Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Indaial – 2021 MeMória, identidade e PatriMônio Museal Prof.a Karine Lima da Costa 1a Edição Copyright © UNIASSELVI 2021 Elaboração: Prof.a Karine Lima da Costa Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: C837m Costa, Karine Lima da Memória, identidade e patrimônio museal. / Karine Lima da Costa. – Indaial: UNIASSELVI, 2021. 191 p.; il. ISBN 978-65-5663-521-7 ISBN Digital 978-65-5663-515-6 1. Instituições museais. – Brasil. II. Centro Universitário Leonardo da Vinci. CDD 020 aPresentação O Livro Didático Memória, Identidade e Patrimônio Museal tem como objetivo fornecer ao acadêmico diferentes perspectivas sobre as questões de memória(s), identidade(s) e patrimônio(s) presentes – ou não – nas instituições museais. Para abordar as diferentes temáticas propostas, o livro está dividido em três unidades, a saber: A memória social na perspectiva museal; Identidade Cultural nos Museus; e Patrimônio Cultural e Museus. Cada unidade está subdividida em tópicos para auxiliar o processo de aprendizagem. Na Unidade 1 – A memória social na perspectiva museal – será apresentado um panorama sobre a relação da memória individual e coletiva e a dinâmica entre a lembrança e o esquecimento, assuntos recorrentes nos estudos sociais e nas práticas museais, sobretudo no que diz respeito ao silenciamento e apagamento da memória nos espaços institucionais. A partir disso, serão mostrados diferentes lugares e suportes da memória para compreensão de sua produção nesses espaços. A Unidade 2 – Identidade Cultural nos Museu – percorrerá os conceitos de identidade e alteridade para que você possa compreender de que forma ambos estão presentes ou ausentes nos discursos exibidos pelos espaços museais. Serão lembrados casos singulares da representação do outro no decorrer do século XIX, a fim de refletir sobre as mudanças ou eventuais permanências dessas práticas na atualidade. O papel dos museus na sua relação com a identidade nacional também será evidenciado nesta unidade através de casos nacionais e estrangeiros, assim como a importância da educação museal. A Unidade 3 – Patrimônio Cultural e Museus – propõe a discussão do patrimônio cultural como um processo de construção seletiva que possui aproximações e distinções entre concepções ocidentais e não ocidentais. Como exemplo, selecionamos a análise da noção de patrimônio africano e japonês, acentuando as nuances contextuais de cada cultura. Uma análise dos mecanismos de proteção do patrimônio cultural mundial também será realizada, assim como a categorização do patrimônio material, imaterial e natural, que auxiliam na definição dos instrumentos de preservação e de gestão próprios de cada um. Por fim, serão apontadas algumas ideais sobre as perspectivas futuras para o campo do patrimônio cultural, com ênfase na redefinição do conceito de museu que está sendo debatido atualmente. Prof a. Karine Lima da Costa Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada! LEMBRETE suMário UNIDADE 1 — A MEMÓRIA SOCIAL NA PERSPECTIVA MUSEAL ...................................... 1 TÓPICO 1 —PERCURSOS DA MEMÓRIA ...................................................................................... 3 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 3 2 MEMÓRIA INDIVIDUAL E COLETIVA ....................................................................................... 3 2.1 A INVENÇÃO DAS TRADIÇÕES ............................................................................................... 7 2.2 COMUNIDADES IMAGINADAS .............................................................................................. 10 3 MEMÓRIA E PATRIMÔNIO .......................................................................................................... 12 RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 16 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 17 TÓPICO 2 — MEMÓRIA E ESQUECIMENTO .............................................................................. 19 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 19 2 LEMBRAR VERSUS ESQUECER .................................................................................................... 19 2.1 IMAGINÁRIO MONUMENTALISTA ....................................................................................... 21 3 APAGAMENTOS E SILENCIAMENTOS DA MEMÓRIA ....................................................... 23 3.1 LEMBRAR É RESISTIR ............................................................................................................... 26 RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 30 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 31 TÓPICO 3 — LUGARES, VONTADES E DEVERES DE MEMÓRIA ........................................ 33 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 33 2 LUGARES E VONTADES ................................................................................................................ 33 3 DEVERES............................................................................................................................................. 35 RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 42AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 43 TÓPICO 4 — MEMÓRIA E ARTE ..................................................................................................... 45 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 45 2 ARTE NO OCIDENTE ...................................................................................................................... 45 3 VANGUARDA E ARTE CONTEMPORÂNEA ............................................................................ 49 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 53 RESUMO DO TÓPICO 4..................................................................................................................... 59 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 60 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................................... 61 UNIDADE 2 — IDENTIDADE CULTURAL NOS MUSEUS ...................................................... 65 TÓPICO 1 — IDENTIDADE E ALTERIDADE ............................................................................... 67 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 67 2 DEFININDO IDENTIDADE(S) ...................................................................................................... 67 3 JARDIM ZOOLÓGICO DA ACLIMAÇÃO ................................................................................. 69 4 SAARTJE BAARTMAN.................................................................................................................... 72 5 OTA BENGA ....................................................................................................................................... 74 RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 79 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 80 TÓPICO 2 — IDENTIDADE NACIONAL ...................................................................................... 81 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 81 2 MUSEU BRITÂNICO ....................................................................................................................... 81 2.1 MUSEU HISTÓRICO NACIONAL (RJ) .................................................................................... 83 3 MUSEU NACIONAL (RIO DE JANEIRO) ................................................................................... 86 4 MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA ......................................................................................... 92 RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 96 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 97 TÓPICO 3 — O MUSEU COMO LOCAL DE REPRESENTAÇÃO DO OUTRO .......................99 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 99 2 BRONZES DO BENIN .................................................................................................................... 99 3 CABEÇAS ENCOLHIDAS (TSANTSAS) ..................................................................................... 103 RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 108 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 109 TÓPICO 4 —EDUCAÇÃO E MUSEUS .......................................................................................... 111 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 111 2 QUEM É O MEU PÚBLICO? ......................................................................................................... 111 3 EDUCAÇÃO E INTEGRAÇÃO NOS MUSEUS ........................................................................ 115 LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 121 RESUMO DO TÓPICO 4................................................................................................................... 125 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 126 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 127 UNIDADE 3 — PATRIMÔNIO CULTURAL E MUSEUS .......................................................... 131 TÓPICO 1 — A NOÇÃO DE PATRIMÔNIO NO MUNDO OCIDENTAL ............................ 133 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 133 2 DEFINIÇÕES DE PATRIMÔNIO ................................................................................................. 133 2.1 NOÇÃO DE PATRIMÔNIO NO BRASIL ................................................................................ 136 3 PATRIMÔNIO CULTURAL “NÃO-OCIDENTAL” .................................................................. 138 3.1 PATRIMÔNIO AFRICANO ....................................................................................................... 138 3.2 PATRIMÔNIO JAPONÊS ........................................................................................................ 141 RESUMO DO TÓPICO 1................................................................................................................... 143 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 144 TÓPICO 2 — PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL E NATURAL ............................ 145 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 145 2 CONVENÇÕES E RECOMENDAÇÕES INTERNACIONAIS .............................................. 145 2.1 RESPONSABILIDADE MUSEAL ............................................................................................. 150 3 MEDIDAS DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO MUNDIAL ................................................. 152 RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 158 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 159 TÓPICO 3 —PATRIMÔNIO MATERIAL, IMATERIAL E NATURAL .................................... 161 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 161 2 PATRIMÔNIO MATERIAL .......................................................................................................... 161 3 PATRIMÔNIO IMATERIAL.......................................................................................................... 164 4 PATRIMÔNIO NATURAL .............................................................................................................169 RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 173 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 174 TÓPICO 4 — PERSPECTIVAS FUTURAS PARA O CAMPO DO PATRIMÔNIO ............... 175 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 175 2 NOVOS CONTORNOS PARA O CONCEITO DE MUSEU ................................................... 175 3 EM BUSCA DE NOVAS MEMÓRIAS......................................................................................... 177 LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 182 RESUMO DO TÓPICO 4................................................................................................................... 187 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 188 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 189 1 UNIDADE 1 — A MEMÓRIA SOCIAL NA PERSPECTIVA MUSEAL OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • identificar a relação entre a memória individual e coletiva no âmbito das Ciências Humanas através de seus principais teóricos; • reconhecer a dinâmica entre a lembrança e o esquecimento, componentes chaves nos estudos sobre a memória social; • analisar os diferentes suportes da memória através de inúmeros exemplos que serão abordados; • compreender de que forma a memória é produzida nos diferentes espaços museais. Esta unidade está dividida em quatro tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – PERCURSOS DA MEMÓRIA TÓPICO 2 – MEMÓRIA E ESQUECIMENTO TÓPICO 3 – LUGARES, VONTADES E DEVERES DE MEMÓRIA TÓPICO 4 – MEMÓRIA E ARTE Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 2 3 TÓPICO 1 — UNIDADE 1 PERCURSOS DA MEMÓRIA 1 INTRODUÇÃO A palavra mémoire é conhecida desde a Idade Média, mais precisamente a partir do século XI. Ao longo dos anos, o termo sofreu uma série de variações e distinções (LE GOFF, 1990), o que lhe confere sua característica polissêmica. Por essa faculdade, o estudo da memória está ancorado em diferentes áreas do conhecimento, como a História, a Antropologia, a Biologia, a Museologia, a Psicologia, a Sociologia, entre outras. Contudo, “ainda que possa ser trabalhado por disciplinas diversas, o conceito de memória, mais rigorosamente, é produzido no entrecruzamento ou nos atravessamentos entre diferentes campos de saber” (GONDAR, 2005, p. 13). Nesse sentido, seria incorreto encaixarmos a memória em apenas um conceito ou analisá-la sob espectro de apenas um suporte, já que o seu dinamismo atravessa tempos e espaços distintos, e a sua abordagem parte sempre do presente, que constantemente é construído e reconstruído. Sendo assim, nesse tópico abordaremos alguns princípios básicos nos quais a questão da memória se desenvolve, segundo a visão dos principais autores que se debruçaram sobre essa temática e analisando diferentes exemplos proporcionados pelo campo museal. Devido à proximidade e conexão entre os temas da memória e da identidade, muitos dos conteúdos que serão explicitadas aqui deverão ser retomadas na unidade seguinte, porém, levando em consideração outros estudos de caso e outros/as autores/as. 2 MEMÓRIA INDIVIDUAL E COLETIVA As áreas da Psicologia e da Neurociência se debruçam há décadas sobre o estudo da memória e a sua relação com as atividades cerebrais, especialmente o problema da amnésia. No campo das Ciências Humanas, as investigações centram-se na relação da memória com a sociedade, a qual pode ser manifestada individual ou coletivamente. Para o historiador Ismael Murguia (2010, p. 9), tanto a memória individual quanto a coletiva apresentam as mesmas características, no entanto, a segunda “[...] é um elemento necessário para a identidade de um grupo, de uma coletividade, de uma sociedade”. UNIDADE 1 — A MEMÓRIA SOCIAL NA PERSPECTIVA MUSEAL 4 O sociólogo francês Maurice Halbwachs (1877-1945) é considerado um dos principais teóricos do campo da memória, especialmente por abordá-la enquanto um fenômeno social ao enfatizar a existência da memória coletiva, embora ela também se manifeste individualmente. Segundo as suas formulações, a memória individual é constituída a partir de noções comuns que são compartilhadas entre um grupo ou uma comunidade. [...] cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios (HALBWACHS, 1990, p. 51). Nesse sentido, o autor entende que a memória individual não é algo isolado, ela se desenvolve a partir de quadros de memórias coletivas, formados por momentos, experiências, pessoas e lugares que são compartilhados pelos indivíduos no presente (HALBWACHS, 1990; MURGUIA, 2010). Por isso, essa memória é permeada por constantes transformações, o que nos impede de a encerrarmos em uma única definição: “a memória coletiva obedece a ritmos que nenhuma razão analítica logrou explicar completamente. De todas as estruturas sociais, ela é provavelmente a mais enigmática” (ZIEGLER, 2011, p. 39). Para exemplificar, Halbwachs (1990) relembrou a sua primeira visita a Londres, comentando sobre os seus passeios pela cidade e suas observações. Ainda que tivesse caminhado sozinho pela capital da Inglaterra, suas impressões (lembranças) só foram possíveis através dos grupos com os quais ele teve contato anteriormente: seja um arquiteto, um amigo historiador, um escritor, um pintor, um comerciante que indicou algum caminho ou alguma loja, entre tantos outros. Aqui, podemos fazer um paralelo com os guias turísticos, os quais contratamos seus serviços para fornecer dicas e explicar detalhes sobre a história ou a arquitetura de alguma cidade que ainda não conhecemos. Através de suas explicações, somadas ao olhar atento dos turistas, é possível compor um quadro de lembranças compartilhadas sobre determinado lugar. Essas lembranças não ficam restritas apenas aos lugares que visitamos pessoalmente, afinal, quem não possui “quadros mentais” (sejam eles passados ou recentes) do Brasil, da Colômbia, de Paris ou do Egito, por exemplo? Mesmo que você nunca tenha visitado esses lugares, eles se fazem presentes em nossas “lembranças” através dos desenhos e filmes que assistimos, das fotografias ou dos cartões postais que recebemos, das conversas com quem mora ou já esteve lá etc. TÓPICO 1 — PERCURSOS DA MEMÓRIA 5 Não deixe de conferir as duas obras de Maurice Halbwachs: Les Quadres sociaux de la mémoire (Os quadros sociais da memória), de 1925, e La Mémoire collective (A memória coletiva), publicada cinco anos após a sua morte, em 1950. DICAS No ponto de vista do sociólogo austríaco Michel Pollak (1992), a memória individual é constituída pelos acontecimentos pessoais pelos quais cada indivíduo passa ao longo de sua vida, ao passo que a memória coletiva é aquela compartilhada pelos grupos aos quais os indivíduos se sentem pertencentes. Por serem complementares, uma pode ser facilmente confundida com a outra, como podemos perceber no relato do poeta chileno Pablo Neruda, ao abrir o seu livrode memórias, Confieso que he vivido (Confesso que vivi), publicado pela primeira vez postumamente, em 1974: Essas memórias ou recordações são intermitentes e às vezes esquecidas porque é exatamente assim que a vida é. A intermitência do sono permite sustentar os dias de trabalho. Muitas das minhas memórias foram borradas ao evocá-las, elas se transformaram em pó como vidro irreparavelmente ferido. As memórias do memorialista não são as memórias do poeta. Esse talvez viveu menos, mas fotografou muito mais e nos recria com a nitidez dos detalhes. Este nos dá uma galeria de fantasmas abalados pelo fogo e pelas sombras de seu tempo. Talvez eu não vivesse em mim; talvez eu tenha vivido a vida de outras pessoas. Do que deixei escrito nestas páginas sempre sairão – como nos bosques de outono e como nos tempos dos vinhedos – as folhas amarelas que morrerão e as uvas que reviverão no vinho sagrado. Minha vida é uma vida feita de todas as vidas: a vida do poeta (NERUDA, 2008, s.p., tradução da autora). Como vimos, as memórias individuais estão repletas de memórias coletivas, formando as chamadas “lembranças históricas”, que chegam até o nosso conhecimento através dos documentos, dos livros, das aulas, dos filmes, das fotografias ou dos relatos de quem vivenciou determinado momento da história, seja ela nacional ou mundial, e que tomamos essas lembranças como nossas. Para facilitar a compreensão sobre essas lembranças históricas, recorremos a um momento histórico específico: nenhum de nós estava presente fisicamente na chegada dos europeus ao continente americano, mais precisamente no Brasil, mas fazemos parte dessa lembrança histórica que nos identifica enquanto cidadãos brasileiros, pois ela ocupa “[...] um lugar na memória da nação” (HALBWACHS, 1990, p. 54), ainda que os sentidos de nação e de nacionalidade tenham sido construídos muito tempo depois e que “aquilo que se entende por cultura nacional muda de acordo com as épocas” (CANCLINI, 1994, p. 98). UNIDADE 1 — A MEMÓRIA SOCIAL NA PERSPECTIVA MUSEAL 6 Um dos elementos mais eficazes no entendimento de uma comunidade enquanto parte de uma cultura nacional ocorre por meio de celebrações, de festas, de feriados e demais comemorações que são introduzidas no calendário oficial de cada país e nutridas desde a idade escolar. No Brasil, o calendário contendo essas datas comemorativas entrou em vigor dois meses após a Proclamação da República, ocorrida em 15 de novembro de 1889. Segundo levantamentos da historiadora Elisabete da Costa Leal (2006), a lista das festas nacionais decretadas em 14 de janeiro de 1890 era a seguinte: QUADRO 1 – FESTAS NACIONAIS DECRETADAS EM 1890 FONTE: Adaptado de Leal (2006) DATA COMEMORAÇÃO 1° de janeiro Fraternidade universal 21 de abril Percursos da Independência (Tiradentes) 03 de maio “Descoberta” do Brasil 13 de maio Fraternidade dos brasileiros 14 de julho República, liberdade e independência dos povos americanos 07 de setembro Independência do Brasil 12 de outubro “Descoberta” da América 02 de novembro Dia dos Mortos 15 de novembro Pátria brasileira Como percebemos no quadro, existiam datas que faziam referência a outros países, “em nome do sentimento de fraternidade universal, da continuidade e solidariedade das gerações humanas, da ligação pátria com outros povos” (LEAL, 2006, p. 70), como o 1° de janeiro, o 14 de julho e o 12 de outubro – que desde 1930 é considerado o Dia da padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida – e popularmente conhecido como “Dia das Crianças”. Algumas dessas celebrações foram modificadas e outras entraram no calendário oficial, como veremos adiante. Na França, o dia 14 de julho é considerado feriado nacional, pois foi a data de início da Revolução Francesa, em 1789, com a Tomada da Bastilha. NOTA TÓPICO 1 — PERCURSOS DA MEMÓRIA 7 2.1 A INVENÇÃO DAS TRADIÇÕES As celebrações e datas comemorativas que mencionamos acima são utilizadas como símbolos da memória coletiva de determinados grupos e lhe conferem certa soberania e identidade. Por se tratar de uma “[...] operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar” (POLLAK, 1989, p. 9), a memória permite que, conforme o tempo passe, haja a continuidade e a institucionalização desses e de outros rituais, que estabelecem as bases do que conhecemos por tradição, ou mais precisamente aquilo que o historiador Eric Hobsbawm (1997, p. 9) denominou de “tradição inventada”, considerada [...] um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado. Hobsbawm (1997) assinalou que a “tradição” se diferencia do “costume” por sua invariabilidade, ou seja, “o passado real ou forjado a que elas se referem impõe práticas fixas (normalmente formalizadas), tais como a repetição. O museu a céu aberto, Colonial Williamsburg, ilustra muito essa ideia. Localizado no estado da Virgínia, nos Estados Unidos, o local busca reproduzir fielmente as construções e o cotidiano das pessoas que viviam na cidade desde o século XVIII, inclusive com vestimentas da época. Esses acessórios e rituais que se mantêm caracterizam o que Hobsbawm (1997, p. 21) chamou de “tradição inventada”, a qual, “[...] na medida do possível, utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal”. Muitos dos edifícios que compõem a cidade são construções originais que foram restauradas e algumas podem ser acessadas pelos visitantes: • Capitólio. • Hospital público. • Igreja paroquial. • Jardim. • Oficinas. • Palácio do Governador. • Prisão pública. • Tavernas. • Tribunal de Justiça. • Lojas para comercialização de acessórios para turistas. • Pousadas. • Restaurantes. UNIDADE 1 — A MEMÓRIA SOCIAL NA PERSPECTIVA MUSEAL 8 Você gostaria de voltar no tempo e conhecer um pouco mais sobre o estilo de vida daquele período? Então visite o site da instituição (Colonial Williamsburg) e veja de que forma eles apresentam e conservam certos hábitos e costumes do século XIX, em: https:// www.colonialwilliamsburg.org/ DICAS Assim como em Colonial Willemsburg, outras práticas semelhantes estão presentes em quase todos os museus ao redor do mundo, um verdadeiro ritual regido por uma série de normas específicas que devem ser seguidas (se você costuma frequentar bastante os espaços culturais, já deve estar familiarizado com essas regras): não podemos tocar nos objetos e nem fotografar (a menos que seja com o flash desligado); não podemos consumir bebidas e comidas nas salas de exposição (somente nos lugares reservados aos restaurantes e lanchonetes); em alguns lugares nem mesmo a entrada com bolsas e demais pertences pessoais é permitida. Alguns museus são mais “criativos” e parecem inventar a sua própria tradição, como é o caso do Museu Imperial, que fica na cidade de Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro. Por se tratar de uma construção histórica do século XIX, que serviu como residência de verão para a família real e posteriormente foi adaptada para se tornar um museu, as marcas no chão sempre foram uma de suas maiores preocupações. Por isso, quem visita a instituição deve retirar os seus sapatos e calçar duas pantufas, uma tradição presente desde a sua inauguração. Em 2015, cogitou-se substituir as tradicionais pantufas por outro modelo mais confortável, pois muitos visitantes reclamam da dificuldade em se locomover pelo palácio com elas, o que gerou dúvidas por parte de algunsvisitantes sobre a sua supressão. Contudo, a equipe do museu reconhece que esses acessórios fazem parte da história e da memória do museu, bem como são imprescindíveis para a conservação do piso. Informações retiradas da matéria - Museu Imperial estuda substituição das pantufas usadas na visitação. G1, 17/03/2015. Disponível em: http://g1.globo.com/rj/regiao- serrana/noticia/2015/03/museu-imperial-estuda-substituicao-das-pantufas-usadas-na- visitacao.html. Acesso em: 11 set. 2020. NOTA TÓPICO 1 — PERCURSOS DA MEMÓRIA 9 Você conhece o Museu Imperial, que possui um acervo especializado no período do Brasil Império? Vale muito a pena a visita! A instituição também oferece um tour virtual através do site: https://www.eravirtual.org/museu-imperial/ INTERESSA NTE Outro exemplo clássico e, ao mesmo tempo, contemporâneo, em que as tradições são instituídas e mantidas durante séculos é o da Monarquia, com destaque para a britânica, uma das mais longevas da história. No entanto, os tempos mudam e as antigas tradições também se transformam. No caso da família real britânica, ainda que “nada parece mais antigo e ligado a um passado imemorial do que a pompa que cerca a realeza britânica em quaisquer cerimônias públicas de que ela participe” (HOBSBAWN, 1997, p. 9), conseguimos perceber algumas alterações ao longo dos anos, especialmente as que foram introduzidas pela já falecida Princesa de Gales, Diana. O seu comportamento, visto muitas vezes como uma afronta às tradições da família real – parece ter sido um dos legados herdados pelos seus dois filhos, como observamos nos recentes casamentos do Príncipe William com Kate Middleton, em 2011, e do Príncipe Harry com Meghan Markle, em 2018. Ambas as mulheres com os quais os príncipes casaram não são descendentes da realeza, no entanto, é permitido que os títulos de nobreza possam ser concedidos após o casamento, como aconteceu com a própria Diana. Além disso, recentemente o casal Harry e Meghan anunciaram a sua renúncia às funções reais oficiais, optando por um estilo de vida mais tranquilo – o que pode ter desagradado muitos membros e admiradores da realeza britânica. Para compreender um pouco sobre a realeza britânica, assista aos filmes “A Rainha” (2006), dirigido por Stephen Frears e “O discurso do Rei” (2010), dirigido por Tom Hooper. Também indicamos as séries “The Tudors” (2007), de Michael Hirst, e “The Crown” (2016), de Peter Morgan. DICAS Através da instituição de práticas, de rituais e mesmo de fronteiras, cresce nos indivíduos uma ideia de pertencimento, independentemente do tamanho da coletividade: a referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis (POLLAK, 1989, p. 9). UNIDADE 1 — A MEMÓRIA SOCIAL NA PERSPECTIVA MUSEAL 10 Nesse sentido, a noção de tradição inventada valida a ideia de comunidades imaginadas, como veremos no próximo subtópico. 2.2 COMUNIDADES IMAGINADAS Corroborando com o pensamento de Eric Hobsbawm, o historiador Benedict Anderson (2008, p. 32) salientou que as nações podem ser definidas como “comunidades políticas imaginadas” que não apresentam um registro exato de sua emergência. Concebido como um produto cultural, o desenvolvimento da imprensa e do chamado capitalismo editorial tiveram um papel fundamental na imaginação das nações, que enquanto “comunidades” são coletivas e “imaginadas” porque não seria viável que todos os indivíduos se conhecessem, por menor que seja o território nacional que eles ocupem. O importante na análise de Anderson, é que ele identificou a “imaginação” não como uma fantasia ou mesmo uma falsificação, mas como uma criação: “este autor pôs em evidência que o nacionalismo é um artefato cultural e não um objeto natural, é uma ficção constituída historicamente” (CANCLINI, 1994, p. 99). Sendo assim, o entendimento da memória como uma construção simbólica por parte das teorias da linguagem e das ciências sociais permitiu “[...] a compreensão de que as representações coletivas podem ser responsáveis por processos de inclusão ou exclusão social” (SANTOS, 2012, p. 29). Dentre essas construções simbólicas, o imaginário teve grande importância, “afinal, a memória coletiva é aquela mais propriamente relacionada ao imaginário social instituinte” (BORGES; BOTELHO, 2010, p. 9). Isso justifica quadros de memória coletiva em que todos os membros de um determinado grupo parecem se “encaixar”, mesmo que não tenham vivido de fato determinados acontecimentos: o funcionamento da memória individual não é possível sem estes instrumentos que são as palavras e as ideias, as quais não são inventadas pelos indivíduos, mas que eles as empregam no seu meio (HALBWACHS, 1990, p. 54). Essas palavras e ideias, assim como as imagens que constituem o imaginário, que nas ciências humanas também é analisado sob o ponto de vista coletivo e social, assim como a memória (BACZKO, 1985). O próprio sentido de nação, como vimos, também é uma “construção imaginária” (CANCLINI, 1994, p. 98). Dessa forma, é necessário compreender que “[...] não há apenas ilusões nas reconstruções do passado, mas que memórias coletivas podem também ser compreendidas como um imaginário coletivo e, enquanto tal, a partir de sua condição histórica” (SANTOS, 2012, p. 196). Tomemos por exemplo os eventos que ocorreram na capital da França, Paris, no mês de maio de 1968, a partir de uma série de protestos que se iniciaram com os estudantes e depois se estenderam aos trabalhadores, todos contestando os valores sociais e políticos daquele período: “nos testemunhos e memórias, Maio TÓPICO 1 — PERCURSOS DA MEMÓRIA 11 de 68 é frequentemente evocado como um tempo de explosão do imaginário, como a irrupção da imaginação na praça pública” (BACZKO, 1985, p. 296). Esse movimento foi tão forte na história da França que ainda é rememorado toda vez que ocorrem protestos e manifestações públicas. Para o historiador Benjamin Stora (2018), os acontecimentos de maio de 1968 se juntaram à Comuna de Paris, à Revolução de 1848, à Frente Popular de 1936 e à Libertação de Paris em 1944 como os grandes marcos da história francesa na memória coletiva. Confira a entrevista de Benjamin Stora sobre Maio de 1968 no jornal El País, disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/23/cultura/1524504798_329892.html. Acesso em: 27 set. 2020. NOTA Assista ao documentário “1968”, de Patrick Rotman, e ao filme “Tout va bien” (1972), do cineasta francês Jean-Luc Godard para aprender um pouco mais sobre os protestos ocorridos naquele ano na França. INTERESSA NTE O “maio de 68” francês, assim como outras datas importantes na história de diferentes sociedades pode ser considerado uma experiência conjunta que marcou uma geração inteira e sempre será lembrado por suas reivindicações sociais e culturais: A memória está presente em tudo e em todos. Somos tudo aquilo que lembramos; somos a memória que temos. A memória não é só pensamento, imaginação e construção social, mas também uma determinada experiência de vida capaz de transformar outras experiências a partir de resíduos deixados anteriormente. A memória, portanto, excede o escopo da mente humana, do corpo, do aparelho sensitivo e motor e do tempo físico, pois ela também é o resultado de si mesma, ela é objetivada em representações, rituais, textos e comemorações (SANTOS, 2012, p. 30). Todavia, ainda que coletivas e compartilhadas, as memórias individuais estão repletas de subjetividades. Experimente conversar com sua família ou amigos a respeito de um acontecimento específico que tenha se passado em comum na vida devocês. Ao descrever esse momento, seja através da fala UNIDADE 1 — A MEMÓRIA SOCIAL NA PERSPECTIVA MUSEAL 12 ou da escrita, vocês certamente perceberão uma série de correspondências e até inconsistências nos relatos, detalhes e episódios que você e a outra pessoa não lembram. Isso acontecerá sempre que vocês retomarem essas narrativas, indicando que a memória é sempre viva e atual, afetiva e mágica: “[...] há tantas memórias quantos grupos existem” (NORA, 1993, p. 9), assim como há tantas memórias quanto indivíduos existem. Recomendamos aqui o filme brasileiro “Narradores de Javé”, dirigido por Eliane Caffé. O filme narra a história de uma pequena comunidade que mora em um vilarejo (Javé) e precisa se mobilizar para impedir a destruição do vilarejo por conta da construção de uma usina hidrelétrica. Como a maioria dos moradores é analfabeta, eles decidem coletar diferentes relatos para escrever a sua própria história, contada por um ex-morador alfabetizado, no intuito de demonstrar a sua importância histórica e auxiliar na preservação de seu patrimônio. Contudo, cada relato é completamente diferente do outro e nenhuma história parece fazer muito sentido. DICAS As demandas que o filme “Narradores de Javé” contemplam são fundamentais para a problematização do estudo da memória individual e coletiva e, também, da sua relação com a história e o patrimônio. Quando lidamos com certas memórias, dificilmente conseguimos “escapar” dos conflitos que elas evocam, especialmente quando acontecimentos dramáticos são lembrados por uns e esquecidos ou ignorados por outros. Esses conflitos dizem respeito a episódios relacionados à memória afetiva em si, mas também podem estar relacionados à disputa pelos bens patrimoniais, como veremos no próximo tópico. 3 MEMÓRIA E PATRIMÔNIO Quando falamos em patrimônio, o mais correto é aludirmos aos “patrimônios”, pois assim como as memórias, eles também são plurais. No Ocidente, a ideia de patrimônio foi formada a partir do estabelecimento dos estados nacionais, no final do século XVIII (LOWENTHAL, 1998), especialmente na França. No sentido jurídico, a palavra patrimônio está relacionada ao termo latim pater famílias, que na antiga Roma significava “pai de família”, ou seja, aquele que era responsável pelo cuidado de toda a sua família, assim como de seus bens materiais (RODRIGUES, 2003). Esse conjunto de bens é aquilo que denominamos de herança (heritage), passado de geração em geração, embora o patrimônio não se limite apenas aos bens físicos, mas se estenda à “experiência vivida” (CANCLINI, 1994, p. 99). TÓPICO 1 — PERCURSOS DA MEMÓRIA 13 As disputas que surgem no interior das famílias pela posse da herança também permeia o campo do patrimônio cultural, seja ele material ou imaterial. E geralmente essas disputas dizem respeito à memória de um determinado lugar ou de uma certa comunidade. São elas que permitem trazer à tona uma narrativa e ocultar ou silenciar outras, como veremos adiante. A relação entre a memória e o patrimônio é muito antiga, desde o período em que se formavam coleções privadas, que ainda não eram abertas ao público, já que o ato de colecionar possui uma forte ligação com a ideia de perpetuação. Para o antropólogo James Clifford (1994, p. 79), colecionar é uma prática universal, porém, no Ocidente ela possui um forte sentido de acumulação e preservação contra a “perda histórica inevitável”, que corrobora com a afirmação do filósofo Tzvetan Todorov (2000) sobre a obsessão ocidental pelo “culto da memória”, especialmente os europeus. No campo dos museus, o conceito de coleção varia de acordo com a sua natureza institucional ou conforme a natureza material ou imaterial de seus suportes (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013). Ao adentrar o espaço do museu, os objetos perdem o seu valor de uso, mas passam a carregar muitos significados, tornando-se objetos semióforos (POMIAN, 1984). Por exemplo: uma cadeira do século XIX não serve mais para sentar ou decorar uma casa, mas ela passa a recontar a história do lugar ao qual pertenceu; a família que a utilizou; a técnica de sua construção; o valor de mercado no contexto em que foi adquirida ou mesmo se fazia parte da herança de uma família; entre tantas outras ideias. Todas essas características fazem parte dos aspectos materiais dos objetos, dos quais podemos retirar muitas informações que, segundo Peter van Mensch (1986), podem ser informações do tipo intrínsecas (fornecidas a partir da análise de sua estrutura física) e extrínsecas (as mais difíceis de se obter, pois vão além de sua estrutura física, concentrando-se em sua historicidade). Mensch (1986) destacou os seguintes aspectos que devem ser considerados na análise dos objetos: Propriedades físicas: composição material; construção técnica; morfologia (forma espacial, dimensões, estrutura da superfície, cor, padrões de cor, imagens, textos). Função e significado: significado principal (da função e expressivo – valor emocional) e significado secundário (simbólico e metafísico). História: gênese, uso (inicial) e reutilização, deterioração (ou marcas do tempo), fatores endógenos e exógenos, conservação e restauração. Essas informações são reveladas após os objetos adentrarem uma coleção de museu, quando todas as memórias relacionadas a eles são retomadas no processo de musealização. UNIDADE 1 — A MEMÓRIA SOCIAL NA PERSPECTIVA MUSEAL 14 Denomina-se musealização o processo completo pelo qual o objeto passa após integrar a coleção de um museu, desde a sua coleta, pesquisa, documentação, conservação e comunicação (CURY, 2005). IMPORTANT E Os dados obtidos através da análise dos objetos são de extrema relevância para compor a sua biografia (KOPYTOFF, 2008), ou seja, o seu contexto de produção, de utilização e de circulação. Contudo, devemos lembrar que ao falarmos de memória sob uma perspectiva museal, estamos falando de memórias, ou seja, diferentes versões acerca de um determinado acontecimento, afinal, a memória possui um “caráter seletivo” (CHAGAS, 2009, p. 136, grifo nosso): A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações (NORA, 1993, p. 9). Tomemos como exemplo o dia 11 de setembro de 2001. Através de diferentes relatos, sabemos que muitas pessoas lembram exatamente onde estavam e o que faziam naquele dia, pois foi um acontecimento totalmente midiático, exibido ao vivo em praticamente todos os canais de televisão e de rádio do mundo: “[...] a mitologia que nasce a partir de determinado acontecimento sobreleva em importância o próprio acontecimento” (BACZKO, 1985, p. 296). Essa cobertura da mídia foi um dos fatores que contribuíram para a enorme repercussão desse acontecimento – sem mencionarmos a grande comoção por conta das inúmeras vidas que infelizmente foram perdidas naquele atentado. Contudo, quem lembra – ou mesmo conhece – o contexto dessa mesma data, mas no ano de 1973, em um território geograficamente mais perto de nós, no Chile? Enquanto os Estados Unidos sofriam em 2001 com um ataque terrorista às torres do World Trade Center, promovido pela organização fundamentalista islâmica Al-Qaeda, em 1973 a sede do governo chileno situada no Palácio de La Moneda sofreu um golpe militar que culminou com o assassinato do então presidente eleito, Salvador Allende, e o início do período ditatorial no país comandado pelo general Augusto Pinochet. TÓPICO 1 — PERCURSOS DA MEMÓRIA 15 A história da ditaduramilitar no Chile pode ser acompanhada através do documentário “A Batalha do Chile” (1975-1980), dirigido por Patricio Guzmán e dividido em 3 partes; “Salvador Allende” (2004), também sob direção de Patricio Guzmán; e “No” (2012), de Pablo Lorraín. DICAS Selecionamos esses dois acontecimentos para destacar que a memória social trata de distintas experiências. Por que alguns fatos são mais lembrados e outros menos? Quem mede o grau de importância de um evento em relação a outro, ainda que ambos tenham a mesma proporção? Afinal, falar sobre memória é também falar sobre esquecimento. E é sobre esses apontamentos que vamos discutir no próximo tópico. 16 Neste tópico, você aprendeu que: • A análise da memória nas Ciências Humanas enfatiza o seu caráter social. • Existem proximidades e distinções entre a memória individual e a coletiva. • Os conceitos de “tradições inventadas” e “comunidades imaginadas” são complementares. • A questão da memória é permeada pelas noções de construção e seleção. RESUMO DO TÓPICO 1 17 AUTOATIVIDADE 1 A memória, presente em diferentes sociedades desde os tempos antigos, caracteriza-se por suas múltiplas funções. Dessa forma, seu estudo já foi amplamente contemplado por diferentes autores. A partir das ideias que foram abordadas no presente tópico sobre o percurso da memória, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) A memória pode ser encaixada em um só conceito e o seu estudo deve ser abordado por apenas uma área do conhecimento. b) ( ) Por seu caráter polissêmico, tanto as Ciências Humanas quanto as Ciências Naturais têm se dedicado ao estudo da memória. c) ( ) A manifestação da memória pode ser evidenciada apenas nas instituições museológicas. d) ( ) As datas oficiais celebradas por um estado não possuem relação direta com a manutenção da memória de sua comunidade. 2 A diferença da análise da memória na área das Ciências Humanas refere- se, sobretudo, a sua manifestação enquanto um fenômeno social, que pode ser individual ou coletiva. Com base nos apontamentos sobre a memória coletiva, analise as sentenças a seguir: I- A memória individual não é constituída pelos quadros de memórias coletivas. II- É possível construirmos impressões sobre vários lugares sem nunca estarmos lá fisicamente. III- As lembranças históricas congregam memórias individuais e coletivas. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças II e III estão corretas. d) ( ) Somente a sentença III está correta. 18 19 TÓPICO 2 — UNIDADE 1 MEMÓRIA E ESQUECIMENTO 1 INTRODUÇÃO Como vimos até aqui, a memória é bastante dinâmica e seu estudo nos indica diferentes especificidades. Uma delas é a relação de interação entre as lembranças e o esquecimento, o que aponta para outra característica fundamental nos estudos da memória social: o seu caráter seletivo: “preservar sem escolher não é tarefa da memória” (TODOROV, 2000, p. 14). Tanto a lembrança quanto o esquecimento também podem ser individuais ou coletivas, voluntárias ou não. Assim como devemos prestar atenção tanto no que é dito quanto o não dito, aquilo que esquecemos pode indicar informações muito importantes a respeito de determinados acontecimentos. No campo do patrimônio, esses esquecimentos voluntários apontam para silenciamentos ou apagamentos que devem ser investigados e problematizados. É sobre esses aspectos das lembranças e esquecimentos que iremos nos deter no presente tópico. 2 LEMBRAR VERSUS ESQUECER Os laços entre a memória e o esquecimento foram bem explicitados no conto “Funes, o Memorioso”, do escritor argentino Jorge Luis Borges, publicado pela primeira vez em 1942. Na história, o narrador relembra do jovem Irineo Funes, capaz de lembrar de tudo, nos mínimos detalhes, tanto que essas lembranças o impediam até mesmo de dormir ou mesmo de pensar por conta própria: A memória está entrelaçada ao esquecimento e no conto o narrador assume o papel de rememoração dos fatos vividos pelo protagonista, enquanto a personagem Funes protagoniza a proteção da ameaça ao apagamento da memória, que pode ser causada pelo esquecimento, considerando que o ato de lembrar é o critério primordial para o não esquecimento (DURLO, 2018, p. 66). É como se não houvesse um passado e nem perspectivas de futuro para Funes, uma vez que a sua capacidade de memorização o deixava “preso” ao presente. No conto, fica clara a importância do esquecimento no processo da construção de nossas próprias memórias, pois imaginem como seria se lembrássemos de absolutamente tudo em nossas vidas e não conseguíssemos nos esquecer de nada? 20 UNIDADE 1 — A MEMÓRIA SOCIAL NA PERSPECTIVA MUSEAL Você poderá ler o conto “Funes, o memorioso”, de Jorge Luis Borges, ao final desta unidade. ESTUDOS FU TUROS O conto de Funes é sempre citado nos estudos sobre a memória, pois “o restabelecimento completo do passado é algo obviamente impossível” (TODOROV, 2000, p. 13), logo, ele nos auxilia a pensarmos criticamente sobre essa suposta possibilidade. Além disso, ele demarca também o seu aspecto seletivo. Aspecto esse que também deve ser problematizado, tanto em sua manifestação individual quanto coletiva, afinal, por que lembramos mais de certos eventos e suprimimos outros? Quem elege o que deve ser lembrado, comemorado e o que deve ser esquecido? Certamente todos têm o direito de recuperar seu passado, mas não há razão para erigir um culto à memória por causa da memória; sacralizar a memória é outra forma de torná-la estéril. Uma vez restaurado o passado, a questão deve ser: para que ele pode ser usado e para que fim? (TODOROV, 2000, p. 23). Aqui, indicamos novamente o papel da memória coletiva na constituição de memórias particulares, característica essa que é fortemente veiculada através de instituições públicas e privadas, bem como o papel do Estado nacional, como vimos anteriormente: Lembrar, esquecer e comemorar são ações de memória inerentes ao ser humano. Comemorar é típico das sociedades humanas. Não há país que, no seu processo de construção de identidade nacional, não promova e cultue seus fatos e acontecimentos mais relevantes a serem lembrados à posteridade, seja através do registro de sua história, seja na edificação de monumentos, seja na celebração de datas comemorativas e rituais cívicos (ORIÁ, 2012, p. 07). Todos esses aspectos – comemorações, festas, construção de monumentos, estabelecimento de rituais cívicos – são considerados elementos constitutivos da memória social coletiva, como vimos no tópico anterior a respeito da criação de calendários oficiais. Erguem-se monumentos, celebram-se datas ou personagens históricos, demarcam características específicas de uma comunidade para consolidar uma memória – forjada ou não. Contudo, existe uma “[...] relação de oposição e complementaridade entre lembrança e esquecimento” (MURGUIA, 2010, p. 8), uma dialética que pode gerar uma série de tensões. É sobre essas associações e tensões que iremos nos deter agora. TÓPICO 2 — MEMÓRIA E ESQUECIMENTO 21 2.1 IMAGINÁRIO MONUMENTALISTA A memória coletiva passou por importantes transformações após o surgimento da escrita, sobretudo na sua forma de transmissão (e demarcação) através da celebração por meio da inscrição de nomes, de datas e de fatos históricos em diferentes suportes – inclusive os monumentos: “o monumento tem como características o ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva)” (LE GOFF, 1990, p. 536). Esses monumentos compõem o imaginário monumentalista, termo utilizado por Garcia Canclini (1994) para se se referir à relação entre o Estado e à construção de monumentos, elencadospelo historiador francês Pierre Nora (1984) como um dos tantos lugares de memória. No Egito antigo, monumentos como estelas e obeliscos eram erguidos em um único bloco de pedra (ou madeira, no caso das estelas) e recebiam “inscrições, relevos ou pinturas” (BRANCAGLION JR, 2001, p. 155). As estelas (do grego stela – “pedra erguida”) mais comuns são as funerárias e são consideradas documentos materiais valiosos para a compreensão da história egípcia antiga (além de serem encontradas em outros povos e culturas, como os maias). A maior parte de seus textos referem-se à religião e à magia, mas também à propaganda política (BRANCAGLION JR, 2001). Já os obeliscos são um “[...] monólito vertical, com uma seção quadrada afunilando para cima. Seu topo é esculpido na forma de uma pirâmide” (HASSAN, 2003, p. 27, tradução nossa). Conhecidos como tekhenu (raio de sol) no Egito, eram erguidos como homenagem ao deus do sol, mas a nomenclatura mais utilizada foi dada pelos gregos: obelisko (agulha). A partir daí, a sua forma foi apropriada por diferentes sociedades que lhe deram outras formas e novos significados. Na Antiguidade, alguns imperadores tinham o hábito de ordenar a transferência desses monumentos para suas cidades, como ocorreu em Roma, “[...] como uma marca de seu poder imperial e posse do Egito e de seu passado antigo” (HASSAN, 2003, p. 38, tradução nossa). Essa atitude evidencia a ligação intrínseca entre a memória e o poder, como veremos no decorrer desta unidade: “memória e poder exigem-se” (CHAGAS, 2009, p. 136). Assim como os obeliscos, outros elementos do Egito antigo foram apropriados em algum momento da sua longa história invasões e ocupações estrangeiras. Embora sua terminologia não seja tão comum, os obeliscos podem ser encontrados em todo território brasileiro e no exterior. Assim como em outros países ocidentais, a escolha para os obeliscos no Brasil segue determinados modelos, seja “para homenagear personalidades e figuras públicas, para funcionar como marcos de fronteiras, para celebrar datas e, por fim, para caracterizar e exaltar colônias de imigrantes em determinadas regiões” (BAKOS; BRITO, 2004, p. 75). IMPORTANT E 22 UNIDADE 1 — A MEMÓRIA SOCIAL NA PERSPECTIVA MUSEAL A aproximação entre a memória e o poder nesse período também era evidenciada através da gravação do nome das pessoas ou do registro dos atos dos governantes. Os faraós chegavam a ordenar o apagamento do nome de seu antecessor dos templos e monumentos para que os seus feitos não fossem conhecidos, a exemplo do que ocorria em Roma por meio do damnatio memoriae, ou seja, a destruição do nome do imperador dos documentos e monumento (LE GOFF, 1990). Após a conversão de muitos egípcios ao Islã, os coptas (cristãos egípcios) costumavam transformar os templos (considerados pagãos) em igrejas e gravar sobre eles o seu símbolo: a cruz copta, numa tentativa de apagar aquela memória e consolidar a sua própria (VERCOUTTER, 2002), como podemos observar na fotografia abaixo. FIGURA 1 – CRUZ COPTA GRAVADA EM UM PILAR DO TEMPLO DE PHILAE, EM ASSUÃ, EGITO FONTE: A autora (2017) Atualmente, os coptas são minoria no Egito e ainda sofrem muita discriminação e perseguição religiosa por parte dos fundamentalistas islâmicos. Eles costumam tatuar no seu pulso direito a cruz copta, como uma marca identitária e uma forma de se proteger dos sequestros que obrigam à conversão forçada. No Ocidente, a associação entre memória e esquecimento contida nos monumentos pôde ser evidenciada logo após o término da Revolução Francesa e seguiu-se após a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, com a proliferação da edificação de túmulos (“comemoração funerária”) e outros monumentos memorialísticos em homenagem aos mortos, além da propagação dos cemitérios e do ritual de cerimônias e visitas a esses locais (LE GOFF, 1990). TÓPICO 2 — MEMÓRIA E ESQUECIMENTO 23 Os cemitérios são lugares de memória que congregam arte, história e religião. Atualmente, há muitos estudos que abordam a arte cemiterial (funerária/tumular), formada por conjuntos arquitetônicas, esculturas e pinturas. Tidos como museus a céu aberto, muitos passeios são realizados como atividades de Educação para o patrimônio. Se informe e veja se na sua cidade não existe um tour pelos cemitérios regionais. Para saber mais, assista ao vídeo sobre arte tumular em: https://www.youtube. com/watch?v=4QlnIfhU9kE INTERESSA NTE Assim como os cemitérios e a arquitetura funerária, o surgimento e desenvolvimento da fotografia no final do século XIX e início do século XX são apontados por Le Goff (1990, p. 466) como manifestações da memória coletiva, uma vez que ela “[...] revoluciona a memória: multiplica-a e democratiza-a, dá-lhe uma precisão e uma verdade visuais nunca antes atingidas, permitindo assim guardar a memória do tempo e da evolução cronológica”. Tanto os monumentos de “pedra e cal” quanto as fotografias podem sofrer destruição ou danos intencionais com vistas ao apagamento do registro de memórias anteriores. Nos museus, esse apagamento diz respeito ao silenciamento ou à ocultação de histórias e narrativas distintas, aquilo que Le Goff (1990) apontou como uma forma de manipulação da memória coletiva, como será demonstrado no próximo tópico. 3 APAGAMENTOS E SILENCIAMENTOS DA MEMÓRIA Assim como na História, a memória é um dos temas centrais no campo de estudos da Museologia. A própria palavra da qual se origina o termo museu – mouseion – referia-se ao antigo templo das nove musas, filhas de Zeus e de Mnemosine. Ele, deus do poder e da autoridade, e ela, deusa da memória e da reminiscência. Segundo a mitologia grega, no decorrer de nove noites de amor entre ambos nasceram as nove musas, cada uma com um atributo das Artes e das Ciências, como observamos na listagem abaixo (BERENS, 2009): Calíope: canção heroica, poesia épica. Clio: história. Erato: amor, canções nupciais. Euterpe: harmonia, música. Melpomene: tragédia. Polímnia: hinos sagrados. Tália: comédia. Terpsícore: dança. Urânia: astronomia. 24 UNIDADE 1 — A MEMÓRIA SOCIAL NA PERSPECTIVA MUSEAL O mouseion funcionava como “[...] uma mistura de templo e instituição de pesquisa, voltado sobretudo para o saber filosófico” (SUANO, 1986, p. 10). No período em que o Egito foi governado pela Dinastia dos Ptolomeus, a cidade de Alexandria abrigou um grande mouseion, “[...] cuja principal preocupação era o saber enciclopédico” (SUANO, 1986, p. 11). Lá foram reunidas obras de arte, objetos de uso cirúrgico, pedras e minerais, pele de animais, entre outros. Também havia espaço para um anfiteatro, uma biblioteca, um jardim botânico e um zoológico (SUANO, 1986). Ao longo do tempo, a ideia de museu foi sendo modificada de acordo com diferentes sociedades e a sua concepção moderna teve início a partir da abertura das coleções privadas ao público e, com isso, a sua institucionalização. Contudo, os silenciamentos ou apagamentos da memória integram a história dos museus, uma vez que ela “[...] é sempre vaga, fragmentária, incompleta, sempre tendenciosa em alguma medida. A memória faz que os dados caibam em esquemas conceituais, reconfigura sempre o passado tendo por base as exigências do presente” (ROSSI, 2010, p. 28). Até porque, por mais que muitos museus sejam considerados enciclopédicos ou universalistas – aqueles que procuram contar a história de diferentes sociedades –, seria impossível dar conta de tudo, logo, devem optar pelas narrativas que terão espaço em suas exposições: “é importante aceitarmos que há várias formas de lidar com o passado e que todas elas envolvem interesse, poder e exclusões” (SANTOS, 2012, p. 37). Algumas memórias referem-se ao “direito de esquecer” (HEYMANN, 2006) e são propositalmentesilenciadas devido à dor que causa revisitá- las: são as chamadas memórias traumáticas, provocadas por algum episódio traumático que deixam feridas abertas tão profundas e difíceis de cicatrizar. Muitos acreditam que é mais fácil conviver com essa dor se ela for ignorada. Para outros, falar e lembrar constantemente pode ser um caminho para a cura e, quem sabe, a superação: “a consciência coletiva precisa então, lentamente, vencer o medo do horror vivenciado” (ZIEGLER, 2011, p. 40). Nas Ciências Humanas, uma das metodologias que exploram a escuta e a fala de pessoas que experienciaram determinados acontecimentos é a História Oral, termo pelo qual ficaram conhecidas as chamadas “histórias de vida”, e se tornou “[...] um instrumento privilegiado para abrir novos campos de pesquisa” (POLLAK, 1992, p. 207). Ao trazer para o centro da história aqueles que anteriormente pareciam não ter voz, essa metodologia possibilitou um avanço nos estudos sobre a memória e a produção de uma vasta documentação especializada: Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à "Memória oficial", no caso a memória nacional (POLLAK, 1989, p. 4). TÓPICO 2 — MEMÓRIA E ESQUECIMENTO 25 No Brasil, uma das experiências que explora ao máximo a utilização da história oral é o Museu da Pessoa. Definido como “um museu virtual e colaborativo de histórias de vida” (MUSEU DA PESSOA, 2020), ele foi criado em 1991, mas passou a ocupar um espaço virtual seis anos depois. Tendo como missão “transformar a história de toda e qualquer pessoa em patrimônio da humanidade” (MUSEU DA PESSOA, 2020), a instituição visa combater a intolerância através do compartilhamento de diferentes histórias, pois considera que “ouvir é o primeiro passo para transformar seu jeito de ver o mundo” (MUSEU DA PESSOA, 2020). Atualmente, o seu acervo conta com mais de dezoito mil histórias de vida e mais de sessenta mil fotos e documentos. Já foram realizados mais de trezentos projetos relacionados à memória e uma centena de exposições físicas e virtuais. O museu soma mais de noventa publicações e já foi agraciado com dezoito prêmio nos âmbitos de memória empresarial, inclusão digital e educação (MUSEU DA PESSOA, 2020). Para conhecer mais sobre o trabalho e as ações desenvolvidas pelo museu, acessem o site oficial: museudapessoa.org e suas páginas no Facebook e Instagram. Você também pode colaborar com o acervo da instituição enviando a sua própria história de vida. NOTA A História Oral também é bastante utilizada atualmente para dar voz às vítimas de atentados e outros crimes contra a humanidade, como os períodos de ditadura e guerra. Em agosto de 2020, o atentado contra o Japão através do lançamento de bombas atômicas pelos Estados Unidos completou setenta e cinco anos. Para rememorar esse acontecimento, a fotojornalista Lee Karen Stow decidiu contar a história de três mulheres sobreviventes através de entrevistas e fotografias: “muitos hibakusha morreram sem poder falar sobre essas coisas, ou sobre sua amargura pelo bombardeio. Eles não podiam falar, então eu falo”, disse Emiko Okada, que tinha apenas oito anos na época dos ataques. Lee Stow nasceu na Inglaterra, em 1966. Sua mãe e sua avó sobreviveram aos ataques ocorridos em sua cidade natal durante a Segunda Mundial, mas nunca tiveram a oportunidade de falar sobre aquele período. Encorajada pela trajetória de ambas, a jornalista decidiu dedicar a sua carreira para dar voz às mulheres que sobreviveram aos horrores da guerra. 26 UNIDADE 1 — A MEMÓRIA SOCIAL NA PERSPECTIVA MUSEAL No Japão, Hibakusha é o nome dado aos sobreviventes dos ataques das bombas atômicas. As imagens e declarações das mulheres entrevistadas por Lee Stow podem ser vistas em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53670979. NOTA Durante muito tempo, a escrita da história dedicou a sua atenção apenas a certos indivíduos ou grupos sociais específicos em detrimento dos demais. O que se convencionou denominar de “memória nacional”, aponta apagamentos e silenciamentos que propositalmente selecionam datas e festas específicas para serem incorporadas ao calendário oficial em detrimento de outras: a memória organizadíssima, que é a memória nacional, constitui um objeto de disputa importante, e são comuns os conflitos para determinar que datas e que acontecimentos vão ser gravados na memória de um povo (POLLAK, 1992, p. 204). Todavia, como a história está em constante transformação, de tempos em tempos observamos a emergência de muitas dessas memórias que antes estavam escondidas. Vamos conhecer algumas delas no próximo subtópico. 3.1 LEMBRAR É RESISTIR Para demonstrar de que forma a história pode ser reescrita, selecionamos algumas iniciativas contemporâneas que visam à construção (ou mesmo a reconstrução) de novas memórias, bem como a problematização da falta de visibilidade de determinados grupos nos espaços culturais e em outras formas de manifestações, como as celebrações. Desde 2003, a Lei n° 10.639, de 9 de janeiro, que dispõe sobre a inclusão da temática de “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo da Rede de Ensino determina que as escolas celebrem o Dia Nacional da Consciência Negra, reservado à data 20 de novembro, escolhida por ser a morte do líder do Quilombo dos Palmares no período colonial, Zumbi. Oito anos depois, a data foi oficializada após a publicação da Lei n° 12.519, de 10 de novembro, que institui o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, porém, cada estado e município possui autonomia para determinar se esse dia será feriado ou não. Independentemente da escolha, o dia é marcado por eventos e manifestações que traduzem a luta do povo negro por mais igualdade, justiça e direitos. Em 10 de março de 2008, a Lei n° 11.645 inclui ao ensino de História e Cultura Afro-Brasileira a temática indígena, como disposto no parágrafo 1° do Artigo 26-A: TÓPICO 2 — MEMÓRIA E ESQUECIMENTO 27 O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil (BRASIL, 2008). Assista no YouTube, o vídeo intitulado “ONU Brasil lança documentário sobre o Dia da Consciência Negra”, em: https://www.youtube.com/watch?v=m6NJQyRPW7o DICAS A inclusão dessas disciplinas no currículo escolar é de extrema importância para demarcação de outras memórias e o reconhecimento de outras formas de escrita da história. Como vimos no primeiro tópico, muitos momentos históricos foram construídos a partir de um conjunto de tradições inventadas que perduram até os dias atuais. A colonização da África (e de outros continentes) é uma delas: As tradições inventadas das sociedades africanas – inventadas pelos europeus ou pelos próprios africanos, como reação – distorceram o passado, mas tornaram-se em si mesmas realidades através das quais se expressou uma incrível quantidade de conflitos coloniais (RANGER, 1997, p. 220). Esse tipo de distorção pode ser verificado na literatura através das memórias dos viajantes e mesmo nos escritos sobre períodos de guerra ou de ocupação militar de diferentes territórios.Durante a invasão do Egito pelas tropas napoleônicas no final do século XVIII, os artistas que compunham a Comissão de Ciências e Artes de Napoleão Bonaparte reuniram anotações, desenhos e pinturas sobre os lugares que passavam que foram compilados e publicados posteriormente em uma obra com mais de vinte volumes, intitulada “Description de l’Égypte”. Essa obra é uma das mais famosas no avanço dos estudos sobre o Egito antigo, pois contém informações sobre diferentes áreas da região, além de ilustrações detalhadas dos monumentos (VERCOUTTER, 2002). 28 UNIDADE 1 — A MEMÓRIA SOCIAL NA PERSPECTIVA MUSEAL O título completo da obra é: Description de l'Égypte, ou Recueil des observations et des recherches qui ont été faites en Égypte pendant l'expédition de l'armée Française, e foi publicada pela Commission des Sciences et des Arts en Egypte. NOTA Essa obra foi publicada durante anos e teve uma grande repercussão em toda a Europa. Entretanto, existe outra obra do mesmo período que oferece uma narrativa distinta sobre a ocupação francesa, escrita por um egípcio. Trata-se da Al-Jabarti’s Chronicle of the French Occupation, 1798 (“Crônica da Ocupação Francesa de Al-Jabarti, 1798”), no qual o escritor árabe contesta as justificativas dadas pelos franceses durante o período em que ocuparam o Egito. Se na Description os franceses tentaram “normalizar” e justificar a presença estrangeira no Egito, nas Chronicle o escritor árabe se viu envolvido emocionalmente durante o período: “a divergência entre a política que produz a Description e a reação imediata de Jabarti é profunda, ressaltando o terreno que disputam com tamanha desigualdade” (SAID, 2011, p. 78). As crônicas de Al-Jabarti deslocam-se para outra forma de enunciação, que permite uma nova visão sobre o mesmo acontecimento. Esse deslocamento de enunciação permite que a história seja recontada pelos seus próprios protagonistas, que antes eram apenas espectadores. Assim como os povos colonizados, durante muito tempo as mulheres ficaram à margem da história, predominantemente masculina e branca. Relegadas ao espaço do lar, encarregadas de cuidar exclusivamente da casa, do marido e dos filhos, a conquista dos direitos das mulheres foi (e ainda é) uma luta constante. Na década de 1920, encontramos na imprensa o registro da partida de futebol disputada por mulheres, no entanto, essa partida aparece como uma apresentação circense. Isso mesmo! Os jogos realizados pelas mulheres eram vistos como um tipo de “espetáculo” de entretenimento e não tinham equivalência alguma com os jogos de futebol masculino, até porque era visto como um esporte muito violento para a prática feminina. Vinte e um anos depois, o futebol feminino foi oficialmente proibido pelo Conselho Nacional de Desportos (CND) e só foi cancelado em 1979. Imagens e outros conteúdos sobre a participação das mulheres na história do futebol fazem parte do acervo do Museu do Futebol. Algumas informações podem ser encontradas no site: https://interativos.globoesporte.globo.com/futebol/selecao-brasileira/ especial/historia-do-futebol-feminino NOTA TÓPICO 2 — MEMÓRIA E ESQUECIMENTO 29 Assim como no esporte, as mulheres também ocupam um lugar secundário no mundo das artes e dos museus, como asseguram os dados recolhidos pelo coletivo “Mulheres nos Acervos”, um projeto colaborativo que iniciou em 2018 a partir da reunião de quatro estudantes do curso de História da Arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Inicialmente foi realizado um levantamento quantitativo e qualitativo sobre a presença de artistas mulheres nos acervos de artes visuais de cinco instituições públicas da cidade de Porto Alegre, que apresentou como resultado 32% de mulheres (764) e 58% de homens (1.388). Informações disponíveis em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/ artes/noticia/2019/06/pesquisa-mostra-que-mulheres-representam-um-terco-dos- artistas-nos-acervos-publicos-da-capital-cjxfamsip01q401pk7mew12ay.html. Acesso em: 24 ago. 2020. NOTA A partir desses resultados, o grupo buscou “compreender e questionar as políticas de aquisição e exibição das instituições estudadas em relação à produção de artistas mulheres” e “fornecer dados que fomentem outras relações e pesquisas no tocante à história da arte produzida no Rio Grande do Sul”. Assim, o grupo já participou de algumas atividades realizadas na cidade, como a abertura da exposição “REGISTRO N.3”, no qual apresentou uma faixa de tecido com os nomes de todas as artistas mulheres elencadas na pesquisa e realizaram a curadoria da exposição “Artistas Mulheres: territórios expandidos”, que integrou a programação do 33° Festival de Arte da cidade de Porto Alegre, ocorrido em 2019. Para conhecer mais sobre o projeto “Mulheres nos Acervos”, visite o site: www.mulheresnosacervos.com DICAS Esses são apenas alguns casos que demonstram a discrepância entre diferentes memórias. A dinâmica entre lembrança e esquecimento é inerente à memória. Sendo assim, é de extrema importância que sejam reveladas tantas narrativas quanto forem permitidas. Nenhuma versão se encerra nela mesma e é preciso que variadas experiências venham à luz para serem criticamente analisadas. Essas experiências ganham espaço nos lugares destinados à preservação da memória, assunto que abordaremos no próximo tópico. 30 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • Não existe memória isolada de esquecimento. • Os apagamentos na história possuem objetivos bem definidos. • A memória está relacionada ao poder. • É preciso sempre problematizar a relação entre lembrança e esquecimento. 31 1 Sabemos que as lembranças e os esquecimentos podem ser voluntários ou involuntários. No âmbito do patrimônio cultural – especificamente os museus – a escolha pelo que deve ser lembrado geralmente oculta o que deve ser esquecido (ou silenciado). De acordo com essa premissa, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: ( ) As narrativas presentes nas exposições dos museus necessitam de problematizações que levem ao pensamento crítico. ( ) Os museus são instituições imparciais, logo, o são também os discursos a ele vinculados. ( ) A função principal dos museus é de mostrar a verdade dos acontecimentos por meio de exposições e ações educativas. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V - F - F. b) ( ) V - F - V. c) ( ) F - V - F. d) ( ) F - F - V. 2 Durante o período da Ditadura Militar no Brasil, muitos artistas foram perseguidos e outros exilados, acusados de se oporem às normas vigentes impostas pelo governo ditatorial. Algumas músicas foram censuradas e proibidas de tocarem nas rádios por fazerem alusão a ideias políticos, como observamos na imagem abaixo: FONTE: https://www.tenhomaisdiscosqueamigos.com/2019/04/03/musicas-censuradas- ditadura-militar/. Acesso em: 24 ago. 2020. AUTOATIVIDADE 32 A imagem é sobre a letra da música “Hoje É Dia de El-Rey”, de Milton Nascimento, que traz a conversa de um filho e seu pai. Os censores a vetaram, por conter “conteúdo nitidamente político”, como vemos nos escritos acima. Faça uma breve pesquisa sobre outras letras de músicas que foram vetadas pela censura e disserte sobre o assunto. 33 TÓPICO 3 — UNIDADE 1 LUGARES, VONTADES E DEVERES DE MEMÓRIA 1 INTRODUÇÃO Enquanto construção, imaginação e sentido de coletividade, a memória está associada à vontade de perpetuação e de continuidade, como vimos nos apontamentos sobre o ato de colecionar. Com o passar do tempo, a consagração de lugares intencionais destinados à preservação da memória fica cada vez mais evidente: “o sentimento de continuidade torna-se residual aos locais. Há locais
Compartilhar