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“O HOMEM DO PELOURINHO” Franco Basaglia (1924-1980) A primeira vez que entrei numa prisão, eu era estudante de medicina e entrei como preso político. Era a hora em que esvaziavam os pinicos das celas e minha primeira impressão foi a de entrar numa enorme sala de anatomia onde a vida tinha o aspecto e o odor da morte. A prisão me parecia uma estrumeira impregnada de um fedor infernal onde alguns homens com latas sobre os ombros desfilavam em direção aos cagotes, para verter seu conteúdo. O pessoal que cumpria a tarefa compunha-se de detentos privilegiados que podiam sair das celas, o que punha em evidência como nas prisões existia uma estratificação social sobre a qual se fundamentava um tipo de vida completamente autônoma: a vida da segregação.1 O homem e a prisão eram, em realidade, o encarcereiro e o encarcerado, o um e o outro haviam perdido toda a qualidade humana, adquirindo a marca da instituição. Depois de alguns anos entrei em outra instituição fechada: o manicômio. Esta vez não como internado e sim como diretor. Estava no grupo dos carcereiros, porém a realidade que vi não era diferente: também aqui o homem havia perdido toda a sua dignidade humana, também o manicômio era uma enorme estrumeira: aquele que ocupava o lugar de doente e de internado deve expiar uma culpa da qual não conhece as características nem a sentença, nem a duração de sua expiação. Há médicos, aventais brancos, enfermeiros e enfermeiras, como se tratasse de um hospital, mas na realidade, se trata somente de um lugar de custódia, onde a ideologia médica é um álibi para a legalização de uma violência, que nenhuma organização está destinada a controlar, já que a delegação feita ao psiquiatra é total no sentido de que a técnica encarna concretamente a ciência, a moral e os valores do grupo social do qual ele é, na instituição o delegado representante. Porém, se afirma que no último século, se tem dado passos gigantescos para a conquista, por parte do homem, da própria liberdade e do próprio destino. Em cada uma de suas áreas, a ciência declara estar buscando instrumentos constantemente novos para a libertação do homem de suas próprias contradições e das da natureza. Mas ao se analisar, e, sobretudo, ao se atuar no interior e uma das instituições criadas por nossa “ciência” e por nossa “civilização” percebemos quão pouco se tem feito e como cada instrumento tecnicamente inovador tem servido na realidade só para dar um novo aspecto formal, uma “fachada”, a condições que continuam as mesmas no que se refere à sua natureza e significado. No aspecto específico da reclusão, e neste termo podemos incluir tanto a manicomial como a carcerária, desde o tempo da barca dos loucos (que navegava a deriva pelos mares com sua carga monstruosa e indesejável) a ciência e a civilização não parecem que tenham conseguido outra coisa além de uma ancoragem mais potente para esta ilha de exclusão e de reclusão, na qual a inadaptação doente e inadaptação sadia (“ culpável e responsável” ou seja “delinquência”) encontram seu lugar. Para o homem moralmente desviado: a prisão; para o homem doente do espírito: o manicômio. Esta é a grande conquista da ciência. Durante séculos, loucos, delinquentes, prostitutas, alcoólatras, ladrões e extravagantes compartiram o mesmo lugar, um lugar no qual a diversidade da natureza de sua “monstruosidade” era ocultada e nivelada por um elemento comum a todos: o desvio da norma e de suas regras, junto com a necessidade de isolar o anormal do comércio social. Os muros da prisão circunscreviam, continham e ocultavam o endemoniado, o louco, como expressão do mal involuntário e irresponsável, junto ao 1 As palavras e trechos do texto escritos em negrito não se apresentavam assim no texto original, foram grifados em particular nessa reprodução com fins didáticos. 2 delinquente, expressão do mal intencional, voluntário. Alienação e delinquência representavam, assim, conjuntamente, a parte do homem que devia ser eliminada, circunscrita e ocultada até que a ciência não decretasse a clara separação entre ambas, através da individualização de suas características específicas. Segundo o racionalismo iluminista2 , a prisão deveria ser a instituição punitiva para os que transgridem a norma encarnada na lei (a lei que tutela a propriedade, que define os comportamentos públicos corretos, as hierarquias da autoridade, a estratificação do poder, a amplitude e a profundidade da exploração). Os alienados, os doentes do espírito, aqueles que se apropriavam de um bem comumente atribuído à razão dominante (o extravagante que vivia segundo normas criadas por sua razão ou por sua loucura), começaram a ser classificados como doentes para os quais seria conveniente uma instituição que definisse claramente os limites entre razão e loucura e na qual poderia aprisionar sob uma nova etiqueta, servindo-se do critério de “doença perigosa” ou “escândalo público”, aqueles que transgrediam a ordem pública. Prisão e manicômio, uma vez separados, continuaram conservando idêntica função de tutela e defesa da “norma”, ali onde o anormal (enfermidade ou delinquência) se convertia em norma ao ser circunscrito e definido pelos muros que estabeleciam sua diferença e sua distância. A ciência tem separado, então, a delinquência da loucura, reconhecendo, por um lado, na loucura, uma nova dignidade: a de ser uma abstração, ou seja, a de sua definição em termos de enfermidade, por outro lado, reconhecendo na delinquência um momento humano ao convertê-la em objeto de investigação de criminologistas e cientistas que chegam a individualizar fatores genéricos biológicos como originários do comportamento anormal, até a descoberta do cromossoma Y. Mas, apesar da separação ideológica das duas identidades abstratas (delinquência e enfermidade),cada uma com sua própria instituição específica, praticamente permanece inalterada a estreita relação entre ambas com a ordem publica, ambas instituições mantém inalterada sua função de tutela e defesa desta ordem. Por outro lado, apesar do abstrato reconhecimento desta nova dignidade, nem o delinquente - que deve expiar a ofensa que fez à sociedade-, nem o louco - que deve pagar por seu comportamento incorreto e inadequado-, têm a dignidade de homens, e as instituições para eles criadas (para sua reeducação e redenção, por um lado, para seu tratamento e reabilitação, por outro) não têm modificado em nada sua função e natureza, continuando em sua evolução separada, uma via paralela. Reformadores do código, por um lado, frenólogos e especialistas, por outro, tem estabelecido uma ou outra vez novos regulamentos, classificações, teorias, subdivisões que, porém, nada mudaram da relação entre sociedade “civil” e os elementos que dela foram excluídos. Mas, além disso, nada tem mudado na natureza da exclusão fundamentada na violação, na mortificação, na total destruição do homem institucionalizado, demonstrando assim, que a finalidade implícita dos estabelecimentos de reeducação e de tratamento é a supressão dos que deveriam ser reeducados e curados. A análise da diferente situação institucional da inadaptação em relação aos diversos graus de desenvolvimento tecnológico, pode nos aclarar a imutabilidade da função implícita desta organização: o controle e a eliminação, mediante instrumentos mais ou menos grosseiros, mais ou menos sutis, do objeto nela contido. Nos países onde a situação sócio-econômica, dado seu grau de desenvolvimento, não exige uma eficiente organização por não ser necessária, a delinquência e a loucura ocupam ainda o mesmo espaço: prisões onde não existe separação das duas diferentes entidades. Isto é, que um contexto no qual os limites da norma não estão bem definidos, o conjunto dos diversos indivíduos que estão fora da norma se organiza espontaneamente em grupos separados que se formam para defesa desta, para sua própriasobrevivência. A ciência não tem sido chamada para dar justificações teóricas de uma discriminação que ainda não se faz necessária. 2 Recebe esta denominação o movimento cultural e filosófico ocorrido na Europa, no período que vai da revolução inglesa (1688) à revolução francesa (1789). O século XVIII é, devido a esta diretriz de pensamento, igualmente chamado Século das Luzes. Podemos compreender isto que “ilumina” a época em questão como a crença no desenvolvimento sem limites da razão; esta pode ser encarada como a principal característica deste movimento, desde a qual as demais considerações se fundamentam. 3 A ciência, então, não tem sido chamada, ainda, a levar sua obra colonizadora para a separação do anormal, não se conhece ainda a utilização desta divisão, que servirá para um estado superior de desenvolvimento. A violência ou ameaça de violência é um instrumento ainda suficiente para garantir a ordem pública. No caso de existir, essa divisão, fundamentada pelo princípio científico, produz um tipo de organização institucional, uma superestrutura de importação, implícita na lógica imperialista, que não responde minimamente à realidade local. É deste ponto de vista que o horror da tortura nos países sul-americanos, por exemplo, adquire uma forma organizada, convertendo-se em uma instituição. Representa, assim, a superestrutura, a organização institucional correspondente ao nível estrutural desses países. A tortura como instituição é o único instrumento que seus políticos, ou seja, os militares sabem usar para o controle de situações que não podem ser controladas, a não ser através de um contínuo estado de ameaça de violência. Para um povo que não tem esperança de mudar sua condição de vida, ou que não traduz em uma luta concreta de esperança, a ameaça de detenção na prisão ou no manicômio, como sanção aos comportamentos desviados, é inefectiva, pois para quem não come ou não tem uma casa para dormir, a internação pode ser também uma solução para a própria sobrevivência. A tortura é então o único meio de eliminação, a única ameaça de real destruição e, portanto, é o verdadeiro controle social correspondente a um nível de desenvolvimento ainda arcaico. Estrutura econômica e organização social coincidem sempre, e não é casual que os manicômios se tenham estruturado no sentido técnico- institucional com o começo da revolução industrial3 . Assim, em semelhança com as demais formas de assistência pública, os manicômios mostram sua mais ampla configuração institucionalizada no momento em que se faz necessário separar o produtivo do improdutivo. Com o nascimento da era industrial a relação já não se estabelece entre o homem e a sociedade humana e sim entre o homem e a produção, o que cria um novo uso discriminante de cada elemento (anormalidade, enfermidade, inadaptação, etc), em relação a sua possibilidade de obstacularizar o ritmo produtivo. Em nosso nível de desenvolvimento tecnológico, esta função de organização institucional já não é explícita: está mascarada e ao mesmo tempo legitimada pelas diversas ideologias científicas. No caso do manicômio, mediante a ideologia médica que encontra na definição da irrecuperabilidade da enfermidade a justificação da natureza violenta e segregante da instituição, no caso da prisão, mediante a ideologia do castigo. O prisioneiro paga por uma falta cometida em detrimento da sociedade, o enfermo paga por uma falta não cometida e o preço é tão desproporcional à “falta” que chega a fazê-lo viver uma dupla forma de alienação derivada de tal incompreensão e incompreensibilidade da situação que se vê obrigado a viver. A ideologia do castigo sobre a qual se fundamenta a prisão e a ideologia médica, ou melhor dito, a ideologia da irrecuperabilidade da enfermidade sobre a qual se fundamenta um manicômio é de fato totalmente estranha ao problema da delinquência e da enfermidade. Sua função é ser uma simples contenção dos desvios e, portanto, um controle dos mesmos. A ideologia cobre a repressão simplesmente justificando-a e legitimando-a, mas a violência legitimada continua sendo violência. Se a finalidade reabilitadora de ambas instituições fosse real, haveria detentos e internados reabilitados e felizmente reincorporados ao contexto social. Isto ocorre muito raramente, dado que o ingresso em uma ou outra destas instituições marca, em geral, o começo de uma carreira cuja evolução e conseqüências bem conhecemos. A afinidade formal entre estas duas instituições parece, então, realizar-se somente no plano negativo. Mesmo que as novas interpretações tendam a justificar ou explicar em termos de dinâmica psicossocial tanto a falta como a enfermidade, a realidade das instituições nas quais ambas são relegadas continua baseando-se no conceito de culpa a expiar, a pagar por meio do castigo, inclusive no caso da enfermidade. 3 A Revolução Industrial consistiu em um conjunto de mudanças tecnológicas com profundo impacto no processo produtivo em nível econômico e social. Iniciada no Reino Unido em meados do século XVIII, expandiu-se pelo mundo a partir do século XIX. 4 Os loucos que Pinel4 havia separado dos delinquentes acorrentados, continuam ainda acorrentados real ou simbolicamente, uns e outros, em instituições separadas, mas baseados nos mesmos princípios destrutivos, princípios que são, por sua vez, definidos e encerrados nos mesmos juízos de valor que, no entanto, estabeleceram sua clara natureza. Os loucos obtiveram do racionalismo iluminista a dignidade de enfermos e os delinquentes passaram do âmbito da culpa moral a uma abstrata justificação endógena. Ambos acorrentados, mas recuperados no campo da investigação positivista. Ou seja, que para ambos, a realidade e a violência são as mesmas. O fato de que se use ou se organize de modo sofisticado a tortura, o fato de que as correntes sejam reais como em nossas instituições, ou simbólicas como nas instituições de países mais desenvolvidos, não traz nenhuma diferença real porque a finalidade continua sendo a proteção e o cuidado do grupo dominante, mediante a descrição dos elementos que impedem a ordem social. A lógica da subordinação e da repressão deve, portanto, criar pessoas total e acriticamente submetidas e identificadas ao mesmo tempo, às leis que violaram ou que podem violar. Mas a clara separação e o isolamento em lugares de segregação das contradições humanas, tais como a doença e a delinquência, implica ao mesmo tempo a focalização destes fenômenos. O efeito paradoxal destes “estigmas” é que se exige uma vida exemplar perfeita precisamente daquelas que já demonstraram a tendência a um comportamento anormal, e isto porque, quem está estigmatizado é reconhecível, diferente, é localizado de imediato, habitualmente é mais fraco, está mais exposto, sua situação é precária, não tem força social e econômica para se opor à cruel campanha que exige exclusivamente dele a perfeição da conduta e comportamento. A contradição que encarnam o recluso e o doente mental é uma contradição que não pode manter-se aberta porque a doença e o crime (delito) são “desculpas” perfeitas para eliminar a todos aqueles elementos que impedem o normal funcionamento e desenvolvimento de nossa sociedade, baseada na produção capitalista e cuja única lei deve ser respeitada. A doença ou a delinquência é uma contradição do homem, mas é também um produto histórico social e, apesar disso, continua fazendo sofrer as consequências, sob acobertamentos científicos variados, àqueles que são inocentes, como se tratasse sempre de uma culpa individual, ao mesmo tempo que se utilizam para relegar e destruir aqueles que, de um modo ou de outro, estão excluídos ou impedem o processo produtivo. Como é evidente são sempre os marginais os que não têm poder econômico para se opor, os que não tem um espaço privado onde viver sua inadaptação, são eles que caem sob as sançõesmais rigorosas. O grupo dominante preserva a ordem pública, o ritmo produtivo, a eficiência de sua organização, o funcionamento da vida antinatural que produz ou impõe, protegendo a quem trabalha da ameaça potencial representada pelos marginalizados (os que não produzem, os que voluntariamente se excluem ou involuntariamente são excluídos do intercâmbio social) jogando, ao mesmo tempo, com a ameaça de uma possível marginalização. Paradoxalmente, volta-se a propor, em nome da exploração e da eficiência, a dialética servo-senhor, na qual o senhor cuida do servo da ameaça representada por quem pode perturbar a ordem de seu trabalho, criando as instituições onde se possam isolar e neutralizar esta ameaça. Porém a existência destas instituições atua, ao mesmo tempo, como ameaça para o servo que pode cair nas suas malhas. Estas organizações, chamadas reabilitadoras, têm, portanto, uma dupla função: a violência como sistema concreto de eliminação e destruição e a violência como ameaça simbólica desta destruição e eliminação. Nesta perspectiva no nosso nível de desenvolvimento, cada contradição deve ser isolada e deve achar-se o espaço separado onde o sujeito pague por si mesmo a contradição que representa. O que importa é descobrir rapidamente o diferente e isolá-lo para confirmar que não somos nós ( os sadios, os normais, os bons cidadãos), isto é, a estrutura de nossa organização social que produz contradições, é sempre o outro, o estrangeiro, o corruptor, “as más companhias” os que produzem o contágio, que deve ser prevenido e neutralizado para proteger a coerência da norma, ou seja, os parâmetros que definem a ordem moral e pública. Nesta tentativa de descobrir precocemente a 4 Philippe Pinel (Saint André, 20 de Abril de 1745 — Paris 25 de Outubro de 1826) foi um médico francês, onsiderado por muitos o pai da psiquiatria. 5 “diferença” se baseia o caráter preventivo das ideologias, assim como na confirmação desta diferença se baseia o caráter violento das instituições. Aqui entra em jogo a interdisciplinariedade, a cumplicidade do psiquiatra com a lei, pela qual se pode, segundo os casos, definir como psicopata, débil ou louco moral o delinquente que não deve ser definitivamente estigmatizado como tal (nos casos em que o estigma da doença é menos prejudicial que o da delinquência). As peritagens psiquiátricas não são mais do que um instrumento que permite a passagem de um ao outro âmbito mediante uma avaliação quantitativa (cujo caráter subjetivo não vale a pena se deter) dos aspectos anormais presentes no sujeito examinado. Mas quem atravessa a porta da prisão ou do manicômio entra em um mundo onde atua praticamente para o destruir, ainda que se tenha projetado ideologicamente para o salvar. De fato, os criminologistas reconhecem a realidade carcerária como a expressão mais direta e evidente da delinqüência natural do detento e os psiquiatras a realidade manicomial como a deterioração psíquica e moral produzida pela doença. Sobre esta lógica destrutiva se mantém a eficiência da organização institucional, porque é a instituição como organização a que não pode correr riscos. Mas os riscos que não corre a instituição se traduzem em realidades práticas negativas para os homens que ela contém, para os quais não existem necessidades, exigências, carências as quais se devem responder, dado que o fato de ser definido como enfermo mental ou como delinqüente priva dos mais elementares direitos, mesmo em instituições que continuem definindo-se ideologicamente como reabilitadoras ou terapêuticas. Mas isto não pode deixar de significar também que as chamadas instituições reabilitadoras têm na realidade, uma função bem explícita: procurar um “ponto” institucional controlando a quem não é controlável através de sua participação no processo produtivo ( e aqui se inclui, sem dúvida, todas as instituições consideradas positivas: escola, família, fábrica, universidade, lugar de trabalho). Aquele que por qualquer razão, está fora deste círculo deve encontrar um lugar onde assumir uma função específica sobre a qual a instituição correspondente exercerá o gradual processo destrutivo que lhe é próprio. A possibilidade de intercâmbio das instituições das prerrogativas e características daqueles que elas contém é uma clara demonstração do que dissemos. Trata-se de vasos comunicantes cuja “comunicação” se faz possível com uma mera troca de definições ou de etiquetas relativas a seu conteúdo. Assim, por exemplo, um jovem internado em um reformatório passará à prisão ou manicômio segundo que assento seja posto sobre sua inadaptação, sadia ou enferma. Será mais difícil para ele evitar um ou outro, já que foi marcado por sua permanência no reformatório. Este é tipo de organização institucional correspondente ao nível de desenvolvimento mais ou menos generalizado nos países europeus. Em um nível tecnológico-industrial mais avançado, como os EUA, o controle clássico da inadaptação através das instituições de segregação já não é suficiente. O sistema capitalista, além de produzir um aumento dos bens de consumo, bens que são propostos como sinais dos graus de bem estar social atingido pela população, produz também um aumento de contradições e com elas um aumento das inadaptações à norma. Seu controle já não se efetua unicamente através das instituições segregativas ou violentas (que ainda existem). Pode-se inclusive projetar a reestruturação formal destas instituições, mais modernas, menos explicitamente repressivas, mais tolerantes já que o controle se realiza essencialmente de uma forma ou de outra: mediante a extensão do conceito de inadaptação e de um novo tipo de diagnóstico de diferente, mais sutil e capilar (o diagnóstico precoce, a prevenção, os serviços assistenciais, a psicologização de conflitos que nada tem a ver com a Psicologia....). Este novo tipo de controle da inadaptação que recupera a maior parte dos conflitos sociais no lugar da Psicologia, da Medicina e da Assistência Social, sem ter necessidade de recorrer à internação, a não ser em casos extremos, é um novo modelo pronto para a exportação , que de fato já tem começado para os países desenvolvidos. Sua aplicação prática em regiões onde este tipo de controle ainda não é necessário para tutelar a ordem pública e o desenvolvimento industrial, leva à criação de problemas e necessidades artificiais para os quais o novo sistema tem uma resposta pronta. 6 Mas esta resposta se dá na medida em que são problemas e necessidades artificiais, produzidas por ele mesmo que, justamente por serem estranhos à realidade concreta onde começaram a se manifestar, servem para desviar a atenção dos problemas e necessidades reais. À distância entre necessidade real e necessidade artificial é a que serve como instrumento de dominação, já que a imposição de dominação e colonização, tal como demonstraram os missionários que levavam a fé e seus valores morais a terras novas e cuja ação não era senão a preparação do terreno para a chegada do exército conquistador. A exportação de ideologias e de organizações de controle como a Comunidade terapêutica ou os centros comunitários de saúde mental, a países subdesenvolvidos, como por exemplo os países sul-americanos, tem somente um significado: é o álibi para a perpetuação da violência que continua produzindo-se como resposta concreta. Ali onde existe uma tomada de consciência, por parte do povo, da necessidade de encontrar respostas diretas às suas necessidades, a estratégia imperialista se revela como é: volta-se à violência explícita, ao assassinato e ao massacre como sistema arcaico de colonização. A destruição do movimento da Unidade Popular do Chile é um claro exemplo. Se o povo intenciona apropriar-se de suas necessidades e dos instrumentos para responder às mesmas, o imperialismo pula e obviamente não está disposto a correr estes riscos. Nestecaso a violência legalizada representada pelas instituições já não serve: volta-se à violência como instituição, sem necessidade de acobertamentos ou mistificações científicas ou de qualquer outro tipo: mata-se, tortura-se e elimina-se a quem descobre o jogo e procura instrumentos apropriados para sair dele. Estes diversos tipos de violência (explícita, legitimada pelas ideologias científicas diluída e disfarçada sob a cobertura da organização assistencial) são as diferentes modalidades de controle em relação aos diferentes graus de desenvolvimento de um país. Mas são ao mesmo tempo, contemporâneas no sentido de que, nos momentos de crise, se elegem a modalidade de intervenção e repressão mais adequada para garantir o controle, e já não importa se passa-se explicitamente de um controle fundamentado sobre análise psicológica dos conflitos às matanças maciças. Quem tem o poder sempre encontra a maneira de legitimar a violência, simplesmente a impondo ou, quem sabe, juntando os diversos elementos de que dispõe até chegar a humanizar a tortura, garantindo ao torturado a assistência de um psicólogo ou de uma assistente social. O nível sócio-econômico dos países europeus está ainda ligado, em diversos graus, ao controle institucional como forma de repressão. Ultimamente estão sendo projetadas reformas que em alguns países já estão funcionando para novas instituições tolerantes, onde a doença, a inadaptação e a delinquência possam ser controladas sem haver necessidade de se recorrer a uma violência demasiado explícita. Mas na lógica do capital, construir novas prisões significa somente construir novos aprisionados, assim como construir novos hospitais significa fabricar novos doentes, já que a finalidade fica na organização das necessidades e não na resposta direta às mesmas. A organização das necessidades implica na criação de novas organizações que se inserem automaticamente no processo produtivo, oferecendo novas funções, novos lugares de trabalho, novos serviços, que põem em funcionamento o mesmo circuito produtivo típico de qualquer outra organização cuja única participação é a de sua própria sobrevivência, assim como a de manter ou aumentar os objetos que contém. Entre nós ninguém ousa sustentar, em palavras, que as instituições fechadas e violentas não sejam indignas de um país “civilizado” (ninguém ignora as condições inumanas em que vivem os internados). Mas as reformas das instituições levam somente a uma mudança formal que (ainda que não se possa negar que trará benefícios parciais necessários e positivos no referente à vida cotidiana dos internados) se limitará a ser uma nova racionalização técnico-organizativa, usada como novo sistema de controle dos mesmos objetos. Dentro da mesma lógica, transformação, racionalização e controle são as três etapas de um processo que se perpetua através da contínua transformação formal das coisas, sem que seja jamais tocada a estrutura. Porque a mudança sobrevem sempre como resposta técnica a uma demanda econômica (em cada nível de desenvolvimento se necessita uma forma de controle diferente) e é, portanto, uma vez mais, a lei econômica a que reclama a nova racionalização técnica que proporcione o controle da situação transformada. 7 A indignação emotiva contra a violência de nossas instituições repressivas deveria levar à exigência de uma transformação que resultasse adequada às necessidades que a enfermidade e a inadaptação expressam, mas até que nosso sistema econômico não encontre, frente ao seu progressivo desenvolvimento, um tipo de controle institucional diferente do violento e segregativo atual, as prisões, os manicômios e as torturas permanecerão intactas. O amigo Stanley Cohen sustenta, justamente, que desde que existem as prisões se fala de reforma carcerária. Prisão, manicômio e tortura somente poderão mudar se forem modificadas as estruturas de base, das quais estas instituições são os pilares. Isto se confirma pelo fato de que, a nível teórico, se fala sempre da necessidade de sua transformação, ao passo que, no plano prático, cada proposta é obstacularizada e reprimida violentamente. A resposta repressiva a cada proposta de transformação prática garante a manutenção do “status quo”, ao tempo que, esta resposta qualifica a própria transformação, o que continua demonstrando como esta não se limita a uma simples resposta técnica a um problema especializado. Atuar nas “instituições de violência”, repelindo a delegação de ser um simples controle de ordem pública (delegação implícita na nossa função de técnicos), significa descobrir praticamente a verdadeira lógica, dando a quem vive no seu interior, a possibilidade de uma tomada de consciência prática dos mecanismos nos quais estas instituições se fundamentam. É nesse sentido que o trabalho técnico nestas instituições de violência, se revela e atualiza como trabalho explicitamente político, unindo a especificidade particular de sua ação à estrutura social da qual a instituição faz parte, descobrindo praticamente suas conexões e implicações. Isto significa que a ação nestas instituições e a análise da violência das mesmas não se limitam à desmistificação das contradições entre custódia e tratamento, entre custódia e reabilitação (contradições sobre as quais se fundamentam os manicômios e as prisões), mas também que tendem sobretudo a esclarecer praticamente a finalidade perseguida e as modalidades eleitas por esta violência em relação à estrutura social, libertando-nos, assim do isolamento “especialístico” no qual cada constituição e cada técnico estão prisioneiros, conservando a visão e o terreno específico desta luta. Nosso sistema social se baseia em uma divisão artificial (isto é, historicamente produzida e determinada) que é imposta e assumida como divisão natural: a divisão em classes. A aceitação desta divisão como fenômeno natural (a existência do rico e do pobre como dado natural e irredutível) comporta uma série de regras e de instituições que com a aparente finalidade de resolver as contradições naturais, serve de fato para manter a originária divisão sobre a qual se ergue a estrutura econômico – social. Quanto mais antinatural é a regulamentação (e a estrutura da qual é garantia) tanto mais violenta e repressiva porque não responde às necessidades ( ou seja, à contradição natural) para as quais é, aparentemente, instituída e sim à manutenção do aparato que o regulamento tende a encobrir. O processo, porém, não é tão simples nem tão explícito, mas tendo presente o massacre e a tortura como extremos deste processo nos será fácil seguir sua direção e desenvolvimento. As articulações, através das quais nosso sistema social, em termos de desenvolvimento médio dos países europeus, consegue manter a divisão em classes necessária para a sua sobrevivência, são variadas ainda que se apresentem com um denominador comum: a tendência a isolar os fenômenos (como se não nascessem e não se apresentassem em uma rede de relações recíprocas) para estudá-los divididos, separados do tecido do qual são um dos elementos e poder, assim, fazê-los assumir um caráter absoluto, natural. Teorias científicas e instituições parecem ter explicitamente a finalidade de descobrir e isolar estes fenômenos sob a mistificação da resposta especializada; às instituições, confirmar, através de uma prática destrutiva, o caráter definitivo e irredutível. De fato, ambas tem a finalidade de descobrir e confirmar a diversidade natural dos fenômenos, através do mesmo processo proposto, a priori pela divisão em classes, matriz de toda nova divisão posterior. Limitando a análise somente ao âmbito das ideologias e das instituições destinadas o controle da inadaptação, cárceres e manicômios (obviamente o processo é análogo para qualquer outra instituição de nossa sociedade), o fenômeno negativo, ou seja, o comportamento anômalo no 8 sentido antisocialresponsável ou doente, é isolado de maneira que o indivíduo que o expressa seja somente este fenômeno, como se não tratasse de um momento, de um processo onde se implica o ambiente, a história, os valores, as relações e os processos sociais nos quais cada vida individual sempre se insere. O fenômeno negativo é, certamente, o momento relativo a um complexo de fatores biológicos e sociais, mas é, porém, isolado e proposto como absoluto e natural para justificar seu caráter imutável. O delinquente é somente e irredutivelmente delinquente, a prisão é o lugar que serve para a contenção da delinquência. O louco é somente e irredutivelmente louco, o manicômio é o lugar que serve para a contenção da loucura. Mas a delinquência e loucura são acontecimentos que formam parte da vida do homem, no sentido que são a expressão de que o homem é ou pode ser e ao mesmo tempo de que pode chegar a ser a través de seu mundo de relações. O delinquente e o louco (e aqui não vamos discutir os parâmetros nos quais são definidos, o que implicaria outro artigo), conservam também na delinquência e na loucura as outras faces de seu ser humano: sofrimento, impotência, opressão, vitalidade, necessidade de uma existência que não seja nem enferma nem delinquente. Porém, o delinquente se converte automaticamente em objeto de criminologia, ciência que estuda a criminalidade, e não o homem em sua totalidade; assim, o louco se converte automaticamente em objeto da psiquiatria, ciência que estuda os desvios psíquicos e não o homem em sua totalidade. As ideologias científicas servem, portanto, para fixar em termos absolutos esses elementos de sua competência, transformando-os em acidentes naturais contra os quais o homem pode tão pouco como a ciência. Se a doença e a delinquência são somente fenômenos naturais, e não também produtos históricos sociais, a contenção, a internação são as únicas respostas possíveis e a instituição repressiva, a segregação, as únicas alternativas, frente a um fenômeno à respeito do qual a sociedade deve exclusivamente garantir-se e proteger- se. Ocorre o mesmo que frente à violência de certos fenômenos naturais: ninguém é responsável, ninguém está implicado. O indivíduo é considerado todo doente ou todo delinquente e se ao mesmo tempo esta totalidade negativa é construída artificialmente pela absolutização de um ou outro dos elementos em que o homem foi artificialmente dividido, será sobre esta totalidade negativa que se proporá e confirmará a exclusão social. Nos encontramos frente à uma parcialização do homem na qual se isolam as diversidades, se expressam e se confirmam as diferenças. Mas em nome do que? Pelos resultados não se pode, certamente, afirmar que este processo sirva para a reabilitação, para a recuperação do inadaptado e para o restabelecimento da saúde do doente. Se assim fosse, a maioria dos internados, sejam de nossas prisões, sejam de nossos manicômios, deveriam ser reabilitados e curados, e não é suficiente reconhecer ou admitir os limites da ciência nestes setores para explicar o fracasso geral das instituições destinadas à reabilitação e ao tratamento. O que é determinado neste processo é um elemento, para nós ou algum de nós demasiado óbvio, do qual os cientistas da psiquiatria e da criminologia não parece haver tomado nota. Trata-se da classe a que pertencem os “clientes” destas instituições, e não pode ser casualidade que em sua quase totalidade sejam proletários ou subproletários, assim como tão pouco pode ser casual que pertençam à mesma classe social todos os usuários de outras instituições de reabilitação assistenciais tais como os internatos, os orfanatos, os reformatórios, etc., ou os assistidos pelo “Bem Estar” nos países de maior desenvolvimento industrial. Com raras exceções de casos de burgueses endinheirados delinquentes que por outro lado sempre encontram um modo ou os instrumentos para evitar ou reduzir as penas imputadas. Pareceria que as formas de delinquência e de loucura irrecuperáveis fossem atributo de uma só classe. E, porém, ainda assim novas teorias tendem a dar interpretações de tipos sociológicos a estes fenômenos, a ciência continua afirmando na prática que loucura e delinquência são acidentes naturais. Mas estes acidentes formam parte da natureza do proletário e do subproletário? Ou quem sabe é somente a loucura e a delinquência dos pertencentes à esta classe que é considerada natural e irredutível através do processo de absolutização da diferença? Se a doença e a delinquência são acontecimentos ou contradições naturais, a quase total ausência nas instituições da doença e da delinquência dos que pertencem à classe dominante, 9 testemunha que em outra parte, fora das instituições existe um conceito de recuperabilidade diferente e, obviamente, um diferente conceito de irrecuperabilidade, segundo o qual, doença e delinquência perdem o caráter natural e irreversível que apresentam nas prisões e manicômios. A recuperabilidade está subordinada aos instrumentos de que dispomos e a vontade de recuperação. A burguesia dispõe para si destes instrumentos e desta vontade. Pelo que se refere à doença, psicoterapia e psicanálise são os ramos da ciência que se põe à disposição do enfermo rico para a busca das motivações inconscientes de seu comportamento anormal. Tal comportamento não se aceita simplesmente como natural e irreversível. Em alguns casos pode também se revelar como tal; mas se aprofunda sua história, sua evolução, se aprofundam os momentos do processo, se propõe todo o possível. Mas a análise do inconsciente e as elaborações que se obtém sobre os seus complexos e seus conflitos, movem-se dentro de uma cultura e de um conjunto de valores dos quais o proletário e o subproletário não tem ao menos familiaridade. Ademais, é necessário possuir uma linguagem cifrada para eles desconhecida. Entre nós, a pequena burguesia e o proletário pequeno-burguês, que tendem aos valores da burguesia, começam agora a fazer-se possuidores desta cultura, mas a mesma imposição ou incorporação, estranha as suas necessidades, não podem mais que operar como um ulterior elemento de dominação e não como um instrumento de libertação. O fato de que um subproletário internado em um manicômio possa ou não apresentar um Complexo de Édipo não resolvido lhe parece ridículo, inclusive profano. Mas que outras investigações sobre as motivações do comportamento anormal se realizam com os enfermos que povoam nossos manicômios? Por que os sintomas dos burgueses devem ter justificações e explicações? Por que se investigam e se esclarecem ao paciente as motivações inconscientes, enquanto que para os internados nos manicômios, proletários e subproletários, a enfermidade continua sendo um fenômeno natural e irredutível e o enfermo é automaticamente identificado com os seus sintomas? Como podemos conhecer as motivações profundas, se toda a psiquiatria manicomial se fundamenta na des-historização do indivíduo? No que se refere à delinquência é válido o mesmo discurso. Um delinquente burguês abastado não tem problemas de reinserção e recuperação. O delito é aceito como um produto histórico social e não como um dado natural. Há uma justificação à sua situação delituosa. Trata-se de um acontecimento que não é suficiente para determinar a evolução da história futura do delinquente, tão pouco a história precedente é lida toda à luz do delito que, em determinado momento, ele cometeu. Na vida, no ambiente destas pessoas, há um espaço para a recuperação, e é o espaço que sua própria classe lhes reconhece e reserva. O problema da recuperação não existe porque, neste caso, o delinquente tem uma história que esclarece, ante os olhos de seus iguais, o delito, e dispõe de instrumentos econômicos e culturais para não ter a necessidade de repetir o ato delituoso. E isto por não falar dos delitos de grande magnitude, das corrupçõescometidas pelas classes políticas no poder para os quais existem sentenças, anistias, imunidades que deixam intacta a honorabilidade dos autores. Neste caso ressurge o conceito da naturalidade da corrupção, mas se trata de uma naturalidade implícita no jogo político (a política é sempre algo “sujo” e é difícil ficar com as mãos limpas quando se está no jogo) que serve para deixar imunes àqueles que cometem o delito e obtém benefícios com o mesmo. A corrupção e o delito individual se propõe nestes casos como fatos históricos sociais justificados pelo grande número de contingências sociais que condicionam o indivíduo e às quais não podem subtrair-se. Se dá, assim, exatamente aquilo que não sucede para a classe reprimida que atua delituosamente. O delinquente que pertence a esta classe não tem história, ou melhor, sua história é somente a história de seus delitos: os antecedentes penais. É delinquente por natureza assim como o desocupado é vagabundo e ocioso por natureza. Não há causas: motivações psicológicas, sociais, econômicas que justifiquem seus atos e sim a própria delinquência que se converte, assim, em delinquência biológica, intrínseca, de estirpe. Cada tentativa de historiar o delinquente proletário ou subproletário fracassa porque a sua seria uma história de violência, de privações e de abusos das quais não deve ficar rastros. O mesmo Lombroso, ao qual ainda se outorga o mérito de historiar o delinquente reconhecendo as implicações sociais de seu comportamento anômalo extrai conclusões práticas à total des-historização desde o 10 momento em que sanciona de um novo modo a diferença originária natural e, portanto, a consequente necessidade de marginalizar. Quem pergunta sobre o porque da delinqüência? A viúva de um trabalhador assassinado pela polícia há 20 anos, durante a ocupação de um latifúndio sem cultivo em Paglia fez em uma recente transmissão televisiva italiana estas declarações: “se a gente tivesse trabalho não teria necessidade de ocupar as terras para viver”. É elementar. E, todavia, se castiga e se assassina a quem ocupa terra que ninguém cultiva, sem considerar que não é produto de um capricho ou da delinquência inata o fato de que obreiros sem trabalho decidam ocupar terras sem cultivar. Para estes delinquentes e para estes loucos nosso sistema social não pode organizar a recuperação: quando se projetam transformações e reformas dentro da mesma lógica o resultado é idêntico. Fala-se do nascimento de uma nova delinqüência da qual não se indagam as causas e implicações sociais a respeito da queda de valores, das esperanças sempre frustradas, das promessas jamais mantidas do descontentamento por uma vida que se faz cada vez mais crítica e impossível, cada vez mais difícil. Se não se leva em conta esta premissa fundamental, nos limitamos uma vez mais a formular novos catálogos, novas divisões, entre delitos mais ou menos graves, chegando a criar novas instituições e novos regulamentos idênticos aos anteriores. Do mesmo modo, frente ao surgimento de novas formas de inadaptação e comportamentos anormais que podem ser sintomas de recusa à uma vida inviável, encontram-se novas codificações, novos termos técnicos com os quais catalogar, atualizados, talvez, por alguma vaga referência a um hipotético “elemento social” que garantisse enfrentar as problemáticas em termos modernos atuais. Entretanto, cárceres e manicômios continuam conservando sua natureza marginalizante de classe. Neste contexto social o problema da delinqüência ou da enfermidade não pode ser nem sequer tocado. Não se sabe o que é, ou melhor, sabe-se que é a priori e se aplica a definição mais conveniente para pedir a intervenção repressiva frente a fenômenos dos quais se observa e enfoca somente um aspecto: aquele que representa uma alteração social. Mas enfermidade e inadaptação existem não só para a sociedade que se defende delas, senão também para os sujeitos que as vivem e querem defender-se. Que coisas sabemos de seus sofrimentos se os parâmetros dos conhecimentos, tratamento e reabilitação são os que temos inventado, nós técnicos burgueses, em resposta às nossas necessidades e para cuidar de nossa sobrevivência? Nossas respostas técnicas são sempre respostas das necessidades de nossa classe e, portanto, se traduzem em marginalização da outra classe. As “instituições de violência” não são mais que uma de nossas respostas, nascidas exclusivamente em função de nossa proteção. Doença e inadaptação não são senão ocasiões para por em prática a marginalização, segundo o molde da ciência que as converte em “fenômenos naturais” e oferece, assim, justificação técnica a um ato de destruição social. Se deseja encarar de verdade o problema da marginalização e da inadaptação, deve-se estudá-las em relação à estrutura social, à divisão antinatural sobre o qual tal estrutura se apoia e não como fenômenos isolados, simples anomalias individuais das quais certa porcentagem da população tem a desgraça de ser sujeito. Voltemos à análise das instituições que, em princípio, deveriam responder a estes problemas. Trata-se de instituições que partem de um pressuposto formal expressamente programado: o tratamento, a reeducação e a reabilitação tendo em vista a recuperação do internado. Se a finalidade destas instituições não fosse somente formal, senão praticamente realizada, estaria já resolvido o problema. Mas uma coisa é a função formal e outra, a prática real. E a verdade está na prática que nos demonstra como os internados de nossos manicômios e de nossos cárceres saem poucas vezes reabilitados: a finalidade efetiva destas instituições continua sendo a destruição dos que contém. Países com uma enorme porcentagem de desocupados e semi -desocupados, que interesse pode ter em recuperar e reabilitar este lixo humano? Nesta perspectiva, a intervenção do técnico pode ser determinante ao esclarecer a contradição entre prática e ideologia, assim como, a finalidade neste contexto social, desta prática ideológica. Neste sentido, e para certos técnicos do tratamento e reabilitação, trabalhar nestas instituições significa tornar explícita a função discriminante de classe, isto é, repelir a delegação implícita em nossa técnica demonstrando qual é a real utilização prática de nossa intervenção 11 especializada: quais são seus limites e qual a natureza dos mesmos, quais são os mecanismos, sempre novos, diferentes e ao mesmo tempo idênticos, que servem para esta utilização. Ao se falar de reabilitação e de recuperação, a proposição não pode ser nem técnica nem organizativa: é sempre uma proposição política que se relaciona com a premissa referente à primeira divisão antinatural sobre a qual se fundamenta nosso sistema social. Que se pretende fazer dos homens, e não nos esqueçamos que se trata sempre de proletários e subproletários, reabilitados? Há lugar para eles em nossa sociedade? Isto é, uma vez reabilitados, encontram um trabalho com o qual satisfaz suas necessidades e de sua família? Por acaso não é certo que os regulamentos sobre os quais se organizam as instituições de marginalização estão estruturados de modo que a reabilitação não seja possível já que, em definitivo estes indivíduos, uma vez reabilitados, ficariam à margem, expostos continuamente ao perigo de cair novamente em novas infrações de uma norma que para eles nunca teve função protetora, e sim repressiva? Sua possibilidade de reabilitação é diretamente proporcional à disponibilidade, ou não, de mão-de-obra, ao trabalho que encontram fora, na comunidade chamada livre, disponibilidade que segue as fases de restrição ou de expansão econômica. As oscilações do número de internados e de “altas” em nossos manicômios está diretamente ligada às fases do desenvolvimento econômico geral, no sentido que segundo os diversos momentos de desenvolvimento ou recessão e crise, se assiste a uma paralela extensãoou restrição dos limites da norma e, em consequência, a um aumento ou diminuição da tolerância relativa aos comportamentos anormais (fenômeno que, presumivelmente, é igual no que se refere ao funcionamento dos aprisionamentos). Mais além deste fato determinante, o estreitamento ligado a ele, existe outro fenômeno que nunca se leva em conta: trata-se do sentido de pertencer à sociedade, totalmente ausente tanto nos internados de manicômios como nos de cárceres. E é óbvio. Se manicômios e prisões são organizações instituídas para responder às necessidades da sociedade “livre”, os internados não podem se reconhecer nesta sociedade que os castiga, segrega, destrói sem lhes oferecer uma alternativa possível. Não podem aceitar a identificação com regras que jamais respondem as suas necessidades. Não podem viver a internação como experiência que lhes ajude em seu processo de reabilitação: o tratamento é eficaz se o doente acredita nele, assim como a sentença somente tem sentido se aquele que cometeu o ato delituoso reconhecer haver se equivocado dentro de uma sociedade na qual tem confiança, porque se sente membro participante e porque acredita nas leis a cujo estabelecimento contribui. Mas estes homens, que tem às costas a história de uma marginalização que se perpetua em cada momento como marginalização de classe, não podem se sentir membros participantes desta sociedade, nem das leis e normas que ela estabelece porque nenhum deles contribui para criá-las e porque nenhuma lei de nosso sistema social, que não obstante se declara igual para todos, responde na prática às suas necessidades e a seus direitos. E somente através da luta, esta classe chega a impor à classe dominante, as próprias necessidades e os próprios direitos: mas nem todos chegam a encaminhar a luta em sentido positivo, organizado, pois em ocasiões se reage com atos esporádicos, isolados, delinquentes ou com comportamentos anormais que são automaticamente castigados. Isto não significa que não exista o problema da doença mental e da delinquência, ou seja, que não exista o diferente como fenômeno humano e que a transformação de base social seja suficiente para suprimi-lo. O problema está justamente na incorporação deste conceito, isto é, na necessidade de fazer desaparecer o diferente como se a vida não o contivesse, ou eliminar, assim, tudo aquilo que possa pôr em dúvida a falsa coerência desta face lisa e polida, na qual tudo andaria bem se não fossem as “ovelhas negras”. A realidade é que, enquanto o diferente da classe dominante é aceito e vivido como tal, ou seja, como um fenômeno humano que tem necessidade de respostas particulares (“diferentes”), o diferente da classe oprimida não é nunca aceito como tal e as respostas que lhe são dadas servem somente para eliminá-lo. Em uma sociedade dividida em classes, a doença e a delinquência da classe dependente (aqueles que encontramos e conhecemos nas “instituições de violência”) se convertem em outra coisa diferente do que são e a única resposta, não pode ser , senão a repressão, sob mistificações mais ou menos claras, já que o que determina a natureza da resposta não é a natureza da 12 necessidade e sim a que pertence quem a expressa. Se um sistema social está fundamentado sobre a manutenção de uma lógica econômica que não satisfaz às necessidades de todos, se o homem abstrato, em nome do qual invoca e se reclama as transformações e as reformas, não corresponde a todos os homens, então o ineficaz, o diminuído e débil, que é também o débil moral, ou seja, “o diferente” (é inútil que se trata sempre do “diferente” da classe dependente), será eliminado, destruído, portanto para ele a recuperação e reabilitação é impossível. Delimitou-se somente o processo através do qual se propõe cientificamente a “criminalidade” da doença e da inadaptação e aqueles outros através dos quais a necessidade por elas expressada se traduz em “crime” a castigar, para assim justificar a “criminalidade” da punição. A expressão própria do desacordo político parece destinada, em todas as partes, a sofrer este processo de “criminalização” e neste caso o jogo é, comparativamente, ainda mais explícito porque a ciência não tem encontrado, ainda, uma patologia suficientemente elaborada e confiável com a qual codificar estes comportamentos ( a resposta, neste caso, é mais direta e não tem necessidade de medicações: pode ser o assassinato ou a tortura). Esta análise nos permite compreender como todas as instituições do nosso sistema social tem a função de responder às necessidades das pessoas uma vez que tenham sido “criminalizadas”, reduzidas ao que não são ou aquilo do que é expressão ou sintoma. A “criminalização” da necessidade é, na realidade, uma construção artificial: enfrenta-se duas formas de violência e de criminalidade, uma em resposta à outra, sem que se saiba qual é a necessidade real. A inadaptação e o comportamento anormal são “crimes” porque poderiam ser perigosos: a instituição destinada ao tratamento e à reabilitação da inadaptação e do comportamento anormal é “crime” em nome da prevenção deste perigo. Não existem necessidades e nem respostas às necessidades. Nesta situação é difícil, e até impossível, reconhecer o que são fenômenos tais como inadaptação e doença. É também difícil chegar a dar uma interpretação real dos fenômenos sociais. Na Itália, por exemplo, se vive há anos em um clima de ameaça de violência. No momento que escreve (Março, 1974), a ameaça de uma virada é sentida como real e a violência explícita como iminente, mas não se sabe ainda se o clima paranóide em que vivemos é real ou criado artificialmente como novo sistema de controle no qual cada cidadão desconfia do outro, e consequentemente, é sujeito e objeto de um controle que as instituições, violentas, já não conseguem garantir. Os desequilíbrios e as contradições sociais são, na Itália, mais fortes que em outros países europeus regidos por democracias burguesas (excluídos, obviamente, os países declaradamente fascistas), assim como é forte a oposição. Na Itália, por causa da profundidade dos desequilíbrios, e ao mesmo tempo a consciência destes desequilíbrios, a tendência à constituição de uma classe média única identificada com os valores propostos por um centro reduzidíssimo de poder que a controla, acha dificuldade e resistência, ainda que certamente, a extensão da área dos estratos médios sobre os quais se tem amplo jogo este processo de identificação com valores dominantes significa um prenúncio. Existe uma classe operária ainda numericamente forte para garantir o controle de manobras de tipo golpista. Mas a atmosfera paranóide (real ou artificialmente criada) tende, não obstante, a debilitar as formas de oposição que vive em um estado contínuo de ameaça de violência. Os processos mediante os quais se produz esta debilitação passam também através das articulações que foram examinadas aqui, ou seja: as instituições e ideologias sobre cujas funções e significados não há uma clara tomada de consciência. A incorporação das ideologias e dos valores que nosso sistema social continua criando como falsas respostas às necessidades, não é sempre reconhecido como elemento de identificação com o agressor e, portanto, como aceitação passiva de dominação. Se a classe oprimida não toma consciência de todos os processos através dos quais atua a dominação (dominação que vai mais além da exploração, da nocividade do local de trabalho e de todos os temas reivindicativos de tipo salarial) poderia se encontrar facilmente em um manicômio universal no qual nós estaremos identificados como sintoma que nos definiu e que reconheceremos como real. Trata- se, obviamente, de um discurso simbólico em que adesão ao sintoma é correspondente à adesão aos valores que não próprios, e que apesar deles, se assume como respostas às próprias necessidades. 13 Estamos numa encruzilhadamuito perigosa. A ameaça de violência como forma de controle, pode ser traduzida facilmente, também na Itália, em uma violência explícita, se a classe dirigente, e as potências que estão às suas costas, se derem conta que as instituições tradicionais não bastam mais e que as novas ideologias de controle, que começam a ser importantes em países em desenvolvimento industrial mais avançado, requerem tempo para serem aplicadas, para se arraigarem e para adquirirem o crédito científico necessário como reforço da dominação. É neste momento que a vigilância e a força da classe que se opõe a este jogo podem ser determinantes no que se refere a preveni-lo a desmascará-lo, porque a alternativa entre a ameaça de violência em que se vive e a violência sem máscaras é o massacre, a tortura, na qual as ideologias podem servir, somente para garantir a assistência ao torturado. Já está bastante extenso o sentimento do nascimento desta nova utilização da ciência e da técnica. O general Massu em seu livro “La Vraie battaille D Alger” faz saber que, se as circunstâncias o exigem, pode se exercitar uma tortura sã, confiando este dever à pessoal qualificado e especialmente preparado na técnica necessária para o bom resultado dos interrogatórios. Entre nós, médicos “experimentalistas” introduzem um cateter na uretra ou anus (coisa que não tem nenhum significado terapêutico ou diagnóstico) de crianças que sofrem de enurese noturna, com a única justificativa de que as crianças são assistidas por psicólogos que as preparam para suportar o experimento inútil. Em um diário brasileiro clandestino, comunica-se que um psicanalista, na espera de ser reconhecido como membro da sociedade de psicanálise, está designado à assistência psicológica ao torturador. No Uruguai aos terapeutas que são suspeitos, é privado o segredo profissional, que sob ameaça de tortura são obrigados a dizer o que sabem do paciente. Só a ciência e suas instruções não bastam para responder ou controlar as necessidades, é a tortura a que se propõe, então, explicitamente como uma instituição, com seus técnicos, seus profissionais, suas regras “humanas”, seu código e sua moral, abrindo novos campos de aceitação para os técnicos das ciências humanas. Frente a esta realidade, qual é a tarefa do psiquiatra, do psicólogo, do criminólogo que atuam no âmbito institucional? Criar uma alternativa para a intervenção técnica deveria significar chegar a traduzir nossa ação na prestação de um serviço que sirva, justamente enquanto tal, ao assistido e ao mesmo tempo a sua tomada de consciência da utilização, contra ele mesmo, que geralmente se dá a este serviço. Significa, portanto, tomar consciência de que cada intervenção técnica tem em si mesma uma efetiva finalidade política: a de ser um dos instrumentos dos quais se serve a classe dominante para perpetuar sua dominação. Mas além dos privilégios que gozamos enquanto técnicos burgueses sujeitos da dominação implícita em nosso “rol” de poder, podemos ainda tentar ser agentes de transformação mediante a localização das necessidades, na prática real, e o desmascaramento dos processos que convertem as ditas necessidades (também nos olhos de quem as expressa) em algo distinto daquilo que são.
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