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Limitações das categorias de gênero - A invenção das Mulheres (1)

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A Invenção das Mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero 
Oyèrónké Oyěwùmí 
 Importante dizer que Oyèrónké Oyěwùmí é nigeriana de origem iorubá, é mãe, seu pai é Ṣọ̀ún, de Ògbọ́mọ̀sọ́, cidade da atual Nigéria, na região de Oyó-Iorubá. Ṣọ̀ún foi traduzido como “monarca” no livro, o que nos dá ideia do seu lugar social. Desde os 16 anos, a autora vive com sua família no ààfin Ṣọ̀ún, um palácio em Ògbọ́mọ̀sọ́. Oyěwùmí é cientista política, socióloga, professora na Universidade Estadual de Nova Yorque em Stony Brook, onde ela ministra aulas sobre gênero, globalização e teoria feminista. Seu trabalho é interdisciplinar, com foco na sociologia do conhecimento a partir de perspectivas africanas.
A invenção das mulheres é o primeiro livro publicado por Oyěwùmí, é resultado da sua tese de doutorado defendida em 1993 na Universidade de Berkeley, na Califórnia. Apesar de sua obra ter sido premiada por ser um Livro destaque em 1998 na seção de gênero e sexo da Associação Americana de Sociologia também ter sido finalista para o Prêmio Herskovitts da Associação de Estudos Africanos no mesmo ano, o livro só é traduzido para o português após 28 anos de sua publicação, ou seja, em 2021 a editora bazar do tempo publica ele traduzido para o português no Brasil. 
	Além desse livro, Oyěwùmí tem várias outras publicações, destaquei algumas aqui como: epistemologia de gênero em Africa: tradições, espaços, instituições sociais e identidade de gênero, que foi publicado em português pela editora Ananse. O livro que eu fiz uma tradução livre do título: “Mulheres africanas e feminismo: refletindo sobre a política da sororidade”, também o livro: “O que é gênero e maternidade: mudando os ideais Yoru Ba de poder, procriação e identidade na era da modernidade” e o livro “Estudos Africanos de Gênero”. 
O trabalho de Oyeronke busca trazer para um primeiro plano, o ponto de vista Africano que permanece em grande parte desconhecido e sub-representado na academia. Grande parte de sua pesquisa acadêmica e da sua escrita baseia-se em experiências africanas para discutir e ampliar a compreensão acadêmica para além da cultura ocidental. Em toda a sua obra, a intenção é fornecer uma compreensão mais completa das diversas formas através das quais as sociedades se apresentam, sociedades essas que são extremamente complexas e que também estão em estado de constante mudança e, portanto, não podem ser entendidas através de formulações generalistas.
No livro “A Invenção das Mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero” a autora nos conta que em um primeiro momento ela pretendia realizar um estudo de gênero em uma comunidade iorubá contemporânea, e que a medida que o trabalho foi se desenvolvendo ela percebeu que dependendo de teorias e de debates originados e dominados pelo ocidente ela não teria condições de responder muitas das questões que orientaram o projeto de pesquisa inicial dela. 
Buscando resolver esse problema, Oyeronke faz um estudo para entender a base epistemológica das culturas ocidental e iorubá. No primeiro capítulo a autora do livro vai analisar como o pensamento social ocidental está enraizado na biologia, a qual usa o corpo como fundamento da organização social, ela também vai examinar como o Ocidente possui um domínio sobre a constituição do conhecimento sobre a África e as implicações dessa posição privilegiada como referência nos Estudos Africanos. 
A principal unidade de análise que a autora adota é a cultura Oyó-Yorubá, devido justamente ao engajamento que ela possui com a língua iorubá falada pelos Oyós, e pela linguagem ser um elemento central para esse tipo de estudo. Então, a autora localiza muito bem em qual sociedade africana ela está fazendo a análise e também ressalta que apesar desse tipo de estudo ser aplicável para outras sociedades africanas ela chama atenção para não cair em armadilhas que buscam apagar a multiplicidade de culturas africanas através de processos de generalizações e homogeneização dessas culturas. 
Ao procurar identificar categorias que organizam o mundo social ocidental, a autora identifica a ideologia do determinismo biológico, ela identifica que é a biologia que vai fornecer a base lógica para a organização do mundo social ocidental. A lógica cultural é o que ela chama de bio-lógica. Ela também vai entender como a categoria social de mulher é construída e entendida dentro desse mundo ocidental, que são categorias baseadas a partir de relações e oposições de corpos, ou seja, a categoria mulher é um tipo de corpo que é elaborado em relação e em oposição a uma outra categoria - homem. 
A noção de sociedade Ocidental emerge da concepção de que a sociedade é constituída por corpos: corpos masculinos, corpos femininos, corpos judaicos, corpos arianos, corpos negros, corpos brancos, corpos ricos, corpos pobres, e por esses corpos está sempre em vista e à vista, isso invoca um olhar, um olhar de diferença de diferenciação, no qual o olhar generificado é o que historicamente é mais constante. 
Então, essas diferenças entre os corpos é percebida através da visão, através do ato de olhar, isso por que dentro de uma lógica ocidental o mundo é percebido principalmente através da experiência da visão. O olhar é um convite para diferenciar, diferenciar em termos de sexo, em termos de cor da pele, em termos de tamanhos de crânios. Oyeronke ela faz uma análise de como essa valorização do olhar está impresso nas terminologias, por exemplo, o termo “cosmovisão” que é um termo utilizado no Ocidente para resumir a lógica cultural de uma sociedade, capta o privilégio ocidental do visual. Termos como esse, de acordo com a autora, é eurocêntrico e não pode ser utilizado para descrever culturas que podem privilegiar outros sentidos, como a escuta como a fala, então ela sugere um termo mais inclusivo “cosmopercepção” para descrever os povos iorubás ou outras culturas que podem privilegiar sentidos que não sejam o visual ou, até mesmo, uma combinação de sentidos.
A autora nos explica que a categoria mulher, por exemplo, que é uma categoria fundacional nos estudos de gênero ocidentais, não existia na Iorubalândia antes do contato mantido com o ocidente. Dessa forma, a autora procura documentar por que e como o gênero veio a ser construído na sociedade iorubá do sudoeste da Nigéria (a Iorubalândia foi formalmente colonizada pelos britânicos entre 1862 e 1960) e como o gênero é constituído como uma categoria fundamental nos estudos acadêmicos sobre os povos iorubás. 
A principal questão abordada por Oyeronke é: quais são as relações entre, por um lado, as distinções bioanatômicas e as diferenças de gênero como parte da realidade social e, por outro, as construções de gênero como algo que quem observa traz para uma situação particular observada?
A partir desse objetivo e dessa questão principal de pesquisa a autora vai problematizar várias ideias que são comuns na escrita feminista ocidental. 
· Primeiro a ideia de que as categorias de gênero são universais e atemporais e por isso estão presentes em todas as sociedades, em todos os tempos, amém. Isso porque muitas vezes essa ideia é apresentada com um tom bíblico e como se sugerisse que “no princípio era o gênero”. 
· Segundo ela problematiza a ideia que o gênero é entendido como um princípio organizador fundamental em todas as sociedades e, portanto, é sempre proeminente. Em qualquer sociedade, o gênero está em todo lugar.
· Depois ela problematiza a categoria mulher enquanto uma categoria essencialista e universal que é caracterizada pela uniformidade social de seus membros. 
· Ela também vai criticar a ideia de que a subordinação das mulheres é uma realidade em todas as sociedades. 
· e por fim ela vai problematizar a categoria mulher como uma categoria pré-cultural fixada no tempo e no espaço cultural, em antítese a outra categoria fixada que é o “homem”.
	
	Então a autora vai sustentar a ideia de que na sociedade iorubá pré-colonial o tipo de corpo não era a base da hierarquia social:machos e fêmeas não eram estratificados de acordo com a distinção anatômica. A organização social iorubá exigia um tipo diferente de mapa, e não um mapa de gênero que supõe a biologia como a base para a classificação social.
	Ela nos explica que na lógica iorubá pré-colonial o corpo não era a base para a classificação social, em nenhuma situação na sociedade iorubá, um macho foi, em virtude de seu tipo de corpo, inerentemente superior a uma fêmea, mas isso também não significa afirmar que não existia uma organização hierárquica, essa organização era estabelecida a partir de outros critérios.
Essa classificação primeiramente dependia da senioridade, geralmente definida pela idade relativa das pessoas. Outra diferença fundamental entre as categorias sociais iorubás e ocidentais envolve a natureza altamente situacional da identidade social iorubá. Antes da instalação forçada das categorias ocidentais, as posições sociais das pessoas mudavam constantemente em relação a com quem estavam interagindo; ou seja, enquanto na sociedade ocidental a identidade social era essencialista, por exemplo, por muito tempo uma mulher não poderia votar pelo simples fato de ser mulher, agora na sociedade iorubá a identidade social era relacional. 
Ou seja, a “fisicalidade” da masculinidade ou feminilidade não possuía antecedentes sociais e, portanto, não constituía categorias sociais. A hierarquia social era determinada pelas relações sociais. Os termos de parentesco iorubá não denotam gênero; e outras categorias sociais não familiares também não eram especificamente marcadas por gênero. O que essas categorias iorubás nos dizem é que o corpo nem sempre está em vista e à vista da categorização. A autora nos dá exemplos de algumas categorias sociais e de parentesco que não tem especificidade de gênero, e que fêmeas que desempenhava os papéis, por exemplo, ọba (governante), ọmọ (prole), ọkọ, aya, ìyá (mãe) e aláwo (sacerdotisa-adivinhadora), tudo em um só corpo. Não se pode localizar as pessoas nas categorias iorubás apenas olhando para elas. O que se ouve pode ser a sugestão mais importante. A senioridade como fundamento da relação social iorubá é relacional e dinâmica; e, ao contrário do gênero, não é focada no corpo.
Entretanto, na tradução ocidental, oba, por exemplo, passou a significar 'rei' (OYEWUMI, 1997, p. 30). Porque, de acordo com a pesquisadora Signe Arnfred (2004), sempre que os ocidentais veem um trono, eles esperam que um homem esteja sentado sobre ele. 
	A autora afirma que as teorias ocidentais tornam-se ferramentas de hegemonia na medida em que são aplicadas universalmente, partindo do pressuposto de que as experiências ocidentais definem o humano, e nessa definição não se considera muito a África para se elaborar teoria sobre a condição humana. Esse estudo da Oyèrónké Oyěwùmí, nos mostra como as categorias analíticas de gênero são construídas dentro de perspectivas de mundo ocidentais, e que possuem limitações para compreender outras organizações sociais pré-coloniais. 
A autora defende que uma mudança epistemológica foi provocada pelo “domínio ocidental nos estudos africanos”, em especial através da inserção das categorias de gênero na linguagem e, consequentemente, nos modos de vida iorubás. O uso das palavras mà (madame), sà (senhor), brọ̀dá (parente masculino mais velho) e sìstá (parente feminina mais velha) “nas partes mais remotas da Iorubalândia hoje, mesmo entre as pessoas falantes monolíngues iorubás”, é um exemplo de como a linguagem apreende e é apreendida pelas dinâmicas sociais. O uso de palavras derivadas da língua do colonizador revela que, a partir da dominação ocidental, não há apenas uma mudança na fala local, mas também na lógica da organização social. Esse achado de pesquisa é o que motiva o projeto de documentar a inserção da ideia de gênero na sociedade iorubá e analisá-la sob a ótica da sociologia do conhecimento.