa de descobrir 
precocemente a 4 Philippe Pinel (Saint André, 20 de Abril de 1745 — Paris 25 de 
Outubro de 1826) foi um médico francês, onsiderado por muitos o pai da psiquiatria. 
5 “diferença” se baseia o caráter preventivo das ideologias, assim como na 
confirmação desta diferença se baseia o caráter violento das instituições. Aqui entra 
em jogo a interdisciplinariedade, a cumplicidade do psiquiatra com a lei, pela qual se 
pode, segundo os casos, definir como psicopata, débil ou louco moral o delinquente 
que não deve ser definitivamente estigmatizado como tal (nos casos em que o estigma 
da doença é menos prejudicial que o da delinquência). As peritagens psiquiátricas não 
são mais do que um instrumento que permite a passagem de um ao outro âmbito 
mediante uma avaliação quantitativa (cujo caráter subjetivo não vale a pena se deter) 
dos aspectos anormais presentes no sujeito examinado. Mas quem atravessa a porta 
da prisão ou do manicômio entra em um mundo onde atua praticamente para o 
destruir, ainda que se tenha projetado ideologicamente para o salvar. De fato, os 
criminologistas reconhecem a realidade carcerária como a expressão mais direta e 
evidente da delinqüência natural do detento e os psiquiatras a realidade manicomial 
como a deterioração psíquica e moral produzida pela doença. Sobre esta lógica 
destrutiva se mantém a eficiência da organização institucional, porque é a instituição 
como organização a que não pode correr riscos. Mas os riscos que não corre a 
instituição se traduzem em realidades práticas negativas para os homens que ela 
contém, para os quais não existem necessidades, exigências, carências as quais se 
devem responder, dado que o fato de ser definido como enfermo mental ou como 
delinqüente priva dos mais elementares direitos, mesmo em instituições que 
continuem definindo-se ideologicamente como reabilitadoras ou terapêuticas. Mas 
isto não pode deixar de significar também que as chamadas instituições reabilitadoras 
têm na realidade, uma função bem explícita: procurar um “ponto” institucional 
controlando a quem não é controlável através de sua participação no processo 
produtivo ( e aqui se inclui, sem dúvida, todas as instituições consideradas positivas: 
escola, família, fábrica, universidade, lugar de trabalho). Aquele que por qualquer 
razão, está fora deste círculo deve encontrar um lugar onde assumir uma função 
específica sobre a qual a instituição correspondente exercerá o gradual processo 
destrutivo que lhe é próprio. A possibilidade de intercâmbio das instituições das 
prerrogativas e características daqueles que elas contém é uma clara demonstração do 
que dissemos. Trata-se de vasos comunicantes cuja “comunicação” se faz possível 
com uma mera troca de definições ou de etiquetas relativas a seu conteúdo. Assim, 
por exemplo, um jovem internado em um reformatório passará à prisão ou manicômio 
segundo que assento seja posto sobre sua inadaptação, sadia ou enferma. Será mais 
difícil para ele evitar um ou outro, já que foi marcado por sua permanência no 
reformatório. Este é tipo de organização institucional correspondente ao nível de 
desenvolvimento mais ou menos generalizado nos países europeus. Em um nível 
tecnológico-industrial mais avançado, como os EUA, o controle clássico da 
inadaptação através das instituições de segregação já não é suficiente. O sistema 
capitalista, além de produzir um aumento dos bens de consumo, bens que são 
propostos como sinais dos graus de bem estar social atingido pela população, produz 
também um aumento de contradições e com elas um aumento das inadaptações à 
norma. Seu controle já não se efetua unicamente através das instituições segregativas 
ou violentas (que ainda existem). Pode-se inclusive projetar a reestruturação formal 
destas instituições, mais modernas, menos explicitamente repressivas, mais tolerantes 
já que o controle se realiza essencialmente de uma forma ou de outra: mediante a 
extensão do conceito de inadaptação e de um novo tipo de diagnóstico de diferente, 
mais sutil e capilar (o diagnóstico precoce, a prevenção, os serviços assistenciais, a 
psicologização de conflitos que nada tem a ver com a Psicologia....). Este novo tipo 
de controle da inadaptação que recupera a maior parte dos conflitos sociais no lugar 
da Psicologia, da Medicina e da Assistência Social, sem ter necessidade de recorrer à 
internação, a não ser em casos extremos, é um novo modelo pronto para a exportação 
, que de fato já tem começado para os países desenvolvidos. Sua aplicação prática em 
regiões onde este tipo de controle ainda não é necessário para tutelar a ordem pública 
e o desenvolvimento industrial, leva à criação de problemas e necessidades artificiais 
para os quais o novo sistema tem uma resposta pronta. 6 Mas esta resposta se dá na 
medida em que são problemas e necessidades artificiais, produzidas por ele mesmo 
que, justamente por serem estranhos à realidade concreta onde começaram a se 
manifestar, servem para desviar a atenção dos problemas e necessidades reais. À 
distância entre necessidade real e necessidade artificial é a que serve como 
instrumento de dominação, já que a imposição de dominação e colonização, tal como 
demonstraram os missionários que levavam a fé e seus valores morais a terras novas 
e cuja ação não era senão a preparação do terreno para a chegada do exército 
conquistador. A exportação de ideologias e de organizações de controle como a 
Comunidade terapêutica ou os centros comunitários de saúde mental, a países 
subdesenvolvidos, como por exemplo os países sul-americanos, tem somente um 
significado: é o álibi para a perpetuação da violência que continua produzindo-se 
como resposta concreta. Ali onde existe uma tomada de consciência, por parte do 
povo, da necessidade de encontrar respostas diretas às suas necessidades, a estratégia 
imperialista se revela como é: volta-se à violência explícita, ao assassinato e ao 
massacre como sistema arcaico de colonização. A destruição do movimento da 
Unidade Popular do Chile é um claro exemplo. Se o povo intenciona apropriar-se de 
suas necessidades e dos instrumentos para responder às mesmas, o imperialismo pula 
e obviamente não está disposto a correr estes riscos. Nestecaso a violência legalizada 
representada pelas instituições já não serve: volta-se à violência como instituição, sem 
necessidade de acobertamentos ou mistificações científicas ou de qualquer outro tipo: 
mata-se, tortura-se e elimina-se a quem descobre o jogo e procura instrumentos 
apropriados para sair dele. Estes diversos tipos de violência (explícita, legitimada 
pelas ideologias científicas diluída e disfarçada sob a cobertura da organização 
assistencial) são as diferentes modalidades de controle em relação aos diferentes graus 
de desenvolvimento de um país. Mas são ao mesmo tempo, contemporâneas no 
sentido de que, nos momentos de crise, se elegem a modalidade de intervenção e 
repressão mais adequada para garantir o controle, e já não importa se passa-se 
explicitamente de um controle fundamentado sobre análise psicológica dos conflitos 
às matanças maciças. Quem tem o poder sempre encontra a maneira de legitimar a 
violência, simplesmente a impondo ou, quem sabe, juntando os diversos elementos 
de que dispõe até chegar a humanizar a tortura, garantindo ao torturado a assistência 
de um psicólogo ou de uma assistente social. O nível sócio-econômico dos países 
europeus está ainda ligado, em diversos graus, ao controle institucional como forma 
de repressão. Ultimamente estão sendo projetadas reformas que em alguns países já 
estão funcionando para novas instituições tolerantes, onde a doença, a inadaptação e 
a delinquência possam ser controladas sem haver necessidade de se recorrer a uma 
violência demasiado explícita. Mas na lógica do capital, construir novas prisões 
significa somente construir novos aprisionados, assim como construir novos hospitais 
significa fabricar novos doentes, já que a finalidade fica na organização das 
necessidades e não na resposta direta às mesmas. A organização das necessidades 
implica na criação de novas organizações que se inserem automaticamente no 
processo produtivo, oferecendo novas funções, novos lugares de trabalho, novos 
serviços, que põem em funcionamento o mesmo circuito produtivo típico de qualquer 
outra organização cuja única participação é a de sua própria sobrevivência, assim 
como a de manter ou aumentar os objetos que contém. Entre nós ninguém ousa 
sustentar, em palavras, que as instituições fechadas e violentas não sejam indignas de 
um país “civilizado” (ninguém ignora as condições inumanas em que vivem os 
internados). Mas as reformas das instituições levam somente a uma mudança formal 
que (ainda que não se possa negar que trará benefícios parciais necessários e positivos 
no referente à vida cotidiana dos internados) se limitará a ser uma nova racionalização 
técnico-organizativa, usada como novo sistema de controle dos mesmos objetos. 
Dentro da mesma lógica, transformação, racionalização e controle são as três etapas 
de um processo que se perpetua através da contínua transformação formal das coisas, 
sem que seja jamais tocada a estrutura. Porque a mudança sobrevem sempre como 
resposta técnica a uma demanda econômica (em cada nível de desenvolvimento se 
necessita uma forma de controle diferente) e é, portanto, uma vez mais, a lei 
econômica a que reclama a nova racionalização técnica que proporcione o controle 
da situação transformada. 7 A indignação emotiva contra a violência de nossas 
instituições repressivas deveria levar à exigência de uma transformação que resultasse 
adequada às necessidades que a enfermidade e a inadaptação expressam, mas até que 
nosso sistema econômico não encontre, frente ao seu progressivo desenvolvimento, 
um tipo de controle institucional diferente do violento e segregativo atual, as prisões, 
os manicômios e as torturas permanecerão intactas. O amigo Stanley Cohen sustenta, 
justamente, que desde que existem as prisões se fala de reforma carcerária. Prisão, 
manicômio e tortura somente poderão mudar se forem modificadas as estruturas de 
base, das quais estas instituições são os pilares. Isto se confirma pelo fato de que, a 
nível teórico, se fala sempre da necessidade de sua transformação, ao passo que, no 
plano prático, cada proposta é obstacularizada e reprimida violentamente. A resposta 
repressiva a cada proposta de transformação prática garante a manutenção do “status 
quo”, ao tempo que, esta resposta qualifica a própria transformação, o que continua 
demonstrando como esta não se limita a uma simples resposta técnica a um problema 
especializado. Atuar nas “instituições de violência”, repelindo a delegação de ser um 
simples controle de ordem pública (delegação implícita na nossa função de técnicos), 
significa descobrir praticamente a verdadeira lógica, dando a quem vive no seu 
interior, a possibilidade de uma tomada de consciência prática dos mecanismos nos 
quais estas instituições se fundamentam. É nesse sentido que o trabalho técnico nestas 
instituições de violência, se revela e atualiza como trabalho explicitamente político, 
unindo a especificidade particular de sua ação à estrutura social da qual a instituição 
faz parte, descobrindo praticamente suas conexões e implicações. Isto significa que a 
ação nestas instituições e a análise da violência das mesmas não se limitam à 
desmistificação das contradições entre custódia e tratamento, entre custódia e 
reabilitação (contradições sobre as quais se fundamentam os manicômios e as 
prisões), mas também que tendem sobretudo a esclarecer praticamente a finalidade 
perseguida e as modalidades eleitas por esta violência em relação à estrutura social, 
libertando-nos, assim do isolamento “especialístico” no qual cada constituição e cada 
técnico estão prisioneiros, conservando a visão e o terreno específico desta luta. Nosso 
sistema social se baseia em uma divisão artificial (isto é, historicamente produzida e 
determinada) que é imposta e assumida como divisão natural: a divisão em classes. A 
aceitação desta divisão como fenômeno natural (a existência do rico e do pobre como 
dado natural e irredutível) comporta uma série de regras e de instituições que com a 
aparente finalidade de resolver as contradições naturais, serve de fato para manter a 
originária divisão sobre a qual se ergue a estrutura econômico – social. Quanto mais 
antinatural é a regulamentação (e a estrutura da qual é garantia) tanto mais violenta e 
repressiva porque não responde às necessidades ( ou seja, à contradição natural) para 
as quais é, aparentemente, instituída e sim à manutenção do aparato que o 
regulamento tende a encobrir. O processo, porém, não é tão simples nem tão explícito, 
mas tendo presente o massacre e a tortura como extremos deste processo nos será fácil 
seguir sua direção e desenvolvimento. As articulações, através das quais nosso 
sistema social, em termos de desenvolvimento médio dos países europeus, consegue 
manter a divisão em classes necessária para a sua sobrevivência, são variadas ainda 
que se apresentem com um denominador comum: a tendência a isolar os fenômenos 
(como se não nascessem e não se apresentassem em uma rede de relações recíprocas) 
para estudá-los divididos, separados do tecido do qual são um dos elementos e poder, 
assim, fazê-los assumir um caráter absoluto, natural. Teorias científicas e instituições 
parecem ter explicitamente a finalidade de descobrir e isolar estes fenômenos sob a 
mistificação da resposta especializada; às instituições, confirmar, através de uma 
prática destrutiva, o caráter definitivo e irredutível. De fato, ambas tem a finalidade 
de descobrir e confirmar a diversidade natural dos fenômenos, através do mesmo 
processo proposto, a priori pela divisão em classes, matriz de toda nova divisão 
posterior. Limitando a análise somente ao âmbito das ideologias e das instituições 
destinadas o controle da inadaptação, cárceres e manicômios (obviamente o processo 
é análogo para qualquer outra instituição de nossa sociedade), o fenômeno negativo, 
ou seja, o comportamento anômalo no 8 sentido antisocialresponsável ou doente, é 
isolado de maneira que o indivíduo que o expressa seja somente este fenômeno, como 
se não tratasse de um momento, de um processo onde se implica o ambiente, a 
história, os valores, as relações e os processos sociais nos quais cada vida individual 
sempre se insere. O fenômeno negativo é, certamente, o momento relativo a um 
complexo de fatores biológicos e sociais, mas é, porém, isolado e proposto como 
absoluto e natural para justificar seu caráter imutável. O delinquente é somente e 
irredutivelmente delinquente, a prisão é o lugar que serve para a contenção da 
delinquência. O louco é somente e irredutivelmente louco, o manicômio é o lugar que 
serve para a contenção da loucura. Mas a delinquência e loucura são acontecimentos 
que formam parte da vida do homem, no sentido que são a expressão de que o homem 
é ou pode ser e ao mesmo tempo de que pode chegar a ser a través de seu mundo de 
relações. O delinquente e o louco (e aqui não vamos discutir os parâmetros nos quais 
são definidos, o que implicaria outro artigo), conservam também na delinquência e na 
loucura as outras faces de seu ser humano: sofrimento, impotência, opressão, 
vitalidade, necessidade de uma existência que não seja nem enferma nem delinquente. 
Porém, o delinquente se converte automaticamente em objeto de criminologia, ciência 
que estuda a criminalidade, e não o homem em sua totalidade; assim, o louco se 
converte automaticamente em objeto da psiquiatria, ciência que estuda os desvios 
psíquicos e não o homem em sua totalidade. As ideologias científicas servem, 
portanto, para fixar em termos absolutos esses elementos de sua competência, 
transformando-os em acidentes naturais contra os quais o homem pode tão pouco 
como a ciência. Se a doença e a delinquência são somente fenômenos naturais, e não 
também produtos históricos sociais, a contenção, a internação são as únicas respostas 
possíveis e a instituição repressiva, a segregação, as únicas alternativas, frente a um 
fenômeno à respeito do qual a sociedade deve exclusivamente garantir-se e proteger-
se. Ocorre o mesmo que frente à violência de certos fenômenos naturais: ninguém é 
responsável, ninguém está implicado. O indivíduo é considerado todo doente ou todo 
delinquente e se ao mesmo tempo esta totalidade negativa é construída artificialmente 
pela absolutização de um ou outro dos elementos em que o homem foi artificialmente 
dividido, será sobre esta totalidade negativa que se proporá e confirmará a exclusão 
social. Nos encontramos frente à uma parcialização do homem na qual se isolam as 
diversidades, se expressam e se confirmam as diferenças. Mas em nome do que? Pelos 
resultados não se pode, certamente, afirmar que este processo sirva para a reabilitação, 
para a recuperação do inadaptado e para o restabelecimento da saúde do doente. Se 
assim fosse, a maioria dos internados, sejam de nossas prisões, sejam de nossos 
manicômios, deveriam ser reabilitados e curados, e não é suficiente reconhecer ou 
admitir os limites da ciência nestes setores para explicar o fracasso geral das 
instituições destinadas à reabilitação e ao tratamento. O que é determinado neste 
processo é um elemento, para nós ou algum de nós demasiado óbvio, do qual os 
cientistas da psiquiatria e da criminologia não parece haver tomado nota. Trata-se da 
classe a que pertencem os “clientes” destas instituições, e não pode ser casualidade 
que em sua quase totalidade sejam proletários ou subproletários, assim como tão 
pouco pode ser casual que pertençam à mesma classe social todos os usuários de 
outras instituições de reabilitação assistenciais tais como os internatos, os orfanatos, 
os reformatórios, etc., ou os assistidos pelo “Bem Estar” nos países de maior 
desenvolvimento industrial. Com raras exceções de casos de burgueses endinheirados 
delinquentes que por outro lado sempre encontram um modo ou os instrumentos para 
evitar ou reduzir as penas imputadas. Pareceria que as formas de delinquência e de 
loucura irrecuperáveis fossem atributo de uma só classe. E, porém, ainda assim novas 
teorias tendem a dar interpretações de tipos sociológicos a estes fenômenos, a ciência 
continua afirmando na prática que loucura e delinquência são acidentes naturais. Mas 
estes acidentes formam parte da natureza do proletário e do subproletário? Ou quem 
sabe é somente a loucura e a delinquência dos pertencentes à esta classe que é 
considerada natural e irredutível através do processo de absolutização da diferença? 
Se a doença e a delinquência são acontecimentos ou contradições naturais, a quase 
total ausência nas instituições da doença e da delinquência dos que pertencem à classe 
dominante, 9 testemunha que em outra parte, fora das instituições existe um conceito 
de recuperabilidade diferente e, obviamente, um diferente conceito de 
irrecuperabilidade, segundo o qual, doença e delinquência perdem o caráter natural e 
irreversível que apresentam nas prisões e manicômios. A recuperabilidade está 
subordinada aos instrumentos de que dispomos e a vontade de recuperação. A 
burguesia dispõe para si destes instrumentos e desta vontade. Pelo que se refere à 
doença, psicoterapia e psicanálise são os ramos da ciência que se põe à disposição do 
enfermo rico para a busca das motivações inconscientes de seu comportamento 
anormal. Tal comportamento não se aceita simplesmente como natural e irreversível. 
Em alguns casos pode também se revelar como tal; mas se aprofunda sua história, sua 
evolução, se aprofundam os momentos do processo, se propõe todo o possível. Mas a 
análise do inconsciente e as elaborações que se obtém sobre os seus complexos e seus 
conflitos, movem-se dentro de uma cultura e de um conjunto de valores dos quais o 
proletário e o subproletário não tem ao menos familiaridade. Ademais, é necessário 
possuir uma linguagem cifrada para eles desconhecida. Entre nós, a pequena 
burguesia e o proletário pequeno-burguês, que tendem aos valores da burguesia, 
começam agora a fazer-se possuidores desta cultura, mas a mesma imposição ou 
incorporação, estranha as suas necessidades, não podem mais que operar como um 
ulterior elemento de dominação e não como um instrumento de libertação. O fato de 
que um subproletário internado em um manicômio possa ou não apresentar um 
Complexo de Édipo não resolvido lhe parece ridículo, inclusive profano. Mas que 
outras investigações sobre as motivações do comportamento anormal se realizam com 
os enfermos que povoam nossos manicômios? Por que os sintomas dos burgueses 
devem ter justificações e explicações? Por que se investigam e se esclarecem ao 
paciente as motivações inconscientes, enquanto que para os internados nos 
manicômios, proletários e subproletários, a enfermidade continua sendo um 
fenômeno natural e irredutível e o enfermo é automaticamente identificado com os 
seus sintomas? Como podemos conhecer as motivações profundas, se toda a 
psiquiatria manicomial se fundamenta na des-historização do indivíduo? No que se 
refere à delinquência é válido o mesmo discurso. Um delinquente burguês abastado 
não tem problemas de reinserção e recuperação. O delito é aceito como um produto 
histórico social e não como um dado natural. Há uma justificação à sua situação 
delituosa. Trata-se de um acontecimento que não é suficiente para determinar a 
evolução da história futura do delinquente, tão pouco a história precedente é lida toda 
à luz do delito que, em determinado momento, ele cometeu. Na vida, no ambiente 
destas pessoas, há um espaço para a recuperação, e é o espaço que sua própria classe 
lhes reconhece e reserva. O problema da recuperação não existe porque, neste caso, o 
delinquente tem uma história que esclarece, ante os olhos de seus iguais, o delito, e 
dispõe de instrumentos econômicos e culturais para não ter a necessidade de repetir o 
ato delituoso. E isto por não falar dos delitos de grande magnitude, das corrupçõescometidas pelas classes políticas no poder para os quais existem sentenças, anistias, 
imunidades que deixam intacta a honorabilidade dos autores. Neste caso ressurge o 
conceito da naturalidade da corrupção, mas se trata de uma naturalidade implícita no 
jogo político (a política é sempre algo “sujo” e é difícil ficar com as mãos limpas 
quando se está no jogo) que serve para deixar imunes àqueles que cometem o delito 
e obtém benefícios com o mesmo. A corrupção e o delito individual se propõe nestes 
casos como fatos históricos sociais justificados pelo grande número de contingências 
sociais que condicionam o indivíduo e às quais não podem subtrair-se. Se dá, assim, 
exatamente aquilo que não sucede para a classe reprimida que atua delituosamente. O 
delinquente que pertence a esta classe não tem história, ou melhor, sua história é 
somente a história de seus delitos: os antecedentes penais. É delinquente por natureza 
assim como o desocupado é vagabundo e ocioso por natureza. Não há causas: 
motivações psicológicas, sociais, econômicas que justifiquem seus atos e sim a 
própria delinquência que se converte, assim, em delinquência biológica, intrínseca, 
de estirpe. Cada tentativa de historiar o delinquente proletário ou subproletário 
fracassa porque a sua seria uma história de violência, de privações e de abusos das 
quais não deve ficar rastros. O mesmo Lombroso, ao qual ainda se outorga o mérito 
de historiar o delinquente reconhecendo as implicações sociais de seu comportamento 
anômalo extrai conclusões práticas à total des-historização desde o 10 momento em 
que sanciona de um novo modo a diferença originária natural e, portanto, a 
consequente necessidade de marginalizar. Quem pergunta sobre o porque da 
delinqüência? A viúva de um trabalhador assassinado pela polícia há 20 anos, durante 
a ocupação de um latifúndio sem cultivo em Paglia fez em uma recente transmissão 
televisiva italiana estas declarações: “se a gente tivesse trabalho não teria necessidade 
de ocupar as terras para viver”. É elementar. E, todavia, se castiga e se assassina a 
quem ocupa terra que ninguém cultiva, sem considerar que não é produto de um 
capricho ou da delinquência inata o fato de que obreiros sem trabalho decidam ocupar 
terras sem cultivar. Para estes delinquentes e para estes loucos nosso sistema social 
não pode organizar a recuperação: quando se projetam transformações e reformas 
dentro da mesma lógica o resultado é idêntico. Fala-se do nascimento de uma nova 
delinqüência da qual não se indagam as causas e implicações sociais a respeito da 
queda de valores, das esperanças sempre frustradas, das promessas jamais mantidas 
do descontentamento por uma vida que se faz cada vez mais crítica e impossível, cada 
vez mais difícil. Se não se leva em conta esta premissa fundamental, nos limitamos 
uma vez mais a formular novos catálogos, novas divisões, entre delitos mais ou menos 
graves, chegando a criar novas instituições e novos regulamentos idênticos aos 
anteriores. Do mesmo modo, frente ao surgimento de novas formas de inadaptação e 
comportamentos anormais que podem ser sintomas de recusa à uma vida inviável, 
encontram-se novas codificações, novos termos técnicos com os quais catalogar, 
atualizados, talvez, por alguma vaga referência a um hipotético “elemento social” que 
garantisse enfrentar as problemáticas em termos modernos atuais. Entretanto, cárceres 
e manicômios continuam conservando sua natureza marginalizante de classe. Neste 
contexto social o problema da delinqüência ou da enfermidade não pode ser nem 
sequer tocado. Não se sabe o que é, ou melhor, sabe-se que é a priori e se aplica a 
definição mais conveniente para pedir a intervenção repressiva frente a fenômenos 
dos quais se observa e enfoca somente um aspecto: aquele que representa uma 
alteração social. Mas enfermidade e inadaptação existem não só para a sociedade que 
se defende delas, senão também para os sujeitos que as vivem e querem defender-se. 
Que coisas sabemos de seus sofrimentos se os parâmetros dos conhecimentos, 
tratamento e reabilitação são os que temos inventado, nós técnicos burgueses, em 
resposta às nossas necessidades e para cuidar de nossa sobrevivência? Nossas 
respostas técnicas são sempre respostas das necessidades de nossa classe e, portanto, 
se traduzem em marginalização da outra classe. As “instituições de violência” não são 
mais que uma de nossas respostas, nascidas exclusivamente em função de nossa 
proteção. Doença e inadaptação não são senão ocasiões para por em prática a 
marginalização, segundo o molde da ciência que as converte em “fenômenos naturais” 
e oferece, assim, justificação técnica a um ato de destruição social. Se deseja encarar 
de verdade o problema da marginalização e da inadaptação, deve-se estudá-las em 
relação à estrutura social, à divisão antinatural sobre o qual tal estrutura se apoia e 
não como fenômenos isolados, simples anomalias individuais das quais certa 
porcentagem da população tem a desgraça de ser sujeito. Voltemos à análise das 
instituições que, em princípio, deveriam responder a estes problemas. Trata-se de 
instituições que partem de um pressuposto formal expressamente programado: o 
tratamento, a reeducação e a reabilitação tendo em vista a recuperação do internado. 
Se a finalidade destas instituições não fosse somente formal, senão praticamente 
realizada, estaria já resolvido o problema. Mas uma coisa é a função formal e outra, a 
prática real. E a verdade está na prática que nos demonstra como os internados de 
nossos manicômios e de nossos cárceres saem poucas vezes reabilitados: a finalidade 
efetiva destas instituições continua sendo a destruição dos que contém. Países com 
uma enorme porcentagem de desocupados e semi -desocupados, que interesse pode 
ter em recuperar e reabilitar este lixo humano? Nesta perspectiva, a intervenção do 
técnico pode ser determinante ao esclarecer a contradição entre prática e ideologia, 
assim como, a finalidade neste contexto social, desta prática ideológica. Neste 
sentido, e para certos técnicos do tratamento e reabilitação, trabalhar nestas 
instituições significa tornar explícita a função discriminante de classe, isto é, repelir 
a delegação implícita em nossa técnica demonstrando qual é a real utilização prática 
de nossa intervenção 11 especializada: quais são seus limites e qual a natureza dos 
mesmos, quais são os mecanismos, sempre novos, diferentes e ao mesmo tempo 
idênticos, que servem para esta utilização. Ao se falar de reabilitação e de 
recuperação, a proposição não pode ser nem técnica nem organizativa: é sempre uma 
proposição política que se relaciona com a premissa referente à primeira divisão 
antinatural sobre a qual se fundamenta nosso sistema social. Que se pretende fazer 
dos homens, e não nos esqueçamos que se trata sempre de proletários e subproletários, 
reabilitados? Há lugar para eles em nossa sociedade? Isto é, uma vez reabilitados, 
encontram um trabalho com o qual satisfaz suas necessidades e de sua família? Por 
acaso não é certo que os regulamentos sobre os quais se organizam as instituições de 
marginalização estão estruturados de modo que a reabilitação não seja possível já que, 
em definitivo estes indivíduos, uma vez reabilitados, ficariam à margem, expostos 
continuamente ao perigo de cair novamente em novas infrações de uma norma que 
para eles nunca teve função protetora, e sim repressiva? Sua possibilidade de 
reabilitação é diretamente proporcional à disponibilidade, ou não, de mão-de-obra, ao 
trabalho que encontram fora, na comunidade chamada livre, disponibilidade que 
segue as fases de restrição ou de expansão econômica. As oscilações do número de 
internados e de “altas” em nossos manicômios está diretamente ligada às fases do 
desenvolvimento econômico geral, no sentido que segundo os diversos momentos de 
desenvolvimento ou recessão e crise, se assiste a uma paralela extensãoou restrição 
dos limites da norma e, em consequência, a um aumento ou diminuição da tolerância 
relativa aos comportamentos anormais (fenômeno que, presumivelmente, é igual no 
que se refere ao funcionamento dos aprisionamentos). Mais além deste fato 
determinante, o estreitamento ligado a ele, existe outro fenômeno que nunca se leva 
em conta: trata-se do sentido de pertencer à sociedade, totalmente ausente tanto nos 
internados de manicômios como nos de cárceres. E é óbvio. Se manicômios e prisões 
são organizações instituídas para responder às necessidades da sociedade “livre”, os 
internados não podem se reconhecer nesta sociedade que os castiga, segrega, destrói 
sem lhes oferecer uma alternativa possível. Não podem aceitar a identificação com 
regras que jamais respondem as suas necessidades. Não podem viver a internação 
como experiência que lhes ajude em seu processo de reabilitação: o tratamento é 
eficaz se o doente acredita nele, assim como a sentença somente tem sentido se aquele 
que cometeu o ato delituoso reconhecer haver se equivocado dentro de uma sociedade 
na qual tem confiança, porque se sente membro participante e porque acredita nas leis 
a cujo estabelecimento contribui. Mas estes homens, que tem às costas a história de 
uma marginalização que se perpetua em cada momento como marginalização de 
classe, não podem se sentir membros participantes desta sociedade, nem das leis e 
normas que ela estabelece porque nenhum deles contribui para criá-las e porque 
nenhuma lei de nosso sistema social, que não obstante se declara igual para todos, 
responde na prática às suas necessidades e a seus direitos. E somente através da luta, 
esta classe chega a impor à classe dominante, as próprias necessidades e os próprios 
direitos: mas nem todos chegam a encaminhar a luta em sentido positivo, organizado, 
pois em ocasiões se reage com atos esporádicos, isolados, delinquentes ou com 
comportamentos anormais que são automaticamente castigados. Isto não significa que 
não exista o problema da doença mental e da delinquência, ou seja, que não exista o 
diferente como fenômeno humano e que a transformação de base social seja suficiente 
para suprimi-lo. O problema está justamente na incorporação deste conceito, isto é, 
na necessidade de fazer desaparecer o diferente como se a vida não o contivesse, ou 
eliminar, assim, tudo aquilo que possa pôr em dúvida a falsa coerência desta face lisa 
e polida, na qual tudo andaria bem se não fossem as “ovelhas negras”. A realidade é 
que, enquanto o diferente da classe dominante é aceito e vivido como tal, ou seja, 
como um fenômeno humano que tem necessidade de respostas particulares 
(“diferentes”), o diferente da classe oprimida não é nunca aceito como tal e as 
respostas que lhe são dadas servem somente para eliminá-lo. Em uma sociedade 
dividida em classes, a doença e a delinquência da classe dependente (aqueles que 
encontramos e conhecemos nas “instituições de violência”) se convertem em outra 
coisa diferente do que são e a única resposta, não pode ser , senão a repressão, sob 
mistificações mais ou menos claras, já que o que determina a natureza da resposta não 
é a natureza da 12 necessidade e sim a que pertence quem a expressa. Se um sistema 
social está fundamentado sobre a manutenção de uma lógica econômica que não 
satisfaz às necessidades de todos, se o homem abstrato, em nome do qual invoca e se 
reclama as transformações e as reformas, não corresponde a todos os homens, então 
o ineficaz, o diminuído e débil, que é também o débil moral, ou seja, “o diferente” (é 
inútil que se trata sempre do “diferente” da classe dependente), será eliminado, 
destruído, portanto para ele a recuperação e reabilitação é impossível. Delimitou-se 
somente o processo através do qual se propõe cientificamente a “criminalidade” da 
doença e da inadaptação e aqueles outros através dos quais a necessidade por elas 
expressada se traduz em “crime” a castigar, para assim justificar a “criminalidade” da 
punição. A expressão própria do desacordo político parece destinada, em todas as 
partes, a sofrer este processo de “criminalização” e neste caso o jogo é, 
comparativamente, ainda mais explícito porque a ciência não tem encontrado, ainda, 
uma patologia suficientemente elaborada e confiável com a qual codificar estes 
comportamentos ( a resposta, neste caso, é mais direta e não tem necessidade de 
medicações: pode ser o assassinato ou a tortura). Esta análise nos permite 
compreender como todas as instituições do nosso sistema social tem a função de 
responder às necessidades das pessoas uma vez que tenham sido “criminalizadas”, 
reduzidas ao que não são ou aquilo do que é expressão ou sintoma. A “criminalização” 
da necessidade é, na realidade, uma construção artificial: enfrenta-se duas formas de 
violência e de criminalidade, uma em resposta à outra, sem que se saiba qual é a 
necessidade real. A inadaptação e o comportamento anormal são “crimes” porque 
poderiam ser perigosos: a instituição destinada ao tratamento e à reabilitação da 
inadaptação e do comportamento anormal é “crime” em nome da prevenção deste 
perigo. Não existem necessidades e nem respostas às necessidades. Nesta situação é 
difícil, e até impossível, reconhecer o que são fenômenos tais como inadaptação e 
doença. É também difícil chegar a dar uma interpretação real dos fenômenos sociais. 
Na Itália, por exemplo, se vive há anos em um clima de ameaça de violência. No 
momento que escreve (Março, 1974), a ameaça de uma virada é sentida como real e 
a violência explícita como iminente, mas não se sabe ainda se o clima paranóide em 
que vivemos é real ou criado artificialmente como novo sistema de controle no qual 
cada cidadão desconfia do outro, e consequentemente, é sujeito e objeto de um 
controle que as instituições, violentas, já não conseguem garantir. Os desequilíbrios e 
as contradições sociais são, na Itália, mais fortes que em outros países europeus 
regidos por democracias burguesas (excluídos, obviamente, os países declaradamente 
fascistas), assim como é forte a oposição. Na Itália, por causa da profundidade dos 
desequilíbrios, e ao mesmo tempo a consciência destes desequilíbrios, a tendência à 
constituição de uma classe média única identificada com os valores propostos por um 
centro reduzidíssimo de poder que a controla, acha dificuldade e resistência, ainda 
que certamente, a extensão da área dos estratos médios sobre os quais se tem amplo 
jogo este processo de identificação com valores dominantes significa um prenúncio. 
Existe uma classe operária ainda numericamente forte para garantir o controle de 
manobras de tipo golpista. Mas a atmosfera paranóide (real ou artificialmente criada) 
tende, não obstante, a debilitar as formas de oposição que vive em um estado contínuo 
de ameaça de violência. Os processos mediante os quais se produz esta debilitação 
passam também através das articulações que foram examinadas aqui, ou seja: as 
instituições e ideologias sobre cujas funções e significados não há uma clara tomada 
de consciência. A incorporação das ideologias e dos valores que nosso sistema social 
continua criando como falsas respostas às necessidades, não é sempre reconhecido 
como elemento de identificação com o agressor e, portanto, como aceitação passiva 
de dominação. Se a classe oprimida não toma consciência de todos os processos 
através dos quais atua a dominação (dominação que vai mais além da exploração, da 
nocividade do local de trabalho e de todos os temas reivindicativos de tipo salarial) 
poderia se encontrar facilmente em um manicômio universal no qual nós estaremos 
identificados como sintoma que nos definiu e que reconheceremos como real. Trata-
se, obviamente, de um discurso simbólico em que adesão ao sintoma é correspondente 
à adesão aos valores que não próprios, e que apesar deles, se assume como respostas 
às próprias necessidades. 13 Estamos numa encruzilhadamuito perigosa. A ameaça 
de violência como forma de controle, pode ser traduzida facilmente, também na Itália, 
em uma violência explícita, se a classe dirigente, e as potências que estão às suas 
costas, se derem conta que as instituições tradicionais não bastam mais e que as novas 
ideologias de controle, que começam a ser importantes em países em 
desenvolvimento industrial mais avançado, requerem tempo para serem aplicadas, 
para se arraigarem e para adquirirem o crédito científico necessário como reforço da 
dominação. É neste momento que a vigilância e a força da classe que se opõe a este 
jogo podem ser determinantes no que se refere a preveni-lo a desmascará-lo, porque 
a alternativa entre a ameaça de violência em que se vive e a violência sem máscaras 
é o massacre, a tortura, na qual as ideologias podem servir, somente para garantir a 
assistência ao torturado. Já está bastante extenso o sentimento do nascimento desta 
nova utilização da ciência e da técnica. O general Massu em seu livro “La Vraie 
battaille D Alger” faz saber que, se as circunstâncias o exigem, pode se exercitar uma 
tortura sã, confiando este dever à pessoal qualificado e especialmente preparado na 
técnica necessária para o bom resultado dos interrogatórios. Entre nós, médicos 
“experimentalistas” introduzem um cateter na uretra ou anus (coisa que não tem 
nenhum significado terapêutico ou diagnóstico) de crianças que sofrem de enurese 
noturna, com a única justificativa de que as crianças são assistidas por psicólogos que 
as preparam para suportar o experimento inútil. Em um diário brasileiro clandestino, 
comunica-se que um psicanalista, na espera de ser reconhecido como membro da 
sociedade de psicanálise, está designado à assistência psicológica ao torturador. No 
Uruguai aos terapeutas que são suspeitos, é privado o segredo profissional, que sob 
ameaça de tortura são obrigados a dizer o que sabem do paciente. Só a ciência e suas 
instruções não bastam para responder ou controlar as necessidades, é a tortura a que 
se propõe, então, explicitamente como uma instituição, com seus técnicos, seus 
profissionais, suas regras “humanas”, seu código e sua moral, abrindo novos campos 
de aceitação para os técnicos das ciências humanas. Frente a esta realidade, qual é a 
tarefa do psiquiatra, do psicólogo, do criminólogo que atuam no âmbito institucional? 
Criar uma alternativa para a intervenção técnica deveria significar chegar a traduzir 
nossa ação na prestação de um serviço que sirva, justamente enquanto tal, ao assistido 
e ao mesmo tempo a sua tomada de consciência da utilização, contra ele mesmo, que 
geralmente se dá a este serviço. Significa, portanto, tomar consciência de que cada 
intervenção técnica tem em si mesma uma efetiva finalidade política: a de ser um dos 
instrumentos dos quais se serve a classe dominante para perpetuar sua dominação. 
Mas além dos privilégios que gozamos enquanto técnicos burgueses sujeitos da 
dominação implícita em nosso “rol” de poder, podemos ainda tentar ser agentes de 
transformação mediante a localização das necessidades, na prática real, e o 
desmascaramento dos processos que convertem as ditas necessidades (também nos 
olhos de quem as expressa) em algo distinto daquilo que são.

Continue navegando