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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – UFSC CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO – CED PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – PPGE ANDRESSA ALANO ALVES TRADUÇÃO EM POLÍTICA CURRICULAR: produção de sentidos em contextos educativos Florianópolis 2022 ANDRESSA ALANO ALVES TRADUÇÃO EM POLÍTICA CURRICULAR: produção de sentidos em contextos educativos Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Educação. Orientador: Prof. Juares da Silva Thiesen, Dr. Florianópolis 2022 ANDRESSA ALANO ALVES TRADUÇÃO EM POLÍTICA CURRICULAR: produção de sentidos em contextos educativos O presente trabalho em nível de doutorado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros: Prof.(a) Alice Casimiro Lopes, Dra Universidade do estado do Rio de Janeiro Prof.(a) Patrícia de Moraes Lima, Dra Universidade Federal de Santa Catarina Prof.(a) Rosanne Evangelista Dias, Dra Universidade do estado do Rio de Janeiro Prof.(a) Graziella Souza dos Santos, Dra Universidade Federal de Santa Catarina Prof. Jaime Farias Dresch, Dr Universidade do Planalto Catarinense Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de doutora em Educação. Prof. Amurabi Pereira de Oliveira, Dr Coordenação do Programa de Pós-Graduação Prof. Juares da Silva Thiesen, Dr. Orientador Florianópolis, 2022 Dedico ao princípio da minha Vida, aos meus pais, maiores tesouros: Maria Gorete e Ari AGRADECIMENTOS Agradeço, e nunca será o suficiente! O percurso foi marcado por bons encontros, ainda que os tempos sombrios me tenham exigido tamanha persistência ensinaram a paciência e a conviver também com a solidão. O distanciamento trouxe dor, mas também renovou outros sentidos, vivi o amor nas mais diversas expressões! Estou aqui! Portanto celebremos a Vida! Viva! Com a minha Família… Agradeço a Grande Vida, a minha ancestralidade, aos meus antepassados pelas vibrações de amor e luz transmitidas diariamente. Aos meus pais Maria Gorete e Ari, agradeço por todo amor desde o princípio, pela fé que lhes é tão própria e por nunca duvidarem da minha capacidade. Por isso, esta tese também lhes pertence! Sou eternamente grata por tudo! Agradeço ao Alcione, meu grande amor, meu companheiro de tantas histórias, das viagens, idas e voltas, madrugadas até a rodoviária. Agradeço a confiança, por me permitir ir e vir, acolhendo meus sonhos, que no fundo são nossos! Segues ao meu lado concedendo às nossas conquistas diárias o tom da paciência que lhe é tão próprio. Ao Augusto, meu filho querido, amado, compreensível, que deseja ainda entender se “é necessário estudar tanto assim mãe”? A mamãe te ama eternamente, filho! À minha irmã Ariane, ao meu cunhado Paulo e ao meu querido sobrinho Pedro Henrique, agradeço por existirem na minha vida, por trazerem alegria e movimento em nossos dias e por acolherem com tanto carinho, desapego e compreensão em vossa casa. Sou eternamente grata! Ao meu irmão André Luiz e minha cunhada Daiana, agradeço as boas conversas, por acreditarem e apostarem no meu sucesso! Sou grata por estarem sempre por perto! Ao meu sogro Adão e minha sogra Medianeira (in memoriam), pelo tempo do conviver, por entenderem as minhas ausências e por me apoiarem em todas as decisões profissionais. À Irma, João e Daiane pelas palavras de incentivo e pela confiança no meu propósito. Sou grata a todos vocês! Celebrar com meus amigos e amigas… Minha gratidão aos muitos amigos e amigas que me acompanharam de perto… Ivana Martins, amiga que o mestrado me concedeu, inspirou minha decisão, ainda que de terras portuguesas, a distância me auxiliou nas primeiras reflexões que depois se desenharam no projeto de entrada no doutorado. Ivana Elena Michaltchuk, por acolher desde o princípio esse sonho exigindo o máximo de mim, sem deixar de acreditar na minha capacidade, sem sua compreensão e incentivo esse sonho não seria possível! Sou eternamente grata a você! Lucia Helena Matteucci que marcou significativamente minha vida profissional e neste período de formação, não foi diferente! Você é uma inspiração! Muito Obrigada! Minha gratidão pela parceria sempre generosa! Luana Paes menina-mulher-professora, você é ânimo e inspiração nos meus dias! Trabalhar contigo é sempre uma alegria! Sou grata a você! Silvania que chegou para agregar confiança, pela energia emanada com tanta tranquilidade e amor que me fazia seguir. Obrigada! Gracyelle, e Thamirys, companheiras do princípio ao fim, agradeço pelos momentos compartilhados por meio das disciplinas, dos trabalhos em grupo, das leituras, seminários, textos e reflexões, pelas conversas, as caronas e os pernoites. Bons tempos! Sentirei saudades! Bel, agradeço a presença leal e amiga, com sensibilidade e rigor me movimentava a olhar o que sozinha talvez não fosse capaz... Vou lembrar-me de ti sempre com gratidão! Minha gratidão aos tantos outros amigos e amigas que aqui seria impossível nomeá-los, mas que estiveram comigo nessa travessia, enviando mensagens, preces e vibrações de amor e apoio! Às instituições que apoiaram minha formação Ao Sistema Municipal da Educação de Lages, onde exerço minha docência desde 2012, pela oportunidade da Educação Permanente, direito de todas/os nós e, portanto, é para essas crianças e esses estudantes esse conhecimento. À Secretaria Municipal de Educação de Lages pela oportunidade de aprender diariamente com profissionais tão experientes e comprometidos. Agradeço a Secretária Ivana Elena Michaltchuk pela oportunidade concedida de compor essa equipe e indistintamente a cada uma e a cada um, de modo muito especial as coordenações das etapas e modalidades da Educação Básica com as quais convivo diariamente. Às professoras, professores, diretoras, integrantes do NEEP (Núcleo de Excelência em Educação Permanente); participantes desta pesquisa, sobretudo as/aos envolvidas/os nas Rodas de Conversa, pela imensa generosidade e contribuição na empiria desta tese. À Universidade Federal de Santa Catarina pela oportunidade de, hoje, desempenhar nela os papéis de estudante e pesquisadora. Acessar o campus e viver a academia fará toda diferença na minha constituição profissional e humana. À todas/os colegas do grupo de pesquisa ITINERA, inspiradores e sempre parceiros no exercício da ciência colaborativa, contribuíram de tal modo em minha constituição subjetiva que serão para sempre lembradas/os. De modo especial agradeço à Paulinha, Edilene, Sadi, Juliane e Adriane, vocês foram especiais! Muito Obrigada! Ao Programa de Bolsas Universitárias de Santa Catarina (UNIEDU) pelo período em que assegurou condições materiais para a realização desta pesquisa. Celebrar com aqueles e aquelas que me acompanharam e orientaram Com meus colegas, minhas professoras/es, mestras/es, doutoras/es que, para mim, fazem da academia um lugar de vida e afeto. Agradeço imensamente! Com as/os professoras/es do PPGE-UFSC Nelita Bortolotto, Joana Célia dos Passos, Elison Antonio Paim, Marcos Edgar Bassi, Juares da Silva Thiesen e Raúl Burgos que oportunizaram novas perspectivas e conhecimento por meio das disciplinas, das leituras, das reflexões propostas, das aulas remotas, das lives. Gratidão para sempre! Com as professorasDra. Alice Casimiro Lopes, Dra. Rosanne Evangelista Dias e Dra. Patrícia de Moraes Lima pelas contribuições na qualificação do projeto que foram fundamentais para a continuidade da pesquisa. Com as professoras e professor da banca examinadora: Dra. Alice Casimiro Lopes, Dra. Rosanne Evangelista Dias, Dra. Patrícia de Moraes Lima, Dra. Graziella Souza dos Santos e Dr. Jaime Farias Dresch pelas contribuições valiosas na conclusão da pesquisa. Meu agradecimento especial ao Prof Dr. Juares Thiesen é aquele que representa, aqui, o significado da gratidão eterna. Orientador desta tese, sua presença incansável fez toda diferença na minha formação. Obrigada pela disponibilidade e generosidade desde o princípio. Sensível ao me ouvir, exigente, encorajava-me a seguir! Minha gratidão por cada momento ao teu lado! Eu nunca esquecerei … Agradeço, enfim e celebro, tudo o que me acolhe e que me encoraja a seguir; da brisa a energia do abraço – e que acredito ser Deus. Muito obrigada! Ninguém me pediu estas palavras. O que dizem não provém nem de um rosto, nem de uma recordação confundida pelo tempo, nem de nenhuma ferida exposta. Se escrevem porque sim, porque existe o enquanto, porque há coisas que não são nem estão dentro ou fora; são como esse pranto ou esse riso que não vem a troco de nada; hábitos como iscas da solidão ou como imagens que ficaram órfãs. Há palavras que se atiram ao ar, palavras que se amarram ao solo e outras que não dizem nada. Sem embargo, alguém poderia supor que são estas as palavras que esperava, o que é completamente certo. Como se chegassem de outro lugar, de outra época. Como se não tivessem destino, mas sim destinatários. Palavras que ao serem lidas criam, então, uma curiosa memória nossa: os traços dos nomes e dos pássaros, a infância que se esconde para não ser descoberta, os avós que pela noite regressa. A ninguém, a nenhum escrevo. A ninguém, a nenhum, nunca, lhe direi o que há de fazer, como sonhar, de que lado do sol ou da montanha está seu mundo. Porque de cada um é o silêncio. E de qualquer um poderiam ser estas palavras (SKLIAR, 2015, p. 226). RESUMO Este texto de tese apresenta como proposição discutir o movimento de tradução de políticas curriculares em contextos educativos e, como recorte, compreender os modos como professoras/es do Sistema Municipal da Educação de Lages/SC potencializam sentidos para discursos enunciados no movimento da sua política curricular. Assume-se como pressuposto que, nos contextos de tradução das políticas curriculares, os sentidos escapam às generalizações totalizantes e desdobram-se em processos articulatórios, produzindo negociações contingentes, discursivas entre os sujeitos. Nesse âmbito, objetivou-se adensar discussões em torno do movimento de tradução da política curricular e seus sentidos discursivos nos diferentes contextos, tendo em vista que tais traduções sofrem negociações e encontram-se pronunciadas, interpretadas, reproduzidas na construção do discurso hegemônico e interferem continuamente na produção das políticas de currículo. Esse movimento constituiu-se sob a companhia dos teóricos com os quais escolhi caminhar e dialogar, referenciais teórico-metodológicos fundamentais no campo dos estudos pós críticos que envolvem as discussões do currículo e encontram-se na composição principal do texto: Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo (2011), Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2015) na compreensão da Teoria do Discurso, Daniel de Mendonça e Léo Peixoto Rodrigues (2014) nas aproximações ao pós-estruturalismo e Teoria do Discurso, ainda Alice Casimiro Lopes, em relação à Teoria do Discurso na Pesquisa em Educação (2018) e Clifford James Geertz (1989) na interpretação das culturas, sob um olhar etnográfico. A investigação, sob o ponto de vista metodológico, foi mobilizada por meio de procedimentos inerentes ao campo de estudos da Etnografia, tais como observação, registros em diário de campo, registros fotográficos e Rodas de Conversa com professoras/es. A escolha por esses procedimentos justificou-se na medida em que a leitura dos contextos educativos sugeriu uma metodologia que considerasse as diferenças inerentes à condição humana, potente para acolher as vozes de professoras/es, experiências, discursos, crenças, rituais e, assim, tornar possível a imersão concreta na interação com informantes da pesquisa. Tal imersão foi fundamental na aproximação e compreensão dos discursos existentes, seus sentidos e efeitos produzidos, bem como ao estabelecer uma convivência afetiva e uma escuta qualificada, a partir das vozes dos sujeitos envolvidos. Palavras-chave: Currículo, teoria do discurso, tradução, política curricular ABSTRACT This thesis text presents as a proposition, to discuss the movement of translation of curricular policies in educational contexts and, as a cut, to understand the ways in which teachers from the Municipal Education System of Lages/SC potentiate meanings for speeches enunciated in the movement of their policy curriculum. It is assumed as a presupposition that, in the contexts of translation of curricular policies, the meanings escape the totalizing generalizations and unfold in articulatory processes, producing contingent, discursive and negotiations between the subjects. In this context, the objective was to deepen discussions around the movement of translation of curricular policy and its discursive meanings in different contexts, considering that such translations undergo negotiations and are pronounced, interpreted, reproduced in the construction of the hegemonic discourse and continuously interfere in the production of curriculum policies. This movement was constituted under the company of the theorists with whom I chose to walk and dialogue, fundamental theoretical-methodological references in the field of post-critical studies that involve curriculum discussions and are found in the main composition of the text: Alice Lopes and Elizabeth Macedo (2011), Ernesto Laclau and Chantal Mouffe (2015) in understanding Discourse Theory, Daniel de Mendonça and Léo Rodrigues (2014) in approaches to post-structuralism and Discourse Theory, Alice Lopes, in relation to Discourse Theory in Education Research (2018) and Clifford Geertz (1989) in the interpretation of cultures, from an ethnographic perspective. The investigation, from the methodological point of view, was mobilized through procedures inherent to the field of Ethnography studies, such as observation, field diary records, photographic records and Conversation Circles with teachers. The choice for these procedures was justified as the reading of educational contexts suggested a methodology that considered the differences inherent to the human condition, powerful to welcome the voices of teachers/es, experiences, discourses, beliefs, rituals and, thus, made possible the concrete immersion in the interaction with research informants. Such immersion was fundamental in approaching and understanding the existing discourses, their meanings and effects produced, as well as in establishing an affective coexistence and a qualified listening, based on the voices of the subjects involved. Keywords: Curriculum, theory of discourse, translation, curriculum policy LISTA DE FIGURAS Figura 1: Convites para as Rodas de conversa .............................................................. 96 Figura 2: Primeira Roda de Conversa ......................................................................... 105 Figura 3: Segunda e Terceira Roda de Conversa ........................................................ 115 Figura 4: Quarta e a Quinta Roda de Conversa ...........................................................122 Figura 5: Sexta Roda de Conversa .............................................................................. 127 Figura 6: Café com Política Curricular ....................................................................... 128 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AMURES – Associação dos Municípios da Região Serrana BNCC – Base Nacional Comum Curricular CEBs – Comunidades Eclesiais de Base CED – Centro de Ciências da Educação CEIM – Centros de Educação Infantil Municipal CEP – Conselho de Ética na Pesquisa CEPSH – Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos CRE – Coordenadoria Regional de Educação DCNEI – Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil DCSMEL – Diretrizes Curriculares do Sistema Municipal da Educação de Lages EMEB – Escolas Municipais de Educação Básica EMEF – Escolas Municipais de Ensino Fundamental FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDEB – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica. ITINERA – Grupo de Pesquisa em Currículo LDBEN – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional NEEP – Núcleo de Excelência em Educação Permanente NUVIC – Grupo de Pesquisa Vida e Cuidado PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais PNAIC – Programa Pacto Nacional da Alfabetização na Idade Certa PNE – Plano Nacional de Educação PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PPGE – Programa de Pós-Graduação em Educação PPP – Projeto Político Pedagógico PRE – Plano Regional de Educação SMEC – Secretaria Municipal de Educação e Cultura SMEL – Secretaria Municipal da Educação de Lages TCC – Trabalho de Conclusão do Curso TD – Teoria do Discurso UE – Unidade de Ensino UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina UNESCO – United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization / Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura UNICEF – United Nations International Children's Emergency Fund/ Fundo das Nações Unidas para a Infância UNIEDU – Programa de Bolsas Universitárias de Santa Catarina UNIPLAC – Universidade do Planalto Catarinense SUMÁRIO 1. APRESENTAR É PRECISO? ............................................................................. 17 1.1 OS NASCEDOUROS DA PESQUISA ................................................................ 20 1.1.1 Do meu lugar de fala ......................................................................................... 29 2. APROXIMAÇÕES METODOLÓGICAS .......................................................... 40 2.1 O ENCONTRO DA PESQUISADORA E O SEU OUTRO ................................ 40 2.2 TEORIA DO DISCURSO: PERSPECTIVAS PARA PENSAR A PESQUISA EM EDUCAÇÃO NO HORIZONTE DAS POLÍTICAS CURRICULARES .......... 45 2.3 OLHARES CALEIDOSCÓPICOS ...................................................................... 55 3. PRIMEIRA MIRADA NO CALEIDOSCÓPIO – INSERÇÃO ....................... 61 3.1 CONTEXTUALIZAÇÃO DO CENÁRIO DA PESQUISA ................................ 70 3.1.1 As exterioridades da Educação Municipal em Lages .................................... 74 4. SEGUNDA MIRADA DO CALEIDOSCÓPIO – IMERSÃO .......................... 86 5. TERCEIRA MIRADA DO CALEIDOSCÓPIO – RODAS DE CONVERSA: QUAIS TRADUÇÕES ACONTECEM? .................................................................... 95 6. COMPOSIÇÕES NO CALEIDOSCÓPIO ....................................................... 104 7. CONCLUIR É PRECISO? ................................................................................. 130 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 135 APÊNDICE ................................................................................................................. 143 APÊNDICE A: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO .... 143 1. APRESENTAR É PRECISO? Acho que escrever é um devir alguma coisa. Mas também não se escreve pelo simples ato de escrever. Acho que se escreve porque algo da vida passa em nós. Qualquer coisa. Escreve-se para a vida. É isso. Nós nos tornamos alguma coisa. Escrever é devir. (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 30). Meu propósito1 é experienciar uma escrita que represente um dos possíveis modos de pensar e fazer Pesquisa em Educação, esse é apenas um; entre muitos outros caminhos que poderia eleger para anunciar por onde pretendo caminhar como pesquisadora na/da Educação. Escolho a epígrafe acima para destacar o desejo de construir um texto capaz de acolher imprevisíveis leitoras/es2, sem impor uma forma de expressão fechada ou ainda acabada. Convido a ensaiarem comigo uma leitura-devir, na tentativa de extravasar modos de ser e estar em relação ao texto, um encontro consigo e com o desconhecido, um movimento que acolhe interlocutoras/es e pesquisadora, visto que “escreve-se sempre para dar a vida, para libertar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga” (DELEUZE, 2013, p. 180). Nesse movimento da escrita-devir também considero “a imprevisibilidade da interpretação de qualquer texto” (LOPES, 2018, p. 133), que envolve a interpretação muito particular de cada leitora/r. Considero que, “Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 11). Escrevo acerca de um vir a ser, movida pelas resistências, insurgências e (des) esperanças a respeito dos espaços educativos, provocada pelo desejo de investigar o que habita para além dos aparentes discursos, textos, práticas curriculares, pedagógicas e políticas. É no cotidiano desse lugar que busco compreender como os discusos articulam- se e tecem outros sentidos às proposições curriculares, criam e recriam significações no 1 Registro aqui a compreensão de que a tessitura desta tese se compõe pela pluralidade de muitas outras vozes. No entanto, nesse momento, por uma questão de explicitação da autoria, a escrita estará em 1ª pessoa do singular. 2Minha opção por nomear primeiro o gênero feminino em relação ao masculino no decorrer da tese, acontece por entender que, pelo uso da linguagem, também se demarcam relações de poder, sobretudo porque o texto relaciona-se às mulheres-professoras do Sistema Municipal da Educação de Lages/SC, sendo elas a maioria que atuam nas instituições educativas do município. No entendimento de que: “As resistências a feminizar nunca se baseiam em argumentações estritamente lingüísticas (sic), as resistências não vêm da língua, as línguas costumam ser amplas e generosas, dúcteis e maleáveis, hábeis e em perpétuo trânsito; as travas são ideológicas” (CUNIL, 2006, p. 37). 18 campo do conhecimento e do currículo, de modo a influenciar epistemologicamente disputas e negociações tecidas na produção da política curricular. Tal dinâmica provoca olhar para o cotidiano das instituições educativas, indagar- se diante de tais representações, compor uma observação contextualizada diante dos discursos por ali ressignificados, de modo a compreender e valorizar os discursos do cotidiano educativo tecidos pelas relações entre sujeitos que ensinam, aprendem, transformam, afirmam e negam padrões convencionais, criando interfaces com o mundo contemporâneo e com a história. Na convivência intensa com o cotidiano das instituições educativas, inquieto-me diante do que sinto, vejo, ouço, reproduzo, resisto, traduzo e negocio. Acolher a possibilidade de construir análises contextualizadas em torno desse lugar, não pode, portanto me excluir dessa, o que implica deixar a pretensão de prescrever verdades, fixar respostas, idealizar um direcionamento a anunciar o que pressuponho, ou denunciarpráticas que previamente considero como aquelas que desqualificam o diferente, destroem, excluem, estigmatizam. O desafio é experienciar3 um exercício interpretativo- propositivo, que fuja do julgamento e da lógica do dever-ser (MAFFESOLI, 2010). E o exercício de um movimento interpretativo envolve acolhida ao fluxo do discurso social, das múltiplas expressões do cotidiano que por vezes escapam de análise. Logo, o que me move é o desejo de re-ver, de olhar “de perto”, (MAGNANI, 2002) de limpar as lentes que, por vezes, ofuscam o enxergar e prejudicam a arte de “estranhar” o que parece familiar. Nesse movimento de flanar pelo cotidiano das instituições educativas, constituo-me professora e pesquisadora. “Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar, ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça” (DO RIO, 2007, p. 03), como alguém que caminha tranquilamente, observadora atenta aos detalhes, alguém que aos poucos e com tranquilidade deseja fazer parte da cena. Afinal, um flâneur (DO RIO, 2007) coloca-se desobediente à norma, sua postura diante do mundo pode ser um ato de resistência, recusa a linearidade, foge dos enquadramentos possíveis para percorrer os rastros do percurso como labirintos a serem 3 Registro minha opção, na composição deste texto, pela palavra experienciar e não experimentar por acreditar que experimentar remete-nos para a homogeneidade entre os sujeitos e a palavra experienciar amplia um universo de heterogeneidade e pluralidade, e é por si irrepetível. “Além disso, posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem ‘pré-ver’ nem ‘pré-dizer’” (LARROSA, 2002, p. 09). 19 desvendados, atento aos indícios do itinerário possui tempo para observar “seu olho aberto, seu ouvido atento, [pois] procuram coisa diferente daquilo que a multidão vem ver” (BENJAMIN,1989, p. 233). Nos contextos educativos4 sigo a experienciar diferentes modos de ser e estar no/com o cotidiano e sinalizam outras rotas, em vez do Norte, por que não se arriscar ao Sul? (SANTOS; MENESES, 2010). Portanto, a problemática de pesquisa revela um pouco de tudo: dos lugares que atravessei e das muitas vidas que me acompanharam e me inspiram a justificar a composição desta tese, bem como um prosseguir mulher- professora-pesquisadora, o que também constitui o meu lugar de fala (RIBEIRO, 2017). E, ainda, sobre o lugar de fala é importante considerar, na perspectiva teórica desta tese, como um lugar de construção discursiva, ou seja, lugar representativo e permeado pela tradução dos discursos sociais. Como tese, esta escrita pautou-se na proposição: Compreender sentidos discursivos produzidos por professoras/es no(s) movimento(s) de tradução da política curricular no Sistema Municipal da Educação de Lages/SC. Para tal, a intenção foi uma escritura capaz de atender a rigorosidade dos sentidos discursivos e de acolher as narrativas reveladas pelo campo em observação. Potencialidades que, a cada encontro compartilhado com os sujeitos, possibilitaram expandir sua interpretação revelando contornos etnográficos ao nutrir-se pelos afetos, vibrações, ressonâncias, olhares, resistências, entre tantas outras expressividades transbordantes do Diário de Campo. Construções discursivas contingentes capazes de trazer o caráter da incompletude, da provisoriedade e carregar as marcas de um contexto específico e das interpretações a partir do meu olhar. Esse movimento constituiu-se sob a companhia dos teóricos com os quais escolhi caminhar e dialogar, referenciais teórico- metodológicos fundamentais no campo dos estudos pós críticos que envolvem as discussões do currículo e encontram-se na composição principal do texto: Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo (2011), Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2015) na compreensão da Teoria do Discurso, Daniel de Mendonça e Léo Peixoto Rodrigues (2014) nas aproximações ao pós-estruturalismo e Teoria do Discurso, ainda Alice 4Registro minha defesa pelo termo contextos educativos por acreditar ser uma opção discursiva capaz de abranger a especificidade dos tempos e espaços transversalizados na Educação e, também de inclusão das especificidades da infância. Termo potente na acolhida das múltiplas formas de conceber, pensar, ver, agir e viver. Assim, contexto educativo busca incluir também a infância sob uma perspectiva respeitosa de suas especificidades na abrangência da Educação, ou seja, um olhar para os diferentes sujeitos dos espaços os quais transitam. 20 Casimiro Lopes, especificamente em relação à Teoria do Discurso na Pesquisa em Educação (2018) e Clifford James Geertz (1989) na interpretação das culturas, sob um olhar etnográfico. Nessa perspectiva, a inserção no campo de pesquisa aconteceu sem roteiros fixos ou preestabelecidos, em virtude do movimento de recusar certezas. Portanto, segui mobilizada por questões de pesquisa que considerei provisórias, em um posicionamento aberto aos registros emanados do campo, por entre (des)continuidades, esta tese não teve a pretensão de alcançar a verdade a priori, mas de apresentar com sensibilidade e rigor, na tessitura do texto, as narrativas do campo pesquisado, assim como as observações registradas no Diário de Campo e a seleção das fontes documentais. Ancorada aos teóricos — anunciados para esta escritura — arrisco-me a devaneios teóricos- metodológicos (MEYER; PARAÍSO, 2014) para desestabilizar certezas e construir (com)posições, ainda que provisórias, em torno do contexto observado. Esta tese seguiu trilhas sinuosas, marcadas pela incompletude, pela abertura (FREIRE, 1996), razão pela qual não se pode constituir capítulos estanques, que interrompem o fluxo do pensar. Esta tese quis anunciar outras possibilidades que integram rigorosidade e a razão sensível dos sentidos. A razão sensível não considera a necessidade de separar intelecto e sensibilidade, vive uma experiência una entre razão, sensação, intuição; comunga uma unicidade entre conhecimento e experiência dos sentidos. Ao situar o jogo autônomo das formas que são vividas no cotidiano, “a marginalização do sensível, a perda do senso estético talvez tenha sido um erro epistemológico” (MAFFESOLI, 1998, p. 192). A razão sensível reivindica outra presença no mundo, guiada por estilos de viver imbuídos de uma estética que vê e sente a vida como um todo. Portanto, essa escolha diz de uma opção teórica-epistemológica, onde sujeitos e objeto da observação encontraram-se envoltos no processo de pesquisa, constituindo-se no movimento de ser-estar na posição de quem observa e ao mesmo instante que se é observada/o, ambos integraram e compartilharam o contexto da investigação. 1.1 OS NASCEDOUROS DA PESQUISA O pensamento educado a fragmentar deseja situar onde se encontra o início, o meio e o fim. No entanto, esta tese pretendeu fugir da lógica de a tudo querer definir, 21 ocupou-se em exaltar a complexidade do olhar, ensaiar um movimento caleidoscópico5 acolhedor de outras formas, considerando outros modos e sentidos vibrantes vindos dos contextos das investigações e imprimir outro enfoque de pesquisa junto aos sujeitos da Educação. As considerações, neste processo de escrita, foram articuladas com os contextos sociais, políticos, econômicos em que nos inserimos e não se encontram descoladas dos mesmos, recusam os determinismos para dialogar com os cenários em evidência. É, na atual conjuntura nacional, marcada por tempos sombrios com propostas autoritárias por parte dos governos e de algumas instituições, que a problemática desta tese se encontra desenhada. Como mulher-professora-pesquisadora, interrogo-me diante das evidênciasde um contexto de crise acerca dos processos econômicos, políticos e socioculturais que se explica sob as bases de um capitalismo globalizado, e dentre inúmeros aspectos sinaliza a precarização do sistema de proteção social, a escassez dos direitos civis, sociais e políticos, bem como a redefinição do Estado na produção e redistribuição da riqueza social. Ao observar tamanho descaso aos princípios constitucionais e democráticos que ameaçam um projeto de sociedade democrática e seus direitos sociais, destacaria entre eles o direito à Educação. Essas discussões apontam enormes retrocessos no país, revelado pelas medidas tomadas pelo atual governo ameaçando o acompanhamento e a implementação de políticas públicas em Educação, a liberdade de expressão, a livre manifestação de estudantes e trabalhadoras/es da Educação, entre outras adequações vividas surpreendentemente dia após dia. Observa-se, ainda, processos de interesses privativos, discriminatórios e antidemocráticos que forjam movimentos como Escola sem Partido6 e, por consequência, afrontam a liberdade pedagógica e a construção de uma Educação libertadora. Diante das recentes proposições, imposições, lutas e resistências em que se colocam diferentes seguimentos da sociedade; as instituições educativas não se posicionaram alheias a tais processos basta voltar o olhar para as discussões nacionais. 5 A analogia ao caleidoscópio tem seu nascedouro a partir da possibilidade da composição, na intenção de provocar nas/os leitoras/es da tese a complexidade do olhar, portanto transcende a ideia da imagem ocularista, com o desejo de exaltar os sentidos da investigação, por meio dos "achados" no percurso do campo. 6 “Surgido em 2004, o movimento Escola Sem Partido se define como uma iniciativa conjunta de estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao superior” (MACEDO, 2017, p. 508). Maiores informações em: https://www.scielo.br/pdf/es/v38n139/1678- 4626-es-38-139-00507. Acesso em: 05 nov. 2020. 22 Recentemente (2018) vivemos a aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que entreteceu os mais variados discursos desde a sua elaboração até a homologação e ainda provoca desconforto nos contextos educativos, visto que tais proposições não chegam despidas de complexidade e colocam-se entrelaçadas nas mais diferenciadas noções de currículo desdobrando-se desde aquelas que abordam currículo de modo fragmentado, enquanto objeto, documento escriturístico (CERTEAU, 1994), devendo orientar professoras/es quanto ao que ensinar e como ensinar, até aquelas que categoricamente consideram currículos como arenas políticas e culturais (SILVA; MOREIRA, 1995) e de certa forma são negociados e contestados em suas territorialidades, ou ainda aquelas que consideram nos cotidianos das instituições educativas os currículos realizados, ou currículos pensadospraticados (OLIVEIRA, 2012), currículos em redes (ALVES, 2001) como possibilidades potentes para a problematização do campo discursivo do currículo, entre tantas outras proposições que se enredam nesses contextos. Nesse sentido, meu interesse de pesquisa emergiu do cotidiano vivido pelas instituições educativas e apresentou como proposição inicial o seguinte problema: Quais sentidos discursivos, como tradução, são produzidos por professoras/es à proposição curricular atualmente em formulação no Sistema Municipal da Educação de Lages/SC? Nessa perspectiva de investigação, compreendo que os sentidos produzidos nos movimentos de tradução da política curricular em Lages/SC envolvem disputas de poder, visto que discursos são atos de poder, poder de significar, de criar sentidos e homogeneizá-los (LOPES; MACEDO, 2011), marcados por negociações que refletem lutas por hegemonias na significação de sentidos discursivos, ainda que provisórios. Um discurso hegemônico pressupõe, em suas particularidades, a tentativa de constituição de uma relação de ordem, portanto é um discurso aglutinador, de unidade: unidade de diferenças (MENDONÇA, 2007). Nesse movimento, defendo que há uma produção contingente de sentidos atribuídos à política curricular de Lages/SC, contexto no qual espaços são disputados em tentativas de significação. E, nessa relação, os sentidos são recepcionados, negociados, negados, resistidos, reconstruídos, enfim, produzem movimentos de tradução. Esse movimento de tradução constitui-se no fluxo de divergências, acordos, instabilidades e hibridez de sentidos, uma vez que nunca se deixam capturar por inteiro. Seria, então, impossível pensar o movimento de tradução da política curricular 23 desarticulado aos discursos sociais, visto que se encontram intrinsecamente atravessados por relações de poder, constituidoras das próprias relações sociais. Portanto, o discurso alcança sentidos de prática social permeado por totalidades diferenciadas de palavra e ação, integradoras de espaços discursivos (LACLAU, 2002). Sentidos e significados que deslizam sob interpretações da tessitura do social, visto que o social se constitui como produção discursiva (LACLAU; MOUFFE, 2015). Política curricular, no contexto desta pesquisa, é compreendida como prática discursiva, no entendimento que políticas são constituídas por meio de processos de hegemonização e traduzem os discursos de um determinado contexto local, conforme as fragilidades, possibilidades e limitações do mesmo contexto. O discurso é uma busca incessante de dar conta do social, embora se constitua sob um caráter de abertura e incompletude, “o discurso é resultado de uma construção social que, ao mesmo tempo, constrói e expressa as relações sociais em um determinado contexto” (ARAÚJO; HYPOLITO, 2017, p. 167), não obstante conservará sua característica contingente e inacabável. Cada discurso é uma articulação temporária, que se redimensiona por meio de diferentes elementos os quais hegemonicamente se intercruzam, se contradizem, desestabilizam e se abrem para outras articulações. “A estrutura discursiva não é um agrupamento homogêneo de elementos organizados, ao contrário, ela se constitui de antagonismos e contínuos processos de articulação e deslocamento” (FERREIRA, 2011, p. 17), ao mesmo tempo em que refuta a ideia de um sujeito originário e acolhe a possibilidade de um sujeito descentrado e plural. Desse modo, a Teoria do Discurso considera a complexidade da conjuntura social, que jamais se deixa capturar por inteiro, impede necessariamente a totalização dos sentidos particulares, refuta as tentativas de “fechamento completo dos sentidos sociais, são empreitadas sempre contingentes, incompletas e provisórias” (MENDONÇA, 2007, p. 250). Como uma lente teórico-metodológica, a Teoria do Discurso possibilita uma análise política no campo educacional e curricular capaz de acolher a produção dos sentidos que nesse âmbito contorna as relações, destituídas de verdades fundantes, e desestabiliza consensos, gera antagonismos, dissensos e exclusões (LOPES; CUNHA; COSTA, 2013). Nos processos de articulação e negociação as políticas curriculares sofrem interferências e produzem contextos, são ressignificadas e ganham outras nuances, 24 inclusive epistemológicas, a partir das disputas que se estabelecem em diferentes contextos incluindo os espaços dos cotidianos nas instituições educativas. Na compreensão dos processos de traduções das políticas, Laclau e Mouffe (2015) consideram também o conceito de hegemonia para pensar a política enquanto construção discursiva. Hegemonia, para os referidos autores, constitui-se uma relação identitária, em um determinado contexto, que ainda de forma precária e contingente busca representar por equivalência ou negação múltiplas identidades. Toda identidade visa completude, embora constantemente inatingível. A ideia da incompletudeda produção de sentidos na ordem do discurso, articulada por Laclau e Mouffe (2015), aproxima-se da compreensão da infinitude dos processos sociais, visto o fato de o sistema estrutural organizar-se de forma limitada e contornada de excessos de sentidos, colocando-se incapaz de fundar projetos unitários de sociedade. Portanto, a hegemonia discursiva não é uma necessidade, mas um lugar vazio, ou seja, foco de incessantes disputas entre os múltiplos discursos dispersos no campo da discursividade (MENDONÇA, 2007). Logo, não se encontram totalmente hegemonizadas, nem claramente dadas a priori pelos sujeitos em disputa. Compreender a política como discurso, implica perceber articulações, antagonismos, consensos e dissensos que se instauram em seu movimento decorrentes de práticas de negociação e fixação de sentidos. Assim sendo, “a política como discurso não deve ser entendida fora de seu contexto sócio-histórico e das relações que estabelece com outros contextos sociais, como o campo econômico e o campo cultural” (DIAS; ABREU; LOPES, 2012, p. 203). As políticas curriculares são processos de negociação complexos (BALL, 2001), visto que sofrem influências constantes do contexto político, social e histórico, assim como dos sujeitos envolvidos nessa dinâmica, aludindo que suas interferências se constituem determinantes na leitura, interpretação e tradução das mesmas. E, por aqui, retomando a problemática que moveu esta tese, importa considerar que a política curricular,“[...] seja ela compreendida como texto ou como discurso, situa- se como produto de inúmeras influências e condicionantes envolvendo intenções e negociações constantes, na qual algumas influências e condicionantes serão mais ouvidos e lidos do que outros” (DIAS; ABREU; LOPES, 2012, p. 203), ou seja, os discursos por meio de textos ou não, interpelam pensar sobre o que pode ser dito e pensado, mas também sobre quem pode falar, onde, quando e com qual legitimidade (BALL, 2001). 25 Tal movimento articula-se de maneira a legitimar quem tem direito a falar e a produzir sentidos às políticas, numa tentativa, ainda que provisória, de fixar sentidos na produção das políticas de currículo, atribuindo movimentos da tradução. Desse modo, os conceitos anunciados para dizer dos nascedouros da pesquisa, sedimentaram alguns pensares para a construção de uma pesquisa que teve por desejo compreender sujeitos e instituições, políticas e traduções. Portanto, ao fazer opção por desenvolver pesquisas sob uma abordagem mais horizontal na compreensão das políticas confere-se o caráter de complexidade, capaz de provocar a compreensão da pluralidade de modos e possibilidades para as quais a tradução se abre e se amplia a partir da intersecção entre discursos e textos produzidos, traduzidos e reinterpretados nos diferentes contextos, uma vez que tais articulações são intensamente marcadas pelo hibridismo de sentidos. “O hibridismo nos leva a compreender que os sujeitos e as instituições podem se articular de diferentes formas, não havendo a priori uma hierarquia e uma delimitação dessas articulações'' (DIAS; ABREU; LOPES, 2012, p. 204). Portanto, pesquisar no campo das políticas curriculares, implica compreender a tradução empreendida em meio às disputas por discursos hegemônicos, articulados com intenção de fixar sentidos e representações, mesmo que estes sejam provisórios e contingentes, afinal se encontram emaranhados a uma multiplicidade de outros discursos de sujeitos que se colocam com suas subjetividades e posicionamentos. As traduções encontram-se sempre pronunciadas, interpretadas e reproduzidas, por negociação de sentidos, na construção dos discursos hegemônicos, interferindo continuamente na produção das políticas. Embora os modelos verticalizados das políticas curriculares, conhecidos como top-down e bottom-up, ou seja, o “de baixo” e o “de cima”, busquem estabelecer encaminhamentos caracterizados pelos documentos oficiais, textos curriculares e produções instituídos pelo Estado, as políticas curriculares ultrapassam limites da produção, pois são processos complexos, sofrem alterações no constante movimento do vir a ser. Na interface com diferentes contextos, os textos curriculares da política, são reinterpretados e ressignificados por professoras/es, por vezes contrariando a ideia de que os textos estão fechados. Por meio da articulação entre os diferentes contextos, as políticas curriculares reconfiguram-se, por vezes alcançando contornos muito distintos daqueles pensados inicialmente, produzindo assim sentidos, práticas e conhecimento a partir da luta política de atribuir e hegemonizar determinações curriculares. 26 Nessa direção, a tradução7, na compreensão derridiana, opera como aporte teórico potente e estratégico no entendimento do movimento das políticas curriculares, constituindo aspecto central da tese. A análise da tradução, desenvolvida por Derrida (2001) e apropriada pela Teoria do Discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2015), aponta possibilidades de investigar cenários marcados pela indecibilidade que baliza o social, bem como acolhe as diferentes significações que as políticas de currículo expressam contextualmente. Uma vez que, o contexto aqui é compreendido como um sistema de significação provisório, produzido por antagonismos e exclusão (LACLAU, 2011a). Assim sendo, o conceito de tradução acolheu com potência o propósito desta tese, visto que tradução se assenta sob o objetivo geral de: Compreender os sentidos discursivos produzidos por professoras/es no movimento de tradução da política curricular do Sistema Municipal da Educação de Lages/SC. Nesse propósito, como objetivos específicos, delimitei: Analisar o movimento de tradução das políticas curriculares, sob a perspectiva da Teoria do Discurso; Problematizar os diferentes discursos produzidos, a partir da compreensão de política como prática articulatória e descrever, a partir das vozes das/os professoras/es, o movimento de tradução da política curricular, evidenciando como produzem sentidos discursivos a própria política curricular municipal. A noção de tradução possibilitou ampliar o entendimento da relação que se estabelece entre a elaboração dos documentos curriculares e como eles são recepcionados em seus contextos. Nesse sentido, “política deixa de ser o resultado de uma profusão de sentidos de diferentes contextos, mas passa a ser pensada como constituída por uma gramática cujas regras estão sujeitas a mudanças no decorrer de sua aplicação” (LOPES; CUNHA; COSTA, 2013, p. 398), visto que; as regras encontram-se dependentes dos seus próprios contextos, constituídas ainda por jogos de linguagem ou campos discursivos (LOPES; CUNHA; COSTA, 2013). Por conseguinte, desenvolvem-se múltiplos processos de significação, deslizamentos de sentidos passam a ser atribuídos, escapam da lógica dos contornos e alcances projetados. E nesse movimento, a tradução opera ininterruptamente. 7No decorrer da escrita será retomado o conceito, por entender que se encontra transversalizado a tese. Para aprofundar a leitura sugere-se o artigo: Da recontextualização à tradução: Investigando políticas de currículo em Lopes, Cunha e Costa (2013). Disponível em: https://www.curriculosemfronteiras.org/vol13iss3articles/lopes-cunha-costa.pdf. Acesso em: 05 nov. 2020. 27 Ao considerar que o movimento de tradução trans-borda os contextos das políticas curriculares, sentidos emergem e deslocam-se de um contexto social (ontologicamente político) aos cotidianos das instituições educativas implicado aos saberes e conhecimentos, atravessados por disputas, relações de poder, narrativas hegemônicas, diferenças e currículos, que transversalizam as práticas educativas de todas/os professoras/es e estudantes da escola pública brasileira que aprendem e ensinam, recriando seus mundos.Embora esse movimento incessante da tradução das políticas, nos contextos das instituições educativas, acolha uma multiplicidade de discursos, pode também configurar negociações, recepções e resistências em relação às proposições dos documentos oficiais, atribuindo novos sentidos transversalizados por outras ações como: a lógica dos resultados quantitativos, a qualidade da Educação Pública, a ascensão dos indicadores, planejamento, desempenho entre outros fatores que se relacionam aos cotidianos e, portanto, integram o preenchimento dos significantes vazios (LACLAU; MOUFFE, 2015) na tentativa de conferir-lhes unidade em meio às diferenças. Conseguinte, as políticas curriculares encontram-se emaranhadas em concepções de currículo, universalização de conteúdo, homogeneização de conhecimentos, instrumentos de avaliação em larga escala, formação de professoras/es entre outros elementos, que caracterizam doses prescritas por decisões aligeiradas e podem ocasionar o efeito temível do phármakon (DERRIDA, 2005): remédio ou veneno; “[...] porque não nos permitem tangenciar sua origem, seus efeitos, tampouco ter controle sobre eles. Reconhecer o phármakon como a textualização da política e concebê-la como coordenada por significantes que jamais alcançam a estase de sua significação” (LOPES; CUNHA; COSTA, 2013, p. 399). Curiosa analogia para relacionar aos significantes organizadores os quais compõem uma política curricular, fixam sentidos provisórios, movimentam-se constantemente e escapam às possibilidades de alcance das fixações definidas. Nesse sentido, os nascedouros desta pesquisa permearam entre tantas inquietações, incertezas, riscos e ousadias minhas, transversalizadas aos cotidianos da Educação. Dúvidas produzidas nesse mundo interrogado que a tudo e a todas/os pretende definir, explicar. Trago, junto a mim, questões da pesquisa, proposições que me encorajam a indagar também por aquilo que é “errante, inconstante, versátil, vagante, que anda de terra em terra e corre mundos” (CORAZZA, 2002, p. 133). 28 Diante de tantas indagações, algumas ganharam prioridade e acompanharam-me no contexto da tese: Como professoras/es anunciam, denunciam, recepcionam, resistem, atribuem, tecem e forjam sentidos discursivos em relação à política curricular? Como professoras/es atribuem novos sentidos às suas políticas locais em articulação com as políticas curriculares nacionais? Quais sentidos de tradução articulam-se diante da política curricular? Os diferentes discursos traduzidos pelas/os professoras/es são compreendidos como prática articulatória nos processos de produção das políticas curriculares? Currículo-tese que traduz questões provisórias, contudo anseiam valorizar os discursos que se gestam no interior das instituições educativas, aqui reconhecidas como espaço de vida e criação. Discursos e traduções que desejam compreender os modos pelos quais professoras/es expressam suas compreensões em relação aos currículos, políticas curriculares e como as mesmas podem transversalizar espaços de diálogo nos contextos educativos para qualificar a acolhida às expressões da vida cotidiana, a problematização dos saberes-fazeres dos seus currículos e a legitimidade da existência do Outro8 como sujeito que sente, pensa, fala e age em comunhão com suas experiências sociais, culturais e afetivas. Questões que transitam por entre teorias, concepções, as quais insistem em definir o modo de pensar dos sujeitos em seus determinados contextos, ao mesmo tempo em que pretende definir práticas pedagógicas capazes de transformá-los naquilo que “devem" ser. Facetas de contextos educativos que convidam a olhar como se constituem currículos anacrônicos, que inflam os fracassos escolares, multirrepetências, evasões e tantos outros considerados problemas de aprendizagem. Contextos educativos regulados sob as concepções da elaboração e implementação de currículos eficientes, que pouco se interrogam ou aproximam da escuta de quais conhecimentos compõem esses currículos, porque fazem (ou não) parte de determinados contextos e o que pretendem ensinar. Inquietações que convidam a compreendê-las por entre os horizontes de uma tessitura social produtora de desigualdades educacionais, alicerçadas na meritocracia que recompensa, pune, avalia, classifica e produzindo estigmas, enquadrando e enfatizando binarismos pedagógicos. 8Sim, o Outro como sujeito! Assim justifico a importância de ser grafado em letra maiúscula e seguirei com essa escolha no decorrer desta escrita. 29 Como esse currículo é composto? De que afectos9 esse currículo é capaz? (PARAÍSO, 2005). Currículo-memória, currículo-identidade, currículo-mapa, acolhe a diversidade das relações, rompe concepções no pensamento curricular, provoca desordens, abriga devires, mira o olhar para práticas pedagógicas e pouco se preocupa em dar respostas. Currículo-tese que gosta de criar, de reinventar, de bailar por entre os interstícios, promover encontros e desencontros, transgredir os binarismos para multiplicar os sentidos e significados expressos nos contextos educativos. Nessa perspectiva, por ser tão aberto, “não se preocupa em definir o que é mesmo currículo, sabe muito bem que a resposta a essa questão só será dada com base na perspectiva teórica que se estiver utilizando” (PARAÍSO, 2005, p. 71). Portanto, indaga os modos pelos quais articula investigações, interroga sentidos, traduções que não se fecham, desconstrói discursos hegemônicos com intenção de deslocar concepções e percepções sobre a política. O que se faz o tempo todo, talvez signifique a tentativa de fixar sentidos, contudo não é possível perder de vista esse movimento de tradução que “se dá sempre sobre o intraduzível. Não parte de uma amostra, não reproduz, ela produz outra coisa, acontece outra coisa” (LOPES; CUNHA; COSTA, 2013, p. 406). As apreensões são sempre parciais, na impossibilidade de acessar a totalidade dos contextos, inscrevo-me na cena como estrangeira (KOHAN, 2007), ciente da incapacidade de responder todas as interpelações. Habito o lugar das inconstâncias, reiterado como lugar da provisoriedade que me coloca sem cessar em relação ao inusitado e o desconhecido. 1.1.1 Do meu lugar de fala Do itinerário de professora da Educação Pública, alfabetizadora, com experiência percorrida pelas etapas da Educação Básica — Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio — segui com inquietudes, quase sempre relacionadas ao cotidiano das instituições educativas por considerar e observar, em minhas vivências, como se constituem espaços de inúmeras relações, do conhecimento e cuidado com Outro e com a vida, dos currículos que ousam acolher (ou não) as experiências, para assim estabelecer 9Afectos com “c”, aqui tem o viés deleuziano, no sentido de que nas relações afectamos o outro na mesma medida em que somos por ele afectados, isto é, atravessados pelo que ele produz em nós. (SOUSA; MIGUEL; LIMA, 2011). 30 uma coexistência sociocultural e afetiva de sentidos que possa ser renomeada nas ações educativas. Perguntar pelo Outro, a partir dele, desafia-me a compreender-interpretar artefatos culturais, afetivos, curriculares, pedagógicos, políticos, históricos que compõem os cotidianos educativos. E aí, talvez encontrar no percurso da pesquisa as brechas para registrar o que o Outro diz, seus discursos, dissensos, consensos que permeiam as práticas no movimento de tradução das/dos professoras/es em seus respectivos contextos educativos. Currículos e políticas que alinham aprendizagens, tramam experiências, formação, resistências e insurgências e entrelaçam-se na composição desta tese. Assim, defendo: não há sujeitos/objetos da pesquisa alheios às nossas vivências. É do meu lugar social que entrelaço concepções e olhares, para voltar a mirar por onde andei e anunciar os motivos pelos quaisme constituí a mulher-mãe-professora- pesquisadora que agora trans-borda experiências com as quais ensaiei as aproximações escolhidas para esta tese e dizem dos lugares de minha travessia. Revisitar memórias ajuda-me a compreender e ampliar o olhar, não para fixá-lo ao que passou, mas para me lançar no manuseio de outras lentes e elaborar outras sínteses, ainda que provisórias. Afinal, “cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam [...] é essencial conhecer o lugar social de quem olha (BOFF, 2000, p. 11). Quero visualizar o presente não meramente como efeito do passado, prefiro ousar uma miragem menos linear que me leve a “ziguezaguear, para lá e para cá, de um lado para outro, dos lados para o centro, fazendo contornos e curvas” (MEYER; PARAÍSO, 2014, p. 18) para compor imagens que revelem e anunciem quem hoje eu sou e por onde escolhi trilhar como pesquisadora. Portanto, é com Djamila Ribeiro (2017), que escolhi compartilhar fragmentos da minha trajetória, ao emprestar o termo “lugar de fala”, conceituado pela filósofa, feminista, negra, escritora e pesquisadora. Desejo situar para leitoras/es o meu lugar social, onde me constituo, me reinvento no/do cotidiano e nesta tese coloco-me em movimento no desejo de compreender a tradução das políticas curriculares produzida pelas/os professoras/es do Sistema Municipal da Educação de Lages/SC. Importa aqui, de maneira subjetiva, trazer fragmentos dessa trajetória para realçar os motivos pelos quais essa temática faz sentido em mim e assim provocar o pensar em relação ao quanto os interesses de investigações são inerentes aos contextos experienciados. 31 Eu sou do Sul do Brasil, nascida na serra gaúcha — Caxias do Sul/RS — cheguei aos braços de minha mãe no inverno de junho de 1979. Sou a primeira filha mulher do casal de trabalhadores que gestaram mais uma irmã e um irmão. Com meus pais experienciei valores inestimáveis, provei doses assertivas de amor, partilha, frustração, presença, espera, escuta, exigência e colo. Cresci provocada a observar o que acontecia ao meu redor, sempre havia um convite a expandir o olhar para além do meu mundo, fui ensinada a repartir o pouco que tínhamos, a comer e não esquecer que outros se sentariam à mesa, a proteger meus irmãos, a compartilhar minhas coisas pessoais, mesmo quando a personalidade de filha primogênita insistia em resistir. Assim, com razão e sensibilidade, meus pais foram os primeiros incentivadores de experiências que me constituíram implicada aos processos humanos, afetivos, sempre sensível à presença e em disposição ao Outro. Experiências enquanto possibilidade de encontro, de escuta, de posicionamento diante do mundo, considerando como [...] algo nos passe ou nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar- se tempo e espaço (LARROSA, 2002, p. 160). Desde muito pequena desfrutei de um contexto familiar que me possibilitou perguntar e argumentar em diferentes situações, o que me faz considerar pai e mãe grandes educadores, seja pela presença constante, ainda por vezes autoritária, seja pelos limites mesclados de muito amor e cuidado que se revelavam nos momentos de estudos, desde o fazer das tarefas ao desempenho da aprendizagem que se traduzia na exigência de boas notas. Bom desempenho nos estudos associava-se à conquista de melhores oportunidades de vida, então, comprometimento e muito esforço alicerçavam minha infância estudantil. Como estudante de escola pública, do Ensino Fundamental ao Médio, cresci vivenciando experiências entre escolas da cidade e do campo, marcadas pelos bons encontros com amigos/as, pelas brincadeiras no recreio, a partilha da merenda, também pela expectativa da entrega do boletim e das normas, recompensas, transgressões e disciplinamento. A ausência de sentido impregnada nos currículos por vezes causava 32 desinteresse, mas ocupar a posição de “boa aluna” colocava-se como imperativo. Recordo-me do esforço para estar entre as “melhores” e o medo de estar entre as classificadas como “piores”. Só hoje compreendo que a lógica da escola meritocrática deixou de acolher as individualidades de cada um e gerou histórias de abandono e fracasso, ao contrário de promover sentimentos de cooperação e solidariedade. “Lugar de fala” que constituiu relações em mim, mas também em muitas outras crianças pobres, que viveram alegrias, abandonos e as desesperanças de passar de ano, por não cumprir a escolarização prevista pelos tempos seriados, conteúdos fragmentados e isolados por disciplinas. O que, na leitura de Ribeiro (2017), sou inspirada a considerar, visto que o lugar de fala não se reduz apenas em vivências, experiências ou posicionamentos individuais, ao contrário argumenta a autora: Não estamos falando de experiências de indivíduos necessariamente, mas das condições sociais que permitem ou não que esses grupos acessem lugares de cidadania. Seria, principalmente, um debate estrutural. Não se trataria de afirmar as experiências individuais, mas de entender como o lugar social que certos grupos ocupam restringem oportunidades (RIBEIRO, 2017, p. 61). Considerações importantes no movimento de reconhecer-se integrante de determinados contextos que (des)legitimam identidades, processos resultantes das relações de poder que se articulam de modo a validar e privilegiar certos grupos em detrimento de outros. Foram esses espaços que, também, constituíram em mim modos de ser e estar em relação ao mundo, ao Outro, à escola, aos currículos. Espaços como a morada no Internato Franciscano para cursar o Ensino Médio/Magistério, possibilitando-me olhar as coletividades, experienciar uma convivência em grupo, o exercício de partilhar espaços e tempos, afazeres domésticos entre outras normas de um regime de internato. Também a relação com os espaços comunitários, dentre os quais o envolvimento com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)10, que naquele momento era extremamente significativo na região serrana. Efervescência de organizações e movimentos populares: saúde, associações, sindicatos, partidos políticos populares, luta pela terra, moradia, direitos da criança e adolescente, juventude, mulheres. 10“As CEBs comunidade eclesial de base, abre-se ao movimento popular, ajudando a criar ou a fortalecer formas de organização popular autônomas, desvinculadas do Estado e da Igreja” (BETTO, 1981, p. 24). 33 Contextos educativos que fortaleceram minha expectativa pelos contextos educativos como espaços plurais, mesclados de oportunidades diversas, marcados por experiências de interações, conhecimento, vida, acolhimento, mas também de estigmas, fracassos, afetos e desafetos, abandonos e violências, sobretudo no período dos estágios nas Unidades de Ensino, onde compartilhei as primeiras experiências com comunidades conhecidas como “de periferia11”. O contexto das instituições educativas instiga-me a relacionar a relevância do trabalho social, nas comunidades de base e a compreender o quanto esse movimento incide diretamente na vida das nossas crianças, assim como na relação dos familiares com os contextos educativos, com a comunidade, com o mundo, “o sensível é a condição de possibilidades da vida e do conhecimento” (MAFFESOLI, 1998, p. 76). Essa relação com a comunidade fortalecia minhas intuições.Em 1998, concluí o Ensino Médio/Magistério e deixei o internato das Irmãs Franciscanas. Ingressei no Curso de Pedagogia na Universidade do Planalto Catarinense (UNIPLAC). Concluí a graduação, conciliando a jornada: trabalho durante o dia e a graduação à noite. Concebia o tempo e o espaço de acordo com interesses muito próprios, criava resistências particulares com a estratégia de dar os meus próprios tons às aprendizagens que pudessem lançar-me na docência com outros modos de ser estar em relação, afinal; “um corpo escolarizado é capaz de ficar sentado por muitas horas e tem provavelmente, a habilidade para expressar gestos ou comportamentos indicativos de interesse e de atenção mesmo que falsos” (LOURO, 2010, p. 21). Entre tantas inquietudes que extravasavam meu corpo, estavam àquelas do contexto do estágio que ganharam relevância e espaço quando da escolha do Trabalho de Conclusão do Curso (TCC), nas temáticas comuns e no repertório das sugestões não compunham a que se constituía necessidade do contexto da escola onde fazia o estágio Projeto Político Pedagógico (PPP)12, foi nesse movimento que pela primeira vez, os profissionais da unidade de ensino sentaram para conversar e ensaiar as primeiras iniciativas de organização das práticas, currículos e concepções que pudessem fazer sentido com o que acreditavam e compreendiam ser possível registrar no Projeto Político Pedagógico (PPP). 11Termo que aqui não se define pelo afastamento de um centro, mas pelo fronteiriço, em uma possibilidade de acolhida das vozes, culturas, histórias, silenciadas pela modernidade ocidental. 12 Trabalho de Conclusão de Curso intitulado: Projeto político pedagógico para Séries Iniciais e Educação Infantil. (2001). 34 Os anos da graduação em Pedagogia e na Especialização/Educação Especial e Séries Iniciais13, na mesma universidade, possibilitaram minha aproximação aos conhecimentos relacionados com a área das deficiências e possibilitaram ensaiar uma escuta qualificada às diferenças que contemplavam o universo de meninas e meninos que por vezes se constituíam invisíveis na totalidade de suas existências, passavam a ser reconhecidos apenas em suas deficiências. Ensaiar um olhar contextualizado nas práticas que banalizam a vida e naturalizam relações que desprestigiam o Outro, romper com estereótipos historicamente validados pelo discurso normativo, não se configura tarefa fácil, há uma prática de relatar quase sempre as ausências, quase nunca as possibilidades. O fracasso desenhava-se sempre como culpabilidade do Outro, mas alterar essa lente do olhar, por vezes tão judicativa, incomodava-me demais, estabelecer outras formas de estar com as crianças colocava-se como necessário. Em 2012, ingressei no Sistema Público Municipal de Lages/SC, como professora de Anos Iniciais e, por opção, escolhi uma unidade educativa inserida em uma comunidade popular. Compreendo que minhas experiências também se produzem nos/pelos contextos populares, os quais vejo como cenários que convocam ao compromisso da formação humana, social e política. Seguir era preciso, no entanto as dificuldades, por vezes, marcavam em mim sentimentos de solidão e os diálogos com a maioria das colegas professoras, revelavam- se na descrença de possibilidades de mudanças do cenário apresentado, condição na qual eu resistia, com vistas em não aprisionar minha subjetividade. Minha intuição aliada ao desejo de “fugir” ao que parecia enquadrar minha corporeidade insistia em outros itinerários, como possibilidade de traçar linhas de fuga (DELEUZE; GUATARRI, 2011), “fugir” como um ato que possa conduzir para um novo modo de viver, como um ato de coragem, “fugir” no sentido de romper com o que parecia estabelecido. Possibilidade que se colocava como horizonte singular, para ampliar o mapa conceitual da realidade que estava para mim, com disposição ao diálogo e assim estabelecer outras formas de estar- junto, sem perder de vista uma pedagogia do cuidado (SOUSA, 2011) que tem uma dimensão ética e epistemológica de atribuir prioridade absoluta à vida em todas as suas dimensões, como princípio da construção coletiva de convívio social dentro e fora da escola. 13 Trabalho sob o título: O desenvolvimento do pensamento e da linguagem: uma reflexão necessária à prática nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental. (2004). 35 Foi assim que percebi a necessidade da continuidade da minha formação humana-profissional, pesquisei cursos de Mestrado que compartilhassem perspectivas relacionadas ao meu trabalho, e assim ingressei no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), na Linha de Ensino e Formação de Professores, em 2014. Percurso que, mesclado por disciplinas e o Grupo de Pesquisa Vida e Cuidado (NUVIC)14, oportunizou conhecer teóricos da perspectiva pós-crítica e conviver com pesquisadoras/es que compartilhavam inquietudes relacionadas às violências, gestão do cuidado, gênero, infâncias, sexualidade, estudos etnográficos entre outras temáticas de pesquisa que hoje me possibilitaram compor alguns recortes e estabelecer algumas das interlocuções nesta tese. Por entre currículos que tramam aprendizagens, resistências, formação, tornei- me em 2016, mestra pela UFSC. A filha de trabalhadores que por tanto tempo sonhou com o acesso à universidade pública, concluía sua primeira formação na UFSC. Experiência que descreve o meu lugar, mas também anuncia o lugar de muitas/os outras/os mulheres e homens, jovens que anseiam acessar os espaços universitários. Lugares que marcaram minha corporeidade e que neste texto-tese provocam a “pensar lugar de fala é uma postura ética, pois sabermos o lugar de onde falamos é fundamental para pensarmos as hierarquias, as questões de desigualdade, pobreza, racismo e sexismo” (RIBEIRO, 2017, p. 84). É neste mosaico interpretativo, que reconheço as aprendizagens as quais o mestrado possibilitou, por onde aos poucos ousei desterritorializar conceitos e territorializar outros, compor sínteses provisórias, que endereçam sempre para novas perguntas, ajudando-me a compor um outro modo de ver, de pensar e de me colocar no mundo. Sim, de pensar o mundo, pois pensar é desterritorializar-se. O pensamento é criação e para criar algo novo é preciso romper com o território existente, criando outro (DELEUZE; GUATTARI, 2011). Posteriormente a conclusão da pesquisa de mestrado retornei ao Sistema Municipal de Lages, neste momento com um novo desafio: atuar na Secretaria Municipal da Educação de Lages/SC, especificamente no Núcleo de Excelência em Educação 14 O Núcleo Vida e Cuidado: Estudos e Pesquisas sobre Violências (NUVIC), criado em 2002, é um espaço interinstitucional vinculado ao Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (CED/UFSC) e ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFSC). É um núcleo que, epistemologicamente, se orienta, se organiza e se movimenta interdisciplinarmente; já que compreende as violências como fenômenos complexos, multifacetados e situados em termos geopolíticos, culturais e institucionais. Informações retiradas de: http://nuvic.paginas.ufsc.br. Acesso em: 22 mai. 2022. 36 Permanente (NEEP)15. Foi nesse espaço de escutas, proposições e inquietações que me reconheci outra vez movida pela (in)satisfação de prosseguir com minhas questões de pesquisa, acolhendo indagações de uma trajetória marcada pelas experiências do ser professora-pesquisadora. Sigo, agora, pistas sinalizadas por professoras/es que caminham junto a mim entre as exigências, renúncias e experiências da Educação Pública Municipal. Acompanho, sob o horizonte da Formação Continuada16 das/os professoras/es do Sistema Municipal da Educação de Lages/SC, as orientações pedagógicas, discursos e concepções transitando entre as proposições pensadas pelo grupo de professoras/es,encontros de formação continuada e suas implicações no cotidiano das unidades de ensino (UE). São questões emergentes das instituições educativas, mas também das atuais necessidades de discussões e diretrizes da implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), conteúdos curriculares que merecem destaque, visto quais conhecimentos são mais relevantes (ou não), práticas políticas e pedagógicas nos contextos das instituições educativas, quais concepções de avaliação são abordadas pelas/os professoras/es, entre outras questões emergentes transversalizadas pelas proposições de profissionais que participam da organização administrativo-pedagógica de uma Secretaria de Educação Municipal. Nesse movimento de animar tantas inquietudes, segui com a escolha pelo doutoramento, que mais uma vez me fez considerar essa decisão, atitude ética para comigo e com o Outro, enquanto possibilidade de ampliar a compreensão das realidades. Paulo Freire inspira a problematizar que: 15 Núcleo de Excelência em Educação Permanente (NEEP), constitui-se em um setor de trabalho localizado nas dependências da Secretaria Municipal da Educação de Lages/SC, composto por professoras/es que organizam, planejam, escutam, discutem e articulam Encontros de Estudos voltados ao processo de Educação Permanente com os demais profissionais que atuam no Sistema da Educação de Lages/SC. 16 A formação continuada está prevista em diferentes documentos da legislação educacional brasileira, assegurando aos profissionais períodos específicos de capacitação, objetivando atender às especificidades da docência, bem como das suas atividades teóricas e práticas, de modo a contemplar todas as etapas e modalidades da Educação Básica. Estabelece ainda, o aperfeiçoamento continuado de professoras/es em exercício, por meio de carga horária planejada para estudos, inclusive em serviço. Ao longo da minha inserção neste contexto da formação continuada oferecida e assegurada também em legislação municipal aos profissionais do Sistema Municipal da Educação de Lages/SC, no contexto da tese, o conceito de formação continuada foi ressignificado, a partir do campo de investigação com professoras/es do Núcleo de Excelência em Educação Permanente (NEEP). Portanto, situo que, sobretudo a partir da inserção e imersão no campo da pesquisa, o conceito de formação continuada alcançou sentidos antes não considerados em minha atuação profissional, sofrendo alterações a partir de uma perspectiva teórica, epistemológica e metodológica, defendida por professoras/es com os quais estive no campo. Considero aqui importante situar que, no contexto local da política curricular municipal, essas ressignificações ocupam lugar de destaque no texto das Diretrizes Curriculares do Sistema Municipal da Educação de Lages (DCSMEL). Diante do tempo de inserção e imersão no campo, sob o olhar etnográfico desta investigação, optei por nomear os referidos momentos da formação continuada de Educação Permanente, por compreender e me sentir convencida de que o conceito acolhe a perspectiva das/os profissionais da Educação Municipal de Lages/SC. 37 Minha presença de professor, que não pode passar despercebida dos alunos na classe e na escola, é uma presença em si política. Enquanto presença não posso ser uma omissão, mas um sujeito de opções. Devo revelar aos alunos a minha capacidade de analisar, de comparar, de avaliar, de decidir, de optar, de romper. Minha capacidade de fazer justiça, de não falhar à verdade. Ético, por isso mesmo, tem que ser o meu testemunho (1996, p. 110). Outra vez escolhi estar envolvida em inquietudes produzidas nas/pelas instituições educativas, visto que nelas somos a continuidade dos estilos de viver, podendo-se tecer alternativas possíveis para partilhar e ampliar os saberes que ali se encontram e se tramam. Movidas/os por uma ética da igualdade de direitos entre todas/os, é possível compor experiências que acolhem e preservam a vida em sua totalidade, tramar currículos compostos em dinâmicas entre o conhecimento e as relações, que acolhem e valorizam as diferenças da vida em sua totalidade planetária, apreciam a multiplicidade de manifestações de ser-estar em relação e refutam toda discriminação em defesa de viver plenamente a nossa corporeidade. Assim como entre tantos outros contextos sociais, o contexto das instituições educativas encontra-se mesclado de paradoxos, similitudes e da multiplicidade dos seus afetos, preconceitos, negações, resistências e proposições, e de discursos refletidos do social e do político que os envolvem. Um espaço de relações, de encontros, rasuras, escapes e limites, podendo possibilitar a superação e a fuga à determinados discursos, ressignificando outros, numa postura de esvaziar-se para recriar outros modos de trans- bordar sentidos e práticas. Sob uma perspectiva capaz de “religar o que foi desconectado, problematizar o que foi dogmatizado e questionar o que foi imposto como verdade absoluta” (THIESEN, 2008, p. 551), numa abordagem que se constitui a partir da multiplicidade de identidades e subjetividades, bem como dos seus interesses representativos do social. O cotidiano das instituições educativas, por se constituir território atravessado por muitos currículos, traduções, identidades e subjetividades onde nos constituímos e entrelaçamos as vivências desse cotidiano, nele ensaiamos, pensamos, somos pensados, conhecemos, somos conhecidos, assim, convido a considerar: [...] eu penso o cotidiano enquanto me penso; eu faço parte desse cotidiano que eu penso; eu também sou esse cotidiano; eu não penso sobre o cotidiano, eu penso com o cotidiano; esses momentos, movimentos, processos, tentativas, possibilidades, de pensar com os cotidianos, de me pensar, possibilitam que eu me conheça ao mesmo tempo que busco conhecer os outros...mas eu também sou esses outros; sou todos aqueles que ali estão; sou parte ausente de uma história passada recontada pelos sujeitos de hoje; mas também sou parte de 38 uma história presente ainda por ser contada pelos que virão. (FERRAÇO, 2007, p. 81) Reconhecer-se nos próprios percursos, implica interrogar os discursos anunciados, reinterpretados e traduzidos em relação às políticas curriculares. Movimento que convida a estar nos contextos educativos, de modo a problematizar discursos que ecoam por meio as práticas dos sujeitos nele envolvidos. O movimento dessas relações- interações, os efeitos dos discursos, contextos sociais vividos pelos sujeitos do cotidiano reflete os currículos pensadospraticados (OLIVEIRA, 2012), marcado por articulações, hibridismos, políticas curriculares que transversalizam práticas, sentidos e significados de currículos em movimento, ao mesmo tempo em que atualizam o olhar aos modos pelos quais se traduzem e se expressam concepções pensadas para esses currículos. No cruzamento com outros espaços de interlocuções e com as relações por meio do doutoramento, destaco a minha inserção no grupo de pesquisa ITINERA17, experiência que me possibilitou ampliar relações com abordagens teóricas e construções conceituais que agregaram e fortaleceram meus interesses de pesquisa, contribuindo assim com a minha relação de pesquisadora em contextos educativos e o adensamento das pesquisas e metodologias relacionadas aos currículos. Nessa complexidade do olhar, que mira os cotidianos, currículos encontram-se emaranhados de sentidos e representações. Currículos constituem-se práticas educativas, não se organizam de modo passivo, nem estático, anunciam movimento e diálogo. Currículos intimamente ligados às tramas dos cotidianos educativos, como relações de poder, selecionam privilegiam e/ou suprimem saberes, conhecimentos, o que também caracteriza atos de poder. Logo, por instabilidades e contingências, ora constrói, ora desconstrói determinadas concepções e posicionamentos que se
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